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Blockchain e criptomoedas

Blockchain e Criptomoedas: Inovação e Disrupção à Escala Global

Quase um século antes de Satoshi Nakamoto ter publicado, em 2008, o artigo que é considerado como o “momento fundador” para o desenvolvimento das actuais criptomoedas, Johann Silvio Gesell, um economista alemão, tinha já formulado a ideia de criação de “moedas alternativas” independentes

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TEXTO Rui Trindade • FOTOGRAFIA Istock Photo , D.R

Na perspectiva de Gesell, estas moedas locais permitiriam às comunidades desenvolverem a sua economia de forma mais rápida, sustentável e autónoma. Apesar de até John Maynard Keynes, na sua obra “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, se ter referido a Gesell como um “profeta imerecidamente negligenciado” e de, sobretudo após a Grande Depressão da década de 30 do século passado, terem surgido inúmeras “moedas locais” ou “comunitárias”, a ideia perdurou, como escreve Andreas Adriano, num texto publicado re-

Os registos incorruptíveis de trocas monetárias, de produtos ou de trabalho... têm permitido desenvolver projectos inovadores

centemente no website do FMI (Fundo Monetário Internacional), apenas como uma “curiosidade económica”. No entanto, como sublinha Andreas Adriano, um conjunto de factores e, em especial, o aparecimento da tecnologia blockchain e a massificação do uso dos telemóveis, permitiu que, especialmente ao longo da última década, as ideias de Gesell se materializassem através de centenas de projectos e iniciativas em todos os continentes, sendo que, na sua maioria, incorporam uma clara dimensão de “inovação social”. No Quénia, um projecto desenvolvido pela organização Grassroots Economics Foundation, criada pelo economista Will Ruddick, Shaila Agha e Caroline Dama, tem vindo a implantar a rede “Sarafu”. Esta rede, que neste momento já agrega 40 mil pessoas de 60 aldeias, permite, como explica Will Ruddick, “a um grupo alargado de agricultores juntarem-se, criarem a sua própria moeda e desenvolverem um sistema económico resiliente a partir da base (bottom-up)”. Usando tecnologia blockchain, a “Sarafu” registou, em 2020, 335 000 transacções, via telemóvel, num valor equivalente a cerca de 2, 5 milhões de dólares. Apoiando-se na experiência adquirida, a Grassroots está já também a apoiar o desenvolvimento de programas de “moedas in-

clusivas comunitárias” na África do Sul. Na Tailândia, um projecto envolvendo várias comunidades piscatórias, está a operar em modo similar. Quando chegam da sua faina diária, os pescadores registam, num aplicativo no telemóvel, as informações essenciais (quantidade de peixes capturados, local, hora etc.). O próprio peixe é embalado com uma etiqueta contendo todas essas informações. O pagamento é feito, entretanto, igualmente via telemóvel, através de uma criptomoeda – a Fishcoin – especificamente concebida para o projecto envolvendo essas comunidades. Se tiverem os meios necessários, os pescadores podem também negociar a Fishcoin

em mercados de criptomoedas online. Com origem na região da Catalunha, em Espanha, a FairCoop, um movimento que começou por juntar várias cooperativas locais e criou a sua própria criptomoeda, a FairCoin - a qual se tornou o meio de pagamento usado para bens e serviços entre os principais associados seguindo uma lógica “alternativa” na qual o valor atribuído à moeda é definido não pela forma tradicional determinada pelos “mercados” mas, colectivamente, pelos actores envolvidos no processo – levou entretanto à criação de um “Banco dos Comuns”para atender às necessidades FairCoin. Para além disso, foi criado um FairMarket online com bens e serviços denominados em FairCoins. Ao controlar essa criptomoeda, a FairCoop pode, deste modo, financiar iniciativas centradas em projectos que estão focados no “bem comum”. Entretanto, o modelo da FairCoop espalhou-se muito para além da sua região e deu lugar ao aparecimento da rede internacional Freedom Coop, que se propõe como um ecossistema alternativo e permite às cooperativas dispensar o uso do sistema bancário tradicional.

