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SocIedade
a nova geração de Master chefs africanos
O que as inovadoras (re)criações da cozinha africana podem fazer pela velha identidade do mais antigo dos continentes, eis a questão
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a chef moçambicana Marta Tembe es-
teve recentemente em Maputo onde foi responsável pelo jantar de gala do festival Maputo Fast Forward. Baseada em Paris (França), onde criou a sua própria empresa, “La Cuisine de Marta”, a jovem chef faz parte de uma geração de chefs africanos que está empenhada em explorar a riqueza da “herança gastronómica” do continente mas está, simultâneamente, empenhada em transpô-la para uma “linguagem culinária” contemporânea, o que significa combinar de forma criativa, tradição e modernidade. Nascida em Maputo, Marta Tembe deixou o país após ter completado o ensino secundário e acabou, depois de passagens por Portugal (onde estudou Relações Internacionais), e pelos Estados Unidos, por se fixar em França. Foi na capital francesa que a ideia de se dedicar à gastronomia surgiu. Estimulada por amigos, que apreciavam os seus dotes culinários, Marta Tembe decidiu tentar transformar esse seu talento numa carreira profissional: “Comecei a fazer uns contactos e uma das pessoas que conheci foi o antigo director-geral da Lagardère. Então, ele propôs-me fazer algumas refeições sempre que havia reuniões no escritório dele. Descobri, entretanto, um atelier de um chef de cozinha e fui lá pedir-lhe se ele me aceitava como estagiária sem remunaração. E ele aceitou. Ao mesmo tempo, decidi inscrever-me numa escola de cozinha, o CEPROC (Centre Européen des Professions Culinaires), onde fiz uma formação de um ano dividida entre a escola e estágios em restaurantes. Tentei sempre escolher restaurantes com uma boa referência em termos gastronómicos. Um deles foi o “Les Climats”, que obteve, em 2015, uma estrela do Guia Michelin. Outro foi o “L’Ami Jean”. Foi lá que conheci o chef Stéphane Jégo. Costumo dizer que devo ao chef Stépahne todo este saber fazer que agora possuo. É alguém muito exigente, mas que puxa por nós, nos ensina tudo, desde saber como cortar uma cabeça de porco a um peixe... ele partilhava todo o seu saber connosco. Foram seis meses duros, mas muito bons.”
Pratos com identidade Marta Tembe ainda fez um terceiro estágio no Reino Unido, voltou depois a Paris para finalizar a sua formação e, uma vez esta terminada, arranjou uma colocação no restaurante do Musée de l’Homme, um dos grandes espaços museológicos da capital francesa: “Foi uma experiência muito importante para mim porque me ajudou sobretudo a perceber melhor aquilo que eu verdadeiramente queria fazer. E o que eu queria fazer não era, claramente, o tipo de cozinha que se praticava no restaurante do museu. Por ser um espaço muito grande e com um elevado número de frequentadores muitas coisas já nos chegavam pré-acabadas, o que fazia com que se praticasse uma cozinha muito “industrial” e pouco criativa. Resolvi saír, ainda estive num pequeno restaurante - que adorei! – onde era responsável das entradas e das sobremesas, e onde aprendi também muitíssimo, mas tornou-se nessa altura claro para mim, que o próximo passo seria mesmo começar a trabalhar por conta própria. E foi assim que nasceu o projecto “La Cuisine de Marta”. Através deste projecto, Marta Tembe pôde começar então a dar expressão às suas próprias ideias culinárias e a desenvolver um genuíno conceito autoral. A empresa tem trabalhado para clientes particulares e empresas respondendo a diferentes tipos de solicitações: “Tanto pode ser dar um apoio pontual a um restaurante como organizar um grande evento, como foi o caso, uma vez, para o banco BNP Paribas ou trabalhar em cruzeiros”. Nas ementas que propõe aos clientes Mar-
sociedade
A cozinha da Marta. Nascida em Moçambique, é hoje, uma chef de sucesso em Paris
ta Tembe procura sempre promover um prato de raíz moçambicana: “pode ser simplesmente um prato que inclua algumas matérias-primas relacionadas com Moçambique como, por exemplo, a mandioca. Mas também faço matapa. Claro que as pessoas não sabem o que é, não conhecem a matapa, e por isso, quando a proponho ao cliente faço sempre antes uma degustação...e até agora nunca tive uma única decepção, isto é, as pessoas têm reagido sempre bem, gostam imenso. A matapa é, aliás, o que sai melhor... as pessoas ficam fascinadas com o sabor mas, acima de tudo, ficam surpreendidas quando lhes digo que é um prato típico de Moçambique, que é uma gastronomia que desconhecem em absoluto. Mas também uso muito a batata doce como acompanhamento. A batata doce está hoje na moda, mesmo em restaurantes com estrelas Michelin e, claro, também uso muito leite de coco...”. No entanto, como outros chefs africanos da sua geração que estão apostados em valorizar a “herança gastronómica” do continente, o objectivo de Marta Tembe não é fazer uma “cozinha africana” no sentido “tradicional” da expressão: “A minha ideia não é ter um restaurante de cozinha africana, o que eu quero fazer é, antes do mais, “a cozinha da Marta”, a minha cozinha, que no fundo é uma “cozinha do mundo” pois é o resultado de tudo aquilo que me influenciou até agora e de tudo aquilo que fui (e eu vou) aprendendo, com as viagens, com o conhecimento que fui e vou tendo de outras culturas, com os outros chefs com quem vou contactando... Por exemplo, espero poder voltar, em breve, a Moçambique para viajar mais pelo Norte do país e aprofundar o meu conhecimento sobre a cozinha típica da região. Mas depois, o que pretendo é criar algo que, partindo dela, ou seja, tomando-a como base, seja o resultado de como eu a “imagino”. E a forma como eu a imagino passa por transpô-la para uma linguagem culinária contemporânea que é, de algum modo, a “minha” linguagem.”
