Ruth Cardoso – obra reunida

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ruth cardoso obra reunida



ruth cardoso obra reunida



ruth cardoso obra reunida Organização Teresa Pires do Rio Caldeira


Copyright © 2011 Mameluco Edições e Produções Culturais Ltda. edição Isabella Marcatti preparação Maria Alice Sampaio de Almeida Ribeiro elaboração das notas de rodapé Mônica Torres Cruvinel e Eustáquio Ornelas C. Júnior pesquisa Maria Silvia P. L. Gomes e Alexandre Ricardi revisão Carla Mello Moreira e Ricardo Jensen projeto gráfico, capa e editoração Mayumi Okuyama produção gráfica Jorge Bastos | Motivo equipe mameluco direção geral Jorge Caldeira administração Marina Pires do Rio Caldeira intranet Assahi Pereira Lima, Kelly Mendes, Maria Silvia P. L. Gomes e Alexandre Ricardi

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)  (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Ruth Cardoso : obra reunida / Teresa Pires do Rio Caldeira (org.). – 1. ed. – São Paulo : Mameluco, 2011 isbn 978-85-60432-07-3 1. Antropologia 2. Antropólogos – Brasil 3. Cardoso, Ruth, 1930-2008 i. Caldeira, Teresa Pires do Rio 11-09449 cdd-301 Índice para catálogo sistemático: 1. Antropologia 301

1ª edição - 2011 Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

Rua General Jardim, 633, conj. 52 – Vila Buarque 01223-011 – São Paulo, SP Telefone: (11) 3123-0110 / Fax: (11) 3123-0162 www.mameluco.com.br


sumário

Apresentação Teresa Pires do Rio Caldeira  8 Depoimento Eunice Ribeiro Durham  40

1

Migrantes japoneses: integração e mudança

2

O papel das associações juvenis na aculturação dos japoneses (1959) 53 O agricultor e o profissional liberal entre os japoneses no Brasil (1963) 80 Organização familial entre os japoneses de São Paulo (1963) 89

A aventura antropológica i – buscas

3

O ensino da antropologia no Brasil | com Eunice Ribeiro Durham (1961) 99 A investigação antropológica em áreas urbanas | com Eunice Ribeiro Durham (1973) 119 Subcultura: uma terminologia adequada? (1975) 127 Elaboração cultural e participação social nas populações de baixa renda | com Eunice Ribeiro Durham (1977) 133 Os “símbolos” e o “drama” na antropologia política (1978) 145

Favelas: através dos fragmentos

Favela: conformismo e invenção (1977) 159 Sociedade e poder: as representações dos favelados de São Paulo (1978) 170 “É de pequenino que se torce o pepino”: consanguinidade e educação em famílias faveladas ([1981], 1984) 185


4

A aventura antropológica ii – críticas

5

Notas para discussão (1979) 197 Cultura brasileira: uma noção ambígua ([1981], 1982) 203 Aventuras de antropólogos em campo ou como escapar das armadilhas do método (1986) 210

Movimentos sociais, Estado e democracia

6

Duas faces de uma experiência (1982) 225 Comunidade e movimentos sociais urbanos ([1982], 1985)  236 Movimentos sociais urbanos: balanço crítico (1983)  244 Brasil: a democracia vinda de baixo | com Céline Sachs (1986)  270 Movimentos sociais na América Latina (1987)  280 Isso é política? Dilemas da participação entre o moderno e o pós-moderno (1988)  301 Os movimentos populares no contexto da consolidação da democracia (1988)  310 Participação política e democracia (1990)  326 Ações coletivas e comunidades locais no Brasil ([1989], 1991)  339 A sociedade em movimento: novos atores dialogam com o Estado (1991)  346 A trajetória dos movimentos sociais ([1993], 1994)  351 Mudança sociocultural e participação política nos anos 80 (1995)  361 A cidadania em sociedades multiculturais ([1996], 1997)  370

Mulheres, direitos e democracia Partidos políticos e movimentos sociais (1979)  383 Refazendo os partidos (1980)  388 Homens e mulheres, as vítimas da violência (1981)  391 Esquerda repete velhos chavões | com Teresa Caldeira (1982)  394 Desarquivando o planejamento familiar (1983)  397


