Doriangray

Page 1

Oscar Wilde

O retrato de

Dorian

Gray Edição anotada e sem censura organizador Nicholas Frankel





O retrato  de 

Dorian

Gray



Oscar Wilde

O retrato  de 

Dorian

Gray Edição anotada e sem censura

organizador Nicholas Frankel tradutor Jorio Dauster


Copyright © 1962, 2000, 2011 by The Estate of Oscar Wilde Additional content copyright © 2011 by the President and Fellows of Harvard College Copyright da tradução © Editora Globo S. A.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora. Texto fixado conforme as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no 54, de 1995)

Editora responsável: Ana Lima Cecilio Editora assistente: Juliana de Araujo Rodrigues Preparação de texto: Ive Brunelli Revisão: Luciana Araujo Capa, projeto gráfico e digramação: Mayumi Okuyama 1ª edição, 2013

Wilde, Oscar, 1854-1900. O retrato de Dorian Gray / Oscar Wilde ; organizador Nicholas Frankel ; tradutor Jorio Dauster. — Ed. anotada e não censurada. — São Paulo : Globo, 2013. Título original: The picture of Dorian Gray isbn: 978-85-250-5413-5 1ªFicção inglesa. i. Frankel, Nicholas. ii. Título. 13-04418

cdd-823

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura inglesa 823

Direiros de edição em língua portuguesa, para o brasil, adquiridos por Editora Globo S.A. Av. Jaguaré, 1.485 – 05346-002 – São Paulo/SP www.globolivros.com.br


sumário

Introdução geral. . ..................................................................... 9 Introdução textual.................................................................. 45 O retrato de Dorian Gray.......................................................... 71 Notas textuais....................................................................... 315 O prefácio de 1891 de O retrato de Dorian Gray....................... 323 Nota sobre as edições de Wilde.. .............................................327 Leituras adicionais................................................................329 Crédito das imagens . . ......................................................... 345 Agradecimentos....................................................................349



Para meus filhos Max, Theo e Oliver



Introdução geral

Os restos mortais de Oscar Wilde se encontram no cemitério Père Lachaise, em Paris. Seu elegante e moderno túmulo, desenhado pelo escultor britânico Jacob Epstein sob encomenda do amigo e testamenteiro de Wilde, Robert Ross, é um dos mais frequentemente visitados e reconhecíveis num local onde estão enterrados tantos escritores, artistas e músicos famosos (Balzac, Chopin, Proust, Gertrude Stein, Jim Morrison). A superfície do maciço monólito de Epstein está coberta com centenas de marcas de beijos de batom, alguns antigos e desbotados, outros novos e vibrantes. (Segundo Wilde, os “lábios vermelhos como pétalas de rosa” de lorde Alfred Douglas tinham sido feitos para a “loucura de beijar”.) Alguns observadores condenam a presença dessas marcas no túmulo de Wilde como uma forma de desfiguração ou vandalismo, assinalando com razão que o alto conteúdo de gordura no batom provoca danos reais e duradouros na pedra. No entanto, para os muitos homens e mulheres, gays ou não, que visitam o local a cada ano, os beijos são um tributo ao famoso dramaturgo, romancista e pensador — sentenciado em 1895 a dois anos de prisão, com trabalhos forçados, após ser condenado por “flagrante indecência” —, visto por eles como um mártir da moralidade sexual vitoriana.1

1 Recentemente, em 2011, o túmulo foi restaurado, limpo e protegido por espessas placas de vidro, que agora recebem os beijos antes marcados diretamente na estrutura. (n. e.)

13


Cinco anos antes de sua morte, Wilde foi transformado, praticamente da noi­te para o dia, de uma das figuras mais brilhantes e celebradas da Grã-Breta­ nha no mais notório criminoso sexual do país. Ao morrer de meningite num hotel ordinário de Paris em 30 de novembro de 1900, aos 46 anos de idade, ele já vivia como exilado na França havia três anos, corpo e a alma arruinados, insolvente, banido dos melhores círculos da sociedade britânica. Em 1895, ao ser preso, ele era o maior autor de peças teatrais e homem de espírito da Grã-Bretanha, festejado no West End de Londres e nos círculos intelectuais, assim como nas mansões rurais e nas residências citadinas da classe dominante inglesa (embora muitos de seus membros não soubessem que Wilde nascera na Irlanda porque, para usar suas próprias palavras, “minha pronúncia irlandesa foi uma das muitas coisas que esqueci em Oxford”). Mesmo antes de alcançar fama como dramaturgo e romancista, ele fora o principal porta-voz do culto do “esteticismo”, ou a arte pela arte, que se propagou rapidamente na Inglaterra e nos Estados Unidos depois da estupenda entrada de Wilde na cena cultural, em 1881. Sua morte, em 1900, pouco mais de três anos após sair da prisão (retratada em seu famoso poema “A balada do presídio de Reading”), coincidiu com o fim de uma década (“os anos noventa amarelos”, “a era de Dorian”) mais fortemente associada a ele do que a qualquer outra figura pública, tanto por sua personalidade e vida marcantes como por suas consideráveis realizações como escritor e pensador. Os anos derradeiros de Wilde compõem um quadro deprimente. No exílio, passou a usar o nome de “Sebastian Melmoth”, evocando o martírio de são Sebastião (ícone gay) e o protagonista de mesmo nome do romance gótico Melmoth the Wanderer, de Charles Maturin, tio-avô de Wilde. Sua mulher, Constance, que o havia visitado uma única vez na prisão, em 1896, para noticiar a morte da mãe dele, se afastou completamente nos últimos anos antes de sua própria morte prematura, em 1898. Após ser encarcerado, Wilde nunca mais viu seus dois filhos. Assim como a mãe deles, haviam adotado o sobrenome “Holland”, sendo instruídos por Constance e seus parentes a “esquecer que jamais tínhamos usado o nome de Wilde e nunca mencionar isso a ninguém”.2

2 Vyvyan Holland. Son of Oscar Wilde (Oxford University Press, 1954 [1987]), p.76.

14

Nicholas Frankel


Quatro meses após ser posto em liberdade, Wilde voltou a se encontrar por pouco tempo com seu amante, lorde Alfred Douglas, que por pouco escapara de ser julgado em 1895. Wilde estava convencido de que com Douglas poderia encontrar a felicidade, o amor e a renovada criatividade a que aspirava, mas depois de uma estada de dois meses em Nápoles, Douglas o abandonou, dei­ xando que Wilde enfrentasse sozinho seu incerto futuro sem tostão. As duras condições no presídio haviam cobrado um alto preço de Wilde. Isolado e des­ moralizado, ele se entregou de vez nos últimos meses: “Não vou viver além des­te sé­culo”, ele predisse. “Os ingleses não tolerariam isso.” Richard Ellmann, biógrafo de Wilde, estima que ele já estivesse preso à cama no final de setembro de 1900. No leito de morte, Wilde, que já não conseguia falar, consentiu em ser recebido pela Igreja Católica erguen­do a mão, sendo-lhe dada a extrema unção. Segundo Ellmann, Robert Ross, presente ao ato, admitiu mais tarde que somente “decidi chamar um padre para que Wilde pudesse ser homenageado com as cerimônias fúnebres e ter um enterro formal”. De outra forma, Ross temia, o corpo poderia ser levado ao necrotério e submetido a uma autópsia. “O caixão era barato e o carro fúnebre bem chinfrim”, Ellmann afirma sem rodeios.3 De acordo com o escritor Ernest La Jeunesse, que compareceu ao enterro de Wilde, somente treze pessoas seguiram o caixão até sua morada final no cemitério de Bagneux, onde Wilde foi enterrado no dia 3 de dezembro; em sua sepultura, marcada com uma única lápide, se lia “Job xxix Verbis meis adere nihil audebant et super illos stillebat eloquium meum” [“quando acabava de falar, não acrescentavam nada, minhas palavras eram recebidas como orvalho”], do livro de Jó. Em 1909, seus restos mortais foram trasladados para o Père Lachaise e, três anos mais tarde, foi erguido sobre eles o monumento de Epstein. As cinzas de Ross foram depositadas num compartimento do túmulo do Père Lachaise depois de sua morte, em 1918. A inscrição no túmulo foi retirada do poema “A balada do presídio de Reading” (publicado sob o

3 Richard Ellmann. Oscar Wilde (Nova York: Knopf, 1988), p. 584, daqui em diante citado no texto como Ellmann.

introdução geral

15


pseudônimo “c. 3. 3”, a identificação carcerária de Wilde, significando bloco c andar 3, célula 3): E, em sua memória, lágrimas de estranhos hão de encher A urna da compaixão há tanto tempo rachada, Pois ele será por párias pranteado, E os párias estão sempre prontos a chorar.

O retrato de Dorian Gray foi publicado simultaneamente na Inglaterra e nos Estados Unidos em 1890 pela J. B. Lippincott Company da Filadélfia no exemplar de julho da Lippincott’s Monthly Magazine, cinco anos antes da série de julgamentos sensacionais que levariam à prisão de Wilde. (A edição inglesa da revista, coeditada com Ward, Lock, and Company, trouxe um índice ligeiramente diferente da edição norte-americana.) Logo depois, Wilde começou a rever e aumentar o romance para a edição em forma de livro, o qual foi publicado em 1891 pela Ward, Lock, and Company. Quando o romance apareceu na Lippincott’s Monthly Magazine, Wilde já era bastante conhecido do grande público — por suas brilhantes tiradas, teatralidade e vestuário ostentoso, além dos muitos poemas, contos, palestras e artigos de jornal que produzira na década anterior. Mas O retrato de Dorian Gray foi a obra que o tornou uma figura emblemática tanto aos olhos de seus fãs quanto de seus críticos, e que mais tarde desempenharia importante papel em sua queda ao ser usada como prova contra ele no tribunal. O romance modificou a forma pela qual os vitorianos viam e compreendiam o mundo que habitavam, em especial com respeito à sexualidade e à masculinidade. Anunciou o fim do “vitorianismo” repressivo e, como observou Ellmann, “após sua publicação, a literatura vitoriana passou a ter uma feição diferente”. (Ellmann, p. 314) Quando o romance saiu na Lippincott’s, foi imediatamente cercado de controvérsias. Sem dúvida, não faltaram resenhas apreciativas e que demonstravam sensibilidade na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, porém um segmento relevante da imprensa britânica reagiu com franca hostilidade, condenando o romance como “vulgar”, “sujo”, “venenoso”, infame” e “uma impostura”. Em agosto de 1890, Wilde afirmou ter recebido 216 ataques desse gênero contra seu

16

Nicholas Frankel


romance desde a publicação pela Lippincott’s, dois meses antes.4 “O tédio e a imoralidade são os traços principais da Lippincott’s deste mês”, começava o resenhista do Daily Chronicle: A parte suja, embora inegavelmente divertida, é fornecida pela história do sr. Oscar Wilde intitulada O retrato de Dorian Gray. Ela tem sua origem na literatura leprosa dos decadentes franceses — uma obra venenosa, cuja atmosfera está carregada dos odores mefíticos da putrefação moral e espiritual — um estudo, escrito com prazer malévolo, sobre a corrupção física e mental de um jovem belo e impoluto que poderia ser fascinante não fosse por sua frivolidade afeminada, pela insinceridade estudada, por seu cinismo teatral, seu misticismo barato, suas verbosas elucubrações filosóficas… O sr. Wilde diz que o livro tem “uma moral”. A “moral”, tanto quanto somos capazes de perceber, é que o principal objetivo do homem consiste em desenvolver sua natureza ao máximo “buscando sempre novas sensações”, e que, quando a alma adoece, o modo de curá-la é não negar nada aos sentidos.5

4 Complete Letters of Oscar Wilde. Merlin Holland e Rupert Hart-Davis (orgs.) (Nova York: Holt, 2000), p. 447. 5 Resenha não assinada sobre O retrato de Dorian Gray. Daily Chronicle, 30 de junho de 1890, em Oscar Wilde: The Critical Heritage, Karl Beckson (org.). (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1970), p. 72.

introdução geral

17


Uma das resenhas mais perniciosas saiu na St. James’s Gazette. “Não tendo curiosidade pelo lixo, e não desejando ofender o olfato de pessoas decentes, não nos propomos analisar O retrato de Dorian Gray”, escreve o resenhista anônimo. “Não sabemos se o Tesouro ou a Sociedade dos Vigilantes acharão que vale a pena impetrar uma ação contra o sr. Oscar Wilde ou os srs. Ward, Lock & Co.”, ele continua. “O enigma está em saber por que um jovem de boa formação, que teve a oportunidade (quando cursou a Universidade de Oxford) de conviver com cavalheiros, haja desejado apor seu nome (tal como consta) a um escrito tão estúpido e vulgar.”6 Outro comentário da época, publicado no Scots Observer, uma revista literária respeitável e mesmo prestigiosa, publicada pelo poeta e crítico W. E. Henley (que tinha sido amigo de Wilde), merece uma citação mais longa: Por que fuçar em montes de estrume? O mundo é justo, e é grande a proporção de homens e mulheres de mente sã quando comparada com a dos que as têm sujas, decaídas ou anormais. O sr. Oscar Wilde mais uma vez escreve coisas que não deveriam ser escritas; e, conquanto O retrato de Dorian Gray, publicado pela Lippincott’s, seja uma obra engenhosa, interessante, cheia de talento e sem dúvida o trabalho de um homem de letras, não deixa de ser o produto de uma arte falsa — pois seu interesse é médico-legal; é falsa em termos da natureza humana — pois seu herói é um demônio; e é falsa em termos morais — pois não fica suficientemente claro se o autor prefere uma trajetória de iniquidade anormal a uma vida limpa e saudável do ponto de vista físico e mental. A história — que trata de questões apropriadas apenas para o Departamento de Investigações Criminais ou uma oitiva in camera — é desonrosa tanto para o autor quanto para o editor. O sr. Wilde possui inteligência, arte e estilo; mas se só pode escrever para nobres fora da lei e jovens telegrafistas pervertidos, quanto mais cedo ele se dedicar à profissão de alfaiate (ou outra ocupação decente), melhor para sua própria reputação e para a moral pública.7

6 Resenha não assinada de O retrato de Dorian Gray. St. James’s Gazette, 20 de junho de 1890; em Oscar Wilde: The Critical Heritage, Karl Beckson (org.), pp. 68-69. 7 Nota não assinada de O retrato de Dorian Gray. Scots Observer, 5 de julho de 1890; em Oscar Wilde: The Critical Heritage, Karl Beckson (org.), p. 75.

18

Nicholas Frankel


Hoje podemos facilmente reconhecer essas referências a enfermidades, insanidade, impureza e “interesse médico-legal” como imputações veladas de homossexualismo. Vale lembrar, contudo, que na era vitoriana a preferência sexual não era claramente vista como uma identidade; na verdade, a palavra homossexual só entrou para a língua inglesa em 1892, usada como adjetivo numa tradução do livro de Richard Krafft-Ebing, Psychopathia Sexualis (e como substantivo pela primeira vez em 1912). Wilde e os outros homens que participavam da subcultura homossexual de Londres, muitos dos quais levando vidas duplas em segredo, seriam vistos pela maioria de seus contemporâneos não como homossexuais per se, e sim como pessoas que se dedicavam a vícios “impuros”. Mesmo assim, os atos homossexuais eram considerados em geral repulsivos e aberrantes — e, desde a entrada em vigor da Emenda à Lei Criminal de 1885, as atividades sexuais de qualquer natureza entre homens passaram a ser não apenas pecaminosas, mas ilegais. (O estabelecimento da homossexualidade como identidade sexual e social distinta é atribuído por muitos à sua criminalização e ao exemplo da vida e obra de Wilde.) O fato de que as raivosas resenhas britânicas de O retrato de Dorian Gray compartilham a mesma linguagem codificada (enfermidades, insanidade, impureza etc.), além de aludirem a acusações criminais, mostra de forma patente que muitos dos primeiros leitores britânicos da obra reconheciam como ela desafiava as noções convencionais vitorianas acerca da sexualidade masculina, sobretudo pela preocupação com o relacionamento homoerótico e emocional entre os três principais personagens masculinos (Dorian, Basil e lorde Henry) e pelo complexo interesse na natureza potencialmente corruptora da influência interpessoal. (A maior rede de livrarias da Grã-Bretanha, W. H. Smith & Son, num gesto bastante raro, retirou os exemplares de julho da revista Lippincott’s de seus estandes nas estações ferroviárias devido ao clamor público.) O retrato de Dorian Gray é um dos primeiros romances em língua inglesa a explorar a natureza do desejo homoerótico e homossocial, sendo por isso uma obra subversiva, muito embora — ou talvez especialmente porque — faça um jogo de esconde-esconde com o fato de que o desejo homoerótico é a força que impulsiona seu enredo, ainda assim absorvente e macabro.

introdução geral

19


A compreensão da atmosfera geral de histeria sobre a sexualidade que existia na Grã-Bretanha nos anos anteriores à publicação de O retrato de Dorian Gray é importante para que se entenda a hostilidade com que o livro foi recebido em 1890. A Emenda à Lei Criminal de 1885, na qual Wilde foi enquadrado, teve origem no pânico criado acerca da corrupção de meninas inocentes após uma reportagem investigativa sobre o tráfico de escravas brancas em Londres, intitulado “O tributo das virgens na Babilônia moderna”, escrito pelo jornalista W.T. Stead e publicado na Pall Mall Gazette (para a qual Wilde escrevera regularmente entre 1884 e 1889). O Estatuto ii da lei (chamado de “Emenda Labouchère”, em referência ao deputado radical Henry Labouchère, que o propôs), criminalizando “a flagrante indecência” entre homens, foi acrescentado na undécima hora, pouco antes de serem encerrados os debates parlamen­tares e iniciada a votação, porém fez com que as práticas homossexuais se tornassem ainda mais clandestinas, servindo apenas para exacerbar a ansiedade na Grã-Bretanha acerca da homossexualidade. A expressão-chave da emenda — “flagrante indecência” — era suficientemente ampla para englobar qualquer atividade sexual entre homens, independentemente de suas idades ou da existência de consentimento, razão pela qual serviu como base para a condenação de Wilde e muitos outros homossexuais na Grã-Bretanha até a lei ser abolida em 1956 (segundo a Emenda Labouchère, os atos homossexuais, assim como o favorecimento ou a tentativa de favorecimento de tais atos, eram passíveis de serem punidos com até dois anos de prisão, com ou sem trabalhos forçados). A imprecisão da linguagem da Emenda Labouchère era um convite aos processos judiciais, enquanto a criminalização de atos pri­vados entre adultos aquiescentes encorajou os prostitutos e empregados domésti­cos a extorquir dinheiro de seus clientes e patrões. (O próprio Wilde foi vítima de várias tentativas de chantagem.) Haviam sido criadas as condições para a eclosão da série de escândalos homossexuais que abalaram Londres e elevaram o nível de homofobia na sociedade britânica. Antes da derrocada de Wilde, o mais notável escândalo que se seguiu à passagem da Emenda Labouchère tinha sido o affair da Cleveland Street, de 1889-1890. Em fins de 1889, quando Wilde começou a escrever O retrato de Dorian Gray, surgiram rumores na imprensa acerca do envolvimento de certo

