Reflexos e sombras Saul Steinberg com a colaboração de Aldo Buzzi
Saul Steinberg com a colaboração de Aldo Buzzi
Reflexos e sombras Tradução de Samuel Titan Jr.
Sumário prólogo Aldo Buzzi
1.
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romênia. educação artística. os tios. foto de família.
2. milão. o grilo. a prisão. tortoreto. retorno a tortoreto. a rua palas em bucareste.
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3. washington, smithsonian institution. beisebol. caipiras. viajar de ônibus. vagabundos, a bowery. o sonho americano. a influência do cubismo. magritte. restaurantes americanos.
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4. desenho de observação. os reflexos, as sombras. o ofício de cartunista. vender as próprias obras. o mundo artístico. o marceneiro sig lomaky.
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sobre os autores
pr贸logo Aldo Buzzi
“Este livro é fruto de conversas gravadas em fita magnética, ocorridas em minha casa de campo de Springs, Long Island, no verão de 1974 e no outono de 1977, com meu amigo Aldo Buzzi, que em seguida procedeu a uma seleção rigorosa do copioso material, ordenando-o em quatro capítulos.” Essa é a nota que propus antepor a este livro, a pedido de Steinberg, quando ele se disse de acordo com a publicação. Eu preparara, em Milão, uma primeira redação do texto. Depois, uma segunda, descartando algumas partes menos interessantes do material. Steinberg leu as duas versões e concordou em publicar a segunda. Aprovou também o título, que deriva de uma série de desenhos publicados na revista The New Yorker com o título “Sombras e imagens refletidas” (21 de novembro de 1977), e republicados aqui. Depois, quis pensar mais no assunto, e tudo ficou em suspenso. Era um homem cheio de dúvidas. Talvez achasse que o escritor não estava à altura do desenhista, que se dizia um escritor que desenhava em vez de escrever.
1. romênia. educação artística. os tios. foto de família.
Na Romênia, não tive tempo de viver a “melhor” época da vida, de homem de 30, 40, 50 anos, de homem-feito. Não havia muita diversão para os mais jovens, eu não tinha nenhum direito, ia para o liceu levando uma placa numerada, feito um automóvel; mas, sobretudo, quem não tinha dinheiro não tinha como gozar as liberdades terríveis da Romênia, praticar abusos, levar vida de grão-senhor, de quem tem dinheiro e sempre encontra gente para comprar. Minha infância, minha adolescência na Romênia foram mais ou menos o equivalente de ter sido negro no estado do Mississippi. • Havia moças que desciam das montanhas para trabalhar como criadas e eram tratadas como selvagens, como escravas: tinham pouquíssimos direitos e logo se tornavam presa dos maridos e filhos da casa, dos vizinhos da casa. Vinham de regiões ainda intocadas pela civilização, terra de pechenegues, de visigodos, e chegavam
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Bucareste, nos anos da minha juventude, era uma cidade estranha‌
à confusão da cidade apinhada de trapaceiros de toda espécie; eram a carne dos bordéis e muitas vezes se suicidavam, mesmo por razões absurdas, porque a patroa tinha gritado com elas, acusando-as de furto. Encharcavam-se de querosene e acendiam um fósforo. Não faltava querosene, o óleo que se usava para os lam piões. Os vendedores ambulantes passavam com dois barris de querosene, gritando: “Gase, gase”. As mulheres que andavam com o gasàr tinham um cheiro permanente de querosene que afastava todo mundo. De vez em quando, certos cheiros que não sinto desde criança retornam, não ao nariz, como um cheiro propriamente dito, mas ao cérebro do nariz; cheiros vagos e precisos ao mesmo tempo: cheiro de outono; de certas lojas; cheiro de começo de inverno, de início do frio: o primeiro fogo em casa, as luzes a partir das cinco da tarde. A estufa de metal, acesa pela primeira vez, tinha um cheiro peculiar, também porque a superfície fora untada para evitar a ferrugem. E sempre o cheiro do lampião a querosene.