7

Planejamento familiar: novos tempos (1983)  400 As cozinhas comunitárias e a participação das mulheres (1985)  411 Prefácio a Perspectivas antropológicas da mulher, n. 4 (1985)  431 As mulheres e a democracia (1987)  436 Programa precisa ser democrático (1987)  454

Mídia e juventude

8

Sociedade civil e meios de comunicação no Brasil (1985)  461 A juventude e a mídia no Brasil | com Esther Império Hamburger (1994)  473 Estudantes universitários e o trabalho | com Helena Sampaio (1994)  485

Pobreza, políticas sociais e o terceiro setor Sustentabilidade, o desafio das políticas sociais no século xxi (2004) 521

anexos  Currículo acadêmico  537 Lista de orientandos  561 sobre as coautoras  564


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Apresentação

ruth corrêa leite cardoso: a intelectual e seu tempo Teresa Pires do Rio Caldeira


Ruth Corrêa Leite Cardoso foi uma intelectual que nunca considerava definitivo o que lhe era dado. Sempre procurava atalhos que lhe permitissem ver por outro ângulo, descobrir algo novo, mudar. Fazia isso de várias maneiras. De um lado, combinava pesquisas de campo concebidas para detectar processos de transformação da sociedade brasileira e uma elaboração teórica que dialogava com a produção acadêmica mais recente em nível inter­nacional. De outro, procurava espaços de intervenção pública — como o feminismo — que lhe permitissem influir em debates e tentar promover mudanças. Ao mesmo tempo, acreditava que o trabalho intelectual é uma produção coletiva e sempre envolvia um número significativo de colegas e colaboradores em sua prática de constante questionamento e reflexão. Ruth Cardoso foi uma grande professora e uma interlocutora brilhante. Uma parte substantiva de sua produção intelectual cristalizava-se no diálogo, na orientação de pesquisadores, nas longas reuniões de pesquisa. Escrevia pouco e era extremamente exigente com seus textos; com frequência optava por não os publicar. Sua produção escrita ficou dispersa em livros e revistas, muitos dos quais, esgotados há algum tempo. Suas intervenções como orientadora e interlocutora, literalmente uma produção oral, ficaram registradas apenas na memória e nas notas daqueles que tiveram o privilégio de trabalhar e dialogar com ela, ouvi-la dar aulas e debater. Este livro resgata sua produção acadêmica. Ele reúne, pela primeira vez, todos os artigos acadêmicos que Ruth publicou ao longo da vida e que constituem a maior parte de sua obra.1 Esta 1 Sua obra acadêmica é ainda composta por um livro, Estrutura familiar e mobilidade social: estudo dos japoneses no estado de São Paulo, originalmente sua tese de doutorado, um livro em coautoria, resenhas, entrevistas e comentários. A tese originalmente defendida na Universidade de São Paulo em 1972 foi publicada como livro em 1995, numa edição bilíngue em português e japonês, organização e tradução para o japonês de Masato Nimomiya, São Paulo: Primus, 1995. Ruth Cardoso publicou ainda um livro em coautoria


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Apresentação procura recuperar pelo menos parte de sua produção oral ao reconstituir suas práticas de pesquisa e debate. Este volume é organizado tanto cronologicamente quanto de acordo com os temas que a autora investigou. Cada tema está reunido numa parte que é contextualizada no decorrer desta Apresentação. Em conjunto, os textos se revelam como desdobramentos de uma mesma atitude moderna. Em cada um deles podemos encontrá-la criando um espaço de reflexão e interrogação do presente, um espaço para forçar limites, procurar alternativas. Esta Apresentação traça o perfil de Ruth Cardoso como intelectual que sempre manteve uma relação de crítica com o tempo presente. Além disso, ressalta alguns dos dilemas e caminhos que marcaram sua atuação como antropóloga e indica suas principais contribuições para as ciências sociais brasileiras. A leitura da obra reunida de Ruth Cardoso nos revela seu perfil intelectual, mas também a história da consolidação de uma antropologia moderna, rigorosa e comprometida com a investigação e interpretação dos processos de urbanização e democratização da sociedade brasileira na segunda metade do século xx.