20

Nicholas Frankel


número de aristocratas e militares com um endereço na área de Fitzrovia, no centro de Londres. A polícia, ao investigar um roubo cometido na agência de correio do centro de Londres, havia descoberto um bando de prostitutos ou “garotos de aluguel” que trabalhavam como telegrafistas durante o dia e, à noite, serviam num bordel masculino situado no número 19 da Cleveland Street (os “jovens telegrafistas pervertidos” mencionados na resenha da Scots Observer). Uma das pessoas mais enxovalhadas no escândalo foi lorde Arthur Somerset, camarista do príncipe de Gales, que fugiu para a França em outubro de 1890 a fim de escapar de um processo penal (daí a referência a “nobres fora da lei” na resenha da Scots Observer). Os rumores também vincularam o príncipe Albert Victor, filho mais velho do príncipe de Gales, ao bordel da Cleveland Street, embora a imprensa britânica não tenha ousado se referir a seu nome e não houvesse qualquer indício de que ele tenha sido cliente do estabelecimento. Mas a circunstância de que o rumor haja circulado indica o nível geral de ansiedade no tocante ao comportamento homossexual, a partir de então associado na mente do público com os vícios aristocráticos e a corrupção de jovens de classe baixa. O escândalo chegou até o Parlamento na forma de um debate inflamado devido às alegações de que o governo tentara abafá-lo com vistas a proteger a reputação de fregueses aristocráticos. Nessa atmosfera agitada pela histeria e pela paranoia é que O retrato de Dorian Gray foi recebido pela imprensa britânica. Na esteira do escândalo da Cleveland Street, a ênfase de Wilde na juventude de Dorian Gray ou sua susceptibilidade à corrupção por um aristocrata mais velho (lorde Henry) é uma das características do romance que mais enfureceu os resenhistas. A acolhida dada a O retrato de Dorian Gray é uma indicação do que estava por vir. Não surpreende que o romance de Wilde seja um texto altamente “codificado”, dada a necessidade de segredo e precaução que existia na comunidade homossexual da Inglaterra após a aprovação da Emenda Labouchère e do escândalo da Cleveland Street. O próprio nome Dorian é uma referência velada ao amor “dórico” ou “grego” — à tradição dos gregos antigos (discutida abertamente pela primeira vez no livro de Karl Müller História e antiguidades da raça dórica [1824, tradução inglesa de 1830]) de um homem mais velho manter um jovem como amante. O capítulo ix de O retrato de Dorian Gray,

introdução geral

21


74


O retrato de dorian gray

75


1 O fato de que o estúdio de Hallward era adjacente a um jardim em plena floração parece situá-lo numa das colônias artísticas da era vitoriana em Londres, tais como St. John’s Wood, Hampstead, Chelsea, Kensington ou, o endereço mais prestigiado, Holland Park. No tempo de Wilde, Holland Park abrigou diversas casas de artistas de renome, muitas das quais incorporando partes do jardim da velha Little Holland House (demolida em 1875), onde os círculos boêmios se tornaram respeitáveis pela primeira vez. (Carolyn Dakers, The Holland Park Circle: Artists and Victorian Society [New Haven, ct: Yale University Press, 1999], p. 24) Casas-estúdios que incorporavam jardins, tais como as construídas em Holland Park para os artistas Marcus Stone, Luke Fildes, Val Prinsep e Hamo Thorneycroft estavam na vanguarda da arquitetura da época. 2 Por volta do fim do século xix, o cigarro surgiu como um importante símbolo de modernidade, uma vez que sua portabilidade e transitoriedade eram compatíveis com a etiqueta da cultura urbana e com as exigências da vida moderna. Ao mesmo tempo, como observa Robyn L. Schiffman, o cigarro “pertencia à complexa rede de acessórios da moda que começaram a definir um estilo e uma cultura homossexuais discerníveis”. (“Toward a Queer History of Smoking”, em Smoke: A Global History of Smoking, Sander L. Gilman e Zhou Zun (orgs.) [Londres: Reaktion Books, 2004], p. 305) O divã no qual lorde Henry se senta e fuma provavelmente reflete a decoração da própria sala de fumar de Wilde, desenhada pelo explorador Walter Harris. O filho mais moço de Wilde, Vyvyan Holland, recorda: “A sala de fumar de meu pai era o aposento mais impressionante da casa. […] A decoração era norte-africana.

Divãs, canapés, tapeçarias mouriscas e lanternas enchiam a sala”. (Son of Oscar Wilde [1954; Oxford University Press, 1988], p. 44) 3 É geralmente aceito pelos es­ tudiosos que o espirituoso e sofisticado lorde Henry Wotton foi inspirado, ao menos em parte, no amigo de Wilde, lorde Ronald Sutherland Gower (1845-1916), que era escultor, connoisseur de arte, curador da National Portrait Gallery, vice-presidente da Kyrle Society for the Diffusion of Beauty among the People, bem como “um notório sodomita com pendor para buscar parceiros violentos”. (Neil Mc-Kenna, Secret Life of Oscar Wilde [Nova York: Basic Books, 2005], p. 11) John Everett Millais pintou um retrato a óleo de Gower que Wilde elogiou publicamente por projetar a imagem de “um jovem com um delicado nariz aquilino, rosto oval pensativo e ar abstrato de artista”. (“The Grosvenor Gallery” [1877]) Vários amigos de Wilde, em especial Frank Harris e Robert Ross, afirmavam que o autor, conscientemente ou não, também havia projetado muito de sua personalidade em lorde Henry. O próprio Wilde diz que, embora o romance contenha “muito de mim […] lorde Henry Wotton é [apenas] o que o mundo pensa que eu sou”. Complete Letters of Oscar Wilde, Merlin Holland e Rupert Hart-Davis (orgs.) (Nova York: Holt, 2000), p. 585, doravante citado como CL. 4 A árvore denominada Laburnum x waterereri explode numa massa de flores amarelas na primavera, formando pencas de 25 a 50 centímetros de comprimento. Belos exemplos de arcos de laburno, muito populares nos meios de jardinagem vitorianos, ainda podem ser encontrados nos Bodnant Gardens, Gwynned, País de Gales, e nos Ness Gardens, em Wirral.

5 “Se você deseja ver um efeito japonês, não se comporte como um turista e vá a Tóquio. Pelo contrário, fique em casa e se aprofunde no trabalho de certos artistas japoneses até que, havendo absorvido o espírito de seu estilo e a forma imaginativa de visão que eles possuem, você irá sentar-se certa tarde no parque ou passeará por Piccadilly e, caso não consiga ver nesses locais nenhum efeito japonês, não o verá em lugar algum.” (“The Decay of Lying”, em Criticism: Historical Criticism, Intentions and the Soul of Man, Josephine Guy (org.), vol. 4 de The Complete Works of Oscar Wilde [Oxford: Oxford University Press, 2007], p. 98) Os pintores pálidos com rostos cor de jade de que lorde Henry está pensando podem incluir Hokusai e Hokkai, ambos mencionados nominalmente na obra The Decay of Lying, bem como Hiroshige e Utamaro, cujos trabalhos estiveram na vanguarda do crescente movimento japonista no final da década de 1880 e começo da década de 1890. Wilde conhecia esses artistas através de importantes estudos de japonismo, tais como Art and Art Industries in Japan (que ele possuía), de Rutherford Alcock; Pictorial Arts of Japan, de William Anderson; Japan and Its Art, de Marcus Huish, e a revista mensal Artistic Japan, em suas poucas edições. É provável que Wilde tenha visto a mostra de desenhos e gravuras de Hokusai na Fine Art Society em 1890. Com respeito ao japonismo como movimento, ver, de Lionel Lambourne, Japonisme (Londres: Phaidon, 2005). A prosa repleta de imagens de Wilde busca aqui “transmitir a velocidade de movimento numa arte que é necessariamente imó­ vel”. Ao colocar frase sobre frase, Wilde tenta capturar um efeito japonês em sua linguagem, imitando a maneira pela qual as imagens são construídas gradual e incrementalmente nas xilogra-


I

O

estúdio estava impregnado do rico aroma das rosas e, quando a aragem de verão agitava de leve as árvores no jardim, pela porta aberta entrava a densa fragrância dos lilases ou o perfume mais delicado do espinheiro de flores rosadas.1 Do canto do divã de selas persas no qual se recostava, como sempre fumando inumeráveis cigarros,2 lorde Henry Wotton3 podia enxergar o brilho das flores do laburno, com gosto e cor de mel, cujos ramos trêmulos pareciam incapazes de suportar o peso de beleza tão chamejante;4 e, vez por outra, a sombra fantástica de pássaros em voo atravessava num átimo as longas cortinas de seda bruta da Índia que cobriam a grande janela francesa, produzindo um efeito momentaneamente japonês e o fazendo pensar naqueles pálidos pintores com rostos de jade que, numa arte por necessidade imóvel, buscam transmitir o senso de rapidez e movimento.5 O murmúrio zangado das abelhas, abrindo caminho entre as longas folhas da grama não cortada ou circulando com monótona insistência em torno das espigas ornamentadas com linhas pretas

77


vuras japonesas pela superposição de cores. 6 Esta é a primeira de muitas referências a abelhas no romance. Marion Thain observa que, embora “as abelhas tenham ocupado uma posição de relevo nos discursos sobre a estética” desde a Antiguidade, quando Sófocles e Safo eram conhecidos respectivamente como “abelha da Ática” e “abelha da Piéria”, “elas […] ganharam novo destaque em fins do século xix”. (“Apian Aestheticism”, em Michael Field and Their World, Margaret D. Stetz e Cheryl A. Wilson (orgs.) [High Wycombe: Rivendale Press, 2007], p. 224) Para Thain, “a delicada abelha que entra zumbindo no cálice da flor simboliza a meditação exigida para que a voz estética fosse ouvida pelo leitor” (p. 231). Para outros estudiosos, contudo, a abelha significa a atividade sexual sobre a qual os vitorianos se sentiam obrigados a usar de circunspecção. Por exemplo, Nicolette Scourse — que descreve ricamente a fascinação dos vitorianos com a criação de abelhas e os apiários como enfeites elegantes nas casas mais refinadas, sobretudo após o estabelecimento da British Bee-Keeper’s Association, em 1874 — demonstra como os vitorianos empregaram complexos eufemismos e evasivas para suprimir o papel evidente das abelhas na reprodução sexual das plantas. (The Victorians and Their Flowers [Londres: Croom Helm, 1893]. pp. 9, 39-42, 65) Enquanto um comentarista vitoriano descreve eufemisticamente as abelhas como “alcoviteiras veniais para as flores” (citado em Scourse, p. 62), o botânico contemporâneo Peter Bernhardt faz um gracejo ao definir as abelhas como “o pênis alado das flores” (“The Faithful and Unfaithful Bee”, no livro de Bernhardt, The Rose’s Kiss: A Natural History of Flowers [Chicago: University of Chicago Press, 1999], p. 162)

7 O Oxford English Dictionary (oed) define bourdon como “registro grave num órgão, em geral tocado na pedaleira; uma parada semelhante à da harmônica; também o som grave de uma gaita de foles. Também em uso atributivo: bourdon stop. 8 Pode-se comparar o retrato de Dorian feito por Hallward com o que tem papel central em “The Portrait of Mr. W. H.” (um dos dois contos referentes a retratos misteriosos que Wilde havia escrito antes de começar Dorian Gray): “Era o retrato de corpo inteiro de um jovem […] de beleza extraordinária, embora evidentemente algo efeminado”. O retrato de Dorian Gray pertence a um gênero dominado na época por Whistler, Sargent e Tissot. Por volta de 1884, Wilde encomendou seu próprio retrato de corpo inteiro ao pintor norte-americano Harper Penington, um discípulo de Whistler. Esse retrato, de que Wilde gostava muito, adornava a parede de sua casa na Tite Street até ele ser preso em 1895. Whistler observa que o frescor e o brilho são facilmente expressos num pequeno pastel, “mas um retrato de corpo inteiro é algo bem diferente”. (Whistler on Art: Selected Letters and Writings of James McNeill Whistler, Nigel Thorp (org.) [Washington: Smithsonian, Institution Press, 2004], p. 152) 9 A presença de um trabalho de arte no centro do aposento e a declaração do narrador de que ele contém o retrato de “um jovem de extraordinária beleza” deixam claro o que já está implícito na refinada prosa dos dois parágrafos anteriores: que Dorian Gray é um romance estético, profundamente preocupado com a percepção e discriminação da beleza na arte, na vida e na natureza. São múltiplas as raízes históricas do esteticismo, remontando ao pré-rafaelismo e ao romantismo

ingleses (em especial, a poesia de John Keats) e aos escritos filosóficos de Kant e de Baumgarten no século xviii. Derivando do grego aisthesis, que significa “percepção ou ciência do belo” (Walter Hamilton, The Aesthetic Movement in England, 3a ed. [1882; Nova York: Garland, 1986], p. vi), o termo “estético” originalmente designava uma filosofia ou teoria do gosto. No entanto, por volta de 1890, quando Dorian Gray foi escrito, muitos artistas, escritores, designers e consumidores ingleses haviam passado a se preocupar com a beleza e/ou a arte pela arte. Um vigoroso movimento estético surgira no mundo de língua inglesa, tendo Wilde, no início da década de 1880, assumido a posição de porta-voz do movimento então nascente. Para Wilde e muitos outros de sua geração, o livro de ouro do esteticismo foi Studies in Art and Poetry (publicado inicialmente em 1873 com o título de Studies in the History of the Renaissance) por Walter Horatio Pater (1839-1894), professor e tutor do Brasenose College, de quem Wilde foi amigo íntimo enquanto cursava Oxford, e cuja obra muito influenciou Dorian Gray. No prefácio de The Renaissance, Pater afirma que o esteta considera todos os objetos com que se relaciona e todas as obras de arte, assim como as formas mais refinadas da natureza e da vida humana, como poderes ou forças que produzem sensações agradáveis, cada qual mais ou menos peculiar ou de uma categoria única. Para Pater, o esteticismo é uma forma intensamente subjetiva e impressionista de crítica, tendo como objeto “distinguir, analisar e separar de seus acessórios a virtude graças à qual uma pintura, uma paisagem, uma figura interessante na vida real ou num livro produz uma impressão especial de beleza ou prazer, além de indicar qual a fonte de tal impressão e em que condições ela é sentida”.


das malvas-rosa6 que brotavam no início de junho, parecia tornar ainda mais opressivo o ar parado, enquanto o rugido indistinto de Londres soava como o bordão de um órgão distante.7 No centro da sala, preso a um cavalete, estava o retrato a óleo8 de um jovem de extraordinária beleza9 e, à frente dele, sentado a certa distância, o próprio artista, Basil Hallward,10 cujo repentino desaparecimento alguns anos antes causara, à época, enorme excitação pública e dera origem a muitas e estranhas conjecturas.11 Enquanto olhava para a bela e graciosa figura que, com tamanha habilidade, ele havia reproduzido usando toda sua arte, um sorriso de prazer lhe perpassou o rosto e lá pareceu querer se demorar.12 Mas subitamente ele rompeu o marasmo e, fechando os olhos, apertou as pálpebras com os dedos como se tentasse aprisionar no cérebro algum sonho curioso do qual temia despertar. — É seu melhor trabalho, Basil, a melhor coisa que você jamais fez — disse lorde Henry languidamente. — Você sem dúvida deve mandá-lo no ano que vem para a Grosvenor Gallery. A Academy é grande demais e vulgar demais. A Grosvenor é o lugar certo.13 — Acho que não vou mandar para lugar nenhum — ele respondeu, jogando a cabeça para trás daquela forma peculiar que costumava fazer seus amigos rirem dele na Universidade de Oxford. — Não, não vou mandar para lugar nenhum. Lorde Henry ergueu as sobrancelhas, olhando-o com surpresa através das espirais de fumaça azul que se encaracolavam caprichosamente ao subir de seu cigarro impregnado com uma grande dose de ópio.14 — Não vai mandar para lugar nenhum, meu caro amigo? Por quê? Você tem alguma razão? Vocês pintores são mesmo muito estranhos! Fazem qualquer coisa no mundo para ganhar fama. Tão logo a conseguem, dão a impressão de que querem jogá-la fora. Isso é uma bobagem sua, porque só há uma coisa no mundo pior do que ser falado: é não ser falado. Um quadro como esse o colocaria bem acima de todos os jovens na Inglaterra e deixaria os velhos com muito ciúme. Se é que os velhos são capazes de sentir qualquer emoção. — Sei que você vai rir de mim — ele respondeu —, mas realmente não posso exibi-lo. Pus muito de mim nesse quadro.15

o retrato de dorian gray  79


10 Em “Who Was Basil Hallward?” (English Language Notes, 24 [1986], pp. 84-91), Kerry Powell diz que “o envolvimento de Wilde com a arte e os artistas — nos ensaios sobre pintura, nas palestras sobre arte, nos embates com Whister — faz com que o leitor seja tentado a imaginar que o notável retratista de Dorian Gray guarda alguma relação com a experiência do próprio autor”. (p. 86) Alguns outros modelos para Hallward foram sugeridos pelos críticos. Powell argumenta com bases sólidas que “o modelo mais plausível na vida real para Hallward” era um retratista do final da era vitoriana, hoje esquecido, que se chamava Frank Holl. A argumentação de Powell não se fundamenta em nenhuma presunção de intimidade entre Holl e Wilde — não há prova de que ele conhecesse Holl pessoalmente ou até mesmo que gostasse de suas pinturas —, e sim na possibilidade de que os retratos de Holl, muito apreciados no tempo de Wilde, “exibissem um ego culpado e escondido em vez da máscara ‘inocente’ e imaculada que a pessoa que está posando usa todos os dias para enganar o mundo”. (p. 88) “[Holl], ao longo de sua carreira, deve ter descoberto algum segredo pavoroso naquelas figuras aparentemente sem culpa, a julgar pelos ‘rostos execráveis’ que exibem os retratados”, observa o crítico Harry Quilter num livro que Wilde resenhou em 1886 e que Powell cita profusamente. Segundo Quilter, Holl foi também um pintor que “de certa forma, cobriu com o manto de sua própria personalidade todos os que posaram para ele”, emprestando assim a seus retratos outra das características que distinguem o trabalho de Hallward em Dorian Gray. 11 Um prenúncio direto do fim trágico de Hallward e do comentário de lorde Henry no final do

romance de que “as pessoas ainda discutem o desaparecimento do pobre Basil”. Ao mencionar o “repentino desaparecimento” no terceiro parágrafo de sua narrativa, Wilde provoca em seus leitores o desejo de saber mais. Será que Hallward vai se suicidar, ser assassinado ou simplesmente simular seu desaparecimento, como Isa Whitney no conto de Arthur Conan Doyle, “O homem do lábio torcido”? Tais questões viriam à mente dos primeiros leitores de Wilde, em particular os londrinos ainda ansiosos devido ao caso de Whitechapel ou aos crimes de Jack, o estripador, no ano de 1888. Os tétricos assassinatos do Estripador, nunca resolvidos, haviam instigado uma caçada policial maciça. Londres era chamada “a cidade dos desaparecimentos”, não sendo raro, no tempo de Wilde, que pessoas respeitáveis sumissem na cidade ou seus corpos fossem encontrados meses depois nas margens do Tâmisa. O romance de Arthur Conan Doyle, O sinal dos quatro — publicado na Lippincott’s Monthly Magazine quatro meses antes de Dorian Gray —, gira em torno de um desaparecimento desse tipo. 12 “Estou tão satisfeito com sua imagem no quadro”, comenta Whistler a Louise Kinella, que posara para ele em 1896, “que hoje mostrei o retrato a Sargent […] e você sabe que não mostro minhas coisas — mas não pude resistir! Creio que ele ficou muito impressionado — disse que era muito bonito — e devo confessar que eu próprio o admirei sem rebuços.” (Whistler on Art, Thorp (org.), pp. 151-152) A consciência de Hallward de sua capacidade artística, como se vê em Whistler, indica uma característica geral dos especialistas no gênero. “Os retratos não são meramente rostos e corpos reconhecíveis, nem mesmo imagens feitas à

semelhança do retratado numa acepção simples do termo”, segundo observa Richard Brilliant: “o crucial é o papel do retratista ao criar uma obra moldada por seu talento e habilidade técnica, pela perspicácia de sua interpretação e pela relação afetiva entre ele e o retratado, tanto quanto seres humanos sensíveis como também como ‘artista’ e ‘objeto’ do retrato.” (Portraiture [Cambridge, ma: Harvard University Press, 1991], pp. 3-31) 13 “Enquanto pode se dizer que a exibição anual da Royal Academy nos apresenta as características gerais da arte inglesa no que ela tem de mais banal, é na Grosvenor Gallery que podemos ver os melhores exemplos do espírito artístico moderno.” (Oscar Wilde, “The Grosvenor Gallery” [1879]) Na ópera Patience, ou Bunthorne’s Bride (1881), Gilbert e Sullivan fizeram uma notável caracterização cômica de Wilde associando-o definitivamente à Grosvenor Gallery na mente do público britânico e norte-americano. Num dos diversos e excelentes estudos publicados recentemente sobre a Grosvenor Gallery, Christopher Newall nota que “a Grosvenor veio a ser considerada como um lugar adequado para exibir retratos, de certa forma preferível à Academy”. (The Grosvenor Gallery Exhibitions [Cambridge: University Press, 1995], p. 28) O desprezo de Wilde pela Royal Academy, que havia recusado os primeiros trabalhos de Whistler, Millais, e outros grandes artistas de seu tempo, atingiu o ápice em “The Rout of R.A.”, a humorísti­ca resenha do trabalho satírico de Fur­niss. Nela, após caracterizar Furniss como “o jovem e vigoroso Davi [que vem] matar o lento e pesado Golias da arte da classe média”, Wilde comenta que “os academicistas reais estão agora em plena retirada e, na opinião dos melhores peritos militares e