Gosto muito de sentir de novo esse cheiro, mas não é possível evocá-lo por um esforço da vontade. Mesmo assim, de vez em quando acontece que, de repente, por alguma razão misteriosa, a memória desse cheiro retorna. Nada do que é depositado na memória se perde, ela é um computador que continua acumulando dados a vida inteira, dados que nem sempre se utilizam, porque o homem muitas vezes parece um transatlântico que navega com apenas uma cabine ocupada. Deveríamos conseguir usar continuamente esse imenso acúmulo de dados, mantê-los em exercício, combiná-los entre si, multiplicá-los, reintroduzi-los no curso de nossos pensamentos. Como no caso do retorno desses cheiros, depositados há tantos anos na memória e agora ressuscitados. Talvez eu tenha a sorte de encontrar mais coisas que agora me parecem esquecidas. Gostaria de poder voltar atrás e ver tudo que em algum momento armazenei, mas não percebi, andar atrás de mim mesmo quando tinha dez anos e avaliar, com a cabeça de agora, as condições em que vivia:
Em casa, havia grandes álbuns de reproduções das obras de arte mais populares, do Renascimento à arte moderna da época. Certas madonas de pintores renascentistas menores eram a imagem perfeita do cristianismo popular, ou melhor, do cristianismo kitsch, que os franceses chamam de bondieuserie; Millet era ideal para as caixas de chocolates, porque reunia um classicismo renascentista e um socialismo que, naquele tempo, era não só popular, mas ainda virgem (não se sabia então dos horrores que podiam vir pela frente e que de fato vieram). Havia também Rafael: a madona de Dresden e o anjo pensativo, os cotovelos apoiados numa nuvem. Foi assim que vi muita coisa pela primeira vez, sem saber que aquelas imagens eram arte, pintura. Mais tarde, dei com elas nos livros de arte e as reconheci. Um outro mestre, para mim, foi o álbum de família. Havia fotografias dos parentes, tios, primos, avós, bisavós, das primas, tiradas por bons fotógrafos, que ainda se inspiravam na pintura de Delacroix e de Ingres, e havia as primeiras tentativas
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Millet era ideal para as caixas de chocolate‌
Meu tio trabalhava com uma lente de aumento colada ao olho e usava pinças para ajustar milhares de peças minúsculas. Não gostava muito que eu ficasse ali, olhando.
3. washington, smithsonian institution. beisebol. caipiras. viajar de 么nibus. vagabundos, a bowery. o sonho americano. a influ锚ncia do cubismo. magritte. restaurantes americanos.
Em Washington, como artista residente da Smith sonian Institution, passei em 1966 os três meses mais estranhos da minha vida. Foi como emigrar para onde normalmente não se emigra, como a Noruega ou a Albânia. Em Nova York, você conhece o senador Javits e basta. Em Washington, conheci os protagonistas da vida política americana: ministros, secretários de Estado, ex-secretários de Estado, como Acheson, jornalistas famosos, embaixadores. E suas mulheres, todas perfeitamente educadas para a vida de salão, para receber, manter a conversa no tom adequado, ser atraentes, educadas em escolas especiais para senhoritas — há várias, especialmente no sul —, às vezes enviadas às academias de Lausanne, onde se aprende a comer com seis garfos. Mulheres treinadas para se portar como senhoras: sabem dar ordens ao cozinheiro, mas não sabem nem cozinhar nem comer com apetite, pois isso é contra as regras. Sabem exatamente como ser corteses, servir, deixar os convidados à vontade, mas também sabem como se livrar de
Em Washington, como artista residente da Smithsonian Institution, passei em 1966 os trĂŞs meses mais estranhos da minha vida
gente não necessariamente incômoda, mas incômoda num dado momento, gente que não pertence ao grupo ou que deve ser mandada embora um pouco mais cedo. A mulher do coronel está pronta a ser maldosíssima e a dar ordens à mulher do capitão ou do tenente. Não há como saber de que falam com os maridos. Tudo se dá de modo superficial, como num filme de segunda. Parecem casais fiéis e ternos, mantêm-se em forma física, só se vê que envelhecem porque os cabelos embranquecem e surgem certas rugas invisíveis: sempre como atores num filme. Foi contra esse mundo que se fez a revolução dos hippies, da nudez, da violência sobretudo. Tomei parte em jantares importantes, conduzidos segundo todas as regras dos jantares oficiais, com o nome de cada convidado escrito por calígrafos especializados, para indicar o lugar de cada um à mesa. Na entrada, havia um diagrama da mesa com a distribuição de lugares, de modo que todos soubessem quem estaria à direita e à esquerda, ficando os cavalheiros
obrigados a acompanhar ao salão a senhora designada. A da direita ou a da esquerda? Já não me lembro mais. Aprendi a comer com muitos garfos, com muitos copos, a não beber a água de limpar os dedos, a não comer certas verduras e frutas que eram mera decoração, a não pegar a maçã da boca do leitão. Usava quase sempre gravata preta, camisa branca, abotoaduras de ouro… coisas que desde então não usei mais. Morava em Georgetown, numa casa magnífica que mais parecia um palácio dinamarquês e que pertencia a um zoólogo especializado em grandes símios antropoides, razão pela qual adquiri, na biblioteca, uma bela erudição a respeito de gorilas. Sobre a escadaria, pendia uma cabeçorra embalsamada de búfalo-d’água, o animal que causara a morte do jovem Macomber, no conto de Hemingway. Quando subia as escadas, eu não a via, mas, quando descia, ela ficava bem à minha frente, me olhava bem nos olhos. Um horror. Mas não tinha como pedir que a levassem dali.