A crítica do tempo presente Ruth foi uma intelectual de seu tempo e, acima de tudo, uma intelectual que sempre se relacionou criticamente com o tempo presente. Essa atitude é evidente em toda a sua produção acadêmica, mas não se restringe a ela. De fato, moldou sua intervenção nas muitas esferas em que ela deixou sua marca, do feminismo às relações com os amigos e a família, do terceiro setor ao papel de primeira-dama, do trabalho de campo à sala de aula e à formulação de políticas públicas. Mas o que significa se relacionar criticamente com o tempo presente? Michel Foucault é um dos autores que caracterizou essa atitude, que, para ele, identifica-se com a modernidade. No ensaio “O que é o Iluminismo?”,2 com Helena Sampaio: Bibliografia sobre a juventude. São Paulo: edusp, 1995. Este volume exclui os artigos que Ruth Cardoso publicou na condição de presidente do Conselho da Comunidade Solidária, bem como resenhas, comentários e entrevistas. Todas as suas publicações estão listadas no currículo reproduzido ao final deste volume. 2  foucault, Michel. Qu’est-ce que les Lumières?. In: Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994. v. iv, p. 679-688. Trabalhei com a versão americana do texto: foucault, Michel. What is


Foucault voltou a Kant e a Baudelaire para articular sua visão da modernidade: ela não é uma época, argumentou, mas uma atitude, “um modo de se relacionar com a realidade contemporânea”.3 Essa atitude tem dois aspectos principais. O primeiro é uma atenção ao tempo presente, o contínuo questionamento do contexto ao qual pertencemos, que nos molda, e em relação ao qual devemos nos situar.4 Repetindo Baudelaire, Foucault afirma: “Você não tem o direito de desprezar o presente”.5 Mas a modernidade é também, e crucialmente, “um modo de relação consigo mesmo”, o que Foucault chamou de “asceticismo indispensável”.6 “Ser moderno”, ele explica, “é não aceitar a si mesmo como se é no fluxo dos momentos que passam; é tomar a si mesmo como objeto de uma elaboração complexa e difícil […]. É sentir-se compelido a se inventar”.7 Assim, para Foucault, a atitude que define a modernidade é essa atitude crítica de constante interrogação sobre quem somos, como fomos constituídos como sujeitos e, simultaneamente, de trabalharmos nossos limites e tentarmos ir além deles, “um trabalho paciente que dá forma à impaciência da liberdade”.8 Ruth corporificou perfeitamente essa atitude moderna. Nas mais dife­ rentes situações, e em inúmeros de seus textos, podemos encontrá-la criando um espaço de reflexão e interrogação do presente, um espaço para forçar limites, procurar alternativas. Isso está muito claro em seu trabalho acadêmico e se manifesta no modo pelo qual Ruth formulou cada um de seus projetos de pesquisa. Mas, como mencionei acima, é visível também em sua militância, especialmente no feminismo, nas amizades e na família e em sua posição de Enlightenment?. In: rabinow, Paul (Ed.). The Foucault Reader. New York: Pantheon Books, 1984. p. 32-50. A edição americana desse texto é completa e anterior à publicação do texto integral em francês. Todas as citações contidas no texto referem-se à edição americana. As traduções são minhas. 3  foucault, 1984, p. 39. 4  Para uma caracterização de sua visão da filosofia moderna como a “problematização do presente”, ver foucault, Michel. The Art of Telling the Truth. In: kelly, Michael (Ed.). Critique and Power: Recasting the Foucault/Habermas Debate. Cambridge: mit Press, 1994. p. 139-148. 5  foucault, 1984, p. 40. 6 Ibid., p. 41. 7 Ibid., p. 41-42. 8 Ibid., p. 50.