Lorde Henry esticou as longas pernas no divã e se sacudiu de tanto rir. — É, sabia que você ia rir. Mas, queira ou não, é a verdade. — Muito de você no quadro! Juro, Basil, que não sabia que você era tão vaidoso. Não consigo ver a menor semelhança entre você, com seu rosto duro e forte, seus cabelos negros como carvão, e esse jovem adônis, que parece feito de marfim e pétalas de rosa.16 Ora, meu caro Basil, ele é um Narciso e você — bem, obviamente você tem uma expressão intelectual e tudo mais.17 Mas a beleza, a verdadeira beleza, acaba onde começa uma expressão intelectual. O intelecto é por si só um exagero, destruindo a harmonia de qualquer rosto. No momento em que alguém se senta para pensar, se torna só um nariz, ou só uma testa, ou algo horrível. Repare nos homens de sucesso em qualquer profissão erudita. Como são verdadeiramente horrendos! Exceto, é fato, na Igreja.18 Mas isso porque na Igreja eles não pensam. Um bispo continua a dizer aos oitenta anos o que lhe mandaram dizer quando era um rapazola de dezoito, e por conta disso tem sempre uma aparência maravilhosa.19 Seu misterioso amiguinho, cujo nome você nunca me contou, mas cujo retrato de fato me fascina, não pensa nunca. Tenho certeza disso. Ele é uma coisa bela e sem cérebro, que deveria estar sempre aqui no inverno, quando não temos flores para ver, e sempre aqui no verão, quando desejamos algo que refresque nossa inteligência. Não se iluda, Basil, você não o lembra em nada. — Você não me entendeu, Harry. Claro que não me pareço com ele. Sei disso perfeitamente. Na verdade, não gostaria de me parecer com ele. Você sacode os ombros? Estou dizendo a verdade. Há uma fatalidade em toda superioridade física e intelectual, o tipo de fatalidade que ao longo da História parece perseguir os passos hesitantes dos reis. É melhor não ser diferente dos outros. O feio e o simplório levam a melhor neste mundo. Podem ficar sentados quietinhos e se embasbacar com a peça. Se nada sabem sobre a vitória, ao menos são poupados do conhecimento da derrota. Vivem como todos nós deveríamos viver, sem serem incomodados, indiferentes, despreocupados. Não causam a ruína dos outros nem a recebem de mãos estranhas. Sua posição e fortuna, Harry; meu cérebro, seja o que ele for, e minha fama, pelo que ela possa valer; a beleza de Dorian Gray: todos nós sofreremos pelo que os deuses nos deram, sofreremos terrivelmente.

o retrato de dorian gray  81


artísticos, escapam velozmente na direção de Bayswater, uma área desolada ao norte do Parque […]. O embate derradeiro, contudo, só ocorrerá no final desta semana, quando Golias, que no momento está ocupado em passar verniz nas telas, o único processo artístico que domina, exibirá suas forças na Burlington House sob o patrocínio do público britânico e sob a proteção da polícia britânica”. 14 O cigarro de lorde Henry impregnado de ópio pode ser semelhante ao oferecido por Ernest a Gilbert no ensaio “The Critic as Artist”, um exemplo do excelente tabaco que o primeiro afirma ter obtido diretamente do Cairo. (em Criticism: Historical Criticism, Intentions and the Soul of Man, Guy (org.), p. 142) O próprio Wilde adorava os cigarros egípcios, tendo dito a Jacques Daurelle que “os ingleses só mantêm o domínio sobre o Egito porque é o país em que conseguimos nossos melhores cigarros” (citado em Jacques Daurelle, “An English Poet in Paris” [1891], trad. em Oscar Wilde: Interviews and Recollections, E. H. Mikhail (org.), 2 vols. [Londres: Macmillan, 1979], 1:169). Wilde proclamava os prazeres do fumo tanto em suas aparições públicas quanto nas numerosas referências à tal prática nos diálogos, nas obras de ficção e nas peças teatrais. Henry de Regnier lembra que “cigarros orientais com ponteiras douradas estavam eternamente se transformando em fumaça na sua boca” (“Recollections of Oscar Wilde” [1901], em Oscar Wilde: Interviews and Recollections, Mikhail (org.), 1:165), enquanto, segundo Marcel Schwob, que esteve longamente com Wilde durante uma visita a Paris em 1891, ele “não parava nunca de fumar cigarros egípcios impregnados de ópio”. (citado em Richard Ellmann, Oscar Wilde

[Nova York: Knopf, 1988], p. 346) Com respeito às conexões entre o tabaco egípcio e os devaneios inspirados pelo ópio, ver o conto de Kate Chopin “An Egyptian Cigarette”. 15 Alguns críticos sustentam que uma reprodução exata na tela impede que se conheça efetivamente a pessoa retratada. “Não posso ver o homem devido à sua semelhança”, reclama Roger Fry de um dos quadros de Sargent. (citado no livro de Brilliant, Portraiture, p. 26) Os retratos ingleses “são tão parecidos com as pessoas que tencionam representar”, diz Wilde em “The Decay of Lying”, que “daqui a cem anos ninguém acreditará neles”. Os únicos retratos em que acreditamos são aqueles em que há muito pouco de quem posa e muito do artista”. (p. 99) 16 Segundo a lenda clássica, Adônis era um belo jovem. Produto do amor incestuoso de Mirra por seu pai Cíniras, o rei de Chipre, Adônis se tornou o amante predileto de Afrodite, porém era desafortunado e temerário como caçador: chifrado por um javali, morreu de hemorragia. Correndo em ajuda do amante, Afrodite deixou cair néctar no solo ensanguentado, onde brotou uma flor vermelha conhecida como anêmona ou flor-do-vento, que supostamente se abre pela ação do vento antes de suas pétalas serem sopradas para longe. No estudo sobre as relações entre a mitologia greco-romana e os nomes das plantas, Peter Bernhardt diz que, “durante milhares de anos, as mulheres gregas adoraram Adônis como uma personificação da vegetação que seca no calor cíclico do verão mediterrâneo. (Gods and Goddesses in the Garden: Greco-Roman Mythology and the Scientific Names of Plants [Brunswick, nj: Rutgers University Press, 2008], p. 143)

17 O mito de Narciso interessou a Wilde e está na base do momento crucial em Dorian Gray no qual “a consciência de sua própria beleza veio como uma revelação”. Segundo a lenda clássica, Narciso era um bonito jovem extraordinariamente vaidoso, que atraía seguidores de ambos os sexos por ele rejeitados ou ignorados. Desprezada por Narciso, uma de suas vítimas lhe rogou uma praga, condenando-o a sofrer a mesma intensidade de paixão por um ser inalcançável. Mais tarde, Narciso chegou a um pequeno lago de montanha e, se abaixando para beber, ficou apaixonado por seu próprio reflexo. Incapaz de possuir o belo rapaz que encontrara nas águas, cuja imagem se dissipou com a queda de suas lágrimas, Narciso definhou e morreu de tristeza ali mesmo, só restando a flor que carrega seu nome. Peter Bernhardt observa que, ao contrário das muitas variedades de narcisos encontradas atualmente, as espécies originais possuíam um odor doce e entorpecente, refletindo a origem grega comum das palavras narciso e narcótico. (Gods and Goddesses in the Garden, p. 61) 18 Na comédia A importância de se chamar Ernesto, quando o cônego Chasuble observa que a Igreja era em seus primórdios claramente contrária ao matrimônio, a senhorita Prism retruca: “o senhor parece não se dar conta de que, ao persistir em continuar solteiro, um homem se converte numa tentação pública permanente”, e “esse próprio celibato afasta as pessoas mais débeis”. 19 “Não pretendo ficar velho nunca”, diz lorde Illingworth em Uma mulher sem importância: “A alma nasce velha, mas se torna moça”. Comparar com “Aqueles que os deuses amam se tornam jovens”. (Wilde, “A Few Maxims for the Instruction of the Over-Educated”)


o retrato de dorian gray  83


20 Especula-se muito sobre os possíveis modelos na vida real do personagem que dá título ao romance. Alguns dos contemporâneos de Wilde acreditavam que Dorian Gray se inspirava no poeta John Gray, protégé de Wilde à época em que o escreveu. O biógrafo Richard Ellmann diz que “dar ao personagem central do romance o nome de ‘Gray’ foi [para Wilde] uma forma de fazer a corte”. (Ellmann, Oscar Wilde, p. 307) A única carta que ainda subsiste de John Gray para Wilde — um rascunho autografado do poema de Gray “Mishka”, datado de 1891 — é assinada “Sempre seu, Dorian”. Segundo a British Library (onde hoje se encontra), a carta ficou, durante muitos anos, colada à cópia número 1 de O retrato de Dorian Gray. Por algum tempo, Gray buscou se apropriar da persona de Dorian Gray, e até 1892 costumava ter acesso à alta sociedade. Entretanto, quando em fevereiro de 1892 o jornal The Star noticiou em sua coluna de mexericos que Gray “era suposto ser o modelo para o Dorian com igual sobrenome”, Gray ameaçou entrar com uma ação por calúnia, e a nota foi imediatamente desmentida. O incidente marcou o início de uma separação permanente entre Wilde e Gray. Para um exame da “persona Dorian” de Gray e suas possíveis conexões com o romance, ver Jerusha Hull McCormack, John Gray: Poet, Dandy, Priest (Hanover, nh: Brandeis University Press/University Press of New England, 1991), pp. 39-102. Mas por que “Dorian”? Em português, “Dorian” significa “dórico”, referente aos dórios, um dos povos que formaram a Grécia antiga. O “modo dórico” é um dos principais modos musicais clássicos da Grécia, caracterizado pela simplicidade e solenidade, sendo também um dos primeiros modos eclesiásticos autênticos. Como consumado classicista, Wilde conhecia essa definição do

termo, dela se valendo para sua referência à “nobre música dórica dos gregos” em “The Critic as Artist”. No entanto, como observa John Espey, “os seguidores de Walter Pater e de John Addington Symonds deviam estar cientes de um segundo significado de ‘Dorian’, compreensível apenas para um círculo fechado de pessoas e difícil de documentar por causa de sua natureza. Era um nome bastante seguro de ser usado, tendo um quê de dandismo e sofisticação; caso questionado, era possível recorrer ao dicionário, com a acepção reconhecida de simplicidade e severidade” (Espey, “Resources for Wilde Studies at the Clark Library”, em Oscar Wilde: Two Approaches; Papers Read at a Clark Library Seminar, 17 de abril de 1976 [Los Angeles: William Andrews Clark Memorial Library, 1977], p. 37) Num ensaio intitulado “The Dantesque and Platonic Ideals of Love”, o poeta e crítico John Addington Symonds (1840-1893) usa os termos “amor grego”, “amor masculino” e “amor dórico” como sinônimos. O filólogo Karl Müller, no livro History and Antiquities of the Doric Race, que inspirou Symonds, defende a tradição de “amantes” mais velhos do sexo masculino assumindo a guarda de algum jovem. Num poema intitulado “In Honorem Doriani Creatorisque Eius” [Em homenagem a Dorian e seu criador], escrito em latim, o poeta Lionel Johnson, a quem Wilde havia dado um exemplar de O retrato de Dorian Gray, trabalha com os dois significados de Dorian: Abençoado seja tu, Oscar!/ Que me crês digno deste livro/ Como amigo teu:/ Cantando no modo romano/ Loas são devidas ao dórico, Eu te agradeço….// Eis aqui as maçãs de Sodoma;/ Aqui o coração dos vícios;/E doces pecados./ Nos céus e nas profundezas,/ Que te sejam dadas, a tu que tanto sabes, A glória de todas as glórias.

21 Na peça A importância de se chamar Ernesto, Jack pergunta a Gwendolen: “Quer dizer que não me amaria se eu não me chamasse Ernesto? […] Pessoalmente, não gosto muito do nome Ernesto — não acho que cai bem em mim nem um pouco”. “Cai perfeitamente”, responde Gwendolen: “É um nome divino. Tem uma música própria. Produz vibrações. […] Seu primeiro nome exerce uma fascinação irresistível”. 22 Wilde já escrevera um conto baseado nessa ideia. Lady Alroy, a personagem que dá nome ao conto (posteriormente intitulado “The Sphinx without a Secret”), aluga quartos pagando três guinéus por semana e fica neles somente para se cercar de um ar de mistério: era uma mulher maníaca por mistérios. Ocupava esses quartos pelo prazer de ir até lá com o véu abaixado, se imaginando a heroína de algum romance. Tinha paixão pelas coisas sigilosas, porém não passava de uma esfinge sem segredo. 23 “Você inventou um útil irmão mais moço chamado Ernesto a fim de poder vir à cidade tantas vezes quantas quiser. Eu inventei um valiosíssimo inválido permanente chamado Bunbury de modo a poder ir para o campo quando quero. Por exemplo, sem a extraordinária má saúde de Bunbury, eu não poderia jantar com você hoje à noite no Willis’s”. (A importância de se chamar Ernesto) 24 Antes da revelação pública em 1895 das atividades sexuais de Wilde com uma série de homens jovens, seguida da prisão por “flagrante indecência”, suas preferências sexuais eram mantidas em segredo e desconhecidas pela esposa, Constance Lloyd (1858-1898). Quase sessenta anos após a prisão de Wilde, seu filho Vyvyan relembra vividamente o momento em que a mãe desco-


— Dorian Gray? É esse o seu nome? — perguntou lorde Henry, atravessando a sala em direção a Basil Hallward.20 — É, esse é o seu nome. Não tencionava dizer para você. — Mas por que não? — Ah, não sei explicar. Quando gosto imensamente de alguém, não conto seu nome para ninguém. É como se eu entregasse uma parte da pessoa.21 Você sabe como eu gosto de segredo. É a única coisa que pode fazer a vida moderna maravilhosa ou misteriosa para nós.22 A coisa mais banal se torna deliciosa se a escondemos. Quando saio da cidade, nunca digo às pessoas que me cercam aonde vou. Se dissesse, acabaria todo o meu prazer. Não me importo de dizer que é um hábito irresistível e tolo, mas de alguma forma injeta uma grande dose de aventura na vida da gente. Você deve me achar muito bobo de pensar assim, não é? — De nenhuma forma — respondeu lorde Henry, pousando a mão no ombro do amigo. (a) — Nem um pouco, meu caro Basil. Você parece esquecer que sou um homem casado, e o único encanto do casamento é que as duas partes são obrigadas a viver uma vida de embustes.23 Nunca sei onde minha mulher está, e minha mulher nunca sabe o que eu estou fazendo. Quando nos encontramos — e de fato nos encontramos ocasionalmente, para jantarmos juntos ou visitarmos o duque —, nos contamos as histórias mais absurdas com a expressão mais séria. Na verdade, minha mulher faz isso muito melhor do que eu. Nunca se confunde sobre as datas, como eu sempre faço. Mas, quando me pega numa mentira, ela não briga nunca.24 Às vezes gostaria que brigasse, mas ela se limita a rir de mim. (b) — Odeio a maneira como você fala de sua vida de casado, Harry — disse Basil, livrando-se da mão dele (c) e caminhando em direção à porta que dava para o jardim. — Acho que você, na realidade, é um ótimo marido, mas morre de vergonha de suas próprias virtudes. Você é um sujeito extraordinário. Nunca diz algo moralmente correto, mas nunca faz qualquer coisa de errado. Seu cinismo não passa de uma pose.25 — Ser natural é simplesmente uma pose — e a mais irritante que conheço — exclamou lorde Henry, rindo. Os dois saíram juntos para o jardim e nada falaram durante algum tempo.

o retrato de dorian gray  85


briu a verdade: “minha principal recordação é de mamãe chorando enquanto lia uma porção de recortes, a maior parte de jornais do Continente. Naturalmente, não tive permissão para lê-los, embora fosse impossível não ver o nome oscar wilde nas manchetes”. (Son of Oscar Wilde, p. 61) Em Um marido ideal, um dos personagens de Wilde dá uma opinião sobre o casamento e sobre o segredo algo diferente daquela de lorde Henry. “Você deveria ter contado tudo à sua mulher”, observa o dândi lorde Goring para o amigo sir Robert Chiltern. “Os segredos das mulheres de outros homens são uma necessidade da vida moderna […] . Mas ninguém deveria manter um segredo de sua própria esposa. Ela sempre descobre. As mulheres têm um instinto maravilhoso, são capazes de descobrir tudo com exceção do óbvio.” 25 Com suas conotações de impostura e insinceridade aos olhos dos zelosos vitorianos heterossexuais, “posar” era um defeito moral quase tão sério quanto a homossexualidade. Em sua resposta à sugestão de Basil Hallward de que seu cinismo é uma pose (“Ser natural é simples­ mente uma pose — e a mais irri­tante que conheço”), lorde Henry inverte os termos segundo os quais a acusa­ção de “posar” funcionava na época. Helen Swanwick observa em suas memórias que Wilde “era um poseur genial e perfeitamente consciente de que posava e fazia disso uma arte”. (I Have Been Young [Londres: Gollancz, 1935], p. 67) 26 Como escritor de prosa, Wilde possui o dom do dramaturgo com respeito à linguagem corporal. O olhar desviado de Hallward sugere seu desconforto diante das perguntas de lorde Henry, embora contraste intensamente com o olhar aberto e fixo que lan-

ça sobre lorde Henry momentos depois ao anunciar que pintou com sentimento e revelou o segredo de sua alma. 27 Este parágrafo até “Não me dou o menor crédito por haver tentado fugir”, bem como outro trecho mencionado na nota 39, foi lido perante o tribunal por Edward Carson, advogado de Queensberry, durante a fracassada ação por calúnia movida por Wilde em 1895 contra o marquês. Após a leitura, Carson indagou: “Agora lhe pergunto, senhor Wilde, considera que essa descrição do sentimento de um homem com relação a um jovem, ainda em formação, é um sentimento próprio ou impróprio?”. (citado em The Real Trial of Oscar Wilde, introdução e comentário por Merlin Holland [Nova York: Perennial, 2003], p. 85) 28 Para o cônego H. N. Ellacombe, autor de livros sentimentais sobre flores, a margarida é “a flor especial da infância”, representando a inocência e a simplicidade da “criança que brinca num campo ensolarado”. (citado em Scourse, The Victorians and Their Flowers, p. 52) A conexão de Ellacombe entre a margarida e a inocência infantil lança uma sombra sinistra sobre a ação de lorde Henry ao despetalá-la, a qual, por sua vez, prefigura a corrupção do jovem Dorian.


