P iva pa r a n o i a
d uke l ee prefรกcio | davi arrigucci jr.
Os versos do poeta Roberto Piva e as fotografias do artista plástico Wesley Duke Lee, reunidos em Paranoia desde sua pri meira edição, em 1963, compõem até hoje uma das mais fortes parcerias artísticas que a capital paulistana já inspirou. Na época de seu lançamento, Paranoia teve o típico destino dos livros que nadam contra a corrente. De um lado, por sua índole contestadora, expressa nos temas abordados e na forma como os desenvolve, incomodou os críticos mais conservadores. De outro, por seu individualismo anárquico, confrontou a van guarda literária mais programática na época, o movimento concre tista. Em compensação, seus poemas foram cultuados por todos os leitores e artistas receptivos a uma sensibilidade profun damente libertária. Com o passar dos anos, ficou demonstrada a importância crescente de Paranoia e de seu autor na cena literária brasileira. A segunda edição do livro foi publicada em 2000 pelo Instituto Moreira Salles. Se 37 anos se passaram da primeira para a segunda edição, depois dessa a obra já foi republicada, sem as fotos de Duke Lee, integrando um dos volumes das obras completas do autor (Ed. Globo, 2005), e agora vem a público esta terceira edição, na qual novamente o ims veicula o ensaio fotográfico original. Paranoia é o mais eloquente exemplo da primeira fase da car reira de Piva. Enquanto o poeta vagueia pelas ruas de São Paulo, sob o signo maior do erotismo, seus versos alimentam-se dos excessos do meio urbano, com o qual vivem um verdadeiro corpo a corpo, e rebatem todo e qualquer padrão de conduta social pré- -definida. Como diz o crítico Davi Arrigucci Jr., autor do prefácio escrito especialmente para esta edição, “a poesia vira uma forma de observação, descoberta e transfiguração imaginária da cidade”. Muitas tradições literárias entrecruzam-se nesta obra de Ro berto Piva. Entre elas, vale citar a da meditação andarilha pela cidade, consagrada com Baudelaire e cuja influência varreu o mundo, alcançando a metrópole periférica de Mário de Andrade e do modernismo da primeira geração como um todo. Vale regis tro também o influxo dos poetas beat norte-americanos, com sua apologia do desejo irrefreado, seu destemor diante da
paranoia
r ob e rt o p i va
paranoia com fotografias de
wes l ey d u k e le e prefรกcio | davi arrigucci jr.
s u m á r i o
9 Prefácio | Davi Arrigucci Jr.
PARANOIA 32 Visão 1961 51 Poema submerso 63 Visão de São Paulo à noite – Poema antropófago sob narcótico 77 A piedade 87 Praça da República dos meus sonhos 93 Poema de ninar para mim e Bruegel 105 Boletim do mundo mágico 111 O volume do grito 117 Jorge de Lima, panfletário do caos
120 Stenamina Boat 125 Poema lacrado 133 L’ovalle delle apparizioni 139 Rua das Palmeiras 143 Os anjos de Sodoma 149 Paisagem em 78 r.p.m. 154 No parque Ibirapuera 166 Poema porrada 175 Poema da eternidade sem vísceras 180 Meteoro
190 Versão integral das fotografias
Paranoia © Instituto Moreira Salles, 2009 Poemas de Roberto Piva © Roberto Piva, 1963, 2000, 2005, 2009 “O cavaleiro do mundo delirante” © Davi Arrigucci Jr., 2009 Fotografias de Wesley Duke Lee © Instituto Moreira Salles Imagem de capa: sem título, Wesley Duke Lee, 1963 Coordenação editorial Rodrigo Lacerda e Samuel Titan Jr. Projeto gráfico Mayumi Okuyama Preparação e revisão Flávio Cintra do Amaral e Fabrício Corsaletti Equipe editorial Acássia Correia, Priscila Oliveira e Flávio Cintra do Amaral Coordenação da área fotográfica Sergio Burgi Digitalização de imagens Cristina Zappa, Joanna Americano Castilho, Daniel Magalhães de Arruda e Tatiana Novas de Souza Carvalho Pesquisa de imagens Virgínia Albertini, Cídio Martins Neto, Tatiana Ishihara e Gabriela Vieira Moyle Tratamento de imagens e impressão Ipsis Gráfica e Editora
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Piva, Roberto, 1937 – . Paranoia / Roberto Piva ; com fotografias de Wesley Duke Lee. -- 3. ed. -São Paulo : Instituto Moreira Salles, 2009
isbn 978-85-86707-40-7
1. Poesia brasileira i. Lee, Wesley Duke. ii. Arrigucci Junior, Davi. iii. Título 09-05988 cdd-869-915 Índice para catálogo sistemático: 1. Poesia : Literatura brasileira 869-915
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Agradecimentos a Massao Ohno
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O CAVALEIRO DO MUNDO DELIRANTE
Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante. Murilo Mendes1
1. O que primeiro chama a atenção na poesia de Roberto Piva, desde a estreia explosiva de Paranoia em 1963, é seu ímpeto para a provocação. Com efeito, o poeta entregava ao delírio sistemático a condução do lirismo, fazendo de seu comportamento desregrado também o modo de ser de sua linguagem. Essa consonância entre a matéria e sua expressão ressalta desde que se começa a folhear as páginas da primeira edição do livro e se reflete admiravelmente nas fotos e no desenho geral de Wesley Duke Lee, que soube manter uma empatia profunda com o foco de seu trabalho, expandindo em fantásticos contrastes de luz e sombra, até a beira da abstração, a energia do impulso agressivo que recebia de
