Laços de sangue

Page 1

L a ç os d e S a n g u e

C A P Í T U LO 1

O OVO DA SERPENTE

É

possível identificar as ações que já indicavam o surgimento do PCC dois anos antes da fatídica data de 31 de agosto de 1993, dia em que estourou uma grande rebelião em Taubaté. Isso porque, quando assumiram tal denominação, na CCT daquela cidade, apenas consolidaram algo que os presos organizados já vinham arquitetando há tempos e colocando paulatinamente em prática em ações aqui e acolá. Em 11 de março de 1991, Cesinha e Isaías Moreira do Nascimento, o Isaías Esquisito (ambos “Fundadores), partilhavam a mesma cela no presídio de Avaré. Durante o banho de sol, escureceu e começou a chover. Os agentes, então, começaram a recolher os presos. Cesinha e Isaías Esquisito aproveitaram essa debandada para se aproximarem de outro detento, chamado Amaury Donizete, o Rato, que estava ainda reunido com seu grupo. Depois de uma acalorada discussão, com algumas palavras duras, Cesinha sacou um estilete e esfaqueou Amaury Rato, que tentou se defender. Houve intervenção dos agentes e ele foi retirado do pátio ainda vivo, mas acabou morrendo posteriormente – nessa época, o 15


Marcio Sergio Christino e Claudio Tognolli

diretor do presídio era Lourival Gomes (que depois se tornou secretário da Administração Penitenciária). Cesinha sempre teve como característica assumir o que fazia, por isso tinha o respeito dos demais presos. Ao se justificar, ele disse que houve uma briga durante um jogo de futebol com troca de ofensas e, em decorrência dessa discussão, ele e Isaías Esquisito foram para cima de Rato para se vingarem e simplesmente o mataram − mesmo discurso depois usado para iniciar a rebelião de 1993 e em outras ações de vingança por outros comparsas de Cesinha, entre eles Isaías Esquisito e Zé Márcio Felício, revelando já haver um padrão, a existência de uma articulação coordenada, quer dizer, já haver indícios de que uma organização estava ocorrendo. Havia a possibilidade de que, naquela época, em 1993, eles provavelmente já tivessem o domínio de alguns presídios, já que a ocorrência dessas vinganças por causa de discussão no futebol, como forma de eliminar outras lideranças, começou a se tornar mais constante nas penitenciárias, fruto da movimentação dos presos de um presídio para outro – em razão de pedidos ou de suborno. O curioso é que já havia uma estratégia de discurso para justificar essas eliminações de modo a não levantar suspeitas sobre uma provável dominação dos presídios paulistas por uma só facção. Como se vê, o PCC não nasceu em 1993 e em seguida se espalhou de maneira imediata, mas foi nesse ano que se consolidou o controle da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, o mais duro dos presídios, onde o Estado era mais presente. A ação que matou Severo e Garcia por causa de “desavenças no futebol” não foi por acaso. Aquilo era um time, mas não tinha nada a ver com o esporte paixão nacional. Era, isso sim, uma equipe montada para conquistar poder dentro do presídio. Após a rebelião que se seguiu à data da fundação da organização, muitos de seus “Fundadores” foram removidos para o coração do sistema, a Casa de Detenção, popularmente chamada de Carandiru – essa ação estruturou mais ainda o PCC, já que seus alicerces, os “Fundadores”, estavam juntos.

16


L a ç os d e S a n g u e

De qualquer forma, esses “Fundadores” já tinham feito um caminho dentro do sistema penitenciário. Quer dizer, não procede pensar que de repente esses presos se uniram fortemente. Na verdade, essa união foi resultado de um longo planejamento que culminou com a tomada de Taubaté com um levante de detentos sob o comando dos “Fundadores”. Os presos do interior se julgavam melhores do que aqueles que ficavam na Casa de Detenção da capital, onde as condições eram piores. Algo como presidiários de segunda categoria.

