Federico García Lorca
Divã do Tamarit [Edição bilíngue]
Federico García Lorca
Divã do Tamarit (1931–1935) Tradução de Josely Vianna Baptista
Copyright da tradução © by Editora Globo, 2014 Copyright das imagens © by Garcia Lorca, Frederico/ Licenciado por autvis, Brasil, 2014 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados, sem a expressa autorização da editora. Título original: El Divan del Tamarit Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no 54, de 1995). Todos os esforços foram feitos no sentido de localizar os detentores dos direitos autorais de Emilio García Gómez. Assim que identificados, os acertos serão retrospectivos.
Editor responsável: Ana Lima Cecilio Editor assistente: Erika Nogueira Vieira Capa e projeto gráfico: Mayumi Okuyama Tratamento de imagens: Wagner Fernandes 1a edição, 2013 CIP-Brasil. Catalogação na publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
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Lorca, Federico García Divã do Tamarit (1931-1935) / Federico García Lorca: tradução Josely Vianna Baptista; prólogo Emilio García Gómez. – 1. ed. – São Paulo: Biblioteca Azul, 2014. 80 p.: il.; 21 cm. Tradução de: El Divan del Tamarit isbn: 978-85-250-5737-2 1. Poesia espanhola. i. Baptista, Josely Vianna. ii. Gómez, Prólogo: Emilio García. iii. Título 14-12456 cdd-861 cdu-821.134.2-1
Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S. A. Av. Jaguaré, 1485 05346-902 – São Paulo –SP www.globolivros.com.br
Prólogo Emilio García Gómez
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No salão romântico da Casa de los Tiros – cortinas brancas, cravo e lamparina – Federico García Lorca havia lido a um grupo de amigos sua nova tragédia Yerma. Depois, de improviso, reunimo-nos para jantar em um restaurante típico, sobre um fundo de vozes de bêbados onde se corrompiam cantigas andaluzes. Com os cotovelos sobre a mesa, uma senhorinha granadina de seus cinquenta anos – invisível, mas evidente – ouvia as décimas sutilmente ironizadas que Lorca recitava. Na conversa, carregada de eletricidade literária, soavam com frequência os três “a” de Granada. E – falando, falando – por trás de nossa imagem da cidade atual ia surgindo, como nessas figuras geométricas em que as arestas ocultas se assinalam com linhas pontilhadas – a ideia de uma outra Granada, pretérita, purificada na hipótese,
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onde outras pessoas cantavam em outra língua ao som de outros violões. A propósito de nossos projetos literários, eu contava a Lorca de minha intenção de dedicar um livro a um magnata árabe – Ibn Zamrak –, cujos poemas foram publicados na edição mais luxuosa que o mundo já conheceu: a própria Alhambra, onde cobrem as paredes, enfeitam as salas e circundam um chafariz. Lorca nos disse então que havia composto, em homenagem a esses antigos poetas granadinos, uma coleção de casidas e gazéis, ou seja, um Divã, que, tomando o nome de um horto de sua família, onde muitos dos poemas foram escritos, iria se chamar do Tamarit. Antonio Gallego Burín, como decano da Faculdade de Letras, pediu-lhe o manuscrito. Lorca, com prazer, acedeu. Francisco Prieto se ofereceu para desenhar a capa. Eu fiquei com o compromisso – que o leitor me perdoe – de escrever estas linhas. Chama-se casida em árabe todo poema de certa extensão, com determinada arquitetura interna, cujos detalhes não vêm ao caso, e em versos monorrimos, medidos segundo normas meticulosamente estereotipadas. O gazel – utilizado principalmente na lírica persa – é um poema breve, de tema preferencialmente erótico, ajustado a determinados cânones técnicos e cujos versos são mais de quatro e menos de quinze. Divã é a coleção das composições de um poeta, geralmente catalogadas por ordem alfabética de rimas.