Quinn Slobodian, professor no Wellesley College, antecipava, num artigo, que o “sonho” de “moedas sem Estado” estava em vias de ruír

Activos digitais para o bem comum

Estas e outras iniciativas, apesar da sua diversidade, têm em comum o facto de terem entendido o enorme potencial da tecnologia blockchain cuja estrutura inerentemente descentralizada (peer-to-peer) oferece a capacidade de criar e manter registos incorruptíveis de trocas monetárias, de produtos ou de trabalho, entre muitas outras coisas, sem intermediários centralizados como bancos ou governos. Esta característica tem permitido desenvolver projectos inovadores, como é o caso da plataforma financeira digital dinamarquesa Hiveonline, a qual, através do uso da tecnologia blockchain, está a apoiar inúmeros projectos, nomeadamente em África e, inclusive, em Moçambique. No passado mês de Junho, a Hiveonline e a FSD Mozambique anunciaram uma parceria que vai permitir a associações e

cooperativas agrícolas acederem a financiamentos e outros tipos de apoios ajudando, deste modo, a desenvolver uma agricultura sustentável e, ao mesmo tempo, dotar as comunidades de maior resiliência e diminuir a sua vulnerabilidade. Na América Latina, multiplicam-se também os projectos disruptivos. Para citar apenas um caso, a start-up argentina Agrotoken acaba de lançar a Soya, a primeira criptomoeda com lastro em grãos de soja. O propósito aqui é claramente acelerar um processo de desintermedição no sector do agro-negócio. Neste modelo, o produtor deposita uma tonelada de soja, por exemplo, no armazém de uma das traders parceiras da Agrotoken. Quando esses grãos são armazenados, a trading gera um certificado que atesta a procedência e a localização da soja. Este certificado é levado à plataforma da Agrotoken, que faz a validação e emite o token (activo digital) para o produtor. A Agrotoken cobra uma taxa cada vez que o produtor “tokenizar” ou “destokenizar” a sua produção, revertendo assim o processo e “devolvendo” a moeda para retirar os grãos armazenados. Ele pode usar o token como forma de pagamento em insumos ou no financiamento, por exemplo, de uma nova máquina, desde que o vendedor aceite criptoactivos. Outra possibilidade é manter a moeda na sua carteira digital, esperando pela sua valorização, já que o valor do token está associado ao preço da saca de soja. Uma terceira opção, no futuro, será trocar o activo nas exchanges, como são chamadas as corretoras de criptoactivos. A pandemia veio, entretanto, impulsionar uma miríade de novas iniciativas em múltiplos sectores. No contexto das indústrias culturais e criativas (das mais atingidas, a nível global, pela paragem da actividade económica), plataformas como a Hic et Nunc (Brasil) e a Konjugate (Áustria) surgiram para, por via da tecnologia blockchain, apoiar a criação de novos modelos de financiamento das artes e da cultura e desenvolver um ecossitema alternativo ao tradicional “mercado da arte”. A súbita emergência dos NFT’s (non fungible token) veio criar novas oportunidades para os artistas. David Alabo, artista ganês, conseguiu que, em Março último, uma obra sua fosse adquirida por um coleccionador internacional através da galeria digital KnownOrigin.

O fim das moedas sem Estado?

Como sempre acontece quando uma tecnologia disruptiva surge abre-se um espaço no qual múltiplos (e quase inevitalmente divergentes) cenários e hipóteses de futuro se tornam possíveis. Se as iniciativas acima descritas se increvem no potencial que a tecnologia possui para inovar no sentido de promover o “bem comum”, a turbulência que se tem verificado, em meses recentes, sobretudo em torno da criptomoeda bitcoin, levou já a que Gary Gensler, da norte-americana SEC (Securities and Exchange Commission) viesse dizer que é imperativo e urgente acabar com o “faroeste” das criptomoedas e definir um quadro regulatório num mercado que considerou altamente “opaco e volátil”. Quinn Slobodian, professor no Wellesley College, num artigo escrito no jornal “The Guardian”, antecipava mesmo que o “sonho” de “moedas sem Estado”, capazes de se constituírem como uma alternativa ao domínio do sistema financeiro global, estava em vias de ruir. Resta saber se o impulso regulatório não irá, por tabela, liquidar os projectos que pretendem criar “ecossistemas comunitários” alternativos. De acordo com um relatório recente do Bank of International Settlements (BIS), 86% dos 60 Bancos Centrais analisados pelo BIS, e que estão a desenvolver projectos de moedas digitais, têm como base a tecnologia blockchain. Mas ao contrário das criptomoedas actuais, que usam a tecnologia para assegurar um modelo descentralizado e anónimo de funcionamento, estes projectos estão desenhados de forma centralizada. A somar à complexidade do momento que se vive é preciso ter em conta os factores geopolíticos tendo em atenção que a moeda digital que a China está a implementar, com largo avanço sobre o resto do mundo, se insere num quadro de afirmação global a múltiplos níveis.

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