17


Marcio Sergio Christino e Claudio Tognolli

C A P Í T U LO 2

DE VOLTA AO BATISMO DE SANGUE

T

udo teve início em Taubaté, no interior paulista. Era onde estava o Piranhão, a Casa de Custódia e Tratamento, que não era bem um presídio. Em tese, funcionava mais como um hospital psiquiátrico, onde ficavam contidos os insanos, os loucos. Só que, com o tempo, o governo do Estado de São Paulo acabou criando ali uma unidade prisional que faria a contenção de presos considerados de máxima periculosidade. É possível ver seus muros altos, seu enorme portão de madeira pintado de cinza, não de ferro − algo exótico para os padrões de segurança pública − e sua vigia minguada. Afinal, não era para ser um presídio, mas sim um hospital. O ar é docemente lúgubre. Entra-se, vê-se que foi ampliado às pressas e passa a ter o formato de um pequeno presídio. À direita e à esquerda há dois escritórios, algumas dependências, e vê-se a ala médica em que ficam os doentes psiquiátricos. O presídio brota na paisagem, totalitário, depois de uma série de grades, de obstáculos e de várias medidas de segurança, nem tantas, nem tamanhas.

18


L a ç os d e S a n g u e

Isolavam-se ali todos os que eram considerados como “piranhas”. Foi nesse ambiente que tudo começou. Estava preso no Piranhão o José Márcio Felício, o Geleião, grande idealizador do PCC. É certo que ele já trazia na cabeça todo o DNA do grupo, estruturado a partir de sua história pregressa voltada para o crime. Com ele também estavam os demais detentos que formariam o grupo de “Fundadores” da facção. A junção dos bandidos mais perigosos num lugar só nunca deu certo e, no Brasil, adubou as grandes organizações criminosas. Foi na CCT de Taubaté, considerada o pior presídio de todos, que Geleião encontrou seu bioma preferido. Lá, ele tinha um apelido secreto que ninguém sabia: chamavam-no de Cavalo Branco, embora fosse negro, forte e tinha quase dois metros de altura. Na CCT ele reencontrou o César Augusto Roriz Silva, o Cesinha, dono igualmente de um apelido que ninguém conhecia: Exu ou Exuzinho. Viviam rodeados de seis amigos, todos de altíssima periculosidade, briguentos e extremamente violentos. Davam facadas como quem dá bom-dia. Na cabeça de todos eles, a mesma ideia: conseguir o domínio do sistema penitenciário. Seria ali o grand début. O time de futebol PCC planejou matar os detentos Baiano Severo e Garcia, líderes de quadrilha e fortíssimos no sistema. Se o fizessem, consolidariam a existência do PCC. Geleião admitiu que, depois de ter matado os dois, o grupo se reuniu e decretou que era o momento de selar e fundar a organização: “Agora nós vamos fundar”. *** O dia 31 de agosto de 1993, data das mortes e da fundação do PCC, traz algumas peculiaridades que talvez os “Fundadores” nem tenham se dado conta. “É o dia que nunca deveria ter existido”, dizem os alfarrábios. Porque o dia 31 de agosto só foi criado para equivaler a 31 de julho. Julho tem esse nome por causa do imperador romano Júlio César e tem 31 dias. Agosto tem esse nome por causa do imperador romano Augusto e tinha 30 dias. Como pode um imperador ter mais dias que o outro? A solução

