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UMA NOVA CARA

No mês em que se realiza o maior festival dedicado às indústrias criativas em Moçambique, o Maputo Fast Forward, a E&M olha para o estado das Artes no país. O que falta às várias formas de expressão, da literatura à pintura, passando pelas artes plásticas, o cinema, a música, o design e o digital para se constituirem como um sector produtivo (e lucrativo) para a economia nacional? E porque é que, afinal, lá por fora até já o são, porque em conjunto valem, hoje, 10% do PIB mundial

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de acordo com as nações unidas, o

conceito de economia ou indústria criativa é baseado nas “actividades do conhecimento e produção de bens tangíveis, intelectuais e artísticos, com conteúdo criativo e valor económico”. Algo como uma nova roupagem ao que, tradicionalmente se chamava Cultura, e que sempre foi o parente pobre da economia. Esta nova formulalção, já não assim tão nova, nasceu na metade dos anos de 1990, e foi inicialmente difundida pelo governo do Reino Unido, procurando encontrar uma resposta à necessidade de mudar os termos do debate sobre o valor real das artes e da cultura, e agregar a elas as novas fórmulas que então ganhavam terreno, como as múltiplas vertentes em que o design evoluía e os novos caminhos que se anteviam com a explosão da internet ‘à porta’ e a previsão de um suposto mundo digital virtual que viria a ser real, depois da viragem do século. Este conceito de indústria criativa concretiza então a visão mais ampla das artes convencionais, libertando-as da prisão dos subsídios a que muitas delas

8,5

BILIÕES DE DÓLARES A RECEITA GLOBAL DAS INDÚSTRIAS CRIATIVAS EM 2017, SENDO AINDA RESPONSÁVEIS POR EMPREGAR 144 MILHÕES DE PESSOAS EM TODO O MUNDO. SE FOSSEM UM PAÍS, SERIAM A TERCEIRA ECONOMIA DO MUNDO, SÓ ATRÁS DE ESTADOS UNIDOS E CHINA

foram votadas, por exemplo em países europeus, e agrupando-as de forma comercial, juntando sob um mesmo conceito expressões em que se juntam as mais tradicionais como o teatro, a música, o cinema, o artesanado ou a literatura, e as indústrias de serviços como a da publicidade e media, a produção e a comercialização de bens criativos, sem esquecer a arquitectura, o design (industrial, publicidade, moda) e a criação e desenvolvimento de meios digitais. O momento-chave de toda essa nova visão aconteceu com a produção do primeiro ‘Mapa das indústrias Criativas’, em 1998, decisivo por ter sido o primeiro exercício sistemático de medição das indústrias criativas em todo o mundo, projectado para colectar dados sobre essas indústrias. Descobriu-se então que, à época, elas eram responsáveis por um impacto brutal na economia, responsáveis pela criação de um milhão de postos de trabalho e contribuindo com 4% PIB da Grã-Bretanha, representando uma receita anual de 10 mil milhões de dólares em exportações. Hoje, esse valor multiplicou-se várias ve-

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zes e as várias indústrias criativas já representam quase 12% do PIB britânico. Pouco tempo depois, a definição globalizou-se e o seu peso no mundo alastrou. Hoje, sabe-se que, avaliadas enquanto um todo, essas indústrias geram receitas globais de 8,5 biliões de dólares e empregam 144 milhões de pessoas. Ou seja, se fossem um país, valiam 10% do PIB global, e seriam a terceira economia no mundo, só ultrapassada pelos Estados Unidos e a China.