Após uma longa pausa, lorde Henry tirou o relógio do bolso. — Acho que vou andando, Basil — murmurou —, mas antes de ir insisto em que você responda a uma pergunta que fiz algum tempo atrás. — Sobre o quê? — perguntou Basil Hallward, mantendo os olhos cravados no chão.26 — Você sabe muito bem. — Não sei, Harry. — Bom, vou dizer o que é. — Por favor, não diga. — Preciso dizer. Quero que me explique por que não vai exibir o retrato de Dorian Gray. Quero saber a verdadeira razão.27 — Já lhe dei a verdadeira razão. — Não, não deu. Disse que era porque havia muito de você no quadro. Ora, isso é uma criancice. — Harry — disse Basil Hallward, encarando-o. — Todo retrato pintado com sentimento é um retrato do artista, não de quem posa. A pessoa que posa é apenas o acidente, a ocasião. Não é ela que é revelada pelo pintor; é antes o pintor que se revela no quadro colorido. E não vou exibir esse quadro porque tenho medo de que mostre o segredo de minha própria alma. Lorde Henry riu. — E qual é esse segredo? — Vou lhe contar — disse Hallward, e uma expressão de perplexidade invadiu seu rosto. — Estou ansioso para saber, Basil — murmurou seu companheiro, olhando para ele. — Ah, não há muito para contar, Harry — respondeu o jovem pintor —, e creio que você dificilmente compreenderá. Talvez nem acredite. Lorde Henry sorriu e, curvando-se, arrancou do gramado uma margarida de pétalas rosa para examiná-la de perto. — Tenho certeza de que vou compreender — respondeu, observando com atenção o pequeno disco dourado circundado de finas pétalas brancas28 — e sou capaz de acreditar em tudo, desde que seja incrível. O vento derrubou algumas flores das árvores enquanto os pesados lilases,

o retrato de dorian gray  87


29 Um evento com grande número de frequentadores, nesse caso um salão artístico e literário semelhante aos organizados pela mãe de Wilde, Jane Francesca Elgee, lady Wilde. Em 1951, Horace Wyndham escreveu que “aquela instituição londrina antes florescente, o salon literário, há muito desapareceu. No entanto, cinquenta ou sessenta anos atrás, estavam a pleno vapor um bom número desses ‘círculos’ — envolvendo jovens dândis e velhos dândis, autores e artistas, músicos e mímicos, dramaturgos e poetas, todos prontos a pôr fogo no Tâmisa”. (Horace Wyndham, Speranza: A Biography of Lady Wilde [Londres: Boardman, 1951], p. 11) 30 Wilde usa o adjetivo curioso e o substantivo curiosidade dezenas de vezes em Dorian Gray. Matthew Arnold nota em “The Function of Criticism at the Present Time” (1865), que “a palavra curiosidade em outras línguas é utilizada num bom sentido a fim de significar uma qualidade fina e delicada da natureza humana, o amor livre e descompromissado da mente por todos os assuntos […] porém não tem esse sentido na língua inglesa, e sim uma acepção bem ruim e depreciadora. Mas a crítica, a verdadeira crítica, é essencialmente o exercício dessa qualidade específica”. Todavia, assim como a palavra sutil (também usada numerosas vezes por Wilde), a palavra curioso tem sido vista como parte do esforço do autor em codificar sua homossexualidade de maneira que escapariam à censura ou a uma acusação legal. Apesar da dificuldade de definição, as palavras curioso e curiosidade apontam para um objeto de conhecimento que é “um reflexo do impulso de conhecê-lo”. (Eve Kosofsky Sedgwick, Epistemology of the Closet, 2a ed. [Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 2008], p. 174)

31 No curso de seu processo fracassado de calúnia contra Queensberry, Wilde foi forçado pelo advogado do marquês, Edward Carson, a defender a utilização do termo personalidade. “Significa um jovem bonito?”, perguntou Carson. (The Real Trial, p. 85). “Prefiro dizer personalidade”, retrucou Wilde, “uso a palavra personalidade devido ao efeito peculiar sobre o artista [que] esse espectro, essa aparição de Dorian Gray produziu”. (p. 86) O interesse de Wilde na psicologia da influência pessoal e artística é evidente em muitos de seus trabalhos, assim como nos cadernos de notas que sobrevivem de seu tempo como aluno em Oxford. Wilde frequentemente utiliza o termo personalidade ao discutir a importância da arte na vida ou na “alma” do homem. Em “Critic as Artist”, ele observa que personalidade “é um elemento de revelação” e que, assim como “a arte provém da personalidade, ela só pode ser revelada à personalidade”. (pp.165-166) 32 A Universidade de Oxford, centro irradiador de potentes ideias novas sobre a cultura e a masculinidade no final do sé­ culo xx, tem sido vista como “um campo de batalha decisivo na batalha vitoriana a respeito da ordem político-social que vinha sendo criada pelo materialismo laico e pela modernidade industrial”. (Linda Dowling, Hellenism and Homosexuality in Victorian Oxford [Ithaca, NY: Cornell University Press, 1994], p. 36) É bem conhecida a afirmação de Wilde de que o momento em que seu pai o mandou para Oxford foi um dos pontos cruciais de sua vida (o outro ocorrendo quando a sociedade o condenou à prisão); “meus jovens colegas em Oxford”, ele comenta em outro trabalho, “[eram] homens de posição, bom gosto e refinada cultura”. (“ The Decorative Arts”)

33 Middle Temple é uma das quatro faculdades de direito cujos membros podem advogar nas cortes superiores. Na era elisabetana, homens não pertencentes à carreira podiam se associar a ela, fazendo com que Middle Temple se tornasse uma espécie de clube para a elite intelectual (a primeira encenação registrada de A décima segunda noite, de Shakespeare, lá ocorreu em 1602). No tempo de Wilde, contudo, era um local de formação de advogados, tendo seu irmão Willie a frequentado brevemente em 1874, antes de ir advogar na Irlanda em 1875. 34 A carreira de Basil Hallward foi movida por sua dedicação à cultura diante da insistência do pai de que adotasse uma profissão mais ativa, prática ou máscula. Nesse sentido, Basil incorpora a ideia, então em processo de cristalização, do cavalheiro dedicado a valores civilizados ou eruditos, em contraste com a visão dos conservadores sobre a qual se fundara o poder imperial da Grã-Bretanha. Ver Regenia Gagnier, “Dandies and Gentlemen”, em seu livro Idylls of the Marketplace: Oscar Wilde and the Victorian Public (Stanford University Press, 1986), pp. 49-99, e Martin Wiener, English Culture and the Decline of the Industrial Spirit 1850-1980 (Cambridge University Press, 1981). 35 Na peça A duquesa de Pádua (1883), Wilde escreve: “A consciência é apenas o nome que a covardia / Fugindo da batalha escreve em seu escudo”; e, em Hamlet, o personagem de Shakespeare diz que “a consciência faz covardes de todos nós”.


com seus cachos de estrelas, se moviam para lá e para cá no ar preguiçoso. Um gafanhoto pousado na grama começou a chirriar, uma libélula de corpo comprido passou adejando as diáfanas asas marrons. Lorde Henry teve a impressão de que podia ouvir as batidas do coração de Basil Hallward, e se perguntou o que estava por vir. — Bem, isso é incrível — repetiu Hallward, em tom amargo. — Incrível às vezes até para mim. Não sei o que significa. A história é simplesmente a seguinte. Dois meses atrás fui a uma reunião29 na casa de lady Brandon. Como você sabe, nós pobres pintores precisamos frequentar os salões de tempos em tempos só para lembrar ao público que não somos selvagens. Com um bom paletó e uma gravata branca, como você me disse certa vez, qualquer um, até mesmo um corretor de ações, pode ganhar a reputação de ser civilizado. Muito bem, depois de uns dez minutos no salão conversando com imensas senhoras trajadas com exagero e tediosos acadêmicos, de repente me dei conta de que alguém me olhava. Voltei-me de lado e vi Dorian Gray pela primeira vez. Quando nossos olhos se encontraram, me senti empalidecer. Um terror curioso e instintivo tomou conta de mim.30 Sabia haver me defrontado com alguém cuja personalidade era tão fascinante que, se eu permitisse, me absorveria por inteiro, até mesmo minha alma. Minha própria arte.31 Eu não desejava nenhuma influência externa em minha vida. Você mesmo sabe, Harry, como sou independente por natureza. Meu pai queria que eu fosse militar. Insisti em ir para Oxford.32 Ele então me obrigou a entrar para o Middle Temple.33 Antes de participar de meia dúzia de jantares, abandonei a advocacia e anunciei a intenção de me tornar pintor.34 Sempre fui dono da minha vida. Ou sempre fui até que encontrei Dorian Gray. Então… mas não sei como lhe explicar. Alguma coisa parecia me dizer que eu estava à beira de uma terrível crise em minha existência. Tinha o estranho sentimento de que o destino guardava para mim raras alegrias e raros sofrimentos. Sabia que, caso falasse com Dorian, me devotaria por inteiro a ele, e que não devia fazê-lo. (d) Fiquei com medo, dei meia-volta para sair do salão. Não foi a consciência que me levou a isso: foi a covardia. Não me dou o menor crédito por haver tentado fugir. — A consciência e a covardia são de fato a mesma coisa, Basil. A consciência é o nome fantasia da empresa. Essa é que é a verdade.35

o retrato de dorian gray  89


36 A ave celebrada no mural de Whistler para o “Salão do Pavão” (1876-1877) e nos desenhos de Aubrey Beardsley para a Salomé de Wilde (1894) era um símbolo predileto de beleza para os estetas da geração do autor. Já em 1851, John Ruskin deu o exemplo do pavão como prova de que as coisas mais bonitas do mundo são as mais inúteis. (The Stones of Venice, vol. 9 de The Complete Works of John Ruskin, E. T. Cook e Alexander Wedderburn (orgs.) [Londres: George Allen, 1912]) O pavão é o macho da espécie, sendo em geral considerado mais bonito que a fêmea, a pavoa, com penas marrons sem brilho e sem as penas longas e iridescentes do macho, que se abrem num leque espetacular durante o ritual de acasalamento. O pavão é conhecido também por seu grito áspero e estridente ao cortejar uma fêmea. Assim, segundo lorde Henry, lady Brandon age como um pavão mas se parece com uma pavoa. 37 Na peça Um marido ideal, “a fita e a estrela da Jarreteira” são usadas por lorde Caversham, “um senhor de setenta anos […]. Um belo tipo do partido liberal, parecendo um retrato feito por Lawrence”. 38 Este é um dos numerosos ataques à instituição do jornalismo encontrados nos trabalhos de Wilde, os quais só fizeram se exacerbar depois da forte reação negativa com que a imprensa britânica recebeu a publicação de Dorian Gray. Ver, por exemplo, o comentário de Wilde em “The Soul of Man under Socialism” no sentido de que “no passado, os homens tinham o ecúleo como instrumento de tortura; hoje, têm a imprensa”. (em Criticism: Historical Criticism, Intentions and the Soul of Man, Guy (org.), p. 255) 39 Juntamente com uma passagem anterior (ver nota 27), as

últimas oito frases desse pará­ grafo, de “Nossos olhos voltaram a se encontrar” até “fadados a nos conhecer”, foram lidas perante o tribunal pelo advogado de Queensberry, Edward Carson, durante a fracassada ação de calúnia movida por Wilde. 40 A grosseira lady Brandon tem um antecedente de carne e osso na própria mãe de Wilde que, na década de 1880, se esforçou para transformar suas modestas acomodações em Park Street num dos principais salões de Londres: “se alguém estivesse sentado num canto sem ser notado, lady Wilde com certeza traria outra pessoa para apresentá-la […]. Em geral, ela prefaciava suas apresentações com observações do tipo ‘o senhor A, que acaba de escrever um poema delicioso’, ou a senhora B, que trabalha no Snapdragon, ou a senhorita C, cujo novo romance está sendo comentado por todo mundo’”. (Catherine Hamilton, citada em Wyndham, Speranza, p. 172) Todavia, a garrulice de lady Wilde frequentemente passava dos limites. E, embora suas recepções semanais às vezes atraíssem um grupo variado e interessante, ela “era levada na galhofa” (Speranza, p. 172) por muitos de seus convidados. Dominava as reuniões com “sua voz estranha” e seus aposentos ficavam apinhados de gente de que ninguém nunca ouvira falar até que lady Wilde os exibisse. (W. B. Maxwell, citado em Speranza, p. 173) 41 Sir Humpty Dumpty é a personificação do imperialismo britânico tacanho. Fronteira do Afeganistão e planos secretos russos indicam que ele participou dos fracassados esforços militares dos britânicos em 1878-1880 para retirar o Afeganistão do controle russo. A morte trágica da mulher, presumivelmente na Índia (morta

por um elefante), prefigura a eliminação por vingança de um elefante com a qual George Orwell, num famoso conto, simbolizou as tentativas vãs da Grã-Bretanha de impor o domínio sobre suas colônias usando meios violentos. (“Shooting an Elephant”, em The Orwell Reader [1961; Orlando, FL: Harcourt Brace, 1984] pp.1-8) Ele “odeia o senhor Gladstone” porque William Ewart Gladstone, primeiro-ministro da Grã-Bretanha de 1868 a 1874 (e mais duas vezes de 1880 a 1885, e de 1892 a 1894), representava a oposição liberal contra a ambição imperialista desabrida. Sir Humpty tem fortes opiniões acerca do conde Peter Schouvaloff, porque este ex-embaixador russo em Londres trabalhou incansavelmente para preservar as relações amistosas entre os dois países. Por fim, sir Humpty “quer se casar com uma bela viúva americana” porque, segundo Wilde, “as mulheres americanas são vivazes, inteligentes e maravilhosamente cosmopolitas […]. Gostam de ser elogiadas e quase conseguiram tornar os homens ingleses eloquentes […]. É verdade que não param quietas e que suas vozes são bastante estridentes e agudas […] mas, após certo tempo, acaba-se gostando desses belos turbilhões de saias que circulam tão à vontade pela sociedade e tanto preocupam as duquesas que têm filhas”. “Na corrida por títulos nobiliárquicos,” concluiu Wilde, as mulheres americanas “quase sempre levam vantagem. […] e, como não há romance nem humildade no amor que oferecem, elas constituem excelentes esposas.” (Wilde, “The American Invasion”)


— Não creio, Harry. No entanto, qualquer que tenha sido meu motivo — e pode ter sido orgulho, porque eu costumava ser orgulhoso —, sem dúvida lutei para chegar à porta. Lá, obviamente, esbarrei em lady Brandon. “O senhor não vai escapar tão cedo, não é mesmo, senhor Hallward?”, ela falou numa voz altíssima. Conhece aquela voz horrorosa e estridente? — Conheço, ela é uma pavoa em tudo, menos na beleza36 — disse lorde Henry, despedaçando o lilás com seus dedos longos e nervosos. — Não consegui me livrar dela. Apresentou-me a membros da realeza, a gente com as mais altas condecorações,37 a velhas com tiaras gigantescas e narizes de bruxa. Falava de mim como seu eu fosse seu melhor amigo. Eu só a tinha visto uma vez antes, mas ela cismou de me tratar como uma celebridade. Acho que um dos meus quadros havia feito grande sucesso naquela época, ao menos havia sido comentado nos tabloides, que são o padrão de imortalidade no século xix.38 De repente me vi frente a frente com o jovem cuja personalidade tanto havia me mobilizado. Estávamos bem próximos, quase nos tocando. Nossos olhos voltaram a se encontrar. Foi loucura minha, mas pedi a lady Brandon que me apresentasse a ele. Afinal de contas, talvez não tivesse sido tanta loucura. Era simplesmente inevitável. Nós nos teríamos falado sem nenhuma apresentação. Tenho certeza disso. Dorian depois me disse. Ele também sentiu que estávamos fadados a nos conhecer.39 — E como lady Brandon descreveu esse maravilhoso jovem? Sei que ela adora apresentar uma biografia resumida de todos os seus convidados.40 Lembro que me levou até um senhor idoso, de rosto truculento e rubicundo, coberto de fitas e medalhas, e, sibilando junto a meu ouvido num sussurro em tom trágico, que deve ter sido ouvido perfeitamente por todos os presentes, disse algo no gênero “Sir Humpty Dumpty — o senhor sabe — fronteira do Afeganistão — planos secretos russos — homem de grandes sucessos — mulher morta por um elefante — totalmente inconsolável — quer se casar com uma bela viúva americana — todo mundo quer isso agora — odeia o senhor Gladstone — grande interesse por besouros — pergunte o que ele acha de Schouvaloff”.41 Simplesmente fugi. Gosto de encontrar as pessoas por iniciativa própria. Mas a pobre lady Brandon trata os convidados exatamente como um leiloeiro trata seus objetos. Ou acaba com eles de tanto explicar o que são ou conta tudo

o retrato de dorian gray  91


42 A opinião de Wilde sobre a amizade era totalmente diferente em 1897, após dois anos na prisão, do que a expressa por lorde Henry nessa passagem. Dias antes de sair do presídio de Reading, Wilde escreveu que “um bom amigo é um mundo novo. Preciso estar com gente doce e simpática”. (CL, p. 830) 43 Depois de sua queda, Wilde compreendeu a ironia dessa afirmação, escrevendo em De Profundis que “jamais imaginei que por um pária eu mesmo seria feito um pária”. (CL, p. 758) Ao processar o marquês de Queensberry por calúnia, Wilde tinha escolhido como “inimigo” não apenas um homem “sem cérebro” — o inculto Queensberry tinha pouco interesse por questões intelectuais ou artísticas —, mas alguém que era visto por membros de sua própria família como insano e violento. No entanto, Wilde subestimou grandemente a determinação de seu oponente, que chegou ao ponto de contratar detetives particulares a fim de investigar a participação de Wilde no submundo londrino de clubes e de proxenetas homossexuais. Aconselhado por seus advogados, Wilde abandonou a acusação de calúnia quando o defensor de Queensberry, Edward Carson, anunciou em sua primeira intervenção que tencionava chamar para o banco das testemunhas diversos prostitutos que confirmariam haver tido relações sexuais com Wilde. Imediatamente após o colapso da ação contra Queensberry, Wilde foi preso, processado e encarcerado pelo crime de “flagrante indecência”. Para tornar a situação ainda mais lamentável e humilhante, ele ficou arruinado financeiramente quando não pôde pagar as custas incorridas por Queensberry em sua defesa. De Profundis descreve vividamente a ignomínia pública sofrida por