Mulheres treinadas para se portar como senhoras‌
Fiz muitos desenhos sobre esse papel de carta, usando a estampa de vårias maneiras‌
Os empregados eram quatro chineses, pai, mãe e duas filhas. A casa, de quatro pisos, exigia cuidados, havia centenas de cadeiras, talheres, chinoiseries. O chinês era também o cozinheiro, mas preparava coisas ignóbeis: a pior bisteca que já comi. Um cozinheiro chinês que cozinhava mal. Algo assim como um sueco tampinha. Eu só lhe pedia ovos cozidos e torradas. Além do mais, era um ladrão: me apresentava contas enormes. Eu era muito bem pago, mas prometera a mim mesmo não economizar um único centavo do governo e pagar muita coisa do próprio bolso, fosse para não me sentir em débito, fosse para manter em alta conta minha condição de artista residente da Smithsonian Institution. Era convidado todas as noites. Tive que recusar muitos convites tentadores de senadores importantes, de deputados inteligentes, porque havia outros mais que eu não podia absolutamente recusar. A Washington daquele tempo era um lugar bastante lúgubre por causa da Guerra do Vietnã. O presidente Lyndon Johnson não era popular. As pessoas se viam em casa como se estivessem em refúgios antiaéreos em tempo de guerra.
Também conheci mulheres simpáticas, inteligentes, informadas. Pena que fossem, como todos em Washington, gente da corte, o contrário dos camponeses, gente aberta e sincera. O papel de carta do instituto era belíssimo, com a estampa burilada à perfeição em vários tipos de papel, um mais luxuoso que o outro. Fiz muitos desenhos sobre esse papel de carta, usando a estampa de várias maneiras.1 De resto, talvez influenciado pelos empregados, desenhei um rolo à maneira chinesa, com dez metros de comprimento, sobre o qual desenvolvi um desenho contínuo, baseado no que fazia dia após dia: um diário desenhado. O perigo é tornar-se escravo do rolo, e, no final das contas, eu o estraguei de tanto querer embelezá-lo. Mas salvei uns quantos metros.
1 Desses desenhos, nasceu um livro: Steinberg at the Smithsonian. The Metamorphoses of an Emblem, com prefácio de John Hollander, publicado por encargo do National Collection of Fine Arts pela Smithsonian Institution Press, Washington, 1973.
• Washington parece um transatlântico, o Queen Mary ou o Queen Elizabeth. Eu morava em Georgetown, na primeira classe. A segunda classe? Eram os funcionários do governo. Na classe turística, viajam os turistas, e é claro que os negros eram a tripulação que atendia a todos os passageiros. Todos estão a bordo para uma viagem de quatro anos, que é o que dura uma presidência. Todos querem ser convidados à mesa do capitão, mas os menos sortudos terão que comer com o imediato. Quando a viagem vai chegando ao fim, tudo piora: bagagens, camareiros, carregadores aparecem no convés, e o navio é repintado para uma nova fornada de passageiros.2
2 A imagem do transatlântico parafraseia as declarações do artista em “Steinberg Looks at Washington”, entrevista a Karl E. Mayer, The Washington Post, 15.03.1970.
• Na primeira vez que assisti a uma partida de beisebol, não entendi nada, mas fiquei curioso diante desse jogo em que quase não há ação, mas no qual todos ficam à espreita com toda expectativa e emoção. O beisebol é um esporte filosófico, psicológico, baseado, como a vida, na coragem e no medo; faz pensar no xadrez e na tourada. Os jogadores devem ter uma habilidade extraordinária, reflexos prestíssimos e, sobretudo, um espírito inventivo, uma criatividade que se poderia dizer poética e que aproxima a estrela esportiva do artista. Os grandes jogadores não querem ter ares de atleta, mas de homem de negócios; e demonstram uma espécie de indiferença por sua própria destreza, não falam de beisebol. Assim como, de modo análogo, fazem os bons pintores, ao passo que os medíocres se vestem de artista e só falam de arte. Durante o campeonato de 1954, acompanhei o time dos Mil waukee Braves a Fildadélfia, Chicago, Cincinnati, Mil waukee… Os campos de beisebol de hoje são mais refinados,
mais cuidados, concebidos para um grande espetáculo. Chegaram a construir um coberto por uma cúpula de plástico, que protege da chuva e do sol. A grama é artificial, mas naquele tempo ainda era de verdade. Os velhos campos, especialmente o de Filadélfia ou o Ebbets Field de Nova York, eram fantás ticas arquiteturas de madeira que davam a impressão de se estar diante de um grande desastre naval do século xix, de uma colisão de grandes barcos fluviais.