Ser, ou não ser (uma indústria) eis a questão Mas quanto valem, hoje, as indústrias criativas em Moçambique, e como se deverá potenciá-las enquanto sector produtivo e economicamente sustentável, em prol do desenvolvimento? Eis a questão de vários milhões de dólares. Em 2011, um relatório intitulado “Fortalecendo as Indústrias Criativas Para o Desenvolvimento em Moçambique”, que resultou do trabalho de um conjunto de agências das Nações Unidas, em colaboração com o Governo de Moçambique, tentou encontrar respostas através de um extenso diagnóstico da situação nacional. O resultado desta primeira abordagem no sentido de criar uma verdadeira indústria criativa no país, foi redigido sob a forma de uma série de medidas para começar a caminhar nessa direcção. A começar por “uma estratégia de comunicação para melhorar o entendimento sobre a importância das indústrias criativas em Moçambique”, em que o primeiro passo deveria passar por “apresentar e discutir as constatações e propostas colocadas no estudo com os responsáveis do Governo para permitir um diálogo de alto nível sobre as políticas a serem adoptadas. Esses eventos seriam participativos e envolveriam representantes de todos os sectores criativos e instituições relevantes, incluindo a comunicação social.” Depois, em relação à abertura de novos mercados, externos, o documento preconiza “a capacitação de profissionais das artes para trabalharem em rede no exterior, participar em feiras e formarem alianças estratégicas.” Por fim, a nível interno, propunha-se a “realização de festivais e grandes eventos que podem ser benéficos para o desenvolvimento dos sectores criativos, porque criar uma área de especialização num sector específico atrai pessoas, know-how e promove trocas e aprendizagem. Assim, devem ser encorajados projectos tais como o festivais de filmes, documentários e música de raízes moçambicanas”. No entanto, de 2011 até hoje, pouco terá mudado. O Plano Quinquenal do Governo de Moçambique (2015-2019) até definiu esta, como uma das prioridades para “a promoção do emprego e a melhoria da produtividade e da competitividade.” No sector da Cultura e do Turismo, tem sido referida uma “aposta que consiste no desenvolvimento das Indústrias Culturais e Criativas” e, nesse sentido encontra-se em fase de implementação a Política das Indústrias Culturais e Criativas, aprovada pela Resolução Nº 34/2016 de 12 de Dezembro. Mas, muitas das questões levantadas em 2011, mantém-se por resolver: Que mecanismos podem permitir a transformação da produção artística em fonte de geração de renda? E quais são os sectores mais dinâmicos e promisso-

Design: Piratas do Pau apostaram no design, transformando lixo em luxuosas peças de mobiliário artístico

Em 2011, um relatório intitulado “Fortalecendo as Indústrias Criativas para o Desenvolvimento em Moçambique”, que resultou do trabalho de um conjunto de agências das Nações Unidas, em colaboração com o Governo de Moçambique, tentou encontrar respostas, através de um extenso diagnóstico da situação nacional

res das Indústrias Culturais e Criativas em Moçambique? E quanto valem elas, agregadas, para a economia?

Casos de sucesso internacionais Não havendo respostas para estas questões, existem em Moçambique algumas soluções que contornam a lógica local de uma indústria que ainda não deu o passo que falta para se tornar global. Embora sejam casos isolados há, ainda assim, alguns (muito) bons exemplos que se enquadram no verdadeiro sentido de indústria criativa. Ao nível do design e da criatividade, por exemplo, Os Piratas do Pau, são uma marca gerida pelo casal Nelsa Guambe e Ab Oosterwaal. Ela é uma artista moçambicana, ele arquitecto e designer holandês. Os dois criaram a marca em 2010 e sempre a mantiveram fiel ao conceito original: a reciclagem. Ab já desenhava mobiliário na Holanda, mas como hobby, apenas para amigos. Foi desde que chegou a Moçambique, em 2009, que começou a desenvolver esta arte de criação com aquilo que muitos consideram lixo. “O material é que manda. Às vezes fazemos uma peça e só depois de concluída é que vemos para que servirá”. É o caso, por exemplo, de uma bomba de água onde foram fundidos pés compridos. Poderá ser um candeeiro, mas Ab acha que no final “até poderá ser um vaso.” Experiências e criatividade são a base do trabalho deste casal. “Tendo em conta a minha formação, crio peças para ficarem bem em qualquer sala, sem criar ruído. E a Nelsa, como artista, gosta de cor e expressão. Por isso, penso que temos o equilíbrio necessário”, diz Ab. E realmente são peças mais do que utilitárias. São design e obras de arte. As peças dos Piratas do Pau, vendem-se hoje em mercados como a África do Sul, Alemanha e Angola. E pretendem expandir ainda mais, porque se o traço dos desenhos transformados em madeira é moçambicano, a qualidade é internacional. No entanto, há outros exemplos de figuras que ultrapassaram fronteiras com a sua criatividade e que poderiam facilmente ser rostos de uma nova indústria nacional. Como o do designer de moda Taibo Bacar que, cada vez mais, tem feito a sua carreira no estrangeiro e é hoje considerado um dos cinquenta mais influentes designers de moda em todo o mundo. Ou na música, com Stewart Sukuma ou Moreira Chonguiça, que elevam as suas carreiras além-fronteiras há já vários anos. Nas artes plásticas, Gonçalo Mabunda passará hoje, grande parte do seu tempo na Europa a expor os seus trabalhos. E até na área das TIC em que Frederico Silva dá cartas em Moçambique e Angola, coleccionando prémios de criativdade e inovação. Depois, há a literatura, onde Mia Couto se tornou um nome maior no universo da escrita nos países de língua oficial portuguesa. São apenas exemplos, é certo, e haverão muitos mais. Agora, imaginemos quanto valeriam todos em conjunto para a economia nacional?

