O diário de Marise - a vida real de uma garota de programa

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PREFÁCIO

Para ser bem sincero, eu acho que a Vanessa não existe. Acho que ela é puro fruto da minha imaginação. Mais do que isso, ela é fruto da sua própria imaginação. A grande questão é saber quem está por trás de tudo isso, ou seja, quem imaginou a Vanessa, que por fim acabamos nós todos também por imaginar? Lendo o Diário de Marise acabei encontrando algumas pistas. Pistas em forma de labirinto que, com extremo prazer, vou perseguindo. Quero ver aonde vai chegar isso, quero ver quem vou encontrar no fim desse percurso. Assim, leio e releio este Diário por inteiro, comparando o que foi escrito, comparando a mulher do papel, feita de palavras, vírgulas, parágrafos e capítulos com a mulher que conheci ao vivo. Descobri, nesse processo, que a Vanessa escritora é, na verdade, o personagem. A criadora é a criatura disfarçada. Isso poderia ser óbvio, já que se trata de um diário, de uma autobiografia, mas há sutilezas aí que precisam ser reveladas. A Vanessa profissional da carne, da noite, do dia, da sauna, da hora contada no relógio, da meia arrastão, da peruca ruiva, das roupas de enfermeira, do vibrador é simplesmente um disfarce. A escritora criou este personagem com tanto talento que o personagem criou vida própria, assim como no filme de Woody Allen, em que o personagem sai da tela e vai viver a vida real. A Vanessa real é a Vanessa escritora, anterior à garota de programa. A Vanessa escritora passou a vida toda tão ocupada em imaginar, que se esqueceu de viver. Marise, a personagem, a criatura, tomou conta da criadora e saiu pela vida fazendo e acontecendo, aprontando, se virando, até que um dia, de tanto sofrer, Vanessa acordou. A dor despertou a escritora, que decidiu dar uma basta naquela fantasia toda e viver. E ser o que nasceu pra ser, uma TALENTOSA ESCRITORA. Mas aí o livro acaba. Nesse momento, a Vanessa nos deixa no ar, na expectativa do próximo lance da sua vida, na criação do seu próximo livro, se daqui pra frente ela será santa, louca ou puta. Quem viver, lerá. Antônio Costa Neto


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Este livro relata a história real de Vanessa de Oliveira e baseia-se em seu diário pessoal, escrito entre 2003 e 2005. Alguns nomes de pessoas aqui citados foram alterados, visando preservá-las, bem como nomes de alguns locais.

Agradecimentos: Alcione José Grimes, Antônio Costa Neto, Alexandre Vasco da Silva, Alexandre Machado, Ana Graziela Alvarez, Cristiane dos Santos Lima, Cristina Célia Antunes, Douglas Monteiro Carvalho, Dumara Cristina Coltts, Eliana Henrique Nazário, Elisane Nunes de Lima, Elisete Nunes de Lima, José Carlos Viana, Kleber L. da Luz Rita, Lenita de Miranda Novaes, Loisame Rejane Ames, Luciano Pedro Estevão, Luciana Marin, Renato E. Moraes, Luciano Nunes Alves, Luiz Alberto Stumpf, Rosane Dalpra, Marisa P. dos Santos, Rosangela Argemiro Lopes, Rosangela Arnold de Lima, Thays Ferrari, Mafioso, Marivône Fernandes da Silva, Selma Menezes, Simone dos Anjos Braz, Thiago Guetten, Vitor Hugo de Freitas, Vitor Hugo Fotografias, Walquíria Gomes, eterna Vitória, a todos da Kity House, meus familiares e, em especial, a minha filha, meu verdadeiro e grande amor. CAPÍTULO I


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O dinheiro foi feito para as mulheres. De que ele serviria, se elas nĂŁo existissem? Onassis