• No início do verão de 1958, fui ao Kentucky e à Virgínia Ocidental, visitar os hillbillies, os poor whites, os caipiras brancos e pobres que sempre me interessaram porque são de certa maneira os antepassados dos americanos de hoje. Revi neles tantos protagonistas da narrativa americana, tantos personagens de Faulkner, heróis do cinema, caubóis, ladrões, erradios, os verdadeiros personagens americanos. A burguesia, a gente de bem, essa está em toda parte e é sempre igual.
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… fiquei curioso diante desse jogo em que quase não há ação…
Os velhos campos, especialmente o de Filadélfia ou o Ebbets Field de Nova York, eram fantásticas arquiteturas de madeira.
O beisebol é um esporte filosófico…
‌ os verdadeiros personagens americanos‌
• Viajando de trem, o que mais se vê é o verso das cidades. A visão é “lateral”, ao passo que para o homem a visão mais natural é a frontal, como no automóvel. Mas no carro o assento é muito baixo, tão baixo que a gente fica com medo de ralar o traseiro no calçamento. E o que se vê é uma paisagem que é a continuação daquela que se vê na televisão, que se vê quando se está sentado. Viajando de ônibus, pelo menos quando se consegue sentar na primeira fileira, pode-se desfrutar a visão ideal, a mais rara e a mais nobre, a visão do homem a cavalo. Agora, infelizmente, começaram a escurecer os vidros como proteção contra o sol, e o que se vê é uma triste paisagem crepuscular, mesmo quando o sol brilha forte. Ou então tingem de azul o para-brisa, mais escuro em cima, mais claro embaixo; e assim a paisagem se transforma numa estampa japonesa.
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•
Aqui há toda espécie de felicidade, incluídas as felicidades terríveis da Flórida e de seus campos de concentração para velhos, a felicidade dos ricos, que só querem saber de comprar, e a felicidade dos vagabundos, da escória humana. Em todas as grandes cidades, há uma zona, o skid row (em Nova York, a Bowery), que é a zona franca dos vagabundos, dos bêbados, de quem quer terminar a vida à sua maneira, buscando até o fim a felicidade segundo seu próprio alvitre, quer se trate de um imbecil ou de um louco. Se não perturbam demais, a polícia os deixa em paz. Quando chega o frio do inverno, a polícia leva e prende todo mundo, para aquecê-los, para evitar que morram congelados. Quando brigam entre si, batem-se em câmera lenta, por conta da fraqueza causada pelo álcool, com gestos vagarosos e fracos, e quando dão um golpe não machucam ninguém, porque caem no ímpeto de golpear. Combatem a tristeza com vinho ruim. Quase todos morrem jovens. Vez por outra se vê um muito velho, que passou grande parte da vida entre os vagabundos ou
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… as felicidades terríveis da Flórida…
‌ a felicidade dos ricos‌
que se juntou a eles há pouco. Há quem trabalhe regularmente anos a fio, com profissão, família e, de um dia para outro, entre no mundo dos skid rows e prefira passar assim o resto da vida. Um suicídio, só que mais devagar. Na Bowery, veem-se muitos rostos nobres, marcados pelos sofrimentos da vida, mas sem a degradação da vulgaridade e da velhacaria. Vivem por lá artistas, pintores (não falo de músicos e escritores, que não são da mesma família), seres indefesos, infantis, que usam a inteligência e a coragem não para sobreviver, mas que se preocupam sobretudo em manter a própria integridade; que não exploram ninguém, que não vivem nesta terra como quem nasceu com um propósito preciso e pensa na vida como uma coisa da qual se deve extrair a máxima vantagem possível. A face de Ulysses S. Grant, presidente dos Estados Unidos, que figura na nota de 50 dólares, representa para mim, de um jeito comovente, o artista, o erradio.