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migrantes japoneses: integração e mudança



O papel das associações juvenis na aculturação dos japoneses1

I. Issei e nissei2 no Brasil A imigração japonesa em nosso país tem ainda uma curta história. Iniciada no começo deste século (1908), não chegou a ser interrompida, apesar de ter passado por períodos de forte baixa. Ao mesmo tempo que era estimulada pelo governo japonês, tinha de sujeitar-se a uma política descontínua do governo brasileiro, reflexo de opiniões divergentes sobre a capacidade de assimilação do imigrante amarelo. Exemplos dessas opiniões contraditórias encontramo-los em numerosos artigos de jornais e na Revista de Imigração e Colonização publicada pelo Conselho de Imigração e Colonização.3 1 Esta edição se baseou na versão publicada em Revista de Antropologia, São Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 101-122, 1959. Exatamente o mesmo texto foi também publicado como parte da Série Monografias, n. 1, do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, em 1959. Anteriormente, Ruth Cardoso havia publicado o projeto dessa pesquisa no Boletim da Sociedade Brasileira de Sociologia, Rio de Janeiro, n. 1, 1957. Posteriormente, o texto publicado nesse volume apareceu em saito, Hiroshi; maeyama, Takashi. Assimilação e integração dos japoneses no Brasil. Petrópolis: Vozes; São Paulo: edusp, 1973. p. 317-345. (Coleção Estudos Brasileiros, 4). Em 1959, Ruth Cardoso publicou outro artigo curto (cinco páginas) com o resumo das principais conclusões de sua pesquisa sobre as associações juvenis de japoneses. Nesse artigo, cujo conteúdo está reproduzido neste que publicamos no presente volume, a autora menciona explicitamente que o relatório final de sua pesquisa seria publicado na Revista de Antropologia. A referência ao breve artigo publicado previamente é a seguinte: Associações de “nissei” em São Paulo. Pesquisa e Planejamento, São Paulo, Centro Regional de Pesquisas Educacionais Prof. Queiroz Filho, v. 3, n. 3, p. 154-157, jun. 1959. (n. e.) 2  Visto que atualmente os termos “issei” e “nissei” já se encontram em dicionários da língua portuguesa, nesta edição, à diferença da original, optamos por grafá-los sem itálico nem aspas e também por adotar o “s” para o plural: “isseis” e “nisseis”. (n. e.) 3  Indicamos, a título de exemplo: oliveira, Antônio Xavier de. Três heróis da campanha


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Desse modo, estabelecido o critério das quotas de imigrantes de acordo com a porcentagem já entrada no país, o grupo japonês no Brasil nunca se tornou muito numeroso, apesar dos estímulos que existiam no Japão a favor da emigração. Segundo os dados do Censo de 19504, temos um total de 329.082 amarelos presentes em nossa população, e podemos aceitar esse número como representativo da situação da colônia japonesa em nosso país, uma vez que não houve outra imigração de povos mongoloides que ultrapassasse o limite de casos esporádicos e individuais. Isso se confirma pela análise da distribuição dessa população pelas unidades da Federação5; os estados que receberam imigrantes japoneses são os que têm grande número de amarelos, ao passo que nos outros o total é insignificante. Torna-se necessário lançar mão desse recurso por não dispormos de dados que permitam agrupar nacionalidades; e mesmo que existissem, não seriam satisfatórios para nossos fins, porque estamos interessados nos descendentes dos japoneses, que, tendo nacionalidade brasileira, não se isolam dos totais gerais dados para a população brasileira. Os quadros que se referem à cor são, pois, os que ainda nos podem ajudar a apresentar o problema. A distribuição do grupo de amarelos por sexo e idade (Quadro 2) indica uma lenta e contínua diminuição da população nos grupos de idade mais avançada. Isso significa que não há concentração em grupos de idade madura, em que o homem tende a imigrar, mostrando que a imigração japonesa foi fundamentalmente familial.

antinipônica no Brasil: Felix Pacheco, Artur Neiva e Miguel Couto. Revista de Imigração e Colonização, Conselho de Imigração e Colonização, Rio de Janeiro, ano 6, n. 2-3, 1945. 4 Censo Demográfico (1° de julho de 1950): Estados Unidos do Brasil — seleção dos principais dados. Rio de Janeiro: ibge, 1953. p. 5, Quadro 5. [Na Revista de Antropologia, 1959, a soma dos fatores no Quadro 1, reproduzido na página ao lado, por um provável erro de edição, não corresponde ao valor total apresentado, que, entretanto, está correto. (n. e.)] 5 Ibid., p. 26, Quadro 15.