A CULTURA NA TV PÚBLICA…

Número de horas dedicado a programas culturais na TVM tem diminuído desde 2013

Já nas privadas, passou de 297 horas em 2013, para 12 vezes mais em 2017

Em horas de emissão anual

cultural

música moçambicana 22

489

1 812 horas

Entretenimento é o que mais horas detém na TV Pública

Religião reúne maior fatia de horas de transmissão

Número de horas de música nacional em todas as rádios do país

… NAS PRIVADAS...

Em milhares de horas de emissão anual

cultural

música moçambicana 3,2

1,1

6 694 horas

… E NA RÁDIO

Horas de radiodifusão cultural estão a diminuir desde 2015. Neste sentido, a música nacional predomina

Em milhares de horas de emissão cultural anual

7

6 6,1 6,2 6,3

5,7

5 5,1

2013 2014 2015 2016 2017

26 766

FONTE INE Vontade de mudança Se, nos media, o número de horas para programas culturais tem aumentado sobremaneira, a música nacional continua a ser a principal forma de cultura divulgada pelos media nacionais, principalmente nas emissoras privadas. O que denota uma tendência, pelo menos ao nível do consumo. Falta, no entanto, o enquadramento macro de toda esta lógica. Recentemente, numa intervenção pública, o Presidente Filipe Nyusi falava “da aposta do Governo para com o sector das indústrias culturais e criativas, e na necessidade de incrementar o seu desenvolvimento sustentável e abrangente, sem esquecer as oportunidades para a geração de emprego e de renda”. Durante o Fórum sobre as Indústrias Culturais e Criativas, realizado no final do ano passado, o Presidente desafiava mesmo os intervenientes culturais “a serem mais proactivos, impondo-se na sociedade, ao invés de lamentações, empenharem-se na busca de soluções para os desafios que o sector enfrenta”, e apelava a “todos segmentos da sociedade para contribuírem com ideias para a harmonização da cultura e do turismo”. E realçava, “a necessidade identificar mecanismos que permitam a transformação da produção artística, em ferramentas de geração de riqueza e redução das desigualdades sociais e com amplo envolvimento da juventude e da mulher.” Mas, os desafios, são vários. E as ideias, também. E passam pela coordenação dos sectores intervenientes, tendo-se falado recentemente da criação de uma instituição responsável pela dinamização das indústrias culturais e criativas com um formato similar ao da Confederação das Associações Económicas (CTA), por forma a assegurar o incremento e desenvolvimento das actividades do sector; ou na implementação de uma Política das Indústrias

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Malangatana: um nome maior da cultura nacional, neste caso a ilustrar um Fiat 500, como se fosse uma das suas telas