Wilde no Tribunal de Falências e durante a transferência entre presídios. Quando foi solto mediante o pagamento de fiança, no breve intervalo entre seu primeiro julgamento criminal (em que o júri não se pôs de acordo) e o segundo (em que foi considerado culpado de todas as acusações), praticamente todas as portas de Londres se fecharam para ele. Cumprida a pena em 1897, adotou o nome de Sebastian Melmoth e foi para a Europa continental, onde a alta sociedade inglesa continuou a evitá-lo até sua morte, em 1900. 44 “Agora que penso nisso, nunca ouvi nenhum homem mencionar seu irmão. O assunto parece ser desagradável para a maioria deles.” (A importância de se chamar Ernesto)


sobre eles com exceção daquilo que a gente quer saber. Mas o que é que ela disse sobre o senhor Dorian Gray? — Ah, ela murmurou, “Rapaz encantador — a pobre mãe dele e eu inseparáveis — casamentos marcados com o mesmo homem — quer dizer, nos casamos no mesmo dia — que tolice! Esqueci o que ele faz — acho que não faz nada — ah, sim, toca piano — ou é violino, senhor Gray?”. Nós dois não pudemos deixar de rir, ficamos amigos na mesma hora. — O riso não é um mau começo para uma amizade e é também o melhor fim para uma amizade — disse lorde Henry, colhendo outra margarida. Hallward cobriu o rosto com as mãos. — Você não entende o que é a amizade, Henry — falou baixinho. — E, para ser franco, nem o que é a inimizade. Você gosta de todo mundo, o que significa que é indiferente a todo mundo. — Que injustiça a sua! — exclamou lorde Henry, empurrando o chapéu para trás e contemplando as pequenas nuvens que deslizavam como meadas de seda branca e lustrosa na abóbada cor de turquesa do céu de verão. — Isso mesmo, muito injusto de sua parte. Diferencio perfeitamente as pessoas. Escolho os amigos por sua boa aparência, os conhecidos por seu caráter e os inimigos por seu intelecto.42 Um homem precisa saber escolher bem seus inimigos.43 Não tenho nenhum que seja idiota. Como são homens com algum poder intelectual, todos me apreciam. É muita vaidade minha dizer isso? Certamente é. — Também acho, Harry. Mas, de acordo com suas categorias, devo ser apenas um conhecido. — Meu querido Basil, você é muito mais que um conhecido. — E muito menos que um amigo. Quem sabe uma espécie de irmão? — Ah, irmãos! Os irmãos não me interessam.44 Meu irmão mais velho se recusa a morrer, e os mais moços não parecem fazer outra coisa. — Harry! — Meu caro, não estou falando totalmente a sério. Mas não posso deixar de detestar meus parentes. Creio que isso se deve ao fato de que não conseguimos tolerar outras pessoas que tenham o mesmo defeito que nós. Entendo muito bem a raiva da democracia inglesa com relação ao que eles chamam de vícios das classes superiores. Consideram que a embriaguez, a ignorância

o retrato de dorian gray  93


45 “A vida privada de homens e mulheres não devia ser contada ao público, que nada tem a ver com isso. Na França, as coisas são organizadas de forma melhor. Lá, não permitem que os pormenores dos julgamentos que têm lugar nos tribunais de divórcio sejam publicados para gáudio ou crítica do público. Tudo o que o público está autorizado a saber é que ocorreu o divórcio a pedido de um ou outro cônjuge, ou de ambos.” (The Soul of Man under Socialism, p. 256) 46 “Em Londres, meu pai sempre carregava uma bengala de ratã com castão de ouro, medindo um metro e dez centímetros, como era moda entre os dândis da época.” (Holland, Son of Oscar Wilde, p. 55) 47 “Os ingleses estão sempre degradando as verdades em fatos.” (Wilde, “A Few Maxims for the Over-Educated”). 48 Lorde Henry usa paradoxos e bon-mots com o objetivo de divertir, chocar e provocar, havendo Dorian mais tarde lhe dito “Você ridiculariza tudo”. O dote verbal de lorde Henry lembra a inteligência rápida e a capacidade oratória do próprio Wilde, com tudo que tinha de exibicionista e afetado. Wilde sustentava que a conversação é uma forma de arte, sendo “seu objetivo distrair e não instruir” (“Aristotle at Afternoon Tea”). Aqui, a resposta de lorde Henry às dúvidas de Basil Hallward acerca de sua sinceridade constitui uma cristalização das ideias de Wilde sobre a importância de mentir numa conversação. Sobre Dorian Gray, Walter Pater comenta que “na escrita de Oscar Wilde sempre transparece um excelente conversador; nas suas mãos, o que é bastante raro nos autores que o praticam, o diálogo se justifica por ser realmente vivo”. (“A Novel by Mr.

Oscar Wilde”, resenha assinada de Dorian Gray [1891], em Oscar Wilde: The Critical Heritage, K. Beckson (org.) [Londres: Routledge & Kegan Paul, 1970], p. 83) Dorian Gray seria um romance bem enfadonho sem lorde Henry. Quando Wilde reviu o romance para publicá-lo como livro, expandiu o personagem lorde Henry e deu a seu porta-voz mais espaço para deslumbrar e divertir. Comentando diretamente as falas de lorde Henry na versão em forma de livro, Wilde diz que brincou com uma “ideia e fiquei obstinado com ela; joguei-a para o alto e a transformei; deixei que escapasse e a recapturei, fiz com que a fantasia a tornasse iridescente e lhe dei asas com o paradoxo. O elogio da loucura alçou voo como uma filosofia, e a própria filosofia ficou jovem­. (The Picture of Dorian Gray: The 1890 and 1891 Texts, J. Bristow (org.), vol. 3 de The Complete Works of Oscar Wilde [Oxford University Press, 2005], p.204) 49 “A arte é a única coisa séria no mundo.” (Wilde, “A Few Maxims”).


e a imoralidade deviam lhes pertencer integralmente e que, se um de nós se comporta como um idiota, está invadindo a propriedade deles. (e) Quando o pobre Southwark foi parar no Tribunal de Divórcio, a indignação deles foi magnífica.45 E, no entanto, suponho que nem dez por cento dos homens das classes mais baixas vivam com suas mulheres. (f) — Não concordo com uma única palavra do que você disse e, ainda mais, Harry, também não acredito que você concorde. Lorde Henry passou a mão pela barba castanha e pontiaguda, tocando a biqueira da bota de verniz com a bengala de ratã adornada com borlas.46 — Como você é inglês, Basil! Se alguém apresenta alguma ideia a um verdadeiro inglês — sempre uma empreitada temerária —, ele nem sonha em considerar se a ideia está certa ou errada.47 A única coisa que considera minimamente importante é se o proponente da ideia acredita nela. Ora, o valor de uma ideia não tem nada a ver com a sinceridade de quem a expõe.48 Na verdade, muito provavelmente, quanto mais insincero é o proponente, mais puramente intelectual será a ideia, já que nesse caso não será afetada por suas necessidades, desejos ou preconceitos. No entanto, não me proponho discutir política, sociologia ou metafísica com você. Gosto mais das pessoas que dos princípios. Conte-me mais sobre Dorian Gray. Com que frequência você o vê? — Todos os dias. Não seria feliz se não o visse todos os dias. Naturalmente, às vezes só por alguns minutos. Mas poucos minutos com alguém que você idolatra significam muito. (g) — Mas você de fato o idolatra? — Sim. — Que extraordinário! Pensei que você nunca daria importância a coisa nenhuma que não fosse sua pintura — ou, melhor dizendo, sua arte. Arte soa melhor, não é mesmo?49 — Ele agora é para mim toda a minha arte. Às vezes penso, Harry, que só existem dois momentos importantes na história do mundo. O primeiro é quando aparece um novo meio artístico, e o segundo quando aparece uma nova personalidade que também sirva à arte.50 O que a invenção da pintura a óleo foi para os venezianos é o mesmo que foi o rosto de Antínoo para a escultura grega no período helenístico51 e o rosto de Dorian Gray será algum dia

o retrato de dorian gray  95


50 Os comentários de Hallward acerca do papel da arte na história do mundo condensam ideias que Wilde nutria sobre o assunto pelo menos desde a época em que elaborou sua tese em Oxford, “The Rise of Historical Criticism”. Ele reformulou tais ideias em muitas ocasiões, em particular em “The Critic as Artist” e “The Soul of Man under Socialism”. 51 Como nota o crítico Andrew Elfenbein, essa passagem parece se dever a John Addington Symonds, crítico de arte e defen­sor da homossexualidade. Em The Renaissance in Italy: vol. 3, The Fine Arts (Nova York: Henry Holt, 1879), Symonds declara que “os venezianos aperfeiçoaram a pintura a óleo, abrindo caminho para a glória do mundo tal como ele apela para a imaginação e os sentidos”. (p. 182) “Temos diante de nós um favorito do imperador romano Adriano”, ele diz em outra passagem, referindo-se a Antínoo, o jovem amante de Adriano (que ele mais tarde transformou numa divindade romana), “um jovem de incomparável beleza, tal como a natureza o havia feito, com sua inescrutabilidade e caráter não desenvolvido, com toda a compaixão que inspira seu fim tão prematuro”. (Sketches and Studies in Italy [Londres: Smith Elder, 1879], p. 50) 52 De acordo com a lenda clássica, Páris, o lindo filho de Príamo, rei de Troia, estava destinado a causar a ruína de sua nação antes mesmo de nascer. Grávida de Páris, sua mãe, Hécuba, sonhou que daria à luz a um criador de conflitos. Depois que uma profetisa interpretou o sonho como um prenúncio de que Páris causaria uma calamidade em Troia, o bebê foi abandonado nas encostas desprotegidas do monte Ida. No entanto, sem que seus pais o soubessem, a criança sobreviveu e foi criada por pastores.

Mais tarde, Páris foi chamado pelos deuses para julgar qual era a mais bonita das três deusas: Hera, Atena e Afrodite. Páris concedeu o prêmio — uma maçã de ouro — a Afrodite, porém quis ser recompensado com a mais bela mulher do mundo, Helena, que ele persuadiu a abandonar o marido grego Menelau e fugir em sua companhia para Troia. Tais ações alienaram Hera e Atena, além de insuflar os gregos contra Troia, dando origem às guerras troianas. O julgamento de Páris era um tema predi­leto na arte grega, sendo ele quase sempre representado como um belo jovem imberbe, usando o barrete frígio em feitio de cone e muitas vezes segurando a maçã de ouro. 53 Diz-se que Antínoo caiu da barca de Adriano e se afogou no Nilo em 130 d. C., embora não se saiba se por suicídio, acidente, sacrifício ou ação criminosa. 54 Uma confirmação do comentário anterior de lorde Henry no sentido de que Dorian “é um Narciso”. O fato de Dorian haver “visto […] a maravilha de sua própria beleza”, mesmo se apenas na forma fantasiada de Narciso, prefigura sua reação ao retrato no capítulo ii. 55 Austin Dobson, “To a Greek Girl”, em seu livro Proverbs in Porcelain (1877). 56 Agnew era — e ainda é — um dos principais comerciantes de arte contemporânea. Em 1890, sua loja na Bond Street de Londres era próxima da Grosvenor Gallery.


para mim. Não é apenas que me sirva dele como modelo para pintá-lo, para desenhá-lo. Claro que fiz tudo isso. Ele já posou como Páris numa bela armadura e como Adônis, com o manto de caçador e a reluzente lança para caçar javalis.52 Com uma pesada coroa de flores de lótus, sentou-se na proa da balsa de Adriano, contemplando as águas verdes e turvas do Nilo.53 Curvou-se sobre um poço numa floresta grega e viu, no espelho silencioso das águas paradas, o assombro de sua própria beleza.54 Mas ele é muito mais do que isso para mim. Não vou lhe dizer que estou insatisfeito com o que fiz tendo ele como modelo, nem que sua beleza é tal que a arte não possa expressá-la. Não há nada que a arte não consiga expressar, e sei que o trabalho que fiz desde que encontrei Dorian Gray é de boa qualidade, o melhor de toda a minha vida. Mas, de uma forma curiosa — tenho dúvida se você me compreenderá —, a personalidade dele me sugeriu uma abordagem artística inteiramente nova, um estilo totalmente novo. Vejo as coisas de modo diferente. Posso agora recriar a vida de uma maneira que antes não me havia sido revelada. “Um sonho de forma em dias de reflexão”55— quem disse isso? Não me recordo — mas é o que Dorian tem sido para mim. A mera presença desse rapaz — pois ele me parece pouco mais que um rapaz, embora tenha mais de vinte anos —, sua mera presença, ah!, será que você entende tudo que isso significa? Inconscientemente, ele define para mim as diretrizes de uma nova escola, uma escola que possuirá toda a paixão do espírito romântico, toda a perfeição do espírito que é grego. A harmonia da alma e do corpo — o quanto isto vale! Em nossa loucura, separamos os dois e inventamos um realismo que é animalesco, uma idealidade que é vazia. Harry! Harry! Se você pudesse saber o que Dorian Gray é para mim! Lembra-se daquela paisagem que pintei e pela qual Agnew me ofereceu um preço exorbitante, mas da qual não consegui me desfazer?56 É das melhores coisas que fiz. E por que é tão boa? Porque, enquanto a pintava, Dorian Gray estava sentado ao meu lado. — Basil, isso é maravilhoso! Preciso conhecer Dorian Gray. Hallward levantou-se do banco e caminhou de um lado para o outro do jardim. Voltou após certo tempo. — Você não compreende, Harry — ele disse. — Dorian Gray é para mim apenas um motivo artístico. Ele nunca está mais presente em meu trabalho do

o retrato de dorian gray  97



que quando lá não existe a imagem dele. Como disse, ele é simplesmente a sugestão de um novo estilo. Eu o vejo nas curvas de certas linhas, no encanto e na sutileza de certas cores. Isso é tudo. — Então por que não vai exibir seu retrato? — Porque transpus para o quadro todo o romance extraordinário (h) sobre o qual, obviamente, nunca ousei falar a ele,57 que nada sabe sobre isso. Nunca saberá nada sobre isso. Mas o mundo pode inferi-lo, e jamais desnudarei minha alma diante de seus olhos frívolos e curiosos. Meu coração não será jamais posto sob o microscópio de estranhos. O quadro contém coisas demais que vêm de dentro de mim, Harry, coisas demais! — Os poetas não são tão escrupulosos quanto você. Sabem como a paixão é útil para fins de publicação. Atualmente, um coração partido produz várias edições.58 — Eu os odeio por fazerem isso. Um artista deveria criar coisas bonitas, mas não projetar nelas nada de sua própria vida. Vivemos numa época em que as pessoas tratam a arte como se ela devesse ser uma forma de autobiografia. Perdemos o senso abstrato da beleza. Se eu viver, mostrarei ao mundo o que é esse senso. E, por essa razão, o mundo nunca verá meu retrato de Dorian Gray. — Acho que está errado, Basil, mas não vou discutir com você. Só discutem aqueles que estão intelectualmente perdidos. Diga-me, Dorian Gray gosta muito de você? Hallward considerou a pergunta por alguns momentos. — Ele gosta de mim — respondeu após uma pausa. — Sei que gosta de mim. É claro que o lisonjeio terrivelmente. Sinto um prazer estranho em lhe dizer coisas que, eu sei, vou lamentar haver dito. Eu me entrego.(i) Em geral, ele é encantador comigo, e voltamos do clube para casa de braços dados, (j) ou nos sentamos no estúdio e conversamos sobre mil coisas. Vez por outra, contudo, ele é terrivelmente insensível, parece derivar uma enorme satisfação em me causar dor. Então eu sinto, Harry, que entreguei minha alma a alguém que a trata como se fosse uma flor para usar na lapela, um objeto de decoração para enfeitar sua vaidade, um ornamento para um dia de verão. — Os dias de verão, Basil, costumam ser longos. Talvez você se canse dele antes. É triste pensar isso, mas sem dúvida o gênio dura mais que a

o retrato de dorian gray  99


57 Em certo sentido, Hallward utiliza “romance” simplesmente como romantismo, na acepção de “imaginação” ou “talento artís­ tico”. Mas o termo romance tal como usado por Hallward também implica desejo erótico, como indica a posterior substituição feita por Wilde da expressão “romance extraordinário” por “curiosa idolatria artística” (uma das muitas autocensuras que Wilde executou ao rever e aumentar o texto, em 1891, para a editora Ward, Lock, and Company). A confissão de Hallward neste parágrafo, assim como sua admissão três parágrafos adiante (“Eu me entrego”), contradizem sua afirmação, no parágrafo anterior, de que Dorian “é para mim apenas um motivo artístico”. 58 Um infeliz prenúncio da verdade no próprio caso de Wilde. O desconsolado poema “A balada do presídio de Reading”, escrito pouco após o término da pena de prisão, vendeu mais do que qualquer outra obra sua enquanto estava vivo. Sete versões autorizadas do poema (cerca de 7.100 exemplares) foram impressas apenas na Inglaterra antes da morte de Wilde. 59 “A educação é algo admirável. Mas é bom lembrar de vez em quando que não se ensina nada que é digno de ser sabido.” (Wilde, “A Few Maxims”). 60 “A amizade é muito mais trágica que o amor. Dura mais.” (Wilde, “A Few Maxims”). 61 Wilde provavelmente se refere aqui a uma pequena fosforeira ou estojo “Vesta” com uma parte interna onde se riscava o fósforo. Tais estojos eram populares com os fumantes da alta sociedade até a década de 1930, sendo em geral dados como lembrança. Fumante compulsivo, Wilde era fascinado por todos os objetos ligados ao seu vício.

62 “Resumi todos os sistemas numa frase, e toda a existência num epigrama.” (CL, p. 729) 63 A melhoria nas habitações dos moradores pobres do East End de Londres era um tema predileto dos filantropos britânicos no final do século xix, mas Wilde era crítico desse trabalho filantró­ pico. Em “The Soul of Man under Socialism”, ele escreve que “a maioria das pessoas estragam suas vidas por um altruísmo doentio e exagerado […]. Com grande seriedade e sentimentalidade, elas se propõem a remediar os males que veem. Mas seus remédios não curam a enfermidade: simplesmente a prolongam. Na verdade, tais remédios são parte da doença”. (p. 231)


beleza. Isso explica por que nos esforçamos tanto para nos educarmos além do necessário. Na dura luta pela existência, queremos ter algo que perdure, por isso enchemos nossas cabeças com lixo e com fatos, na tola esperança de garantirmos um lugar ao sol.59 O homem totalmente bem informado — este é o ideal moderno. E a mente do homem totalmente bem informado é algo pavoroso. Como uma loja de bricabraques, cheia de monstros e poeira, tudo com preços acima de seu real valor. Seja o que for, acho que você será o primeiro a se cansar. Algum dia olhará para ele (k) e Dorian parecerá um pouquinho mal desenhado, ou você desgostará da sua cor, ou algo assim. No seu coração o censurará amargamente, e pensará com seriedade que ele se comportou muito mal com você. Na próxima vez em que ele o visitar, você se mostrará frio e indiferente. Vai ser uma pena, porque você terá de mudar. A pior coisa de se ter um romance (l) é que deixa a gente tão pouco romântico.60 — Harry, não fale assim. Enquanto eu viver, a personalidade de Dorian Gray me dominará. Você não pode sentir o que sinto. Você muda com muita frequência. — Ah, meu querido Basil, esse é justamente o motivo pelo qual posso saber o que você sente. Os que são fiéis conhecem apenas os prazeres do amor; os infiéis são os que conhecem as tragédias do amor. E lorde Henry, acendendo um fósforo num bonito estojo de prata,61 começou a fumar um cigarro com a autossatisfação de alguém que tivesse sido capaz de resumir a vida numa frase.62 Ouviu-se um farfalhar de pardais chilreantes em meio às heras enquanto as sombras azuladas das nuvens atravessaram o gramado como andorinhas que perseguissem umas às outras. Como era agradável o jardim! E como eram deliciosas as emoções de outras pessoas! No entender de Henry, bem mais deliciosas que as ideias delas. Sua própria alma e as paixões dos amigos — essas eram as coisas fascinantes na vida. Pensou com prazer no entediante almoço de que escapara ao se demorar na companhia de Basil Hallward. Caso tivesse ido ver sua tia, certamente se encontraria com lorde Goodbody, e toda a conversa haveria girado em torno da necessidade de serem construídas pensões para os pobres morarem. Era um refrigério ter se livrado de tudo aquilo!63 Ao pensar na tia, ocorreu-lhe uma ideia. Voltou-se para Hallward e disse: — Meu caro, acabo de me lembrar.

o retrato de dorian gray  101


64 No tempo de Wilde, as mulheres ricas assumiam um papel central como ativistas sociais nos bairros da classe operária, como o East End de Londres. A historiadora inglesa Jane Lewis escreve que “se ocupar com um bairro” era “algo que numerosas jovens mulheres de classe média se sentiam obrigadas a fazer antes do casamento, e muitas conti­ nuavam a fazê-lo durante toda a vida adulta”. (Women and Social Action in Victorian and Edwardian England [Stanford University Press, 1991], p. 10) Segundo Lewis, tal trabalho “permanecia perfeitamente dentro dos limites do decoro e da esfera das mulheres de classe média”, ao mesmo tempo em que satisfazia a necessidade reconhecida de prestar assistência a outros que era largamente entendida como a principal obrigação de uma mulher como cidadã ativa. (p. 11) A despeito do desprezo manifestado por Wilde com respeito a esse tipo de trabalho, ele encomendou diversos artigos sobre o ativismo urbano entre mulheres educadas e da classe média enquanto serviu como editor da revista Woman’s World, no período de 1887 a 1889. 65 Lorde Henry se diverte com a irônica coincidência temporal do anúncio feito pelo mordomo que se segue tão de perto à declaração de Hallward: “Não quero que você o conheça”. A etiqueta social vitoriana obrigava Hallward a apresentar lorde Henry a outro cavalheiro presente em sua casa. O anúncio da chegada de Dorian Gray põe um ponto final na longa e emocionalmente tensa conversa sobre o retrato de Hallward, que ocupa todo o primeiro capítulo. A repentina aparição de Dorian pode divertir tanto o leitor quanto divertiu lorde Henry.