quadro 1

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População amarela segundo sexo por unidades da Federação (1950) Unidades da Federação

homens

mulheres

Guaporé Acre Amazonas Rio Branco Pará Amapá Maranhão Piauí Ceará Rio Grande do Norte Paraíba Pernambuco Alagoas Fernando de Noronha Sergipe Bahia Minas Gerais Espírito Santo Rio de Janeiro Distrito Federal São Paulo Paraná Santa Catarina Rio Grande do Sul Mato Grosso Goiás Total

1 — 7 3 308 249 1 — 465 410 2 — 17 17 4 5 10 10 11 5 22 24 52 31 6 2 — — 1 3 99 57 1.226 1.031 21 3 1.364 1.120 700 332 145.099 131.752 20.546 18.598 26 25 276 219 1.976 1.673 633 530 172.978 156.104

A distribuição nesse grupo repete o movimento da distribuição total da população, isto é, não se trata de grupo formado principalmente por homens adultos. Podemos afirmar, e a história dos imigrantes o confirma, que os japoneses vieram ao Brasil com suas famílias para a agricultura; e se localizaram em algumas regiões, onde, por compra ou arrendamento de terrenos, se reuniram em núcleos de convivência, situação que, pelo relativo isolamento desses núcleos, facilitou a manutenção de certos padrões da cultura de origem.


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a aventura antropol贸gica i buscas



O ensino da antropologia no Brasil1 Eunice Ribeiro Durham e Ruth Corrêa Leite Cardoso

Introdução O ensino da antropologia, como o de qualquer disciplina, envolve sempre dois tipos de problemas: os de ordem didática, quer gerais, quer específicos à matéria, e os de organização dos cursos em termos da estrutura de ensino existente. Se os aspectos propriamente didáticos do ensino propõem questões gerais, que são as mesmas em todos os lugares, a organização do sistema escolar varia de país para país e apresenta problemas particulares de adequação do ensino a diferentes condições de atuação do professor. Para a compreensão dos problemas particulares do ensino da antropologia no Brasil é necessária, portanto, uma análise preliminar do nosso sistema educacional, tanto nos seus aspectos estruturais quanto nas suas condições de funcionamento.

Primeira parte Uma análise cuidadosa da situação brasileira encontra grandes dificuldades iniciais. Não possuímos dados precisos nem sequer sobre o número de estabelecimentos onde se leciona antropologia, e as indicações sobre programas, número de alunos, qualificação de professores etc. são extremamente incompletas. Os dados que utilizamos foram obtidos através de um levantamento de instituições de ensino superior no Brasil onde são ministrados cursos de antropologia. Aproveitamos basicamente as informações fornecidas pelo 1 O presente artigo foi baseado em um relatório apresentado à v Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em Belo Horizonte em junho de 1961. Foi originalmente publicado em Separata de: Revista de Antropologia. São Paulo: usp — Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, v. 9, n. 1-2, p. 91-107, jun./dez. 1961. (n. e.)


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Centro Latino-Americano de Pesquisas Sociais para 1958 e completamos alguns aspectos recorrendo ao Ministério da Educação, às publicações da capes relativas ao ensino superior e à cadeira de administração escolar da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Enviamos pedidos de informações a todos os estabelecimentos levantados, mas apenas 25 atenderam à nossa solicitação. Um número tão exíguo de respostas, evidentemente, pôde servir apenas para documentar a existência de alguns problemas mais gerais. A julgar pelos dados puramente quantitativos, o ensino da antropologia parece estar extremamente desenvolvido em nosso meio. Há pelo menos 54 estabelecimentos de ensino superior que lecionam a matéria. Esses dados são ainda mais significativos quando constatamos que, na Inglaterra, a unesco aponta apenas sete universidades nas quais se ensina antropologia, e, na França, apenas uma, além de quatro outros estabelecimentos de ensino superior.2 Embora os dados da unesco se refiram apenas ao ensino da antropologia cultural, o contraste não deixa de ser válido, desde que, tanto na Europa quanto no Brasil, a antropologia física e a antropologia cultural são, em geral, lecionadas nas mesmas instituições. O ensino da antropologia no Brasil encontra-se realmente numa posição paradoxal. A hipertrofia do número de estabelecimentos que ministram cursos da matéria não está relacionada nem a possibilidades reais de formação de especialistas (sequer em número suficiente para satisfazer as necessidades didáticas) nem a condições satisfatórias de realização de pesquisas e aplicação do conhecimento antropológico. Embora a grande maioria dos cursos de antropologia no Brasil não se destine a formar antropólogos, mas a completar a formação de especialistas em outros campos, eles deveriam, através de uma iniciação na matéria, despertar vocações para a especialização na disciplina, que poderia ser realizada nas instituições aparelhadas para este fim. Entretanto, dadas as condições de ensino e a própria estrutura universitária no Brasil, os cursos não produzem de fato os resultados que seriam possíveis e desejáveis. No ensino superior, a antropologia é lecionada tanto no nível básico como no de pós-graduação, e é parte integrante do currículo das faculdades 2  bie, Pierre de et al. Les Sciences sociales dans l’enseignement supérieur — Sociologie, Psychologie Sociale et Anthropologie Culturelle. Paris: unesco, 1954. p. 33.