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“Tu és o arquiteto do teu próprio destino. Trabalha, espera e ousa.” Ella Wheeler Wilcox Balneário Camboriú, 5 de julho de 2003. Eu vivi muitas coisas, algumas ruins, outras boas. Resolvi escrever este diário como forma de terapia, e também porque, assim, não me esquecerei de fatos que já aconteceram comigo. São tantas as coisas que acontecem, e elas vêm de maneira tão rápida, que é difícil guardar todos os detalhes. São acontecimentos ricos e muito interessantes. Existem coisas, inclusive, que eu prefiro não lembrar, mas é impossível. Então, o negócio é virar a página. Às vezes, eu me pergunto até que ponto eu reescreveria a minha história. Será que, se eu começasse de novo, faria tudo diferente? Eu não sei... Penso que sou decidida sobre o tipo de vida que eu gostaria de ter. Sinto falta de uma vida mais tranqüila, segura e equilibrada. Mas, ao mesmo tempo, tudo isso me parece muito sem graça. Por que eu procuro viver de maneira tão intensa? Por que preciso tanto de liberdade? Por que tenho medo do amor? Por que faço tantas coisas ao mesmo tempo? E como, dentro de tanta intranqüilidade, eu me sinto feliz? Eu vivo em indagações sobre quem eu sou, sobre a vida, as mulheres, os homens, o que os torna tão diferentes, e reflito bastante sobre minhas atitudes. Surpreendo-me, cada dia mais, com a capacidade de ser o que antes eu não era. Por que será? Minhas maiores preocupações, hoje, são em relação a minha filha, Yumi. Eu queria poder suprir todas as suas necessidades de afeto e carinho. Sinto-me incompetente; afinal, faço tantas coisas ao mesmo tempo, que percebo que não sobra muito para ela. Estou pensando sobre isso e, agora, quando ela voltar das férias de julho da casa da minha mãe, vou procurar estar mais próxima. Se o pai dela dividisse os cuidados comigo, tudo seria mais fácil e melhor para ela. Outra preocupação minha é a questão financeira: eu nunca sei se, amanhã, terei dinheiro suficiente. Estou cursando a faculdade de enfermagem, mas não tenho bem certeza se essa seria a profissão adequada para mim. No futuro, eu não me vejo pobre, nem um pouco. Eu me vejo até bem


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demais, com saúde e fazendo as coisas de que gosto. Porém, não consigo me ver no amor. Eu tenho a impressão de que talvez eu não encontre um grande amor, algo sincero, bonito e verdadeiro. Quando eu era adolescente, tinha esses pensamentos, de que ninguém um dia gostaria de mim. Espero que eu esteja enganada. A vida tem tantas surpresas, sabe-se lá o que ela reserva para mim. Tenho medo de sofrer por amor e de amar quem não me ama. Por que será? Meu nome é Vanessa, mas a maioria das pessoas que conheço me chama de Marise, a garota de programa ruiva. Eu nasci morena, mas costumo dizer que a minha alma é ruiva. Sempre digo isso. Neste momento, estou em uma fase bastante difícil. Tenho 27 anos, estou trabalhando nesta profissão há mais de um ano e tento superar os últimos acontecimentos do meu relacionamento com o Fausto (achei que não iria nem conseguir escrever o seu nome, dói tanto ainda). Minhas amigas me dão força, principalmente a Rosemara (Ro) e a Cris. Elas são especiais, e sinto que gostam muito de mim. Estou em férias da faculdade e passando, agora, uns dias na Boate Kity House, uma casa de programas na cidade de Jaraguá do Sul. Preciso juntar um dinheiro antes de voltar às aulas. Meu projeto de vida é me formar (no máximo, em dois anos) e, depois, ir para os EUA. Trabalhar, me estabilizar e voltar ao Brasil para morar no litoral, em algum lugar lindo e quente o ano todo, que tenha bastante natureza, mar, sol, areia, alegria; um lugar seguro... Eu fico, aqui, só imaginando uma areia bem branquinha, um mar lindo, um barulho suave de ondas, uns coqueiros enormes, verdes, eu, a minha filha Yumi e a praia...