Culturais e Criativas, no mapeamento da indústria, culminando na defesa da propriedade intelectual e no aproveitamento dos recursos providenciados pelo Fundo Internacional para a Diversidade Cultural. Não deixando de garantir a diversificação das fontes de financiamento em prol do desenvolvimento das indústrias culturais e criativas nacionais. Se pouco ou nada se evoluiu ao longo da década em qualquer destes aspectos, nos últimos meses tem existido um movimento para mudar o estado de coisas. “Só existirá uma verdadeira Indústria quando houver uma intervenção conjugada e coerente em múltiplas frentes, do ensino à formação de públicos, passando pela criação de infra-estruturas adequadas, incentivos à actividade cultural, capacidade de articular políticas públicas com os agentes privados. Já fizemos um primeiro exercício através de um workshop que juntou vários intervenientes do sector cultural. Foi muito interessante, sobretudo pela metodologia utilizada. Porque se o objectivo, a prazo, é criar uma plataforma, então o primeiro passo terá de passar por testar a capacidade de existir um trabalho colaborativo entre nós. Da parte da União Europeia existe uma disponibilidade, de princípio, em apoiar uma plataforma deste tipo mas isso só irá acontecer se conseguirmos demonstrar que temos, em termos de colectivo, capacidade para a estruturar e levar por diante de uma forma consistente”, diz Pablo Ribeiro, director da Fundação Fernando Leite Couto (ver entrevista completa nas páginas seguintes). O ministro da Cultura, Silva Dunduro, concorda, e até dá o exemplo de integração na cultura em outros sectores da economia: “no contexto contemporâneo das artes e cultura, 37% do que acontece no turismo resulta da cultura. O casamento entre esta e o turismo é uma das apostas mais perfeitas que aconteceu no nosso país” diz. A esse respeito, por exemplo, com o novo Porto de Maputo, uma nova zona franca para cruzeiros projectada para a capital, o Governo ancorou o projecto com uma forte componente cultural e segundo Dunduro, ele inclui “a implantação de empreendimentos culturais destinados a turistas, uma galeria de

MUSEUS TÊM VINDO A PERDER VISITANTES

Cerca de 20% do total de visitantes de museus são estrangeiros

Em milhares de visitantes

2016 2017 85,1 60,5

24 400

Museu de História Natural é o mais visitado do país

FONTE INE

arte e um clube para sessões de jazz e várias outras expressões culturais.”

A Inovação e o financiamento. E vice-versa A ‘cavalgada’ da inovação tecnológica nas redes sociais, na inteligência artificial, no crowdfunding e em outros modelos de negócios, tem levado os líderes criativos e culturais a buscarem soluções para a criação de empregos e de riqueza, por forma a “construir sociedades em que valha a pena viver – sociedades vibrantes, expressivas e felizes”, diz Marina Gorbis, directora executiva do Instituto para o Futuro (IFTF), um think tank sem fins lucrativos com sede em Palo Alto, Califórnia, EUA. E assim é. Grande parte do crescimento nas indústrias criativas provém hoje das ‘createch’ em que a tecnologia é usada para (re)habilitar a criatividade. Voltando ao Reino Unido, a categoria de TI, software e serviços informáticos cresceu 11,4 % em 2017, e há grandes expectativas em campos emergentes como tecnologia virtual, a realidade

DERICO SILVA FR E

“Resolvemos expandir além-fronteiras os serviços da UX, tentando com isso alcançar mercados de maior dimensão que nos permitam continuar com a nossa missão social, aqui em Moçambique”, assume o fundador da tecnológica

aumentada e a inteligência artificial. Comentando estes dados, a Secretária de Estado para a área Digital, Cultura, e Meios de Comunicação, Karen Bradley, dizia aos media britânicos que “as indústrias criativas desempenham um papel essencial na forma como somos vistos em todo o mundo, mas também são uma parte vital da economia “. E, percebendo esse papel, o governo até anunciou estar a negociar um acordo para fornecer suporte adicional em áreas como infra-estrutura, agrupamento e acesso ao financiamento, e o orçamento do Reino Unido incluiu mais de 500 milhões de libras em investimento em tecnologias, incluindo inteligência artificial (IA), 5G e banda larga de fibra total. Em Moçambique, o cenário é diferente. Os dados estatísticos agregados sobre o valor do sector são inexistentes, apesar das boas intenções anunciadas. Frederico Silva, um dos rostos mais associados ao empreendedorismo digital fala “de dificuldades várias, quando se quer empreender, especialmente nos meios

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Q&A: “SECTOR TEM DE FUNCIONAR POR SI SÓ”

Pintor e académico, Silva Dunduro, Ministro da Cultura e Turismo, traça à E&M um retrato do estado das artes em Moçambique.