1. Epígrafe que Piva apôs ao “Poema de ninar para mim e Bruegel”.
seu interior. A fisionomia frenética de uma cidade estilhaçada em lascas luminosas contra manchas negras se impõe ao leitor junto com o jorro ininterrupto dos versos longos, obscuros e sem ponto final. Como que tomado pela inspiração, Piva mergulha numa associação desconcertante de imagens visionárias em fluxo contínuo, aproximando-se de um ritmo oratório de prosa, cuja eloquência elevada serve, paradoxalmente, para dar vazão a um arsenal de virulências, muitas vezes da mais baixa extração. Antes dos movimentos libertários de 1968, prega o homossexualismo às bandeiras despregadas, com sua defesa da pederastia e a paixão explícita pelos adolescentes transformados de “anjos engraxates” em “anjos de Sodoma”. Escancara o erotismo forte dos “amantes chupando-se como raízes”; faz o elogio da loucura, da alucinação e do êxtase, com base em drogas e narcóticos, em reiterada litania: “do chá com pervitin” ou de outras anfetaminas e dos cogumelos alucinógenos às “correrias de maconha” e “o fogo azul de gim”. Desce ao baixo corporal, com sua “Apoteose de intestinos” e às expressões blasfemas como a da Virgem que “lava sua bunda imaculada na pia batismal”. A mescla estilística do sublime com o baixo e até com o mais chulo dá o tom geral do livro, de que “anjos de Rilke dando o cu nos mictórios” não nos deixam esquecer. Tudo isso (e muito mais) podia soar naqueles anos e talvez soe até hoje ainda como uma forma de épater le bourgeois. O que era, até certo ponto, obedecendo à cota que toda criação individual costuma dever à tradição literária e cultural mais ampla, ainda quando possa parecer
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produto singular e exclusivo da imaginação mais desenfreada. A atitude de Piva, abertamente polêmica, buscava um choque moral e estético no público, provocado até a rejeição. A provocação literária tinha já, certamente, uma longa história desde Baudelaire, cujas consequências para o destino da poesia moderna ninguém ignora. Os modelos baudelairianos do boêmio, do dândi e do flâneur, os ecos persistentes dos poemas em prosa de Le spleen de Paris, embora distantes, não estavam de todo esquecidos na década de 1960, 100 anos depois, por força da tradição de ruptura que marcaria o século xx e a história das vanguardas. Da mesma forma, a experiência do choque no cotidiano da vida moderna, que a metrópole francesa inaugurou como o novo ambiente com que teve de conviver o poeta lírico, já se estendera havia muito até as metrópoles do capitalismo periférico. A São Paulo dos modernistas já se tornara nos anos 1920 importante matéria de literatura. Mas o fato é que essas raízes da modernidade, reativadas pelas vanguardas, parecem continuar atuantes para Piva, antenado com o surrea lismo e os beats norte-americanos, de que seus versos dependem em certa medida, como se vê, entre outras coisas, pela fidelidade ao desejo, o espontaneísmo, a livre associação, o ritmo salmódico e panfletário, o apelo aos paraísos da droga. Contudo, não bastam para explicá-lo. Trata-se de fato de uma herança relevante, à qual ele vai acrescentar, no entanto, o que é decisivo. Ou seja: o que depende de sua experiência pessoal no contexto em que vive. É preciso considerar, antes de mais nada,
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Visão 1961
as mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma flor de saliva o frio dos lábios verdes deixou uma marca azul-clara debaixo do pálido maxilar ainda desesperadamente fechado sobre o seu mágico vazio marchas nômades através da vida noturna fazendo desaparecer o
[perfume
das velas e dos violinos que brota dos túmulos sob as nuvens de chuva
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fagulha de lua partida precipitava nos becos frenéticos onde cafetinas magras ajoelhadas no tapete tocando o trombone de vidro da Loucura repartiam lascas de hóstias invisíveis a náusea circulava nas galerias entre borboletas adiposas e lábios de menina febril colados na vitrina onde almas coloridas tinham 10% de desconto enquanto costureiros arrancavam os dos manequins
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[ovários
minhas alucinações pendiam fora da alma protegidas por caixas de
[matéria
plástica eriçando o pelo através das ruas iluminadas e nos arrabaldes de lábios apodrecidos na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um Lótus colando sua boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu que renascem nas caminhadas noite profunda de cinemas iluminados e lâmpada azul da alma
[desarticulando
aos trambolhões pelas esquinas onde conheci os estranhos visionários da Beleza
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já é quinta-feira na avenida Rio Branco onde um enxame de Harpias vacilava com cabelos presos nos luminosos e minha imaginação gritava no perpétuo impulso dos corpos encerrados pela Noite os banqueiros mandam aos comissários lindas caixas azuis de excrementos secos enquanto um milhão de anjos em cólera gritam nas