• O American dream, o sonho americano, é o ideal que a Constituição nos oferece, o de buscar a felicidade vida afora. É um convite a fazer uso de todas as facilidades que o país oferece — este país onde se tem a ocasião de obedecer a boas leis —, a seguir livremente as próprias inclinações e a buscar a felicidade que se julgar melhor. Não há uma felicidade standard, igual para todos. A felicidade não é imposta aos americanos a partir de fora, pelo governo, como acontece sob as ditaduras. Na Bowery, sempre se vê o Exército da Salvação, oferecendo comida, calor, limpeza. Em troca, pede que se ouça um sermão e se entoe um cântico. Mas muitos recusam: não querem ouvir o sermão e não querem cantar; preferem mendigar ou roubar a ter que fazer algo que vai contra sua natureza.
• Recém-chegado a Nova York, uma das coisas que logo me fascinaram foi a grande influência do cubismo na arquitetura americana. E o art déco não foi mais que a decadência do influxo cubista, o cubismo tornado decoração: o Chrysler Building, o Empire State, os jukeboxes, os cafés, as lojas, os vestidos das mulheres, os penteados, as gravatas, tudo era feito de elementos cubistas. Os táxis, muito maiores que agora, eram fabricados especialmente para ser táxis, havia lugar para seis, sete, oito pessoas, o teto era corrediço para que, de dentro, se pudesse ver os grandes arranha-céus e, à noite, a lua; uma coisa belíssima que, como muitas vezes acontece, acabou de uma hora para outra, sem que ninguém protestasse. Cada companhia tinha seu próprio emblema, suas próprias cores, uma linda mistura de vermelhos, verdes, verdes-escuros, de quadriculados em branco e preto; cores esmaltadas, brilhantíssimas. A palavra “táxi” era feita de plástico, tinha iluminação interna, à maneira dos jukeboxes de então, com luzes amarelas, vermelhas, laranja. A influência do
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A influência do construtivismo, do cubismo e, por assim dizer, do fernandlÊgerismo era evidente‌
‌ o Chrysler Building, o Empire State, os jukeboxes, os cafÊs, as lojas, os vestidos das mulheres, os penteados, as gravatas, tudo era feito de elementos cubistas.
construtivismo, do cubismo e, por assim dizer, do fernandlégerismo era evidente: o carro dava a impressão de andar a grande velocidade mesmo quando estava parado. O De Soto (os táxis eram Dodges ou De Sotos) tinha sobre o capô a figura de um índio voador que derivava diretamente de Brancusi, de seus pássaros esvoaçantes. Depois da guerra, tudo isso acabou, vieram outros modos de vestir, outras arquiteturas. Uma decadência, porque aquilo era verdadeiramente um mundo muito americano e muito otimista. • Logo conheci todas as celebridades locais: Chagall, Max Ernst, Léger, Duchamp; e também os nativos: Pollock, De Kooning, John Graham… Lamento não ter conhecido Mondrian. Magritte chegou muito tarde. Eu gostava de algumas de suas coisas, mas em geral achava que ele gastava muita pintura para explicar uma piada. Mas era esse o seu verdadeiro talento, ou melhor, sua verdadeira descoberta de militante fiel do surrealismo: trabalhar
com a mesma minúcia e paixão que os escribas punham em iluminar os códices. Só nos últimos anos Magritte ganhou fama nos Estados Unidos. Tenho um Magritte dos mais antigos, de 1926, acho que dos melhores, bem pintado, com sua famosa paciência. É um duplo retrato de André Breton: dois perfis, um que diz: “Le piano”, e outro que responde: “La violette”.3 Os balõezinhos que saem das duas bocas são de uma cor violeta-salmão densa e opaca; a forma é bastante alongada. Provavelmente se trata de uma brincadeira em torno das histórias em quadrinhos. O quadro, de resto, representa o verso de um quadro a óleo, pois Magritte pintou, em marrom-escuro, quase preto, a silhueta da armação da tela (mais uma piada surrealista), que seria o verso da pintura propriamente dita, ou melhor, a pintura vista em transparência, por trás. 3 Na verdade, o rosto à direita é o do próprio Magritte; o quadro leva o título de L'Usage de la parole. (n.e.)