Como é que alguém dedicado às artes chega à política? Todos nós podemos dar o nosso contributo ao país. Eu sou artista plástico, estou ligado à vida académica, sou dos poucos com formação especifica na área da cultura e quando me foi endereçado o convite para dar o meu contributo ao país, aceitei porque achei que poderia contribuir para a visão do desenvolvimento no contexto contemporâneo das artes e cultura, e 37% do que acontece no turismo resulta da cultura. O casamento entre a cultura e o turismo é uma das apostas mais perfeitas que aconteceu no nosso país, nos últimos anos.

Como vê a cultura hoje no país? A nossa visão como governantes é a de que a cultura tem de deixar de ser emocional e passar a ser vista também enquanto um bem comercial, para ter o seu contributo na redução das desigualdades sociais. Quando a associamos ao turismo temos a cultura a conseguir dar saltos muito bons em relação às manifestações culturais, o que se traduz em rendimento para as comunidades

Qual será o papel do Governo em toda esta evolução? Durante muito tempo o Governo foi visto como um Governo paternalista, com uma economia centralizada socialista, com repercussões também na área da cultura. Agora temos uma nova geração, com novos promotores como o Moreira Chonguiça ou o Stewart Sukuma e tantos outros. Há de facto uma nova lógica que diz que não é o Estado quem deve fazer tudo, mas sim cada um deve trabalhar o seu caminho. O Estado deve, sim, ser o órgão facilitador para promover as politicas públicas em conjunto com o sector privado. Estamos nesse caminho, mas sei que ainda teremos um longo caminho pela frente.

Ministério da Cultura: ‘casamento’ entre cultura e turismo é um dos objectivos do Executivo

digitais.” Por falta de infra-estrutura, de uma lógica combinada entre todos os intervenientes e de uma estratégia clara que aponte o caminho, especialmente num mercado com uma dimensão e limitações próprias, como o nacional. Motivos que o levaram, enquanto fundador da UX (uma tecnológica focada em desenvolver soluções digitais com papel transformador na sociedade) a apontar baterias para o exterior: “no nosso caso, resolvemos expandir além-fronteiras os serviços da UX, tentando com isso alcançar mercados de maior dimensão que nos permitam continuar com a nossa missão social aqui em Moçambique”, explica o jovem gestor. O financiamento, claro, desempenha em toda esta lógica um importante papel. Em 2015, o ministério da Cultura chegou a avançar com a ideia da criação de um Banco da Cultura essencialmente dedicado à concessão de crédito bonificado a artistas e agentes do espectáculo, destinado “a responder aos problemas financeiros da classe artística”, dizia, à época, o ministro Dunduro. Mas, anos depois, a ideia não se materializou. No entanto, a banca é, de resto, uma financiadora de longa data do meio artístico, em fórmulas que vão do mecenato, ao patrocínio. Mas essa tendência tem vindo a mudar, e a banca será, tendencialmente, um parceiro comercial desta indústria. Assim ela se torne lucrativa. Olhando para o continente africano, o Prémio Absa L’Atelier (um dos mais prestigiados concursos de artes visuais no continente africano, estabelecido na África do Sul há 33 anos, e em que participam 12 países, entre os quais Moçambique), ilustra “o comprometimento do Absa Group em levar a arte local a um público internacional, destacando-o e dando-lhe valor”, diz Paul Bayliss, curador de arte do museu Absa, que enaltece também “o investimento na criativa economia africana enquanto marca do espírito da africanicidade do Banco”, assinala. Em Moçambique, os principais bancos comerciais têm sido parceiros das artes e eventos culturais, bem como dos poucos festivais que se realizam, como o Azgo ou o Maputo Fast Forward, que se realiza em Outubro. Sendo hoje, a maior mostra da indústria criativa no país, no ano da sua consolidação o objectivo permanece: “ser uma plataforma dedicada à reflexão, ao debate, à criação de redes e parcerias num reconhecimento da criatividade e da inovação como motores da nova economia do conhecimento”. Uma boa razão para se perceber, qual é afinal o estado das Artes em Moçambique.