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Não creio que seja necessário dizer que as denominações de García Lorca – divã, gazéis, casidas – não se ajustam às definições anteriores. Neste sentido, são arbitrárias. Mas tampouco creio necessário dizer – muito menos em se tratando de Lorca – que estas poesias nada têm em comum com aquelas chamadas de orientais, máscaras literárias de um carnaval romântico, falsas, vazias, toscos borrões. Os poemas de Divã do Tamarit não são falsificações nem arremedos, são autenticamente lorquianos. Outros poderão destacar seu significado na evolução da estética do poeta e talvez apreciem seu ímpeto crescente, seu concentrado ardor e a maior frequência com que, neles, veias azuis riscam e humanizam um mármore, antes, mais frio. É verdade – existirão duas coisas que não tenham nada parecido? – que, às vezes, pode-se descobrir no Divã alguma semelhança com a lírica árabe. Como a presença do tema da visita noturna: A noite não quer vir para que tu não venhas, e eu não possa ir. Ou o audaz excesso de algumas metáforas: A penumbra com passo de elefante empurrava os ramos e os troncos.
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Espero que ciência e poesia alcancem seu objetivo, e um belo dia, talvez ainda distante, tirem outros arabistas, mais afortunados, desse purgatório do estrambótico em que agora estamos confinados, e façam-nos transpor o umbral de outras Humanidades mais amplas.
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gacelas
gazĂŠis
gacela primera Del amor imprevisto
Nadie comprendía el perfume de la oscura magnolia de tu vientre. Nadie sabía que martirizabas un colibrí de amor entre los dientes. Mil caballitos persas se dormían en la plaza con luna de tu frente, mientras que yo enlazaba cuatro noches tu cintura, enemiga de la nieve. Entre yeso y jazmines, tu mirada era un pálido ramo de simientes. Yo busqué, para darte, por mi pecho las letras de marfil que dicen siempre, siempre, siempre: jardín de mi agonía, tu cuerpo fugitivo para siempre, la sangre de tus venas en mi boca, tu boca ya sin luz para mi muerte.
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gazel primeiro Do amor imprevisto
Ninguém podia entender o aroma da magnólia obscura de teu ventre. Ninguém sabia que martirizavas um colibri de amor entre os teus dentes. Mil cavalinhos persas repousavam na praça enluarada de tua fronte, nas quatro noites em que eu enlaçava a tua cintura, inimiga da neve. Entre gesso e jasmins, o teu olhar era um pálido ramo de sementes. Procurei em meu peito, para dar-te, as letras de marfim que dizem sempre, sempre, sempre: jardim de minha agonia, teu corpo fugidio para sempre, o sangue de tuas veias em minha boca, tua boca já sem luz para minha morte.
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gacela ii De la terrible presencia
Yo quiero que el agua se quede sin cauce. Yo quiero que el viento se quede sin valles. Quiero que la noche se quede sin ojos y mi corazón sin la flor del oro; que los bueyes hablen con las grandes hojas y que la lombriz se muera de sombra; que brillen los dientes de la calavera y los amarillos inunden la seda. Puedo ver el duelo de la noche herida luchando enroscada con el mediodía. Resisto un ocaso de verde veneno y los arcos rotos donde sufre el tiempo. Pero no ilumines tu limpio desnudo como un negro cactus abierto en los juncos. Déjame en un ansia de oscuros planetas, pero no me enseñes tu cintura fresca.
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gazel ii Da terrível presença
Quero que a água fique sem seu álveo. Quero que o vento fique sem os vales. Quero que a noite fique sem os olhos, e meu coração sem a flor do ouro; que os bois falem com as folhas imensas e que a minhoca, de sombra, faleça; que rutilem os dentes da caveira e os amarelos inundem a seda. Posso ver o luto da noite ferida duelando, enleada, com o meio-dia. Resisto a um ocaso de verde veneno, e aos arcos quebrados onde sofre o tempo. Mas não ilumines teu límpido nu como um cáctus negro aberto nos juncos. Deixa-me com o anseio de obscuros planetas, mas não me mostres tua cintura esbelta.
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gacela iii Del amor desesperado
La noche no quiere venir para que tú no vengas, ni yo pueda ir. Pero yo iré, aunque un sol de alacranes me coma la sien. Pero tú vendrás con la lengua quemada por la lluvia de sal. El día no quiere venir para que tú no vengas, ni yo pueda ir. Pero yo iré entregando a los sapos mi mordido clavel. Pero tú vendrás por las turbias cloacas de la oscuridad. Ni la noche ni el día quieren venir para que por ti muera y tú mueras por mí.