de filosofia e das escolas de sociologia e política. Como disciplina subsidiária, em caráter de formação de cultura geral, pode ser ministrada também nas faculdades de higiene e nas escolas de administração de empresas. Como parte de cursos de formação de pesquisadores, geralmente em nível pós-graduado, é ensinada em diversas instituições de pesquisa, quer em cursos regulares, quer em cursos especiais e esporádicos. Fora do ensino universitário, é ainda, às vezes, ensinada em cursos de extensão cultural. Examinaremos, separadamente, o ensino no nível superior básico e a formação de especialistas em nível de pós-graduação.

cursos em nível de graduação  No nível do ensino superior básico, cabe às faculdades de filosofia a grande maioria dos cursos de antropologia ministrados no Brasil, e, portanto, as particularidades desse ensino prendem-se diretamente às características dessas instituições. Dessa vinculação decorrem duas ordens de fatores: os que derivam das condições de funcionamento das faculdades e os relacionados com a própria estrutura dos cursos. Nos últimos dez anos tem havido uma verdadeira proliferação de faculdades de filosofia. No período entre 1949 e 1957, seu número passa de 22 estabelecimentos para um total de 52.3 Contando a maioria delas com recursos muito precários, limitam-se a instalar apenas aquelas seções que exigem um mínimo de aparelhamento e que, representando quase um curso de extensão cultural, podem atrair um número mais elevado de alunos: seções de letras, pedagogia, geografia, história e, às vezes, ciências sociais. Especialmente os cursos de letras, geografia e história são muito populares, porquanto, às vantagens apontadas acima, soma-se a facilidade de colocação no mercado de trabalho como professor secundário, em se tratando de matérias que são lecionadas em toda a extensão do curso médio. Dessa forma, é à exigência legal do ensino da antropologia nas seções de geografia e história que se deve o grande aumento do número de cursos de antropologia no Brasil. Em grande parte dessas instituições, a falta de recursos, a remuneração inadequada do corpo docente e o isolamento dos centros universitários, que 3  boletim informativo da campanha nacional de aperfeiçoamento do pessoal de nível superior. [S.l.], n. 14, jan. 1951; capes. Estabelecimentos de Ensino Superior. Rio de Janeiro, 1958. (Série Informativa).

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de pais com pós-graduação, o percentual de estudantes trabalhadores cai para 29,3%. No caso de filhos de mães com formação superior, 35,5% trabalham; com pós-graduação, 36,9%. Em contrapartida, 89,1% dos estudantes com pais analfabetos ou semialfabetizados trabalham; no caso das mães nessa condição, os estudantes que trabalham representam 84,7%. Nos graus de instrução “primário”, “ginásio” e “colegial”19, tanto para os pais como para as mães, os percentuais de estudantes trabalhadores ficam em tomo de 75%, 60% e 50%, respectivamente. O baixo percentual de estudantes que trabalham entre os filhos de pais (mãe e pai) com formação de nível superior ou pós-graduação — o que não necessariamente corresponde às faixas de renda mais altas — parece sugerir uma supervalorização, por parte desses pais, de uma formação universitária, em que se considera a graduação como insuficiente para a vida profissional. Embora essa correlação tenha se verificado somente nos casos de pais com formação universitária e pós-universitária, e não em termos de uma vinculação de classes, vários estudos têm enfatizado que o investimento no estudo do filho é uma estratégia recorrente nas classes médias. Segundo Rabello, o jovem que não trabalha estaria, na realidade, retardando o acesso a essa autonomia, e isso ocorre, muitas vezes, com o estímulo de seus próprios pais. Essa situação [o prolongamento da situação de dependência do jovem] é agravada pelas alterações da estrutura familiar, onde os pais renunciam a muitos de seus papéis, principalmente o de orientação para a vida. Muitos pais, não aceitando a ideia de trabalho para seus filhos, sacrificam-se para mantê-los como bons estudantes, havendo, especialmente nas camadas médias, um anseio e um esforço em prolongar a dependência afetiva e econômica dos filhos.20