19


Marcio Sergio Christino e Claudio Tognolli

foi simples: colocaram 31 dias nos dois. A data prenuncia conflitos. Na verdade, esse não foi de fato o primeiro dia do PCC. A data de surgimento do PCC já fora imaginariamente parida a fórceps bem antes. Mas foi naquele fatídico dia de agosto que se consolidou como o de sua fundação, com a devida meta singularmente alcançada: matar quem lhes atravessasse o caminho no que pretendiam, ou seja, dominar o sistema prisional. A lógica penitenciária era rasa. Prendiam dez caras que assaltavam banco e os colocavam na Casa de Detenção, atulhados e assimetricamente conectados. Eles então reproduziam no sistema o bando que tinham na rua. *** Vários bandos tentaram a sorte na organização. Começaram a aparecer os tais Serpentes Negras, um fenômeno muito fugaz e ocasional, já que não tinham planejamento, muito menos consciência do sistema prisional. Eram como quadrilhas. Só isso. Não uma facção criminosa. L U C KY L U C I A N O B RA S I L E I RO Há atores em papéis principais. Geleião, por exemplo, é um indivíduo de uma capacidade física muito grande e está preso desde os 18 anos. Segue preso em razão dos inúmeros crimes cometidos dentro do próprio sistema prisional. Jamais conheceu as ruas depois de encontrar as grades. Dispõe de pouca ou nenhuma noção do que é a vida fora do presídio, onde passou por reveses singularmente violentos: inúmeras vezes torturado, espancado, submetido a diversos tipos de sevícia. A própria questão de Taubaté era complicada, dizem aqueles que lá estavam e que, dia sim, dia não, ou uma vez a cada três dias, eram espancados a golpes de cano de ferro. A escalada de violência era fato, uma vez que as autoridades reconheceram o que verberava José Márcio Felício, o famoso Geleião. Ele concordou em fazer um exame médico neurológico que depois confirmou a existência de lesões no cérebro, fruto de golpes e espancamentos. Outro detento que também apresentava sequelas de violência e estava

20


L a ç os d e S a n g u e

em Taubaté era Sandro Henrique da Silva Santos, o Gulu, que viria a ter um papel fundamental na evolução da organização criminosa. Ele tinha os ossos dos ombros deslocados de tanto ser “mimoseado” com golpes de ferro. Todos eles narravam, com estranha naturalidade, essas formas de maus-tratos sofridas na prisão. O Zé Márcio também. Só que sua cabeça guardava uma organização de pensamentos mais elaborada que a dos colegas, que só pareciam repetir uma ladainha. Ele teve uma intuição parecida com a de Salvatore Lucania (1897-1962), mais conhecido como Charles “Lucky” Luciano, que criou o primeiro sindicato do crime nos Estados Unidos e depois na Sicília. E, assim, Geleião juntou todo mundo em seu xadrez imaginário, erigido com peças de carne, osso e sangue derramado. José Márcio teve uma ideia que não era a mesma concepção do italiano mafioso, mas bem parecida. “Vamos juntar as lideranças aqui e fazer uma organização a partir da qual nós vamos dominar tudo”, teria dito ele, que foi o pater da sigla PCC. Numa reunião, às vésperas de um jogo de futebol e para decidir o nome do time, que seria também o nome do grupo, estabeleceu: − Ah, tem o Comando Vermelho, Comando isso, Comando aquilo... Põe o Primeiro Comando da Capital. José Márcio foi então falar com José Ismael Pedrosa, o diretor de Taubaté: − Nós queremos montar um time de futebol. Queremos fazer um campeonato. Era o ano de 1993 e Taubaté já vinha sofrendo críticas sobre a sua administração. Pedrosa, então, pensou: “A Casa de Custódia vai aliviar um pouco as más avaliações”. E acabou autorizando a realização do tal campeonato de futebol, supondo-o um ícone de paz e bem-aventurança penitenciária. O que havia por trás do campeonato? Havia outra história. Na CCT existiam duas alas. O acerto do Geleião era conseguir um acordo de cooperação para a tomada de controle dos presídios com todos da sua ala. Mas da outra ala, que ficava do outro lado, ele não conseguiu nada, isto é, não conseguiu persuadir as lideranças a seguirem seus objetivos. E quem eram essas lideranças? Baiano Severo e Garcia. Eles se opunham a essa liderança do José Márcio porque não queriam ceder. Em nada. Mais