— Lembrar de quê, Harry? — Onde ouvi o nome de Dorian Gray. — Onde foi? — perguntou Hallward, com um ligeiro franzir da testa. — Não fique tão zangado, Basil. Foi na casa da minha tia, lady Agatha. Ela me disse ter descoberto um jovem maravilhoso, que a ajudaria no East End e se chamava Dorian Gray.64 Sou obrigado a declarar que ela nunca me disse que ele era bonito. As mulheres não são capazes de apreciar uma bela aparência. Ou, pelo menos, as mulheres boas. Disse que ele era muito sério e tinha um excelente temperamento. Imediatamente visualizei uma criatura de óculos e cabelos escorridos, sardento, caminhando pesadamente com pés enormes. Quisera ter sabido que era o seu amigo. — Fico muito satisfeito de você não ter sabido, Harry. — Por quê? — Não quero que você o conheça. — O senhor Dorian Gray está no estúdio — disse o mordomo chegando ao jardim. — Você agora vai ter de me apresentá-lo — exclamou lorde Henry, soltando uma risada.65 Basil se voltou para o criado, que piscava os olhos por conta do sol forte. — Peça ao senhor Gray que espere, Parker. Estarei com ele dentro de alguns momentos. O mordomo inclinou a cabeça e se retirou. Ele então olhou para lorde Henry. — Dorian Gray é o meu amigo mais querido — disse. — Tem uma natureza simples e bonita. Sua tia tinha toda razão no que falou sobre ele. Não estrague minha amizade por ele. Não tente influenciá-lo. Sua influência seria negativa. O mundo é vasto e comporta muita gente maravilhosa. Não tire de mim a única pessoa que faz minha vida absolutamente encantadora e dá à minha arte o que ela possa ter de arrebatadora ou admirável. (m) Preste atenção, Harry, confio em você. Falou muito devagar, as palavras parecendo arrancadas contra sua vontade. — Que tolice você está falando! — disse lorde Henry sorrindo. E, tomando Hallward pelo braço, o conduziu para dentro de casa.

o retrato de dorian gray  103



II

A

o entrarem, viram Dorian Gray sentado ao piano, de costas para eles, virando as páginas de um volume das Cenas da floresta de Schumann. — Você precisa me emprestar isso, Basil — ele exclamou. — Quero aprender essas peças. São muito lindas.1 — Vai depender de como você posar hoje, Dorian. — Ah, estou cansado de posar, não quero um retrato meu de corpo inteiro — respondeu o rapaz, girando no banco do piano de um modo irritadiço, petulante. Ao ver lorde Henry, corou de leve e se levantou. — Desculpe, Basil, não sabia que você estava acompanhado. — Este é lorde Henry Wotton, Dorian, um velho amigo de Oxford. Estava dizendo a ele que você posa admiravelmente bem, mas agora estragou tudo. — Não estragou meu prazer em conhecê-lo, senhor Gray — disse lorde Henry, dando um passo à frente e lhe apertando a mão. — Minha tia me falou

o retrato de dorian gray  105


1 Em “Loving Schumann”, o teórico literário e especialista em semiótica francês Roland Barthes escreve que “Schumann é o músico da intimidade solitária, da alma amorosa e enclausurada que fala a si própria”. (The Responsibility of Forms, trad. Richard Howard [Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1991], p. 293) Schumann era um dos compositores mais literários do século xix: seis das nove peças que constituem as “Cenas da floresta” ou Waldszenen (opus 82) eram originalmente acompanhadas de fragmentos poéticos. Sua música estimulou o simbolismo literário na França, levando o poeta Camille Mauclair a declarar que Schumann “realizou tudo que os simbolistas apenas sonharam”. (citado em John Daverio, Robert Schumann: Herald of a New Poetic Age [Oxford University Press, 1997], p. 491) Os jovens estetas com frequência mostram interesse na música para piano do século xix nos escritos de Wilde: A importância de se chamar Ernesto se inicia com Algernon tocando piano; e, em “The Critic as Artist”, Gilbert se levanta do piano (onde tocava Chopin) dizendo: “sinto como se estivesse chorando por pecados que nunca cometi, pranteando tragédias que não são minhas. A música sempre parece me produzir esse efeito. Cria para nós um passado que ignorávamos, nos enchendo de tristezas que foram ocultadas de nossas lágrimas. Posso imaginar um homem que tenha levado uma vida perfeitamente banal e que, ao ouvir por acaso alguma estranha peça musical, de repente descubra que sua alma, sem que ele disso soubesse, havia tido terríveis experiências, conhecido imensas alegrias, amores arrebatados ou grandes renúncias”. (pp. 127-128) 2 Lady Agatha é uma representante da “escola de filantropos muito avançada” que “tenta re-

solver o problema da pobreza […] divertindo os pobres”. (Wilde, “The Soul of Man under Socialism”, p. 232; em Uma mulher sem importância, Wilde caracteriza isso como um esforço de acabar com a “escravidão, distraindo os escravos”) Ela poderia ser também membro da People’s Concert Society, estabelecida em 1878 por um grupo de amadores bem intencionados que, “após uma série de experiências proporcionando boa música no East End de Londres, fundou essa sociedade com o objetivo de aumentar a popularidade da música organizando concertos baratos”. (Grove’s Dictionary of Music and Musicians , J. A. Fuller Maitland (org.), 5 vols. [Londres: Macmillan, 1907], 3:670) 3 Desde o final do século xviii, a Grã-Bretanha sofrera uma febre de pianos, pianistas e música para piano. No fim do período vitoriano, quando os aperfeiçoamentos tecnológicos e o aumento da produção tinham tornado o piano o principal instrumento na vida cultural britânica e estabelecido o Steinway como o modelo par excellence, “músicos profissionais e amadores demonstravam um desejo intenso de explorar o potencial do piano tanto por seu brilho quanto por sua sutileza de expressão”. (Nicholas Temperley, prefácio de The Piano in Nineteenth-Century British Culture: Instruments, Performers and Repertoire, T. Ellsworth e S. Wollenberg (orgs.), [Ashgate, 2007], p. xv) As mulheres, em especial, apreciavam as possibilidades do instrumento: “não há outro ramo artístico mais cultivado pelas mulheres que a execução pianística,” observa Frederick Corder em 1890 (“Women as Pianoforte Players,” Woman’s World, 3, [1890] 141), enquanto Temperley chama atenção para “a intensidade de sentimento que certas mulheres exibem ao tocar piano”. (p. xvii)

4 “Gosto da companhia de homens jovens”, Wilde confessou durante seus julgamentos (H. Montgomery Hyde, The Trials of Oscar Wilde [2a ed. 1962; Nova York: Dover Publications , 1973], p. 125): “Sou um amante da juventude […] gosto de estudar os jovens em tudo. […] Há algo fascinante […] na juventude”. (pp. 202-203) Na esteira do escândalo da Cleveland Street, em 1889, quando se revelou que lorde Henry Somerset, conde de Euston, e outros aristocratas haviam pago por favores sexuais a um grupo de rapazes que trabalhavam como telegrafistas no Central Post Office, foi precisamente essa ênfase na juventude de Dorian Gray, ou sua susceptibilidade a ser corrompido por um homem mais velho, que os resenhistas britânicos consideraram mais censurável no romance de Wilde. Igualmente, foi a suposta exploração por Wilde do jovem lorde Alfred Douglas, bem como a aparente justiça das tentativas de Queensberry para proteger seu filho, que os acusadores de Wilde enfatizaram durante os julgamentos. Uma resenha não assinada no Daily Chronicle defi­ ne Dorian Gray como “um estudo malicioso da corrupção física e mental de um jovem puro, belo e promissor” (Em Oscar Wilde: The Critical Heritage, K. Beckson (org.), p. 72) E, ao encerrar a defe­ sa de Queensberry na fracassada ação por calúnia, Edward Carson se refere a Douglas dizendo que “o rapaz se encontra numa posição perigosa”. (Hyde, The Trials of Oscar Wilde, p. 143) 5 “Tenho a fraqueza de presentear meus conhecidos com cigarreiras”, declarou Wilde em seu primeiro julgamento por “flagrante indecência”. (Hyde, The Trials of Oscar Wilde, p. 204) Wilde deu cigarreiras de prata a numerosos jovens em 1892 e 1893; quando pressionado pela


várias vezes do senhor, que é um dos favoritos dela e, temo dizer, também uma de suas vítimas. — Atualmente devo estar na lista negra de lady Agatha — respondeu Dorian com um ar cômico de penitente. — Prometi que iria com ela ao clube em Whitechapel na última terça-feira e, de fato, me esqueci por completo. Íamos tocar um dueto, três duetos, se não me engano.2 Não sei o que ela vai me dizer. Estou amedrontado demais para visitá-la. — Ah, vou fazer as pazes entre os dois. Ela gosta muito do senhor. E nem acho que sua ausência foi importante. A plateia provavelmente imaginou que ouvia um dueto. Quando tia Agatha se senta ao piano, faz barulho por dois.3 — Isto é horrível para ela e não muito simpático para mim — respondeu Dorian rindo. Lorde Henry olhou para ele. Sim, era sem dúvida maravilhosamente bonito, com os lábios escarlates finamente delineados, os olhos azuis e francos, os cabelos louros e encaraco­ lados. Algo em seu rosto fazia com que as pessoas confiassem nele de imediato. Lá estava todo o candor da juventude, assim como a pureza apaixonada daquela fase da vida.4 Sentia-se que ele se mantivera imaculado diante do mundo. Não era de surpreender que Basil Hallward o idolatrasse. Ele fora feito para ser idolatrado. (a) — O senhor é por demais encantador para se dedicar à filantropia, senhor Gray — por demais encantador — disse lorde Henry, atirando-se no divã e abrindo a cigarreira.5 Hallward tinha se dedicado a misturar as tintas e preparar os pincéis. Parecia preocupado e, ao ouvir a última observação de lorde Henry, olhou de relance para ele, hesitou por um momento e depois disse: — Harry, quero terminar esse quadro ainda hoje. Você me consideraria muito rude se eu lhe pedisse para ir embora? Lorde Henry sorriu e olhou para Dorian Gray. — Devo ir, senhor Gray? — ele perguntou. — Ah, por favor, não vá, lorde Henry. Estou vendo que Basil está num de seus dias de mau humor, e não o suporto quando está assim. Além disso, quero que me diga por que não devo me dedicar à filantropia.

o retrato de dorian gray  107


XIII

N

ão vejo nada de bom em você me dizer que vai ser bom — exclamou lorde Henry, mergulhando os dedos brancos numa tigela de cobre avermelhado cheia de água de rosas. — Você é perfeito, por favor, não mude. Dorian Gray sacudiu a cabeça. — Não, Harry, já fiz muitas coisas pavorosas na vida. Não vou fazer mais. Comecei minhas boas ações ontem mesmo. — Onde esteve ontem? — No campo, Harry. Fiquei sozinho numa pequena hospedaria. — Meu querido — disse lorde Henry, sorrindo —, qualquer um pode ser bom no campo. Lá não há tentações. Essa é a razão pela qual as pessoas que moram fora das cidades são tão incivilizadas.1 Como você sabe, só existem duas maneiras de se tornar civilizado: uma é sendo culto, a outra é sendo devasso. As pessoas do campo não têm oportunidade de ser uma coisa nem outra e, por isso, ficam estagnadas.

o retrato de dorian gray  303


1 Lorde Henry aqui inverte o ideal campestre que vem desde a literatura grega e latina, em que a simplicidade inocente da vida rural é invocada retoricamente em contraste com a “vida agitada, a bajulação, o suborno, a sedução organizada, o barulho e o tráfego da cidade […] que segue seu próprio caminho” (Raymond Williams, The Country and the City [Oxford University Press, 1973], p. 46). 2 Dorian Gray já teve muitas adaptações para cinema, televisão, teatro, ópera e dança. Só entre 1910 e 1918 houve cinco adaptações cinematográficas. Mais recentemente, já no século xxi, o romance foi adaptado para o cinema oito vezes. O filme mais famoso e mais elogiado continua a ser o dirigido e escrito por Albert Lewin para a mgm, em 1945. Essa versão aumenta consideravelmente o papel de Hetty Merton (Gladys Hallward), representado por Donna Reed, a fim de enfatizar as relações heterossexuais de Dorian. A brilhante atuação de Hurd Hatfield como Dorian fez com que ele passasse a desempenhar papéis que valorizavam a beleza de um dândi. A performance de George Sanders como lorde Henry é sem dúvida compa­ rável à de John Gielgud na produção da bbc para televisão em 1976. Na versão da mgm, a perso­ nagem de Donna Reed está noiva de Dorian quando a história chega ao clímax: o filme termina com uma chorosa Gladys/Hetty contemplando o corpo de Dorian e se dando conta de quão perto esteve de se casar com um monstro. Em contraste, a produção da bbc, dirigida por John Gorrie e escrita por John Osborne, elimina de todo a personagem de Hetty e torna explícita a dimensão homoerótica da trama de Wilde. 3 Para os vitorianos, as flores da macieira nos cabelos sim-

bolizavam a fertilidade sexual. Ver, por exemplo, o poema de Christina Rossetti “Colhendo maçãs” (The Complete Poems, Crump (org.), p. 37): “Colhi flores rosadas na minha macieira/ E as usei nos cabelos naquela noite: / Quando na época certa do ano fui verificar,/ Lá não encontrei nenhuma maçã […]”. 4 Principal personagem da peça de Shakespeare Conto do inverno, uma das preferidas de Wilde, Perdita é a filha de Leontes e Hermíone, rei e rainha da Sicília. Quando bebê, foi levada para longe da mãe e abandonada na costa da Boêmia por ordens do pai, que erroneamente suspei­tava que Hermíone tivesse sido infiel com seu amigo Políxenes, o rei da Boêmia. Desconhecendo sua linhagem real, Perdita é criada por pastores num rústico jardim e se torna uma bela moça. Florizel, o príncipe da Boêmia, se apaixona por ela, incorrendo de início na ira de seu pai, Prolíxenes; mas, quando a verdadeira origem de Perdita é revelada, Florizel involuntariamente se transforma no agente da reconciliação geral, e os pais dos dois jovens concordam felizes com o casamento. Em setembro de 1887, Wilde comentou a produção da peça por Mary Anderson no Lyceum Theatre, dizendo: “Há muito tempo não se vê em Londres nada tão encantador quanto a frágil e graciosa moça dançando com os pastores […] ou oferecendo flores ao rei disfarçado, ou sendo cortejada por Florizel”. (“The Winter’s Tale at the Lyceum”) 5 Coulson Kernahan recorda que Wilde diz o seguinte antes de mudar o nome do personagem de “Ashton” para “Hubbard” na edição em forma de livro: “Ashton é um nome aristocrático […] e eu o dei — Deus me perdoe — para um comerciante! Precisa ser

alterado para Hubbard. Hubbard sem dúvida cheira a comerciante” (In Good Company, p. 213).


— Cultura e devassidão — murmurou Dorian. — Conheci alguma coisa de ambas. Agora me parece horroroso que as duas sejam encontradas juntas. Porque tenho um novo ideal, Harry. Vou me transformar. Acho que já mudei. — Não me disse qual foi essa boa ação. Ou será que fez mais de uma? — Posso lhe dizer, Harry. Não é uma história que contaria a ninguém mais. Poupei alguém. Soa como pura vaidade, mas você me entende. Ela era muito bonita, incrivelmente parecida com Sybil Vane. Acho que foi isso que, de início, me atraiu nela. Lembra-se de Sybil, não? Quanto tempo já passou! Bem, Hetty naturalmente não pertencia à nossa classe. Era uma moça simples do campo. Mas eu realmente a amava. Tenho certeza de que a amava.2 Durante esse adorável mês de maio que temos tido, ia vê-la duas ou três vezes por semana. Finalmente ela prometeu vir comigo para a cidade. Eu tinha alugado uma casa para ela, arranjei tudo. (a) Ontem nos encontramos num pequeno pomar. As flores de uma macieira caíam nos seus cabelos, ela não parava de rir.3 Devíamos partir juntos hoje ao raiar do sol. De repente, eu me disse: “Não vou arruinar essa moça. Não vou desgraçá-la”. E decidi deixar que ela permanecesse tão pura como a encontrei. (b) — Eu diria que a novidade da emoção deve ter lhe dado um prazer genuíno, Dorian — interrompeu lorde Henry. — Mas posso terminar o idílio por você. Você lhe deu bons conselhos e a deixou na maior infelicidade. Foi esse o começo de sua reforma. — Harry, você é terrível! Não deve dizer coisas tão pavorosas. Hetty não está arrasada. Óbvio que chorou, e tudo mais. Mas a vida dela não foi estragada. Não há desonra no que aconteceu. (c) Como Perdita, ela pode viver em seu jardim.4 — E chorar por causa de um pérfido Florizel — disse lorde Henry, rindo. — Meu caro Dorian, é muito engraçado, você às vezes se comporta como um menino. Acha que, depois disso, a moça jamais vai se contentar com alguém da sua classe? Imagino que algum dia se casará com um carroceiro rude ou um lavrador sorridente. Ora, o fato de ter conhecido você, e o amado, vai fazer com que despreze o marido e seja muito infeliz. Por outro lado, caso tivesse se tornado sua amante, teria vivido num círculo de homens encantadores e cultos.5 Você a teria educado, ensinado a se vestir, a falar, a se mover. Você

o retrato de dorian gray  305


a teria tornado perfeita, ela seria extremamente feliz. Após algum tempo, sem dúvida, você se cansaria dela. Ela faria uma cena, vocês chegariam a um acerto. Então ela começaria uma nova carreira. (d) Do ponto de vista moral, não posso dizer que me impressiono com sua grande renúncia. Mesmo como começo, é bem fraquinho. Além disso, como você sabe que Hetty não está neste momento boiando num açude de moinho cercada de nenúfares, como Ofélia?6 — Não suporto isso, Harry! Você ridiculariza tudo, depois sugere as piores tragédias. Lamento lhe ter contado. Não me importa o que você disser. Sei que o que fiz era certo. Pobre Hetty! Quando passei em frente da fazenda esta manhã, vi seu rosto pálido à janela, como um buquê de jasmim.7 Não falemos mais nisso, e nem tente me persuadir que a primeira boa ação que faço em anos, o primeiro e pequeno sacrifício que me impus até hoje, é na verdade uma espécie de pecado. Quero ser melhor. Vou ser melhor. Conte-me alguma coisa sobre você. O que está acontecendo na cidade? Faz dias que não vou ao clube. — As pessoas ainda discutem o desaparecimento do pobre Basil. — Imaginava que já houvessem se cansado a essa altura — disse Dorian, servindo-se de vinho e franzindo de leve a testa. — Meu querido rapaz, só vêm falando disso por umas seis semanas e o público britânico é incapaz de aguentar a tensão mental de debater mais de um tópico a cada três meses. No entanto, ultimamente têm tido muita sorte, com o caso do meu divórcio e o suicídio de Alan Campbell. Agora se soma o desaparecimento misterioso de um artista.8 A Scotland Yard insiste ainda que o homem vestindo um ulster cinza que tomou o trem de meia-noite para Paris no dia nove de novembro era o coitado do Basil, enquanto a polícia francesa declara que ele nunca chegou a Paris. Suponho que, dentro de duas semanas, vamos ficar sabendo que ele foi visto em São Francisco. É estranho, mas sempre se diz que todo mundo que desaparece acaba sendo visto em São Francisco. Deve ser uma cidade deliciosa, além de possuir todas as atrações de um outro mundo. — O que você acha que aconteceu com Basil? — perguntou Dorian levantando o copo para examinar o Borgonha contra a luz e se perguntando como era capaz de conversar sobre aquele assunto com tanta calma.