CAPÍTULO II KITY HOUSE


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“Ou nós encontramos um caminho, ou abrimos um.” Aníbal Jaraguá do Sul, 22 de julho de 2003. Esta noite, sonhei que eu abria um buraco no chão, cavava um túnel e ia tentando passar por ele. Abri os olhos me sentindo angustiada. Devo ter levantado lá pelas 11 da manhã. O café é servido na casa só a partir das 12h; então, fiquei rolando na cama. Eu era uma das primeiras a acordar, e tinha garota, ali, que só lá pelas 16h se levantava da cama. Muitas bebiam tudo o que podiam. Para algumas, isso já era alcoolismo; para outras, a ânsia de ganhar uns trocados a mais da comissão que recebemos pela dose paga pelo cliente. Ainda tem aquelas que bebem para criar coragem de estar ali. Eu não conseguia mais dormir, porque estava acostumada com a faculdade. Não que eu chegasse às sete e meia, mas nunca depois das 11h. Alguns professores reclamavam, mas nunca cheguei a repetir cadeira, porque as notas eram boas. Só uma vez que tive que fazer três vezes a mesma disciplina, por falta de freqüência. Meu problema sempre foram as faltas na faculdade, porque eu não consigo acordar, trabalho até tarde. Ontem foi uma noite movimentada na Boate Kity House, tem muitas meninas aqui. Algumas delas eu já conheço da Boate Privê, de Blumenau; aliás, foram elas que me trouxeram para cá. Viemos num arrastão só. O Henrique, dono da boate de lá, atrasou os pagamentos de algumas, não pagou outras e colocou um gerente incompetente, um tal de Bianco, no comando da Boate. Ele pagou algumas garotas com cheques roubados, que ele comprava de uns assaltantes. Eu mesma recebi dele um de 180 reais... FILHO DA PUTA!!! SAFADO E SEM VERGONHA!!! Mas se vê todo tipo de gente nessa vida, e olha que tem uma louca, lá, que está grávida desse gerente trambiqueiro. Mas como tem mulher burra neste mundo, meu Deus! Essa não é garota de programa, não, porque, se fosse, tinha se cuidado; ela trabalha na parte de bebidas da Boate. É bonita, mas não faz programa, porque acha isso indecente. Mas bem que parte do salário dela vem das meninas que trabalham ali: ela ganha comissão pelo pedido de bebidas, feito por nós e servido por ela. Logo, indiretamente, o salário dela


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tem uma boa contribuição da prostituição. O Bianco é casado, e ela transa com ele sem camisinha. Lógico que ela não é garota, porque, se fosse, só usaria preservativo. Bem, ela é decente segundo as suas concepções, mas indecente, segundo as minhas. Sentamos para tomar café eu, a Duda, a Rose, a Adriana e a Alessandra. Todas nós viemos da falida Privê. A Alê não recebeu do Bianco; pegou um uísque e disse que iria levar como pagamento. Ele falou que não deixaria, e o segurança veio, para retirar a garrafa da mão dela. Essa cena foi de filme, porque ela espatifou a garrafa na prateleira de vidro das bebidas, e o prejuízo do Bianco foi bem maior. Estávamos, todas nós, ferradas nas contas, e viemos para cá decididas a dar a volta por cima. Para isso, precisamos trabalhar muito. Queremos aproveitar o dia também, só que a Boate só funciona à noite. A Leila, dona da casa, não nos deixa trabalhar em outro estabelecimento ao mesmo tempo, e quem mora aqui só sai mediante acerto do cliente. Resolvemos transpor as regras. Adoro isso! Transgredir barreiras é comigo, e, com as meninas, não é diferente. Eu estava com meu velho e bom Landau – milagre ele não estar quebrado, porque, na semana passada, ficou cinco dias na oficina –, as meninas patrocinaram a gasolina, e fomos em direção ao centro, procurar uma sauna ou uma casa de massagem que nos abrigasse durante o dia. Foi difícil: horas procurando, e nada. Tivemos que voltar, e, ainda por cima, ganhei uma multa: não sabia que Jaraguá do Sul tinha esses controladores eletrônicos de velocidade. Fui percebendo, no caminho, que a cidade era muito vazia e sem vida; acho que as únicas coisas legais de lá eram o Parque da Malwee e a Kity House, mesmo, por isso ela enchia tanto de cliente. Quando chegamos à Boate, o Luiz, barman, veio me comunicar que um cliente meu do dia anterior, Jorge, tinha ligado, dizendo que não poderia vir naquela noite, porque tivera que voltar para Curitiba, mas que, na semana que vem, estaria de volta. Pensei: “Lá se foram mais alguns reaizinhos. Mas não há de ser nada, hoje ganho mais”. O Jorge é um moço bem apresentável, deve ter uns 35 anos, bonito. Tinha vindo a negócios e, como todo marido longe de casa, resolveu dar uma passadinha em alguma boate da cidade. Ele chegou e ficou bebendo numa mesa. Quando entrei no salão, o vi e, como sempre faço, fui lá bater um papo, antes que outra fosse. Conversa vai e conversa vem, mãozinhas vão e mãozinhas vêm, dose de bebida para cá e para lá, dou uma voltinha, viro o meu copo na pia do banheiro, passo pelo Luiz e digo: “Vê se coloca mais gelo no meu copo, da próxima vez”. Sentei-me, peguei a mão do cliente e coloquei debaixo da


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