NA VOZ DE...

“NÃO EXISTE UMA INDÚSTRIA CULTURAL E CRIATIVA EM MOÇAMBIQUE”

PABLO RIBEIRO Director da Fundação Fernando Leite Couto

ao longo dos últimos anos, temos

assistido a uma série de iniciativas que têm tido como objectivo principal identificar o potencial do sector cultural e criativo, e definir as condições adequadas à sua estruturação no sentido de se constituir como um elemento activo no desenvolvimento do país. À E&M, Pablo Ribeiro, director da Fundação Leite Couto, lança um olhar sobre o que são hoje as indústrias criativas em Moçambique.

Tem havido algumas iniciativas para criar uma verdadeira indústria criativa. Como avalia a situação actual?

Antes do mais, gostaria de referir que mesmo antes do relatório da UN sobre este sector, já tinha havido outras iniciativas que, embora não abordassem de forma explícita a questão das indústrias culturais e criativas, tinham, de algum modo, um propósito semelhante em mente. Estou a lembrar-me, por exemplo, da UNESCO, que organizou uma série de encontros com o objectivo de debater a possibilidade de se criar uma plataforma que juntasse os fazedores de arte e cultura de todo o país. Ou dos enSERIA NECESSÁRIO QUE EXISTISSEM DETERMINADAS CONDIÇÕES DE BASE E ESTAS SÓ SÃO POSSÍVEIS DESDE QUE O SECTOR CULTURAL E CRIATIVO SEJA CONSIDERADO UM DESÍGNIO ESTRATÉGICO PARA O DESENVOLVIMENTO E, EM CONSEQUÊNCIA DESSE RECONHECIMENTO, HAJA A VONTADE POLÍTICA E CAPACIDADE DE INVESTIMENTO

contros que foram desenvolvidos, entre 2012 e 2015, através da Associação Kulungwana e que foram financiados pela Embaixada da Noruega. Durante esses encontros, realizaram-se quatro grandes seminários nas cidades de Maputo, Beira, Pemba e Tete, durante os quais cerca de 58 agentes culturais, do sector privado e do sector público, e várias estruturas ligadas às artes ou envolvidas na gestão e na produção artística se encontraram para trocar ideias e apresentar projectos. Durante esses encontros nasceu a ideia de se criar uma rede cultural moçambicana a qual não chegou a materializar-se devido a uma série de factores e de constrangimentos de vária ordem. Infelizmente, desde então, não houve nenhum progresso significativo nesta ideia de criar uma plataforma ou rede cultural.

Mas, segundo ouvimos dizer, há uma iniciativa em marcha que retoma essa ideia e na qual a Fundação está envolvida. É possível adiantar algo sobre isso? É um processo que está numa fase muito preliminar e não gostaria de me alongar sobre esse assunto. Quando

NA VOZ DE...

Festival Azgo: um dos poucos grandes festivais de música anuais que se realizam em Moçambique

“SERIA IMPORTANTE SABER COMO TEM SIDO A RELAÇÃO DOS FESTIVAIS COM OS ESPAÇOS URBANOS”

olhamos para as tentativas anteriores verificamos que se criaram sempre grandes expectativas e depois, por uma ou outra razão, as coisas acabaram por não se materializar. Daí que uma lição a extraír dessas esperiências anteriores é que uma iniciativa desse tipo, a vir eventualmente a tomar corpo, tem de ser construída a partir de uma abordagem e metodologia diferentes.

Como é que estão a trabalhar nesta nova iniciativa?