306

oscar wilde


— Não tenho a menor ideia. Se ele decide se esconder, não tenho nada a ver com isso. Se está morto, não quero pensar nele. A morte é a única coisa que me aterroriza. Odeio a morte. Hoje em dia pode se sobreviver a tudo, menos a ela. A morte e a vulgaridade são as duas realidades do século xix das quais não conseguimos nos livrar. Vamos tomar café na sala de música, Dorian. Você precisa tocar Chopin para mim. O homem com quem minha mulher fugiu tocava Chopin lindamente. Pobre Victoria! Em certa época ela esteve loucamente apaixonada por você, Dorian. Eu achava muito divertido vê-la elogiando tanto você. Você era encantadoramente indiferente! Sabe de uma coisa? Realmente sinto falta dela. Nunca me entediou. Era tão deliciosamente improvável em tudo que fazia! (e) Gostava muito dela. A casa ficou muito vazia depois que se foi. Sem nada dizer, Dorian se levantou da mesa e passou para a outra sala, onde se sentou ao piano e deixou que seus dedos percorressem as teclas. Depois que o café foi trazido, parou e, olhando para lorde Henry, disse: — Harry, já lhe ocorreu a possibilidade de que Basil tenha sido assassinado? Lorde Henry bocejou. — Basil era muito popular e sempre usou um relógio Waterbury.9 Por que teria sido assassinado? Não era suficientemente inteligente para ter inimigos. Sem dúvida possuía um gênio excepcional para a pintura. Mas alguém pode pintar como Velásquez e, apesar disso, ser chatíssimo. Basil era de fato muito sem graça. Só me interessou uma vez, e isso anos atrás quando me disse que tinha uma adoração incontrolável por você. — Eu gostava muito de Basil — disse Dorian, com uma expressão de tristeza no olhar. — Mas as pessoas não dizem que ele foi assassinado? — Ah, alguns jornais dizem. Não me parece provável. Sei que há lugares horrorosos em Paris, mas Basil não era o tipo de homem que os frequentasse. Não tinha a menor curiosidade, esse era seu maior defeito. Toque um Noturno, Dorian, e, enquanto tocar, me diga baixinho como manteve sua juventude. 10 Você deve ter algum segredo. Sou só dez anos mais velho que você, e estou enrugado, careca, amarelado. Você tem uma aparência maravilhosa, Dorian. Nunca foi mais encantador do que esta noite. Faz-me lembrar do dia em que o vi pela primeira vez. Você era bastante atrevido, muito tímido e absolutamente extraordinário. Mudou, é claro, mas não na aparência. Gostaria que me contasse

o retrato de dorian gray  307


6 Wilde se refere à peça de Shakespeare Hamlet e ao afogamento ou possível suicídio de Ofélia, enlouquecida por seu amor impossível pelo príncipe Hamlet. A morte de Ofélia é descrita de forma inesquecível pela rainha Gertrudes no ato iv da peça, tendo sido pintada por John Everett Millais em 1852 num quadro que Wilde teria visto na Grosvenor Gallery em 1886. 7 O jasmim (Jasminum officinale) é um arbusto com flores brancas, plantado na Inglaterra desde o século xvi e notável por sua beleza e fragrância. É mencionado nas obras de Spenser, Milton, Johnson, Blake, Dickens, Gaskell, e Joyce, entre outros, quase sempre simbolizando a beleza e a simplicidade rústicas. Chama-se Jessamine Halliday a personagem principal do romance de Emma Brooke, de 1894, A Superfluous Woman, que se envolve numa paixão fatídica por um jovem camponês. 8 “Hoje em dia, com nossa mania moderna de moralidade, todos têm de posar como modelos de pureza, incorruptibilidade e as outras sete virtudes morais — e qual é o resultado? Caem todos como pinos de boliche, um atrás do outro. Não passa um ano sem que alguém desapareça na Inglaterra.” (Um marido ideal) 9 Os relógios Waterbury, fabricados pela Waterbury Watch Co. em Waterbury, ct, começaram a ser vendidos na Grã-Bretanha em 1886; eram baratos, produzidos em série, e de qualidade inferior (nos Estados Unidos eram às vezes dados como brindes para quem comprava roupas ou outras mercadorias), sendo assim pouco atraentes para um ladrão. Após sair da prisão, Wilde escreveu a Robert Ross pedindo um Waterbury, pois já não tinha nenhum relógio: “Um relógio de níquel é

tudo que desejo […] A prata é bimetálica”. (CL, p. 918) 10 Uma das várias referências neste capítulo ao compositor e pianista franco-polonês Frédéric Chopin (1810-1849), que passou algum tempo com sua amante George Sand na ilha de Maiorca e cuja música para piano Wilde apreciava grandemente. Na obra “The Critic as Artist”, Gilbert observa: “depois de tocar Chopin, eu me sinto como se estivesse chorando por pecados que nunca cometi”. (p. 127) Em De Profundis, Wilde escreve: “eu ouço […] o grito de Mársias nas prolongadas resoluções da música de Chopin” (CL, p. 756). Em 1886 ou 1887, Wilde convidou A. G. Ross para um “concerto fumante” em que as atrações seriam “Chopin e cigarros”. Dorian estava tocando piano quando lorde Henry o viu pela primeira vez, no começo do capítulo ii e, no capítulo ix, “seus ouvidos repudiavam […] a bela melancolia de Chopin”. 11 Em suas memórias, Edmund Yates escreve que, até os meados da década de 1840, “os dândis usavam lenços de pescoço ou gravatas em que uma avalanche de cetim caía sobre seus peitos”. (Edmund Yates: His Recollections and Experiences [Londres: Richard Bentley, 1884], p. 46) 12 De acordo com o mito clássico, o fauno Mársias (a quem frequentemente é atribuída a invenção da flauta) tocava tão bem esse instrumento que desafiou Apolo, o deus da música e mestre da lira, para uma competição. Ficou acertado que as Musas decidiriam quem era o melhor músico, e que o vencedor poderia fazer o que quisesse com o perdedor. Mársias foi derrotado no duelo e cruelmente esfolado ainda vivo por Apolo. Wilde alu­de a esse mito em outras partes de sua obra, em especial no

“The Decay of Lying”, onde observa que “quem canta a vida não é Apolo, e sim Mársias”. (CL, p. 756) Ele relaciona o grito de Mársias a Baudelaire, Verlaine, e Chopin, em especial. 13 Comparar com a descrição que faz Walter Pater da Mona Lisa de Leonardo: “É uma beleza trazida de dentro para se transformar em carne, o depósito, célula por célula, de estranhos pensamentos, fantásticos devaneios e extraordinárias paixões”. (The Renaissance, Hill [org.], p. 98) 14 “Como podemos conservar nossa descrença? / […] Na hora em que nos sentimos mais seguros, lá vem um toque de pôr do sol, / O encanto de uma corola, a morte de alguém, / O final de um coro de Eurípedes,/ E isso é o bastante para gerar cinquenta esperanças e temores.” (Robert Browning, “Bishop Bloughram’s Apology”, em Robert Browning: The Poems, vol. i, John Pettigrew, supl. Thomas A. Collins [New Haven: Yale University Press, 1981], p. 622). 15 No que foi sem dúvida uma resposta aos críticos hostis que denunciaram Dorian Gray como “venenoso”, Wilde acrescentou as seguintes frases à resposta dada por Henry a Dorian na versão em forma de livro de 1891: “Quanto a ser envenenado por um livro, isso não existe. A arte não tem influência sobre a ação. Ela destrói o desejo de agir. É soberbamente estéril […]. Mas não vamos discutir literatura”. (The Picture of Dorian Gray: The 1890 and 1891 Texts, Bristow, p. 352) 16 O romance se abre com a “densa fragrância” dos lilases; lorde Henry pode estar se recordando de que Dorian havia enterrado o rosto nas flores de lilás, “sorvendo febrilmente seu perfume como se fosse vinho”.


seu segredo. Eu faria qualquer coisa no mundo para recuperar minha juventude, menos fazer exercício, acordar cedo ou ser respeitável. Juventude! Não há nada como ela. É absurdo falar da ignorância da juventude. Atualmente, as únicas opiniões que respeito são de pessoas muito mais moças do que eu. Parecem estar à minha frente. A vida lhes revelou a mais nova maravilha. Quanto aos velhos, sempre os contradigo. Faço isso por uma razão de princípio. Se você pedir a opinião deles sobre alguma coisa que aconteceu ontem, lhe darão solenemente as opiniões correntes em 1820, quando as pessoas usavam grandes lenços de pescoço e não sabiam nada.11 Que bonito isso que você está tocando! Será que Chopin o compôs em Maiorca, com o mar chorando em volta da casa e os borrifos das ondas jogando sal no vidro das janelas? É maravilhosamente romântico. É uma benção que ainda exista uma arte que não é imitativa! Não pare, quero ouvir música esta noite. Como se você fosse o jovem Apolo e eu Mársias, ouvindo-o tocar.12 Tenho minhas tristezas, Dorian, que nem você conhece. A tragédia da velhice não é que a gente seja velha, mas que seja jovem. Às vezes me surpreendo com minha própria sinceridade. Ah, Dorian, como você é feliz! Que vida interessante você teve! Provou fundo de tudo. Prensou as uvas contra o céu da boca. Nada foi ocultado de sua vista. Mas tudo para você não passou do som de uma música. Não o desfigurou. Você ainda é o mesmo. “Pergunto-me o que será o resto de sua vida. Não a prejudique com renúncias. Atualmente você é um tipo perfeito. Não se torne incompleto. Você não tem nenhum defeito agora. Não precisa sacudir a cabeça: sabe que é verdade. Além do mais, Dorian, não se iluda. A vida não é governada pela vontade ou pela intenção. A vida é uma questão de nervos, fibras e células que crescem lentamente e nas quais o pensamento se esconde e a paixão sonha.13 Você pode se crer seguro, imaginar-se forte. Mas um tom de cor aleatório num quarto ou no céu matinal, determinado perfume que você um dia amou e traz memórias sutis, o verso de um poema que volta a encontrar por acaso, a cadência de uma peça musical que deixou de tocar… eu lhe digo, Dorian é dessas coisas que nossas vidas dependem. Browning escreveu sobre isso em algum livro,14 mas nossos sentidos o imaginarão para nós. Há momentos em que, de repente, sinto o odor do heliotrópio, e sou obrigado a viver mais uma vez o ano mais estranho de minha vida.

o retrato de dorian gray  309


“Quisera trocar de lugar com você, Dorian. O mundo se espantou com nós dois, mas sempre o idolatrou. Sempre vai idolatrá-lo. Você é o tipo de figura que nossos tempos necessitam, e as pessoas sentem medo ao encontrá-la. Fico muito feliz por você não ter nunca esculpido uma estátua, pintado um quadro ou produzido qualquer coisa que não fosse você próprio! Sua vida tem sido sua arte. Você é uma composição musical. Seus dias são seus sonetos.” Dorian afastou-se do piano, passando a mão pelos cabelos. — Sim, a vida tem sido interessante — murmurou —, mas não vou continuar a viver da mesma forma, Harry. E você não deve dizer essas coisas extravagantes sobre mim. Não sabe tudo de mim. Acho que, se soubesse, até você me abandonaria. Você ri. Não ria. — Por que parou de tocar, Dorian? Volte e me presenteie com o Noturno outra vez. Veja essa grande lua cor de mel suspensa no céu escuro. Ela está esperando que você a enfeitice, se tocar ela se aproximará da Terra. Não quer tocar? Então vamos para o clube. Foi uma bela noite, devemos terminá-la lindamente. Há alguém no clube que deseja muitíssimo conhecê-lo, o jovem lorde Poole, filho mais velho de Bournmouth. Já copia suas gravatas e me implorou para que eu o apresente a você. É um encanto, lembra muito você. — Espero que não — disse Dorian, com um quê de tristeza na voz. — Mas hoje estou cansado, Harry, não quero ir ao clube. São quase onze horas, preciso dormir cedo. — Então fique, você jamais tocou tão bem quanto esta noite. Havia alguma coisa de maravilhoso na sua interpretação. Mais força expressiva do que nunca. — É porque vou ser bom — ele respondeu, sorrindo. — Já estou um pouco mudado. — Não mude, Dorian, ou ao menos não mude para mim. Devemos ser sempre amigos. — Embora você certa vez tenha me envenenado com um livro. Não o perdoo por isso. Harry, prometa que nunca vai emprestar esse livro para ninguém. Ele é pernicioso.15 — Meu querido rapaz, você está realmente começando a virar um moralista. Em pouco tempo irá alertar as pessoas contra todos os pecados que se

310

oscar wilde


cansou de cometer. Você é encantador demais para isso. Além do mais, é inútil. Você e eu somos o que somos, e seremos o que seremos. Volte amanhã. Vou andar a cavalo às onze. Podemos ir juntos. O parque está uma beleza nesses últimos dias. Não me recordo de haver tantos lilases desde o ano em que o conheci.16 — Muito bem, estarei aqui às onze — disse Dorian. — Boa noite, Harry. Hesitou por um instante ao chegar à porta, como se tivesse algo mais a dizer. Então suspirou e saiu. Fazia uma noite deliciosa, com uma temperatura tão amena que ele carregou o casaco no braço e nem enrolou o cachecol de seda em volta do pescoço. Enquanto caminhava para casa e fumava um cigarro, dois homens jovens vestidos a rigor cruzaram com ele. Ouviu um deles sussurrar para o outro: — Aquele é Dorian Gray. Lembrou-se de como costumava ficar feliz quando era reconhecido, observado ou comentado. Agora, estava cansado de ouvir seu nome. Metade do encanto da aldeia que visitara tantas vezes nos últimos tempos vinha do fato de que ninguém sabia quem ele era. Frequentemente, dizia ser pobre à moça que fizera com que o amasse, e ela acreditava nele. Em certa ocasião, tinha-lhe dito que era mau, mas ela rira e respondera que as pessoas más eram sempre muito velhas e muito feias. Que lindo riso ela tinha, como um tordo cantando! E como era bonita nos vestidos de algodão e usando aqueles chapelões de aba larga! Ela não sabia de nada, mas possuía tudo que ele havia perdido. Chegando em casa, encontrou o criado à sua espera. Mandou-o dormir e, estirando-se no sofá da biblioteca, começou a refletir sobre as coisas que lorde Henry havia falado. Seria realmente verdade que ninguém era capaz de mudar? Sentiu uma saudade imensa da pureza intocada de sua meninice — a meninice branca e cor-de-rosa, como lorde Henry certa vez a definira. Sabia que havia se maculado, enchido a mente com degradações e tingido de horror seus devaneios; que tinha exercido uma má influência sobre outros, e sentido terrível prazer em fazê-lo. E, das vidas que haviam cruzado com a sua, ele havia desgraçado as mais límpidas e mais promissoras. Mas seria tudo isso irremediável? Não havia nenhuma esperança para ele?

o retrato de dorian gray  311


Melhor não pensar no passado. Nada poderia alterá-lo. Era dele próprio, e de seu futuro, que devia pensar. Alan Campbell se suicidara certa noite com um tiro em seu laboratório, porém não havia revelado o segredo que havia sido forçado a conhecer. A excitação, se é que podia ser assim caracterizada, sobre o desaparecimento de Basil Hallward, em breve passaria. Já estava se dissipando. Ele estava perfeitamente a salvo com respeito àquilo. Na verdade, também não era a morte de Basil Hallward que pesava mais em sua consciência. O que o preocupava era a morte em vida de sua própria alma. Basil pintara o retrato que tinha destruído sua vida. Não podia perdoá-lo por isso. O retrato foi a causa de tudo. Basil lhe havia dito coisas insuportáveis, que ele ouvira com paciência. O assassinato fora apenas a loucura de um momento. Quanto a Alan Campbell, o suicídio tinha sido uma decisão sua, uma escolha sua. Nada que o afetasse. Uma nova vida! Era isso que ele queria. Era o que estava esperando. Sem dúvida já havia começado. Ao menos poupara uma moça inocente. Nunca mais criaria tentações para os inocentes. Seria uma pessoa boa. Ao pensar em Hetty Merton, perguntou-se se teria ocorrido alguma mudança no retrato que mantinha no quarto trancado. Quem sabe já não seria tão horripilante quanto antes. Talvez, caso sua vida se tornasse pura, ele seria capaz de extirpar daquele rosto todos os sinais de paixão malévola. Possivelmente os sinais da maldade já teriam sumido. Iria lá verificar. Pegou o lampião em cima da mesa e subiu as escadas sem fazer barulho. Destrancando a porta, um sorriso de alegria iluminou seu rosto de aparência jovem, demorando-se por instante nos lábios. Sim, ele seria uma pessoa boa, e a coisa pavorosa que ocultara deixaria de ser um horror para ele. Sentiu como se um peso já houvesse sido levantado de suas costas. Entrou silenciosamente, retrancando como de costume a porta, e afastou o pano roxo da tela. Soltou um grito de dor e indignação. Não via nenhuma mudança, exceto nos olhos, onde havia um quê de sagacidade, e na boca, que agora exibia a prega encurvada do hipócrita. O retrato continuava repugnante — se possível, mais repugnante do que antes — e as gotículas escarlates que afloravam na mão pareciam mais brilhantes, como sangue recém-derramado.17