21


Marcio Sergio Christino e Claudio Tognolli

ainda, haviam mandado matar um amigo de José Márcio, conhecido como Arão, na Penitenciária de Guarulhos. Para isso não havia perdão. Para a realização do tal campeonato de futebol, dividiram os times em alas, ou seja, a Ala 1 ia ter seus times, assim como a Ala 2. E, pela dinâmica do certame, o time de uma jogaria contra o time da outra. Engenhoso. Já, já eles iam passar pelos controles da penitenciária para irem jogar na quadra. E quando chegasse a hora de jogar, o plano era eliminar a concorrência, e ao assumir a liderança da outra ala, iriam controlar o presídio inteiro. Teria dado certo se Baiano Severo e Garcia tivessem entrado num dos times. Mas eles, que não eram trouxas, ficaram do lado de fora apenas observando os jogos. O campeonato começou, e o time do PCC foi acumulando vitórias, até porque Geleião, além de enorme, tinha o poder de mandar marcar cinco pênaltis a favor de sua equipe e acabava com a brincadeira. Apesar de ganharem os jogos, não teriam o troféu almejado, já que, em quadra, não conseguiriam cruzar com Baiano e Garcia. Pensaram então numa solução alternativa: quem ia jogar fazia o banho de sol antes, jogava, depois se recolhia, ou o contrário. E quem não ia jogar se encaminhava direto para o banho de sol e assistia aos jogos. Assim, no dia 31 de agosto, o grupo de Geleião se encaminhou à quadra bem na hora de montar os times para jogar. Porém um deles, o Marqueta, virou-se para o agente penitenciário e disparou: − Hoje nós não vamos jogar. Hoje não vai ter jogo. A gente sai no sol, normal. Ou seja, eles organizaram a situação de maneira a tomarem sol bem no horário de Garcia e de Baiano Severo, que regularmente saíam em horários diferentes por questões óbvias de segurança. Quando a porta se abriu e Baiano Severo, Garcia e a turma deles entraram na quadra e viram José Márcio, Cesinha e seus comparsas todos ali, tomaram um choque. Dessa forma foram liberados dentro do pátio os dois grupos que eram inimigos figadais dentro da CCT de Taubaté. Só que a turma de Baiano Severo e de Garcia não encarou a responsabilidade de formar com seus líderes e recuou, deixando os dois sozinhos para enfrentar o “time” de Geleião e companhia. Não se sabe se isso já estava combinado ou se voltaram porque não iam

22


L a ç os d e S a n g u e

encarar Geleião, uma figura atemorizadora. Geleião chegava a fazer mil flexões por dia − se trabalhado com afinco, poderia ser atleta olímpico. Quando o agente penitenciário notou a iminente confusão, fechou a porta. Por medo ou não, num ambiente desses sabe-se que qualquer suspiro pode ser maquiavelicamente encarado como uma provocação que renderá represálias. Quando José Márcio chegou perto de Baiano Severo, envolveu a cabeça do adversário com as duas enormes mãos e, como quem alisa uma bola, matou com um movimento só, que talvez tenha durado dois segundos. Quebrou-lhe o pescoço instantaneamente. Foi a deixa para que os outros sete que estavam na quadra fossem para cima de Garcia. Primeiro o time fechou-se em um círculo ao seu redor − a única chance que tinha era romper o círculo e tentar se manter vivo até que os agentes penitenciários chegassem. Ele foi para cima dos adversários com tudo, mas aqueles não eram presos novatos. Começou a ser golpeado de todos os lados, não suportou, caiu e foi massacrado. “Por que você matou ele logo assim? Não deu nem pra zoar!”, reclamavam os companheiros a Geleião. O líder parou de fumar seu cigarro e os organizou no centro da quadra, vestindo suas camisas brancas rabiscadas a caneta com as letras PCC. − Agora é nóis − disse. Depois vieram os agentes penitenciários e levaram todos para o isolamento total: José Márcio Felício, o Geleião ou Cavalo Branco; César Augusto Roriz Silva, o Cesinha, Exu ou Exuzinho; Ademar dos Santos, o Da Fé; Antônio Carlos dos Santos, o Bicho Feio; Wander Eduardo Ferreira, o Du Cara Gorda ou Wandão; Isaías Moreira do Nascimento, o Isaías Esquisito; Misael Aparecido da Silva, o Misa; e José Epifânio Pereira, o Zé Cachorro − o único ainda vivo durante a confecção deste livro era o José Márcio. Nenhum deles foi espancado, mas foram arrastados para as celas − que já eram solitárias. Apesar de terem ido para o isolamento, a ação havia sido um sucesso, pois eles tinham o domínio do presídio. Todos os presos os obedeciam, mas, agora, não como uma quadrilha. Dominaram as duas alas, os dois lados do complexo, tomaram conta daquilo, viraram