Sem entrar em grandes detalhes, o que posso adiantar é o seguinte: este processo teve origem numa parceria que se estabeleceu ao longo do ano passado entre a Fundação e a União Europeia (UE) no sentido de desenvolver um conjunto de actividades que se enquadrassem nos programas da União Europeia. Um desses programas da UE tem o foco nas Indústrias Culturais e Criativas. A ideia, de início, era criarmos um evento que envolvesse esse sector. No nosso entendimento, esse evento deveria juntar os diversos actores (festivais, instituições, etc.) e permitir a cada um apresentar o seu programa, as suas actividades e explicar como funcionam e estão estruturados em termos de recursos (financeiros, tecnológicos equipamento, infra-estruturas). Esse evento seria aberto ao público, especialmente jovem, no sentido de permitir uma partilha de conhecimentos e contribuir para a sua formação. Mas também tínhamos em mente que esse evento tivesse uma certa regularidade, isto é, fosse a base de um trabalho contínuo que se traduzisse em resultados duradouros com o objectivo de reforçar as capacidades dos recursos humanos, técnicos e financeiros do sector cultural. Mas para que este tipo de evento fosse consistente pareceu-nos também que teria de haver um trabalho prévio. Então, em conversa com alguns directores de festivais, responsáveis de organizações culturais e instituições de formação fomos definindo qual deveria ser o caminho que teríamos de fazer para concretizar essa ideia. E a primeira coisa que se tornou clara é que, se o objectivo fosse criar, a médio prazo, uma plataforma envolvendo os diferentes actores do sistema, então teríamos de perceber melhor como é que cada um está estruturado, como funciona a sua actividade.

Pode dar um exemplo?

Vejamos o caso dos festivais que, como sabe, existem hoje em número significativo. Se tivermos em mente a possiblidade de, numa eventual futura plataforma, puder haver, por exemplo, uma partilha de recursos, torna-se crítico perceber qual é a estrutura dos recursos humanos em cada um deles, de quantas pessoas é composta, quais são as tarefas destas pessoas, qual o ‘know how’ e as competências que elas têm, o seu nível de preparação; e ter também uma noção quer do peso e dimensão de outras estruturas, como equipamentos, maquinaria, computadores, quer dos serviços contratados, para se ter uma ideia precisa de todo o processo envolvido na realização de cada um desses festivais. Finalmente, seria importante saber como é, ou tem sido, a relação dos festivais com os espaços (sobretudo urbanos) onde operam e os respectivos públicos. A ideia, portanto, seria fazer um diagnóstico deste tipo com outras instituições culturais e só a partir daí começar a articular, de acordo com a avaliação feita, os passos seguintes.

E esse trabalho já começou a ser feito? Sim, já fizemos um primeiro exercício através de um workshop que juntou vários intervenientes do sector cultural. Foi muito interessante, sobretudo pela metodologia utilizada. Porque se o objectivo, a prazo, é criar uma plataforma, então o primeiro passo terá de passar por testar a capacidade de existir um trabalho colaborativo entre nós. Então, este workshop teve esse primeiro desígnio que foi o de avaliar como é que oito gestores de instituições culturais, oito gestores de festivais e três gestores de instituições de ensino (que foram os participantes deste primeiro workshop) se podiam juntar numa sala e trabalhar de forma colaborativa para desenvolver um objectivo em comum. A ideia foi avaliar como é que estes “actores”, que partilham, em princípio, um objectivo comum, iriam interagir, quais os elementos de “bloqueio” que iriam aparecer, identificar as diversas opiniões, as diferentes perspectivas e convergências que iriam surgir dentro deste grupo. Foram discutidos muitos tópicos (formação de públicos, reforço das infra-estruturas, o desenvolvimento do mercado de arte e cultura, possibilidade de uma partilha de recursos, etc.) mas creio que o fundamental foi este exercício colectivo no sentido de avaliar os factores de “bloqueio” ou de “facilitação” na relação entre todos e pensar, em conjunto, como ultrapassar as dificuldades identificadas

e potenciar as sinergias existentes. Este tipo de exercício – que irá continuar - foi também fundamental porque da parte da União Europeia existe uma disponibilidade, de princípio, em apoiar uma plataforma deste tipo mas isso só irá acontecer se conseguirmos demonstrar que temos, em termos de colectivo, capacidade para a estruturar e levar por diante de uma forma consistente.