[assembleias
de cinza OH cidade de lábios tristes e trêmulos onde encontrar asilo na tua face?
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no espaço de uma Tarde os moluscos engoliram suas mãos em sua vida de Camomila nas vielas onde meninos dão o cu e jogam malha e os papagaios morrem de Tédio nas cozinhas engorduradas a Bolsa de Valores e os Fonógrafos pintaram seus lábios com urtigas sob o chapéu de prata do ditador Tacanho e o ferro e a borracha verteram monstros inconcebíveis ao sudoeste do teu sonho uma dúzia de anjos de pijama urinam com transporte e em silêncio nos telefones nas portas nos capachos das Catedrais sem Deus
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imensos telegramas moribundos trocam entre si abraços e condolências pendurando nos cabides de vento das maternidades um batalhão de novos idiotas os professores são máquinas de fezes conquistadas pelo Tempo invocando em jejum de Vida as trombetas de fogo do Apocalipse afã irrisório de ossadas inchadas pela chuva e bomba H árvore branca coberta de anjos e loucos adiando seus frutos até o século futuro meus êxtases não admitindo mais o calor das mãos e o brilho platônico dos postes da rua Aurora comichando nas omoplatas irreais do meu Delírio
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arte culinária ensinada nos apopléticos vagões da Seriedade por quinze mil perdidas almas sem rosto destrinçando barrigas adolescentes numa Apoteose de intestinos porres acabando lentamente nas alamedas de mendigos perdidos
[esperando
a sangria diurna de olhos fundos e neblina enrolada na voz exaurida na distância
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cus de granito destruídos com estardalhaço nos subúrbios demoníacos
[pelo
cometa sem fé meditando beatamente nos púlpitos agonizantes minhas tristezas quilometradas pela sensível persiana semiaberta da Pureza Estagnada e gargarejo de amêndoas emocionante nas
[palavras
cruzadas no olhar as névoas enganadoras das maravilhas consumidas sobre o arco-íris de Orfeu amortalhado despejavam um milhão de crianças atrás das portas sofrendo
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nos espelhos meninas desarticuladas pelos mitos recém-nascidos
[vagabundeavam
acompanhadas pelas pombas a serem fuziladas pelo veneno da noite no coração seco do amor solar meu pequeno Dostoiévski no último corrimão do ciclone de almofadas furadas derrama sua cabeça e sua barba como um enxoval noturno estende até o Mar no exílio onde padeço angústia os muros invadem minha memória atirada no Abismo e meus olhos meus manuscritos meus amores pulam no Caos
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Poema submerso
Eu era um pouco da tua voz violenta, Maldoror, quando os cílios do anjo verde enrugavam as chaminés da rua onde eu caminhava E via tuas meninas destruídas como rãs por uma centena de pássaros fortemente de passagem Ninguém chorava no teu reino, Maldoror, onde o infinito pousava na palma da minha mão vazia E meninos prodígios eram seviciados pela Alma ausente do Criador
Havia um revólver imparcialíssimo vigiado pelas Amebas no telhado roído pela urina de tuas borboletas Um jardim azul sempre grande deitava nódoas nos meus olhos injetados Eu caminhava pelas aleias olhando com alucinada ternura as meninas na grande farra dos canteiros de insetos baratinados Teu canto insatisfeito semeava o antigo clamor dos piratas trucidados Enquanto o mundo de formas enigmáticas se desnudava para mim, em leves mazurcas
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Paranoia em Astrakan
Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com lágrimas invulneráveis onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes que saem escondidos das tocas onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados estéreis e incendeiam internatos onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam a descarga sobre o mundo
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onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha no seu hálito onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua última janela onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte branco
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onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe escurecendo a página onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorroidas das beatas onde as cartas reclamam drinks de emergência para lindos tornozelos arranhados onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas penas onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da imaginação
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eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas partidas do meu cérebro eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror disparo-me como uma tômbola a cabeça afundando-me na garganta
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chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopeias libertas ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha, correrias de maconha em piqueniques flutuantes vespas passeando em volta das minhas ânsias meninos abandonados nus nas esquinas angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto e o Estrondo
