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Ponto de vista

Ponto

de vista

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Ricardo Castro Alves

Médico dentista. Regente das Unidades Curriculares de Periodontologia do Instituto Universitário Egas Moniz. Unidade de Investigação Clínica – Centro de Investigação Interdisciplinar Egas Moniz.

A pandemia e a ciência

Acrise de saúde pública à escala global provocada pela pandemia da Covid-19 colocou a ciência no topo da atualidade. A emergência sanitária criou novas oportunidades e desafios, e o investimento em ciência, feito de um modo intermitente nos últimos anos, assumiu-se como particularmente relevante. Se por um lado a pandemia atrasou a investigação e a prestação de cuidados de saúde em algumas áreas, a procura de uma solução para esta nova ameaça levou a esforços colaborativos sem precedentes, levando também muitos investigadores a recentrar a sua atividade científica. A identificação do genoma completo do vírus SARS-CoV-2 demorou apenas um mês após o primeiro doente ter sido internado em Wuhan. Neste momento, várias vacinas estão prestes a ser introduzidas no mercado e outras encontram-se em fases finais dos ensaios clínicos, num feito verdadeiramente inédito. Recorde-se que até hoje, a vacina desenvolvida com a maior rapidez foi a da papeira e demorou quatro anos até estar disponível, sendo que o prazo médio de desenvolvimento de uma vacina ronda os 10 anos até estar disponível no mercado. Todos nós, de certa forma, testemunhamos a importância das tecnologias digitais neste periodo, nomeadamente na reunião não presencial de equipas e no ensino à distância, na partilha imediata de dados, ou no desenvolvimento de aplicações de rastreio. No entanto, o verdadeiro impacto estende-se muito para além disso. De forma a maximizar o enorme volume de dados gerados e de elevada complexidade, técnicas de inteligência artificial estão a ser utilizadas para ajudar a encontrar novos alvos terapêuticos e candidatos a fármacos, num processo que demoraría incomparavelmente muito mais tempo através dos métodos tradicionais. A ciência de dados e a inteligência artificial nas suas diferentes vertentes poderão ajudar a desenvolver estratégias de saúde pública mais adequadas, agilizar o diagnóstico clínico e o estabelecimento de um prognóstico, e em certas situações ajudar no processo de decisão clínica quando os recursos qualificados escasseiam. Métodos de machine learning e data mining analisam a literatura científica e os dados disponíveis, procurando obter respostas para as perguntas em aberto em relação à Covid-19. Estes métodos procuram encontrar padrões e extrair conclusões do conjunto de informação disponível, conclusões essas que seriam impossíveis de obter com recurso a séries de dados isoladas. Várias parcerias uniram a academia a diversos gigantes tecnológicos, em centenas de projetos, muitos com recurso a financiamento privado e crowdfunding. A procura de soluções para este problema sanitário, cujo impacto a nível económico e social à escala global ainda estão por determinar, levou a que em janeiro de 2020, 117 organizações (revistas científicas, centros de prevenção e controlo de doenças e entidades de financiamento) assinassem uma declaração intitulada “Sharing research data and findings relevant to the novel coronavírus outbreak”. As pré-publicacões foram incentivadas permitindo um aumento da velocidade de difusão do conhecimento científico. Diversas revistas disponibilizaram os conteúdos relacionados com a Covid-19 em acesso livre e permitiram a publicação quase imediata de artigos através de um processo de revisão rápida. Numa pesquisa rápida pelo PubMed encontramos cerca de 80.000 artigos publicados no espaço de um ano, um número completamente avassalador. No entanto, este processo não está isento de riscos, nomeadamente em relação à qualidade da informação publicada, como demonstra a retração de diversos estudos publicados em conceituadas revistas médicas. Os desafios perduram, e é fundamental que no futuro esta aposta na ciência aberta se mantenha, e não se eclipse pelos cortes no financiamento assim que a ameaça esteja controlada.

A ciência, tecnologia e inovação desempenharão, sem dúvida, um papel fundamental na recuperação socioeconómica após o fim da pandemia

Por outro lado, é fundamental fazer a ponte do conhecimento gerado para a população em geral. É fundamental aumentar a literacia em saúde e em ciência, de forma a combater a desinformação e contra-informação, que constituem em si aquilo que alguns apelidam de Infodemia e que encontram nos menos informados um alvo fácil. Para isso é fundamental que exista um discurso claro acessível e consistente, que seja compreensível pelo comum dos cidadãos. A evolução do conhecimento gera por vezes contradições, que não devem ser mal interpretadas, assim, é natural que existam avanços e recuos. É fundamental que o cidadão geral acredite na ciência, pois de nada vale esta corrida em contra-relógio a uma vacina se as pessoas não estiverem dispostas a ser vacinadas, facto que pode atrasar significativamente o controlo da pandemia. Parte deste novo conhecimento gerado poderá ter impacto na prevenção e tratamento de outras doenças atuais. Novas ameaças certamente surgirão no futuro, pelo que convém aumentar a preparação a diferentes níveis. Por outro lado, a ciência, tecnologia e inovação desempenharão, sem dúvida, um papel fundamental na recuperação socioeconómica após o fim da pandemia. O mundo não será igual depois da pandemia, mas em alguns aspetos poderá certamente ser um mundo melhor.

Nota: Este artigo foi escrito no final de 2020.

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