Comprei do meu galerista, Sidney Janis, que me devia 400 dólares. Em vez do dinheiro, fiquei com o quadro, que fora exposto na mostra que Janis organizou logo depois da minha. Nessa mostra, Magritte não vendera nada, ou talvez um único quadro. Foi um bom negócio para Janis… naqueles tempos. Magritte descobriu as três luzes (e quem sabe outras mais). Num quadro de que pintou muitas variações, vê-se o céu iluminado pelos últimos reflexos do poente; e os outros elementos da paisagem, uma árvore, uma casa, são silhuetas escuras contra a luz do céu. Na rua, há um poste de luz já aceso, que ilumina um trecho do calçamento e uma parte da casa. Na casa, há uma lâmpada elétrica, igualmente acesa, que ilumina o interior e vaza também para fora. As três luzes. Se bem me lembro, há também a lua que já começa a brilhar. E tenho quase certeza de que também pintou uma luz refletida numa poça de água ou num braço de mar.
… trabalhar com a mesma minúcia e paixão que os escribas punham em iluminar os códices.
Magritte era muito ligado a esses efeitos curiosos. Nos Estados Unidos, Edward Hopper foi um especialista habilidoso nas luzes de neon. Pintava cenas em highways crepusculares nas quais, com o desperdício costumeiro por aqui, veem-se as luzes de neon já acesas, as luzes da estrada, dos restaurantes, dos postos de gasolina, além dos faróis dos automóveis que avançam contra o esplendor do crepúsculo. A ideia de pintar a luz é bonita, porque faz do artista um mago, um homem capaz de recriar a luz por meio da cor. Mas é claro que não é essa a função da pintura; mais que como artista, Magritte falava como cientista, ou, mais modestamente, como técnico. • Nos Estados Unidos, não se pede a um transeunte que indique um bom restaurante, como se faz na Itália ou na França. As pessoas não sabem o que é um bom restaurante porque aqui vão ao restaurante para se divertir, não para comer. Para responder,
… dos faróis dos automóveis que avançam contra o esplendor do crepúsculo.
teriam que saber por que razão se vai a um restaurante: encontrar uma moça, levar a família, ter uma noite inesquecível com música e meia-luz, comer muito ou fazer uma refeição rápida. Nem saberiam dizer se este ou aquele diner é bom ou ruim: um diner é um diner. Vai-se ao diner de Watermill porque é grande e se come rápido. Ao lado, há um restaurante que é outra coisa: é preciso vestir-se, ficar por duas horas, todo um compromisso. E é preciso comer com calma, e com muito dinheiro. É um lugar a que se leva alguém para causar impressão. Quem tem família com crianças vai a um diner para comer o que se chama aqui de grease bowl, um prato de comida gordurosa, muito gordurosa, frita, comida para crianças. Nos Estados Unidos, a gastronomia, os restaurantes, o paladar da nação são dominados pelo paladar das crianças. Uma desgraça, porque as crianças não comem outra coisa além de espaguete, hambúrguer e cachorro-quente. Comem o espaguete com almôndegas, afogado em molho e mole como uma papa; gostam de hambúrguer num pão ensopado com o sumo da carne, inundado de ketchup e acompanhado
de batatas fritas em óleo malcheiroso. Melhor nem falar da salsicha, do cachorro-quente: até poderia ser excelente, mas não aqui, com mostarda de péssima qualidade. Mas é assim que as crianças gostam. Os jovens de agora conservaram o comportamento, os hábitos da nursery, do quarto das crianças, da creche. Por uma influência desencontrada de Freud, que ensinara a não criar complexos nas crianças, ninguém nunca os repreendeu, todos foram sempre pacientes ao máximo. De vez em quando, se tem notícia de bebês estrangulados: são provavelmente pais e mães que levaram a pa ciência longe demais e deixaram para dar o ralho de uma vez só. Esses jovens foram alimentados incessantemente e jamais perderam o gosto de comer sem parar; no princípio, foram forçados pela mãe, depois também pela escola, por obra do free lunch (a refeição gratuita ao meio-dia), quando comem o que querem e compram o que estiver à mão, sempre circundados por anúncios de comida feita especialmente para eles, doces pavorosos, pizzas, hambúrgueres, sorvetes. Saindo da escola,