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A piedade
Eu urrava nos poliedros da Justiรงa meu momento abatido na extrema paliรงada os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida
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as senhoras católicas são piedosas os comunistas são piedosos os comerciantes são piedosos só eu não sou piedoso se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos sábados à noite eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me fariam perguntas por que navio boia? Por que prego afunda?
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eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de fortes dentaduras iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou barbudos eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho todas as virtudes eu não sou piedoso eu nunca poderei ser piedoso meus olhos retinem e tingem-se de verde Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos Os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos
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Praça da República dos meus sonhos
A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem de morfina a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo e crianças brincando na tarde de esterco Praça da República dos meus sonhos onde tudo se faz febre e pombas crucificadas onde beatificados vêm agitar as massas onde García Lorca espera seu dentista onde conquistamos a imensa desolação dos dias mais doces os meninos tiveram seus testículos espetados pela multidão lábios coagulam sem estardalhaço os mictórios tomam um lugar na luz e os coqueiros se fixam onde o vento desarruma os cabelos
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Delirium Tremens diante do Paraíso bundas glabras sexos de papel anjos deitados nos canteiros cobertos de cal água fumegante nas privadas cérebros sulcados de acenos os veterinários passam lentos lendo Dom Casmurro há jovens pederastas embebidos em lilás e putas com a noite passeando em torno de suas unhas há uma gota de chuva na cabeleira abandonada enquanto o sangue faz naufragar as corolas Oh minhas visões lembranças de Rimbaud praça da República dos meus Sonhos última sabedoria debruçada numa porta santa
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Poema de ninar para mim e Bruegel
NinguĂŠm ampara o cavaleiro do mundo delirante Murilo Mendes
Eu te ouço rugir para os documentos e as multidões denunciando tua agonia às enfermeiras desarticuladas A noite vibrava o rosto sobrenatural nos telhados manchados Tua boca engolia o azul Teu equilíbrio se desprendia nas vozes das alucinantes madrugadas Nas boates onde comias picles e lias Santo Anselmo nas desertas ferrovias nas fotografias inacessíveis nos topos umedecidos dos edifícios nas bebedeiras de xerez sobre os túmulos
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As leguminosas lamentavam-se chocando-se contra o vento drogas davam movimento demais aos olhos Saltimbancos de Picasso conhecendo-se numa viela maldita e os ruĂdos agachavam-se nos meus olhos turbulentos resta dizer uma palavra sobre os roubos enquanto os cardeais nos saturam de conselhos bem-aventurados e a Virgem lava sua bunda imaculada na pia batismal
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as latas de compota riam com as línguas de fora
o Sol se punha nos meus planos
e a nossa amante ruiva bota no pescoço um lenço verde de Tolstoi No alto
do Viaduto o louco colava pedacinhos de céu na camisa de força
destruindo o horizonte a marteladas
a Morte
é
um
refrão no crânio sem janelas
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No Parque Ibirapuera
Nos gramados regulares do Parque Ibirapuera Um anjo da Solidão pousa indeciso sobre meus ombros A noite traz a lua cheia e teus poemas, Mário de Andrade, regam minha imaginação Para além do parque teu retrato em meu quarto sorri para a banalidade dos móveis Teus versos rebentam na noite como um potente batuque fermentado na rua Lopes Chaves
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Por detrรกs de cada pedra Por detrรกs de cada homem Por detrรกs de cada sombra O vento traz-me o teu rosto
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Que novo pensamento, que sonho sai de tua fronte noturna? É noite. E tudo é noite. É noite nos para-lamas dos carros É noite nas pedras É noite nos teus poemas, Mário! Onde anda agora a tua voz? Onde exercitas os músculos da tua alma, agora? Aviões iluminados dividem a noite em dois pedaços Eu apalpo teu livro onde as estrelas se refletem como numa lagoa
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É impossível que não haja nenhum poema teu escondido e adormecido no fundo deste parque Olho para os adolescentes que enchem o gramado de bicicletas e risos Eu te imagino perguntando a eles: onde fica o pavilhão da Bahia? qual é o preço do amendoim? é você meu girassol?