23


Marcio Sergio Christino e Claudio Tognolli

donos da Casa de Custódia e Tratamento, que era o presídio mais seguro que São Paulo (e, reconheçamos, o Brasil) tinha na época. Com o isolamento dos líderes, a reação que se sucedeu já era prevista. De uma cela para outra, e pela primeira vez nas duas alas, a gritaria foi começando: “É para virar, é para virar”. “Virar” em um presídio de segurança máxima daquele tipo é um conceito bem restrito – significava quebrar tudo que podiam dentro da cela: pia, mesa, cama, que era de alvenaria, espatifando o que podiam. Até os ralos eram quebrados. Os pedaços de tudo que conseguiam quebrar eram usados para bater nas portas de ferro, causando uma barulheira enorme que podia ser ouvida de longe. Parece tolice, afinal, quem se prejudicaria seriam os próprios detentos − basta estar lá para verificar que esse tipo de reação causa temor e insegurança, principalmente porque transmite a sensação de que aquelas portas parecem não ser suficientes para conter o ímpeto dos amotinados. A reação continuou: bateram nas portas, chutaram, gritaram alaridos singularmente aterrorizantes e aterrorizados sem parar durante a noite, para provocar a vizinhança. Quebraram todas as celas e, num determinado momento, Geleião conseguiu, com a mão e pedaços de metal, cavar a parede de uma cela para outra e passou pelo buraco. Sua cela ficou vazia. A situação ficou insustentável. O diretor Pedrosa percebeu que o time do PCC estava dando as cartas. Não havia outra solução; a Polícia Militar foi acionada, até porque, se isso não fosse feito, a vizinhança acabaria por fazê-lo – só para lembrar, a Casa de Custódia e Tratamento ficava no perímetro urbano de Taubaté. Então apareceu o Batalhão de Choque para controlar a situação; entrou nas celas, retirando os presos que eram encaminhados para o pátio, onde estavam também os agentes penitenciários. Os PMs invadiram a cela de Geleião e, para surpresa deles, a encontraram vazia e com buraco na parece. Eles foram à cela vizinha destruída e lá estava ele, em meio aos escombros. É importante dizer que Marcola, naquele dia, que não integrava a facção, apenas quebrou o ralo da cela e manteve-se discretamente quieto, segundo palavras do próprio José Márcio Felício. Depois de todo o rebuliço e com medo da repercussão, o diretor Pedrosa chamou