Uma nova geração à conquista do mundo Tal como Marta Tembe, a maior parte dos chefs da nova geração a trabalhar no continente ou em outros pontos do globo – e que têm vindo a ganhar notoriedade internacional - estão a operar, no essencial, e apesar das suas diferenças, no quadro de um paradigma semelhante: por um lado, a valorização do património cultural gastronómico de África passa, para este chefs, por “trazê-lo para o século XXI” através de uma apropriação descomplexada de todo o tipo de influências (das “técnicas” às “estéticas”) de modo a que, tal como aconteceu com outras “cozinhas “étnicas”, que entraram no mainstream da oferta culinária global, também a cozinha africana possa vir a ter esse reconhecimento e projecção; por outro lado, estes chefs compreenderam que, tal como actualmente em muitos outros sectores de actividade, é a dimensão autoral, resultante da capacidade de inovar, que faz a diferença e acrescenta valor aos projectos. Não surpreende, por isso, que os media internacionais estejam cada vez mais atentos a estes novos actores da cena gastronómica global e se interroguem, como a BBC fez recentemente, se a“próxima grande tendência” culinária contemporânea não virá de África. Por seu turno, a revista norte-americana de economia Forbes dava destaque, no passado mês de Junho, ao trajecto profissional do chef Dieuveil Malonga, originário da República Democrática do Congo. Dieuveil Malonga tem sido uma das faces mais visíveis (e mediáticas) desta nova geração de chefs africanos sobretudo por causa da plataforma digital que criou: a “Chefs in Africa”. Com mais de 4 mil chefs actualmente inscritos na plataforma, a “Chefs in Africa” tornou-se um espaço estratégico de interligação com todo o tipo de instituições (governamentais, empresariais, académicas, etc.) no sentido de ajudar os chefs africanos a desenvolver a sua formação profissional, incentivar projectos de empreendedorismo e dinamizar a sua internacionalização. Outras plataformas estão também activas. Por exemplo, a #AfroFoodTalk, baseada nos Estados Unidos, liderada pelo chef etíope Hiyaw Gebreyohannes, cujo restaurante “Gorsha” e a marca de produtos que lançou, “Taste of Ethiopia”, têm ganho especial notoriedade, é uma plataforma determinante para agregar a comunidade de chefs africanos a trabalhar no continente americano (com destque para o chef Morou, da Costa do Marfim, ou o chef Pierre Thiam, do Senegal), estruturar actividades empreendedoras e activar ligações e intercâmbios com o continente africano.
Para além destas plataformas, inúmeros festivais como o “We Eat Africa”, em Paris, iniciativas como o “African Food Art Tour” (um evento itinerante promovido pelo chef Loic Dablé e que, tendo arrancado no Benim, tem percorrido várias capitais europeias), ou inúmeros novos restaurantes, quer em África, como o “Zandoli”, no Congo Brazzaville, da chef Lorna Boboua do Sacramento, quer na Europa (como, para citar apenas um exemplo, o Blue Nile, em Londres, especializado em cozinha da Etiópia e da Eritreia) - todos têm contribuído para projectar a cozinha de África para um novo patamar de qualidade e reconhecimento verdadeiramente internacionais. Mas Moçambique, no entanto, ainda está um pouco afastado desta tendência. Mesmo, apesar de casos, como o de Marta Tembe, e do enorme potencial da gastronomia nacional que, no entanto, é pouco “valorizada” aquém e além fronteiras. A começar pela formação e a acabar na promoção internacional, há ainda um longo caminho a percorrer para colocar A #AfroFoodTalk, baseada nos EUA, liderada pelo chef etíope Hiyaw Gebreyohannes, cujo restaurante “Gorsha” e a marca de produtos que lançou “Taste of Ethiopia” têm ganho uma especial notoriedade, é uma plataforma determinante para agregar a comunidade de chefs africanos a trabalhar na América
o país no mapa global. Tal como está a acontecer em vários domínios culturais, nomeadamente nas artes ou na moda, existe hoje uma enorme curiosidade e apetência por tudo o que vem de África. “Penso que se houvessem condições para abrir um restaurante em Paris focado na cozinha moçambicana seria uma experiência que teria todas as hipóteses de ser bem sucedida porque devo dizer que, pela minha experiência existe um grande interesse por tudo o que é diferente. As pessoas gostam de experimentar coisas que não conhecem, diferentes, e Paris é uma cidade muito cosmoplita e aberta ao que é novo, inesperado... Infelizmente nós, moçambicanos, não promovemos muito a nossa gastronomia no exterior, o que é pena.” E que melhor forma de o fazer, do que servir os sabores da identidade nacional num só prato?
texto Rui TRindade fotografia Jay GaRRido