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A noite é interminável e os barcos de aluguel fundem-se no olhar tranquilo dos peixes Agora, Mário, enquanto os anjos adormecem devo seguir contigo de mãos dadas noite adiante Não só o desespero estrangula nossa impaciência Também nossos passos embebem as noites de calafrios Não pares nunca meu querido capitão-loucura Quero que a Pauliceia voe por cima das árvores suspensa em teu ritmo
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*Nas páginas seguintes, as fotografias de Wesley Duke Lee conforme apareceram nas edições de 1963 e 2000.
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paranoia, 1963*
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Instituto Moreira Salles
Walther Moreira Salles (1912-2001) Fundador
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alternância entre os registros alto e baixo, sua livre associa ção de ideias e referências e sua adesão ao escape proporcionado pelas drogas. “Uma visão alucinatória de São Paulo”, foi como Piva definiu seu livro. Do ponto de vista formal, os poemas aqui reunidos são predo minantemente compostos de versos longos, sem métrica ou rimas, e suas estrofes são irregulares do ponto de vista do número de versos. Como se o combate do poeta no âmbito do comportamento tivesse sua extensão natural na linguagem.
nasceu em 1937, na cidade de São Paulo, onde sempre viveu. Figura ativa no meio cultural e poético paulistano desde a juventude, teve seus primeiros poemas publicados na célebre Antologia dos novíssimos (Massao Ohno, 1961). Publicou os livros de poemas Paranoia (Massao Ohno, 1963, Instituto Moreira Salles, 2000), Piazzas (Massao Ohno, 1964, Kairós, 1980), Abra os olhos e diga ah! (Massao Ohno, 1975), Coxas (Feira de Poesia, 1979), 20 poemas com brócoli (Massao Ohno/Roswitha Kempf, 1981), Quizumba (Global, 1983), Antologia poética (l&pm, 1985) e Ciclones (Nankin, 1997). Todos esses livros foram reunidos nos volumes Um estrangeiro na legião, Mala na mão & asas pretas e Estranhos sinais de Saturno (Globo, 2005, 2006, 2008). roberto piva
nasceu em 1931, na cidade de São Paulo. Na juventude, estudou arte nos Estados Unidos e na França. Já de volta ao Brasil, em 1963, iniciou trabalho com os jovens artistas Carlos Fajardo, Frederico Nasser, José Resende, Luiz Paulo Baravelli, entre outros. Concebeu O grande espetáculo das artes, um dos pri meiros happenings do Brasil. Entre 1966 e 1967, junto com Nelson Leirner, Geraldo de Barros, José Resende, Carlos Fajardo e Fre derico Nasser, integrou o Grupo Rex, numa reação ao mercado de arte. Desde então, é um dos grandes nomes das artes plásticas no Brasil, como desenhista, gravador, artista gráfico e professor. wesley duke lee
O Piva define o momento. Um poeta com rosto de menino atravessa a cidade rompendo sozinho um hímen gigantesco. Poesia de sangue, que gera uma flor no sexo da adolescência. Visão de Piva, an tropófago, São Paulo na boca, madrugada no dente, poesia no estômago. Um poeta com cara de menino atravessa a cidade. Puxando a juventude.
Thomaz Souto Corrêa, 1963