312

oscar wilde


Sua única boa ação tinha sido fruto meramente da vaidade? Ou a busca de uma nova sensação, como sugerido por lorde Henry com seu sorriso de mofa? Ou a ânsia de desempenhar um papel, que às vezes nos leva a fazer coisas mais virtuosas do que normalmente faríamos? Ou, talvez, uma combinação de tudo isso? Por que a mancha vermelha estava maior do que antes? Parecia ter se espalhado como uma terrível doença sobre os dedos enrugados. Havia sangue nos pés como se tivesse pingado do corpo, sangue até mesmo na mão que não empunhara a faca. Confessar? Será que aquilo significava que devia confessar? Entregar-se e ser enforcado? Soltou uma risada, achando a ideia monstruosa. Além do mais, mesmo se confessasse, quem acreditaria nele? Não existia o menor vestígio do homem morto em lugar algum. Tudo que lhe pertencia tinha sido destruído. Ele próprio incinerara o que ficara no andar de baixo. O mundo diria simplesmente que ele estava louco. Tratariam de interná-lo se insistisse na história. E, no entanto, tinha o dever de confessar, de sofrer o opróbrio público, para sofrer a expiação também pública. Um Deus exigira que os homens declarassem seus pecados na Terra assim como nos Céus. Nada que ele fizesse o purificaria antes que revelasse seu próprio pecado.18 Seu pecado? Sacudiu os ombros. A morte de Basil Hallward lhe parecia algo menor. Estava pensando em Hetty Merton. Era um espelho injusto, aquele espelho de sua alma que ele estava contemplando. Vaidade? Curiosidade? Hipocrisia? Nada mais haveria em sua renúncia do que isso? Tinha existido algo mais. Ao menos, assim pensava. Mas quem saberia dizer? E o assassinato — seria perseguido por ele durante toda a vida? Não se libertaria jamais do passado? Devia realmente confessar? Não. Só restava um pequeno indício capaz de denunciá-lo. O próprio quadro. Isso era uma prova.19 Cumpria destruí-lo. Por que o mantivera por tanto tempo? No passado sentira prazer em vê-lo mudar e envelhecer. Ultimamente, isso não lhe trouxera nenhuma alegria. Mantivera-o acordado à noite. Quando viajava, sentia o terror de que outros olhos pudessem vê-lo. Ensombrecera suas paixões com a melancolia. A simples lembrança de sua existência empanara muitos

o retrato de dorian gray  313


17 O tardio desejo de Dorian de superar os elementos maus e corruptos em sua própria natureza — elementos esses espe­ lhados no retrato — faz lembrar a guerra do dr. Jeckyll contra Hyde: “Eu era frequentemente invadido por uma espécie de assombro com relação à depravação em que estava envolvido indiretamente. Aquele ser que eu invocara de dentro de minha própria alma, e deixei que fosse buscar sozinho o prazer, era essencialmente maligno e abominável; todos os seus atos e pensamentos estavam centrados nele próprio; se embebedando de prazer com uma avidez animalesca […]. Henry Jekyll às vezes ficava horrorizado com as ações de Edward Hyde; mas a situação escapava às leis naturais e reduzia insidiosamente a força da consciência”. (The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde and Other Tales of Terror, p. 60) Do mesmo modo, o horror de Dorian por sua própria abominação traz à mente o asco de Jekyll pela “total deformidade daquela criatura que dividia com ele alguns dos fenômenos da consciência, e com ele compartilharia da morte”. (p. 69) 18 “Naturalmente, o pecador deve se arrepender. Mas por quê? Simplesmente porque, de outra forma, ele não seria capaz de compreender o que havia feito. O momento do arrependimento é o momento da iniciação”. (CL, p. 752) Embora Wilde nos diga logo a seguir que “a morte de Basil Hallward lhe parecia algo menor”, o reconhecimento de Dorian de que deve confessar seus pecados, expiá-los e sofrer o opróbrio público sugere uma ponta de remorso de sua parte. Essa sugestão não é suficiente para mitigar o impulso mais puramente egoístico, visível nos parágrafos seguintes, de se livrar do passado e de destruir a única prova que subsistia contra ele. Todavia, é suficiente para

nos fazer questionar os motivos de Dorian para esfaquear sua imagem. Será que ele o faz por remorso ou por repugnância? Seria outro dos vários suicídios no romance ou não seria mais que um esforço instintivo de autopreservação? O tratamento sutil da questão moral provocou fortes críticas quando da primeira publicação. O Pall Mall Budget queixou-se de que Wilde “não se deu ao trabalho de fazer com que sua moral fosse consistente com o tema”. (resenha não assinada, “Mr. Oscar Wilde’s ‘Dorian Gray,’” Pall Mall Budget, 3 de julho de 1890, p. 262) Wilde respondeu a tais objeções insistindo que o final do romance era demasiado moral — e que “Dorian Gray, tendo vivido uma vida meramente voltada às sensações e ao prazer, tenta matar sua consciência, e neste momento se mata também”. (CL, p. 430) “O verdadeiro problema que eu tive ao escrever o romance”, ele observa, “foi o de manter a moral, extremamente óbvia, subordinada ao efeito dramático”. (CL, p. 435) Seja como for, ao rever o romance para a edição aumentada em forma de livro, Wilde exacerbou a monstruosidade de Dorian a fim de conduzir a história a uma conclusão moral menos ambígua e mais facilmente compreendida. 19 A preocupação de Dorian com o retrato como prova faz lembrar os esforços obsessivos do narrador de Wilde no “The Portrait of Mr. W. H.” para apresentar provas independentes que cor­ro­borem a existência de um menino-ator que supostamente foi amado por Shakespeare. Sem a comprovação física do retrato, a existência do menino-ator — e consequentemente a verdadeira natureza do amor de Shakes­peare — são passíveis de discussão, uma vez que apenas podem ser inferidas dos próprios sonetos do Bardo.

20 Em outro trabalho, Wilde mostra desprezo pela consciência: “A simples existência da consciência, essa faculdade sobre a qual as pessoas falam tanto nos dias de hoje e de que têm um orgulho tão desinformado, é um sinal de nosso desenvolvimento imperfeito. Precisa ser combinada com o instinto para que nos tornemos bons”. (“The Critic as Artist”, p. 148) 21 Wilde abrandou consideravelmente essa frase na versão de 1891 em forma de livro, dizendo apenas: “Ele pegou a faca e com ela golpeou o quadro”. A descrição anterior da facada na tela — “rasgando-a de cima a baixo” — teria mais uma vez lembrado a seus primeiros leitores os horripilantes assassinatos de Jack, o Estripador, em 1888, nos quais a maioria das vítimas era desventrada ritualmente depois de ter suas gargantas cortadas com uma faca. 22 “Toda a criadagem, homens e mulheres, estava agrupada em volta da lareira como um rebanho de ovelhas […]. Do armário escapou um grito sinistro, um urro de terror animal”. (The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde and Other Tales of Terror, pp. 38-44) 23 Mencionado por Basil Hallward no capítulo x, sir Henry Ashton foi um dos jovens atraídos por Dorian que haviam caído em desgraça.


momentos de satisfação. Tinha sido como uma consciência. Sim, tinha servido como sua consciência. Ele o destruiria.20 Olhou ao redor e viu a faca com que golpeara Basil Hallward. Ele a tinha lavado muitas vezes até não exibir nenhuma mancha. Ela brilhava, imaculada. Como matara o pintor, mataria sua obra — e tudo que isso significava. Mataria o passado e, quando isso acontecesse, ele estaria livre. Pegou-a e avançou contra a tela, rasgando-a de cima a baixo.21 Ouviu-se um grito e um baque. O grito foi tão tétrico em sua agonia que os criados despertaram em pânico e saíram de seus quartos.22 Dois cavalheiros que passavam na praça pararam e olharam para a grande casa. Continuaram andando até encontrar um policial, voltando com ele. O policial tocou a campainha várias vezes, mas não houve resposta. Exceto pela luz numa das janelas do último andar, a casa estava às escuras. Após algum tempo, o policial foi se postar na entrada da casa vizinha. — Seu guarda, de quem é essa casa? — perguntou o mais velho dos dois cavalheiros. — Do senhor Dorian Gray — respondeu o policial. Os dois se entreolharam e foram embora trocando sorrisos de escárnio. Um deles era o tio de sir Henry Ashton.23 Do lado de dentro, na ala da criadagem, os empregados conversavam baixinho. A velha senhora Leaf chorava e apertava as mãos. Francis exibia a palidez de um defunto. Passados uns quinze minutos, ele chamou o cocheiro e um dos lacaios, subindo juntos a escada. Bateram na porta, sem obter resposta. Chamaram seu nome. Tudo permanecia em silêncio. Por fim, após tentar em vão forçar a porta, treparam no teto e pularam na sacada. A janela francesa cedeu facilmente, seus fechos eram muito velhos. Ao entrarem, depararam na parede com um magnífico retrato do patrão como o tinham visto pela última vez, no esplendor de sua extraordinária juventude e formosura. No chão, jazia um homem morto, trajado a rigor, com uma faca espetada no coração. Seu rosto era murcho, enrugado, tinha uma aparência totalmente repugnante. Só depois de examinarem os anéis é que reconheceram quem era ele.

o retrato de dorian gray  315


316

oscar wilde


APÊNDICES

o retrato de dorian gray  317



NOTAS TEXTUAIS

As notas que se seguem registram todas as mudanças substantivas feitas por J. M. Stoddart ou seus associados no texto datilografado (td) de O retrato de Dorian Gray antes de sua publicação pela Lippincott’s Monthly Magazine. Registram também, seletivamente, alguns dos expurgos que Wilde fez ao preparar a edição em forma de livro (el) de 1891, a fim de indicar a extensão de sua autocensura após o clamor crítico de 1890. Wilde revisou profundamente o texto da Lippincott’s para a edição em forma de livro, acrescentando muitas passagens e também eliminando alguns dos trechos mais controvertidos. Não se tentou aqui documentar as adições de Wilde ao texto de 1891, porém os leitores interessados em estudar tais alterações podem consultar The Picture of Dorian Gray: The 1890 and 1891 Texts, Joseph Bristow (org.), vol. 3 de The Complete Works of Oscar Wilde (Oxford University Press, 2005). capítulo i (a) Wilde eliminou a frase “pousando a mão no ombro do amigo” da el de 1891. (b) Na td, Stoddart alterou “Às vezes gostaria que brigasse” por “Às vezes gostava que brigasse”. (c) Wilde eliminou a frase “livrando-se da mão dele” da el de 1891. (d) Wilde eliminou da el de 1891 a frase “sabia que, caso falasse com Dorian, me devotaria por inteiro a ele, e que não devia fazê-lo”.

319


(e) Stoddart alterou “estamos invadindo a propriedade deles” para “ele está invadindo a propriedade deles.” (f) No td, J. M. Stoddart alterou “vivam com suas mulheres” para “vivam corretamente”. (g) Na el de 1891, Wilde expurgou as linhas “Naturalmente, às vezes só por alguns minutos. Mas poucos minutos com alguém que você idolatra significam muito”, bem como a pergunta seguinte de lorde Henry (“Mas você de fato o idolatra?”) e a resposta de Basil Hallward (“Sim”). Substituiu esse diálogo pela frase menos reveladora: “Ele é absolutamente necessário para mim”. (h) Wilde fez várias mudanças nessa frase para a el de 1891, inclusive substituindo “romance extraordinário” por “curiosa idolatria artística.” (i) Wilde eliminou “eu me entrego” da el de 1891. (j) Wilde omitiu a frase “voltamos do clube para casa de braços dados, ou” da el de 1891. (k) Stoddart substituiu “ele” por “Gray”. (l) Wilde acrescentou a expressão mitigatória “de qualquer espécie” após “romance” ao rever essa frase para a el de 1891. (m) Wilde eliminou “que faz minha vida absolutamente encantadora” e “ou arrebatadora” da el de 1891. capítulo ii (a) Wilde eliminou a frase “ele fora feito para ser idolatrado” da el de 1891. capítulo iii (a) Stoddart alterou “tentar e parecer jovem […] tentar e falar de forma brilhante” para “tentar parecer jovem […] tentar falar de forma brilhante.” (b) No td, Stoddart substituiu “Sybil Vane é sua amante?” por “quais são suas relações com Sibyl Vane?”. (c) “Como você ousa sugerir uma coisa dessas, Harry? É horrível! Sybil Vane é sagrada!” foi mudado no td por Stoddart para “Harry! Sibyl Vane é sagrada.” (d) No td, “sua amante” foi alterado por Stoddart para “sua”. (e) Wilde expurgou a frase “Você quer dizer com isso que Basil tem alguma paixão ou algum romance?” da el de 1891.

320

Apêndice


(f) Wilde eliminou essas duas frases da el de 1891. (g) Wilde eliminou “Nunca […] Fico muito surpreso em saber disso” da el de 1891. capítulo iv (a) Wilde abrandou a reação de Hallward à notícia do iminente casamento de Dorian na el de 1891, eliminando essa frase e a substituindo por “Hallward teve uma reação de surpresa, e depois franziu a testa”. (b) Stoddart retirou a palavra “got” da expressão “got some”. Nota do tradutor: essa alteração, entretanto, não altera a tradução de “alguns” para o português em “esqueça os cigarros, tenho alguns comigo”. capítulo v (a) A seguinte frase foi eliminada por Stoddart: “Um homem de olhar curioso o havia fitado de perto e depois o perseguiu com passos furtivos, tomando sua frente várias vezes”. Editores anteriores do romance têm atribuído tal eliminação a Wilde e não a Stoddart. Mas a frase foi expurgada com uma linha ondulada a lápis, de forma muito semelhante àquela pela qual outras passagens foram censuradas por Stoddart ou um de seus associados. (b) A edição da Lippincott’s e todas as que a sucederam não terminam o parágrafo aqui. A paragrafação original de Wilde foi restaurada no presente texto. capítulo vi (a) No texto da Lippincott’s, a frase “uma figura maravilhosamente trágica para quem o Amor tinha sido uma grande realidade” foi impressa como “uma figura maravilhosamente trágica para mostrar que o Amor tinha sido uma grande realidade”. A falta de qualquer marcação editorial no td sugere que a alteração tenha resultado de um erro de leitura do tipógrafo. Não dispondo de seu texto original, Wilde usou essa mudança como base para uma alteração adicional na el de 1891, em que a frase passa a ser “uma figura maravilhosamente trágica mandada para o palco do mundo a fim de mostrar a suprema realidade do amor”.

Notas textuais

321



Agradecimentos 1

Sou imensamente grato a John Kulka, meu editor na Harvard University Press, pela meticulosidade, imaginação e generosidade com que me ajudou a editar e anotar Dorian Gray. Além de autorizar esse livro, John acompanhou cuidadosamente sua evolução desde o modesto começo; qualquer que seja sua qualidade, muito se deverá a ele, enquanto os erros e omissões cabem exclusivamente a mim. Numerosos colegas na Virginia Commonwealth University (vcu) apoiaram este trabalho. Fred Hawkridge, presidente em exercício do College of Humanities and Sciences, deslanchou o projeto ao me conceder uma bolsa do tipo Career Enhancement Grant no verão de 2008; mais tarde, ele obteve uma generosa subvenção para auxiliar na aquisição das ilustrações. Terry Oggel, diretor do English Department, trouxe seu apoio crucial em cada estágio, enquanto Nick Sharp e David Latané, vice-diretores em momentos diferentes, organizaram meu programa de aulas de modo a que o livro pudesse

1  Estes agradecimentos se referem particularmente à edição original do livro (The Picture of Dorian Gray, An Annotated, Uncensored Edition. Nicholas Frankel [organização, introdução e notas). Cambridge/ Massachusetts: Harvard University Press, 2011]. Na presente edição brasileira, fizemos uma nova seleção de imagens e um novo projeto gráfico, mas optamos, ainda assim, por manter os agradecimentos que se referem à edição original. [n. do e.]

353


avançar rapidamente sem prejudicar em nada meus alunos. Catherine Ingrassia, vice-presidente do College, e Kathy Bassard moveram montanhas para que muito pudesse ser feito no verão de 2009 com base numa bolsa da neh. Eric Garberson, Laura Browder, Bryant Mangum, David Latané, Josh Eckhardt, Kate Nash, Susann Cokal, e Richard Priebe me prestaram importante apoio intelectual. O trabalho teria deixado de progredir logo no início sem as intervenções divinas dos anjos do secretariado, em especial Margret Schluer, Ginnie Schmitz e o pessoal dos escritórios da vcu English e da Interlibrary Loan. Sou grato a todas essas pessoas, departamentos e administradores por fazerem da vcu um lugar maravilhoso para se trabalhar. Tenho uma dívida especial para com Merlin Holland, neto de Wilde, que generosamente me deu permissão para publicar matérias ainda protegidas por direito autoral, e cuja própria competência como estudioso influenciou o livro de modo profundo. Michael Winship me guiou hábil e generosamente através do labirinto que são os arquivos da J. B. Lippincott and Co. Pamela Dalziel, Joseph Bristow, Josephine Guy, Peter Bernhardt, Jos ten Berge, George Bornstein, Linda Hughes, Margaret Stetz, Mark Samuels Lasner, Jerome McGann, Bill Baker, Steve Arata, Phillip E. Smith, David Latané, Paul Van Capelleveen e Chip Tucker forneceram conselhos ou ajudas de várias espécies. Mark Samuels Lasner e Daniel Bexfield gentilmente cederam imagens de suas coleções pessoais, enquanto Leonie Sturge-Moore e Charmian O’Neil bondosamente me deram permissão de publicar a litografia de John Gray feita por Charles Shannon. Christine Thorsteinsson conduziu a apresentação do livro à imprensa e Matthew Hills supervisionou as questões práticas. Graciela Galup, a designer de livros, é responsável por sua linda forma. Dois leitores anônimos da Harvard University Press fizeram críticas úteis e me pouparam de cometer erros embaraçosos, enquanto minha esposa, Susan Barstow, comentou de modo incisivo e frequente os ensaios introdutórios durante sua feitura. O livro não poderia ter sido escrito sem o auxílio e o companheirismo que ela me oferece a cada dia. Juntamente com meus filhos Max, Theo e Oliver, ela continua a ser minha fonte de inspiração. Subvenções da neh e da Bibliographical Society of America permitiram a pesquisa e a elaboração do livro no verão de 2009. Sou agradecido também

354

Apêndice


aos assistentes da Pennsylvania Historical Society e da William Clark Andrews Jr. Memorial Library, em particular Scott Jacobs, por muitos favores; a Declan Kiely, curador de manuscritos na Morgan Library, e a Rachel Foss, curadora de manuscritos literários modernos na British Library. Os editores do romance de Wilde que me precederam — especialmente Isobel Murray, Joseph Bristow e Donald F. Lawler — forneceram a base sobre a qual construí. São profundas minhas dívidas para com eles, o que pode ser comprovado ao longo de todo o presente trabalho. Por fim, para que não se pense que o romance de Wilde está ultrapassado, lembro os diversos suicídios de jovens no outono de 2010 causados por bullying e pelo estigma que ainda cerca a homossexualidade em muitos lugares. A publicidade acerca dessas mortes prematuras ensombreceu os últimos estágios da preparação desta edição.

Agradecimentos

355


Este livro, desenhado na fonte Fairfield, foi impresso em papel Pรณlen Rustic 90 g/m 2, nas oficinas da Grรกfica do XXXXXXXX. Sรฃo Paulo, Brasil, no outono de 2013.





O retrato de Dorian Gray (1891) é um arauto do século xx e da modernidade, pelo qual Oscar Wilde pagou um preço caro — além de sofrer censura, viu sua obra-prima usada como “prova” contra si no processo de “flagrante indecência” que o levou à prisão. Nesta edição, Nicholas Frankel, organizador e autor das introduções e das notas, restitui o clássico a partir do original datilografado — ou seja, eliminando toda a censura que o livro sofreu até que chegasse ao público, e constrói pela primeira vez a versão que Wilde gostaria que estivéssemos lendo no século xxi. Essa espécie de mito de Fausto tornou-se um clássico da literatura mundial pelo refinamento da escrita e pela universalidade do tema. Com uma destreza de estilo ímpar, Wilde cria frases lapidares com um humor ácido e um olhar astuto, criticando ferrenhamente a hipocrisia de uma sociedade que passava por transformações muito rápidas. Tradução de Jorio Dauster isbn 978-85-250-5413-5


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.