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gazel iii Do amor desesperado
A noite não quer vir para que tu não venhas, e eu não possa ir. Mas eu irei, mesmo que um sol de escorpiões devore minhas têmporas. Mas tu virás com a língua queimada pela chuva de sal. O dia não quer vir para que tu não venhas, e eu não possa ir. Mas eu irei e aos sapos meu cravo mordido lançarei. Mas tu virás pelas valas sombrias da escuridão. Nem a noite nem o dia querem vir para que eu por ti morra e tu morras por mim.
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gacela iv Del amor que no se deja ver
Solamente por oír la campana de la Vela te puse una corona de verbena Granada era una luna ahogada entre las yedras. Solamente por oír la campana de la Vela desgarré mi jardín de Cartagena. Granada era una corza rosa por las veletas. Solamente por oír la campana de la Vela me abrasaba en tu cuerpo sin saber de quién era.
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gazel iv Do amor que não se deixa ver
Apenas para ouvir o sino de La Vela levei-te uma grinalda de verbenas. Granada era uma lua afogada entre as heras. Apenas para ouvir o sino de La Vela devastei meu jardim de Cartagena. Granada era uma corça rósea nos cata-ventos. Apenas para ouvir o sino de La Vela abrasei-me em teu corpo sem saber de quem era.
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casidas
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casidas
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casida primera Del herido por el agua
Quiero bajar al pozo, quiero subir los muros de Granada, para mirar el corazón pasado por el punzón oscuro de las aguas. El niño herido gemía con una corona de escarcha. Estanques, aljibes y fuentes levantaban al aire sus espadas. ¡Ay, qué furia de amor, qué hiriente filo, qué nocturno rumor, qué muerte blanca! ¡Qué desiertos de luz iban hundiendo los arenales de la madrugada! El niño estaba solo con la ciudad dormida en la garganta. Un surtidor que viene de los sueños lo defiende del hambre de las algas. El niño y su agonía frente a frente, eran dos verdes lluvias enlazadas. El niño se tendía por la tierra y su agonía se curvaba.
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casida primeira Do ferido pela água
Quero ir ao fundo do poço, quero galgar os muros de Granada, para olhar o coração crivado pelo buril obscuro das águas. O menino ferido, aos lamentos, com uma coroa de geada. Tanques, algibes, fontes levantavam no ar suas espadas. Ai que fúria de amor, gume ferino, que noturno rumor, que morte branca! Que desertos de luz iam afundando as areias movediças da madrugada! O menino estava sozinho com a cidade adormecida na garganta. Um repuxo vindo dos sonhos defende-o da fome das algas. O menino e sua agonia, frente a frente, eram duas verdes chuvas enlaçadas. O menino se estendia na terra e sua agonia se curvava.
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Quiero bajar al pozo, quiero morir mi muerte a bocanadas, quiero llenar mi coraz贸n de musgo, para ver al herido por el agua.
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Quero ir ao fundo do poço, quero morrer minha morte a golfadas, quero encher meu coração de musgo, para ver o ferido pela água.
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casida ii Del llanto
He cerrado mi balcón porque no quiero oír el llanto, pero por detrás de los grises muros no se oye otra cosa que el llanto. Hay muy pocos ángeles que canten, hay muy pocos perros que ladren, mil violines caben en la palma de mi mano. Pero el llanto es un perro inmenso, el llanto es un ángel inmenso, el llanto es un violín inmenso, las lágrimas amordazan al viento, y no se oye otra cosa que el llanto.
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casida ii Do pranto
Fechei minha sacada porque não quero ouvir o pranto, mas atrás dos muros cinzentos nada mais se ouve além do pranto. Anjos que cantem há bem poucos, e cães que ladrem há bem poucos, mil violinos cabem na palma da minha mão. Mas o pranto é um cão imenso, o pranto é um anjo imenso, o pranto é um violino imenso, as lágrimas amordaçam o vento, e nada mais se ouve além do pranto.
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casida iii De los ramos
Por las arboledas de Tamarit han venido los perros de plomo a esperar que se caigan los ramos, a esperar que se quiebren ellos solos. El Tamarit tiene un manzano con una manzana de sollozos. Un ruiseñor apaga los suspiros, y un faisán los ahuyenta por el polvo. Pero los ramos son alegres, los ramos son como nosotros. No piensan en la lluvia y se han dormido, como si fueran árboles, de pronto. Sentados con el agua en las rodillas dos valles esperaban al otoño. La penumbra con paso de elefante empujaba las ramas y los troncos. Por las arboledas del Tamarit hay muchos niños de velado rostro a esperar que se caigan mis ramos, a esperar que se quiebren ellos solos.