Quando olhamos para as Indústrias Culturais e Criativas, de um modo geral, o que verificamos é que elas só existem quando há um conjunto de pressupostos e de condições de base que estão asseguradas. Acha que elas já existem hoje em Moçambique?

Não, de modo nenhum. Não podemos dizer que há uma Indústria Cultural e Criativa em Moçambique. Como refere, para isso seria necessário que existissem determinadas condições de base e estas só são possíveis desde que o sector cultural e criativo seja considerado um desígnio estratégico para o desenvolvimento e, em consequência desse reconhecimento, haja a vontade política e capacidade de investimento para ela se tornar efectiva. Só existirá uma verdadeira Indústria Cultural e Criativa quando houver uma intervenção conjugada e coerente em múltiplas frentes, do ensino à formação de públicos, passando pela criação de infra-estruturas adequadas, incentivos à actividade “NÃO VAI HAVER UMA INDÚSTRIA CULTURAL SEM INVESTIMENTO EM INFRA-ESTRUTURAS E EM RECURSOS TECNOLÓGICOS E HUMANOS. E SEM CONDIÇÕES PARA A EMERGÊNCIA DE UM ‘MERCADO CULTURAL’, A CIRCULAÇÃO DE PRODUTOS E SERVIÇOS CULTURAIS TAMBÉM NÃO VAI ACONTECER”

cultural, capacidade de articular políticas públicas com os agentes privados.

Isso significa que, como acontece na generalidade dos casos a nível internacional, o Estado tem um papel importante a desempenhar. Como vê, o papel do Ministério da Cultura neste contexto?

Têm havido, como já falámos, vários estudos e relatórios sobre o potencial das Indústrias Culturais em Moçambique. Em todos eles foi feito feito um diagnóstico e foram sugeridas medidas concretas, nomeadamente no que diz respeito ao papel do Estado. Parece-me, no entanto, que haveria, neste momento, necessidade de fazer um diagnóstico ao próprio Ministério da Cultura, ou seja, um diagnóstico aos serviços do Ministério, às Casas da Cultura, às Direcções Provinciais da Cultura, às Direcções Municipais da Cultura etc., no sentido de perceber melhor quais são, de facto, os recursos existentes e de que forma estão a ser utilizados. Existem grandes debilidades, por exemplo, ao nível da formação em todos essas estruturas e uma notória incapacidade de responder adequadamente às exigências do sector. Ora, é fundamental que esta estrutura pública possa acompanhar e apoiar de forma competente as actividades culturais. A sensação que se tem é a de que falta uma verdadeira “coluna vertebral”, uma visão, algo que ligue e articule todas as actividade culturais e torne claro onde se pretende chegar. E esta falta de visão tem, por seu turno, um tremendo impacto em inúmeros outros aspectos deste sector.

Por exemplo?

Um deles diz respeito ao entendimento do que é necessário para que exista um “mercado cultural”. O “mercado” que existe hoje não gera rendimento... Tanto ao nível da Lei do Mecenato como ao nível meramente “burocrático” - que diz respeito à obtenção e funcionamento de licenças, autorizações e outros documentos necessários para desenvolver as actividades culturais - há um trabalho urgente a fazer. Outro exemplo tem a ver com a necessidade de uma redução fiscal na importação de determinados tipos de materiais que não são produzidos em Moçambique e que são indispensáveis para inúmeras actividades culturais. Isto são coisas onde o Estado e o Ministério devem ter um papel. Por último, a questão as infra-estruturas: em todas as cidades e municípios existem cinemas, espaços culturais, casas da cultura, que precisam de ser recuperados. Não vai haver uma Indústria Cultural sem investimento em infra-estruturas e em recursos tecnológicos e humanos. E sem condições para a emergência de um “mercado cultural”, a circulação de produtos e serviços culturais também não vai acontecer e... não haverá, portanto, Indústria Cultural. É na criação destas condições de base que me parece que o Estado tem um papel a desempenhar.

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