Conforme também observou Schmidt em uma pesquisa recente realizada com jovens portugueses de diferentes camadas sociais: 19 De acordo com a ldb (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), promulgada em 20 de dezembro de 1996, atualmente a educação escolar compõe-se de educação básica, formada por educação infantil, ensino fundamental (que tem duração de nove anos e corresponde aos antigos primário e ginásio) e ensino médio (que corresponde ao antigo colegial e tem duração mínima de três anos), e educação superior. (n. e.) 20  rabello, 1973, p. 21.


Numa linguagem antropológica é uma espécie de “doação” em estudos. Trata-se, afinal, de uma forma de “herança” mais adaptada às novas formas de vida e que é capital cultural mas também econômico. As estratégias familiares das classes superiores e médias estabilizadas ou em processo de mobilidade social ascendente, visando a assegurar um futuro de independência dos filhos, passam pelo prolongar da situação de dependência dos jovens, em contrapartida de uma mais sólida formação.21 quadro 9

Instrução do pai e o trabalho do aluno 50 % 40 30 20 10 Não trabalham trabalham

0

Analfabeto Primário

Ginásio

Colegial Superior

Pós

quadro 10

Instrução da mãe e o trabalho do aluno

40 % 35 30 25 20 15 10 5

Não trabalham trabalham

0

Analfabeto Primário

Ginásio

Colegial Superior

Pós

21  schmidt, Luísa. Jovens, família, dinheiro e autonomia. Análise Social, Lisboa, v. xxv, p. 657, 1990. Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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anexos


Currículo acadêmico 1

Formação acadêmica 1972 Doutorado em ciências sociais (antropologia social), Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo (tese: Estrutura familiar e mobilidade social: estudo dos japoneses no estado de São Paulo) 1959 Mestrado em sociologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo (dissertação: O papel das associações juvenis na aculturação dos japoneses) 1952 Bacharelado e licenciatura em ciências sociais, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo

Cargos profissionais e especializações 2004 Professora visitante, Thomas J. Watson Jr. Institute for International Studies, Brown University Providence, Estados Unidos 2000 Professora visitante, Center for Latin American Studies, University of California, Berkeley, Estados Unidos 1989 Professora visitante, Departamento de Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciên­ cias Humanas, unicamp, Campinas, sp 1988 Pós-Doutorado, Columbia University e New York University, New York, Estados Unidos 1986 Professora associada emérita, Departamento de Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo 1986-95 Pesquisador sênior, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (cebrap), São Paulo 1984 Chercheur associé, Centre International de Recherches sur l’Environnement et le Développement (cired) et Centre d’Études des Mouvements Sociaux, École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França (junho) 1983 Professora visitante, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro

1 Elaborado por Danielle Ardaillon, curadora do acervo do Instituto Fernando Henrique Cardoso, que defendeu seu mestrado em ciência política, em 1989, sob orientação de Ruth Cardoso.


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1981 Professora visitante, Department of City and Regional Planning, University of California, Berkeley, Estados Unidos 1981 Professeur associé, Maison des Sciences de l’Homme, École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França 1975-78 Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Ciência Política, Faculdade de Filo­sofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo 1972-86 Professora associada, Departamento de Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo 1967 Professora de antropologia, Escola de Sociologia, Universidade Católica, Santiago, Chile 1966 Professora de antropologia estrutural, Escola de Sociologia, Universidade do Chile, Santiago, Chile 1965-66 Professora de Antropologia, Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais

– flacso/unesco, Santiago do Chile, Chile 1960-72 Professora assistente, Cadeira de Antropologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo (em licença entre 1965 e 1968) 1962-63 Seminário do professor Claude Lévi-Strauss, Antropologia Estrutural, École