24


L a ç os d e S a n g u e

o corregedor da Administração Penitenciária. Pedrosa não queria mais problemas e quis fazer um acordo com os amotinados. Geleião foi o interlocutor natural dos presos, que lhe deram o status de líder. O pedido foi simples, sem “esculacho”: os prisioneiros não seriam obrigados a ficar nus, se abaixar exibindo-se para os agentes penitenciários, o que consideravam uma humilhação desnecessária. O corregedor e Pedrosa concordaram, nada demais tal pedido para eles. Quando estes foram embora, o chefe dos agentes penitenciários mandou que os presos tirassem a roupa e se abaixassem. Começou uma gritaria geral. Cobraram Geleião: “E agora? Vai ficar assim?”. De um lado os presos e do outro os agentes penitenciários e um grupo do batalhão de choque da PM. É claro que não ia ficar assim; os presos avançaram com Geleião à frente e surpreenderam tanto o Choque quanto os agentes penitenciários, que nem sonhavam com uma ação coordenada dos presos − isso nunca tinha acontecido. Assim, no primeiro confronto entre PCC e PMs e agentes penitenciários deu PCC, que forçou o recuo da tropa e dos agentes para a entrada do presídio. É claro que depois a PM se reorganizou e contra-atacou, dominando a situação. Porém essa ofensiva só ocorreu em 1º de setembro de 1993, mas já então perdida a moral da PM. Depois da rebelião, a Casa de Custódia e Tratamento foi esvaziada, só permanecendo Geleião e sua trupe. Mas só por algum tempo, pois logo o presídio começou a crescer novamente com a vinda de outros presos. Aí o comentário era geral: “Esses foram os caras que dominaram a Casa de Custódia e Tratamento!”. *** Tudo fora muito bem planejado. Logo após a rebelião, eles elaboraram o estatuto do grupo, finalizado por Misael. O documento determinou que “Irmão não mata irmão. Irmão não explora irmão. Os ‘Fundadores’ são os chefes”. O estatuto deixou bem claro que o PCC era uma facção, não uma quadrilha que explora aqueles que não têm organização. Também incluíram um importante item no estatuto: “Você não vai

25


Marcio Sergio Christino e Claudio Tognolli

mais ser explorado. Se alguém mexer com você, vai mexer comigo”. E implicitamente estava o aviso: “Olha o que nós fizemos na CCT (Casa de Custódia e Tratamento)”. O conjunto de normas saiu principalmente das cabeças de José Márcio e de Cesinha. Podiam não ter cultura, mas eram muito inteligentes, entendiam bem a natureza humana. Exemplos de darwinismo social puro. Esse estatuto fez a diferença porque passou a dar corpo à massa disforme. A ideia deles era usar a organização para praticar crimes, mas poderiam ter formado o grupo para defender os interesses deles sem precisar matar os outros presos − o caminho que eles seguiram depois mostra claramente o contrário. A facção então começou a agir. Quando encontravam alguma oposição, matavam sem pudor ou hesitação. E essa era a primeira opção, só negociavam se não conseguissem exterminar o adversário brutalmente. Nenhuma dessas execuções acontecia em razão de superlotação carcerária, de exploração. A morte acontecia porque determinada pessoa não queria fazer parte da facção ou era contra ela. Eles precisavam dominar o presídio a laços de sangue. Uma cena marcante, especificamente, ocorreu quando Bicho Feio e Cesinha mataram um adversário em Taubaté. Estavam no pátio e derrubaram um preso no chão; enquanto o Bicho Feio segurava-lhe os braços, Cesinha pegou uma gilete e cortou a jugular do sujeito. O rival quase morreu de hemorragia, esvaindo-se em sangue, mas foi salvo por pouco; pensaram que morreria, porém foi levado ao hospital e se recuperou. Toda vez que mortes ou tentativas de assassinato como essa aconteciam, esvaziavam a CCT. Mas, quando ela voltava a receber presos, a situação se repetia. Assim, Pedrosa resolveu fazer um acordo com a facção: se ficassem um tempo quietos, os devolveria ao sistema prisional, quer dizer, sairiam dali para outros presídios, porque já eram o que se denominava de “considerados”. Mataram um, dois, mataram vários. Nunca se saberá o número certo de executados pelo PCC. O acordo foi selado e cumprido. Quando chegaram à Casa de Detenção, quem estava à frente do grupo não era Geleião, mas, sim, Cesinha. Geleião fora mandado para outro presídio.

26


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.