continuam a comer e beber pela rua: numa das mãos, levam uma fatia de pizza envolta num pedaço de papel; na outra, uma latinha de alumínio com um buraco do qual sai um canudo, às vezes dois ou três, para que possam sugar mais rápido. Param numa esquina, para conversar ou para olhar em volta. Quando terminam de beber, relaxam os dedos e a latinha vazia cai por terra. Nem sequer olham para ela, como vacas que deixam cair a bosta pelo pasto. Terminada a pizza, largam da mesma maneira o papel ou até o pedaço de pizza, se não estiver do seu gosto. Se alguém os repreende, olham como se o outro fosse louco. Não entendem. Quem tiver azar pode até dar com um jovem pronto a assassiná-lo por ter feito observações a que ele não está habituado. Em casa, no próprio quarto, fazem de tudo pelo chão: sujam, vomitam e coisa pior. Na televisão, volta e meia se vê um quarto reduzido a um chiqueiro, onde uma mãe paciente exibe o produto que limpará tudo num instante. E o filho tem orgulho de ter tornado possível a demonstração da qualidade do produto. Nunca foi repreendido por ter sujado tudo, também
porque tudo é fácil de limpar; e assim pensa passar o resto da vida, comportando-se da mesma maneira. • Perguntar a um passante onde se come bem é como perguntar qual é a sua classe social, suas tendências políticas; uma pergunta constrangedora, porque ir ao restaurante é um fato social, não gastronômico. Em Nova York, como se sabe, com tantos estrangeiros e restaurantes de todo tipo, a situação não é típica dos Estados Unidos. Em Cincinnati, estive num grande restaurante em cujo centro havia uma pista de patinação no gelo com números de teatro de variedades: um patinador segurava uma bailarina pelas mãos e a fazia girar cada vez mais rápido, com os patins voltados para minha boca aberta, ocupada em comer. O lugar todo estava cheio de famílias com crianças, grandes mesas para celebrar um aniversário, as crianças com estranhos chapéus na cabeça. Isso era um restaurante: música, variedade, iluminação especial; nem um único momento de sossego para
comer. Se o cliente pedia uma salada… bem, uma enciclopédia teria tido o mesmo sabor, uma enciclopédia antiga; eram folhas velhas de alface, se é que não eram páginas amarelas. Os pratos de carne eram todos iguais, com nomes diferentes; acho até que havia nomes franceses. Quando tinha meu estúdio na rua 60, via da janela dois restaurantes: o Veau d’Or, na 60, e outro restaurante francês, na 61. No meio, no pátio interno, havia uma cozinha que servia aos dois restaurantes, e os cozinheiros eram chineses. • A única refeição realmente boa é o café da manhã. Quando viajava, eu pedia o café da manhã mesmo ao meio-dia ou à noite. Torradas, ovos e presunto ou bacon, muito bem preparados. O prato vem com guarnição de batatas deliciosas, home fried, com bacon e cebola, ou de batatas fritas que são cobertas de ketchup. Não se encontra presunto cru, mas o cozido tem tantas variedades: presunto da Virgínia com abacaxi, presunto
defumado do sul, lombo canadense, que é um meio-termo entre o presunto e o bacon. E ainda as salsichas; os waffles crocantes, marcados a ferro quente, que parecem o traseiro de quem ficou sentado sem roupa numa cadeira de palha trançada e que se comem com maple syrup, mel ou geleia; e as flapjacks, panquecas moles de farinha de trigo, de milho ou de centeio. Você pede uma montanha, um arranha-céu; passa manteiga, mel, maple syrup ou geleia, empilha três ou quatro e corta como se fossem um sanduíche, engolindo a bocada feito um crocodilo. Nas regiões agrícolas da planície (Kansas, Iowa), onde se comem os melhores waffles e flapjacks, os diners são enormes, com grandes mesas. É um prazer sentar-se, mesmo sozinho, a uma mesa grande. Quando se está em dois, sentar-se a uma mesa para quatro ou seis é uma delícia. As garçonetes são gentilíssimas e estão sempre à disposição, não como em Nova York ou aqui à beira-mar, especialmente no verão, quando as garçonetes são estudantes e, nos restaurantes, há prostitutas atrevidas, mulheres mal-amadas, envenenadoras e coisa pior; não
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Lá são grandes não apenas os diners, as mesas, as cadeiras, mas também os flapjacks, os pratos: tudo tem dimensões heroicas, e não custa caro.
A vista lá fora é sempre bonita: um estacionamento, uma rua cheia de tráfego ou os fundos de um prédio com visões inesperadas; ou mesmo um motel.