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casida iii Dos galhos
Pelos arvoredos do Tamarit vieram os cães de chumbo para esperar que os galhos caiam, para esperar que se quebrem sozinhos. O Tamarit tem uma macieira com uma maçã de soluços. Um rouxinol reúne os suspiros e um faisão os dispersa na poeira. Mas os seus galhos são contentes, os seus galhos são como somos. Não pensam na chuva e caem no sono, como se fossem árvores, de repente. Sentados com água pelos joelhos, dois vales aguardavam o Outono. A penumbra com passo de elefante empurrava os ramos e os troncos. Pelos arvoredos do Tamarit há muitos meninos de rosto velado esperando que meus galhos caiam, esperando que se quebrem sozinhos.
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casida iv De la mujer tendida
Verte desnuda es recordar la tierra. La tierra lisa, limpia de caballos. La tierra sin un junco, forma pura cerrada al porvenir: confín de plata. Verte desnuda es comprender el ansia de la lluvia que busca débil talle, o la fiebre del mar de inmenso rostro sin encontrar la luz de su mejilla. La sangre sonará por las alcobas y vendrá con espada fulgurante, pero tú no sabrás dónde se ocultan el corazón de sapo o la violeta. Tu vientre es una lucha de raíces, tus labios son un alba sin contorno, bajo las rosas tibias de la cama los muertos gimen esperando turno.
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casida iv Da mulher deitada
Ver-te assim nua é recordar a terra. A terra lisa, limpa de cavalos. A terra sem um junco, forma pura vetada ao amanhã; confins de prata. Ver-te assim nua é conhecer o anseio da chuva que procura a feição frágil, ou a febre do mar de rosto imenso sem encontrar a luz de sua face. O sangue ecoará pelas alcovas, virá com suas espadas fulgurantes, mas tu não saberás onde se ocultam o coração do sapo ou a violeta. Teu ventre é um confronto de raízes, teus lábios são uma aurora sem contornos, e sob as rosas tépidas do leito esperam sua vez, gemendo, os mortos.
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casida viii De la rosa
La rosa no buscaba la aurora: casi eterna en su ramo, buscaba otra cosa. La rosa, no buscaba ni ciencia ni sombra: confín de carne y sueño, buscaba otra cosa. La rosa, no buscaba la rosa. Inmóvil por el cielo buscaba otra cosa.
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casida vii Da rosa
A rosa não procurava a aurora: quase eterna em seu ramo, procurava outra coisa. A rosa não procurava nem ciência nem sombra: confins de carne e sonho, procurava outra coisa. A rosa não procurava a rosa. No céu, silenciosa, procurava outra coisa.
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Créditos das ilustrações
[p. 1] Nadadora sumergida, 1928 [pp. 2-3] Autorretrato con bandera y animal fabuloso, 1929-1931 [p. 5] Puta y luna, 1929-1931 (detalhe) [p. 7] Fotografía sobredibujada de Federico García Lorca. Barcelona, 1927 [p. 8] Dos figuras sobre uma tumba (detalhe), 1929-1931 [p.17] Dos figuras sobre uma tumba, 1929-1931 [p.75] Autorretrato con animal fabuloso abrazado, 1929-1931 [p.77] Autorretrato com bandera y animal fabuloso (detalhe), 1929-1931
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Do amor imprevisto Ninguém podia entender o aroma da magnólia obscura de teu ventre. Ninguém sabia que martirizavas um colibri de amor entre os teus dentes. Mil cavalinhos persas repousavam na praça enluarada de tua fronte, nas quatro noites em que eu enlaçava a tua cintura, inimiga da neve. Entre gesso e jasmins, o teu olhar era um pálido ramo de sementes. Procurei em meu peito, para dar-te, as letras de marfim que dizem sempre, sempre, sempre: jardim de minha agonia, teu corpo fugidio para sempre, o sangue de tuas veias em minha boca, tua boca já sem luz para minha morte.
Tradução de Josely Vianna Baptista