Pratique des Hautes Études, Paris, França 1958-60 Pesquisadora, Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo (crpe, Universidade de São Paulo, São Paulo 1958-60 Assistente voluntária do professor Egon Schaden, Cadeira de Antropologia, Fa-

culdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo 1956-58 Professora, Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado – fecap, São Paulo 1955-57 Professora, Faculdade Municipal de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba, sp 1953-54 Técnica do Serviço de Pesquisas do Mercado de Trabalho, Secretaria do Trabalho,

Indústria e Comércio do Estado de São Paulo, sp 1952 Professora, Colégio Estadual Fernão Dias Paes, São Paulo

Projetos de pesquisa 1994 “O papel das ongs da região metropolitana de São Paulo na educação pré-escolar”. Cocoordenadora, Centro Brasi‑leiro de Análise e Planejamento (cebrap), São Paulo. 1992-94 “Juventude e modernidade: os jovens dos anos 90 – Segunda parte”. Coorde-

nadora, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (cebrap), São Paulo.


1992-93 “Etnografia dos aprendizes: jovens e universitários”. Coordenadora, Centro Brasi­leiro de Análise e Planejamento (cebrap), São Paulo. 1992 “O aluno trabalhador”. Coordenadora, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (cebrap), São Paulo, e Secretaria Estadual de Educação, São Paulo. 1991-92 “Juventude e modernidade: os jovens dos anos 90 – Primeira parte”. Coorde-

nadora, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (cebrap), São Paulo. 1990-92 “Os jovens dos anos 80: caminhos e descaminhos em busca do futuro”. Coor-

denadora, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (cebrap), São Paulo. 1990 “Estudos especiais sobre a década de 80”. Subprojeto: proposta de elaboração do livro Solidariedade e Institucionalização: os movimentos sociais e as agências públicas. Coordenadora, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (cebrap), São Paulo. 1989 “Políticas sociais: a relação entre as agências públicas e seus usuários”. Coordenadora, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (cebrap), São Paulo. 1 988-89 “Movimentos sociais: a busca de novos horizontes interpretativos – 2a Fase”.

Coordenadora, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (cebrap), São Paulo.

• “Políticas de promoção da participação popular: implantação dos Conselhos de Comunidade nos Centros de Saúde”. Coordenadora, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (cebrap), São Paulo, e Instituto de Saúde, Universidade de São Paulo.

1987 “Movimentos sociais: a busca de novos horizontes interpretativos – 1a Fase”. Coordenadora, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (cebrap), São Paulo.

• “Custos sociais e econômicos das políticas alimentares: mudanças nos comportamentos econômicos e familiares das mulheres da Grande São Paulo”. Cocoordenadora, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (cebrap), São Paulo, e Institut Français de Recherche Scientifique pour le Développement en Coopération (orstom), Paris, França.

1986-87 “Descentralização administrativa e política local de Saúde”. Coordenadora, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (cebrap), São Paulo, e Financiadora de Estudos e Projetos (finep), São Paulo. 1985-86 “Descentralização administrativa e política local”. Coordenadora, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (cebrap), São Paulo, e Fundação do Desenvolvimento Administrativo (fundap), São Paulo. 1985 “Cotidianidade, economia informal e consumo familiar: as mulheres como agentes de mudança”. Coordenadora, Centro de Estudos sobre Ação Comunitária (cedac), São Paulo.

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Ruth Cardoso dedicou quarenta anos de sua vida, entre 1954 e 1994, a uma tarefa intelectual de grandes proporções. Fez uma crítica às principais teorias de sua área de conheci­ mento, a antropologia, procurando extrair dela instrumental para uma aplicação incomum na época: o estudo da sociedade brasileira contemporânea. E empregou as descobertas numa série de pesquisas sobre favelas, atividade política na periferia, jovens, feminismo e mídia. Toda essa trajetória inovadora ganha unidade na inédita reunião dos textos desse período organizada por Teresa Pires do Rio Cal­deira, professora da Universidade da Califórnia, Berkeley. Com o precioso conjunto, é possível entender a revo­lução em políticas sociais implantada no Brasil a partir

isbn 978-85-60432-07-3

9 788560

432073


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