Sobre os autores
Saul Steinberg nasceu em 15 de junho de 1914, no lugarejo romeno de Ramnicul-Sarat. Seis meses mais tarde, sua família mudou-se para Bucareste, onde Steinberg passou toda a infância e a adolescência. Depois de um ano na Universidade de Bucareste, onde estudou filosofia e literatura, Steinberg foi para Milão, onde viveu por oito anos, graduou-se em arquitetura e travou amizade com Aldo Buzzi. Em Milão, começou a publicar desenhos na revista satírica Bertoldo, o que lhe valeu certa fama — em 1940, por exemplo, publicou alguns desenhos na revista Sombra, do Rio de Janeiro. Em 1941, sob a ameaça das leis raciais de Mussolini, Steinberg deixou a Itália, chegando aos Estados Unidos via Santo Domingo. Naturalizado em 1943, serviu na marinha americana em missões na China, na Índia e na Itália. Em 1944, casou-se com a pintora Hedda Sterne e estabeleceu-se em Nova York, onde obteve sucesso imediato, publicando prolificamente nas
principais revistas do país, com destaque para a longa colaboração com a revista The New Yorker. Steinberg compilou boa parte de sua produção em livros de desenhos que se tornaram clássicos do gênero, como All in Line (1945), The Art of Living (1949), The Passport (1954), The Labyrinth (1960), The Inspector (1973) e The Discovery of America (1992). Ao mesmo tempo, realizou muitas exposições nos Estados Unidos e no exterior — inclusive no Brasil, onde exibiu seus desenhos no Museu de Arte de São Paulo em 1952 e reencontrou Lina Bo Bardi, sua colega dos anos de estudos em Milão. Sua obra foi tema de duas grandes retrospectivas: Saul Steinberg (1978), no Whitney Museum, e Illuminations (2006), na Morgan Library, ambos em Nova York. Morador de Manhattan, o artista também mantinha uma casa em Springs, Long Island, onde este livro foi concebido. Saul Steinberg morreu em Nova York em 1999. •
Aldo Buzzi nasceu em 10 de agosto de 1910 em Como, no norte da Itália, filho de um químico italiano e de uma pintora alemã. Estudou arquitetura em Milão, onde foi colega de Steinberg. À maneira do amigo, mal praticou a profissão: logo começou a escrever roteiros de cinema, a contar de Giacomo l’idealista (1942), de Alberto Lattuada — com cuja irmã, Bianca, viveria até a morte desta, em 2005. Em colaboração com Federico Patellani, dirigiu um único longa-metragem, America pagana (1955), um semidocumentário sobre a civilização maia. Reuniu suas reflexões sobre o ofício de roteirista em Taccuino dell’aiuto-regista, publicado em 1944 com projeto gráfico de seu amigo Bruno Munari. Buzzi colaborava com revistas e jornais desde a década de 1930, mas nos anos 1960 concentrou seus trabalhos no ramo editorial, atuando como editor junto à casa Rizzoli. Por então, graças ao estímulo do amigo Vanni Scheiwiller, dono da editora All’Insegna del Pesce d’Oro, começou a publicar sistematicamente em forma de livro: o primeiro foi Quando la pantera rugge (1972), seguido de Piccolo diario americano (1974), ilustrado
por Steinberg, que também assinaria os desenhos que acompanharam L’uovo alla kok (1979), talvez o livro mais célebre do autor. Viagem à terra das moscas, de 1987, celebrado pela The New York Review of Books como “livro notável”, é seu único livro publicado no Brasil (em tradução de Betânia Amoroso, pela editora Companhia das Letras, 1998). Já nonagenário, seguiu publicando prosa inclassificável e original, em volumes como La Lattuga di Boston (2000) e Parliamo d’altro (2006); no mesmo ano, compilou, revisou e reorganizou parte de sua obra narrativa em Un Debole per quasi tutto. Aldo Buzzi faleceu em Milão, em 9 de outubro de 2009.
Mestre do desenho, Saul Steinberg gostava de dizer que, na verdade, era um escritor que desenhava em vez de escrever. Nas recordações que compõem Reflexos e sombras, esse pendor literário vem à tona com uma mistura única de brevidade, poesia e humor — qualidades gráficas por excelência. Steinberg dá o tom logo nas primeiras páginas: “De vez em quando, certos cheiros que não sinto desde criança retornam: não ao nariz, como um cheiro propriamente dito, mas ao cérebro do nariz”. É assim, ao humor dos caprichos, das refrações e dos vínculos de uma memória singular, que Steinberg faz passar diante do leitor todo o seu século xx, da infância na Romênia ao sucesso em Nova York, da Itália fascista aos Estados Unidos do pós-guerra, com direito a um desfile de personagens registrados à mão livre: tios pintores, camponesas italianas, judeus deportados, cozinheiros chineses, artistas de todo credo e, sobretudo, o irrepetível Saul Steinberg.
isbn 978-85-86707-66-7
9 788586 707667