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Os Contrastes de Várzea Alegre

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Romaria

Romaria

Dos versos do poeta à voz do rei do Baião

Várzea Alegre, município localizado no Cariri cearense, carrega em sua história uma diversidade cultural rica e importante. São poetas, escritores, compositores, cantores, músicos, artesãos, entre outros, que divulgam o nome da cidade Brasil afora com orgulho das suas raízes. E, diante dessa vastidão cultural, o compositor Zé Clementino escreveu a música “Contrastes de Várzea Alegre”, narrando os fatos curiosos da história oral da cidade que foram incorporados pelo povo. Assim, transformou em versos a cultura do município que, em decorrência do sucesso da canção, recebeu o título de Terra dos Contrastes.

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Texto: Aline Fiuza

Omunicípio de Várzea Alegre possui uma população estimada em 41.078 habitantes e uma área de 835,71 km². Segundo os relatos históricos, a cidade foi descoberta por exploradores que tinham como destino o Crato. No caminho, eles se depararam com a beleza de um vale verde contemplada com a cantoria dos passarinhos, e logo o batizaram de “Várzea Alegre”. De forma oficial, a cidade surgiu a partir da Lei Provincial nº 1.329, de 10 de outubro de 1870.

A cidade é reconhecida pelo seu valor religioso e cultural. Na religião, o santo padroeiro, São Raimundo Nonato, é o principal nome para os fiéis, que também são devotos de Nossa Senhora das Mercês, co-padroeira, e de Maria de Bil, santa popular municipal. A festa do padroeiro, realizada no mês de agosto, movimenta a economia local. No âmbito cultural, o destaque é para o carnaval e a Festa de Agosto - parte social das comemorações do padroeiro, que tem participação em média de 15 a 20 mil pessoas. Mas o município também apresenta grupos de quadrilha junina, produção de artesanato, danças folclóricas como bumba meu boi, banda cabaçal, maneiro pau, penitentes e vaquejadas.

Várzea Alegre recebeu inúmeros títulos ao longo da sua história, que formam a identidade local e do seu povo. É a “Terra de Papai Raimundo”, em virtude da doação do terreno para a construção da primeira capela ter sido feita por Raimun- do Bezerra Duarte, considerado o fundador da cidade e o principal ascendente da família varzealegrense. É a “Terra do Arroz”, por ter sido o primeiro produtor de arroz do estado do Ceará, em 1963. E é a “Terra dos Contrastes”, por ter marcado em sua história situações pitorescas, curiosas e peculiares, sendo esta uma das nomeações mais importantes para a cultura local.

Zé Clementino e sua composição

Os contrastes marcados na história de Várzea Alegre têm sido transmitidos ao longo dos anos através das gerações, principalmente pela oralidade, e ficaram conhecidos nacionalmente por meio de uma composição feita por um dos seus moradores e divulgada na voz de Luiz Gonzaga. José Clementino do Nascimento (1936-2005), conhecido como Zé Clementino, foi um poeta e compositor varzealegrense responsável pela escrita de diversas músicas, sendo um dos principais difusores da cultura local.

Ele foi responsável por escrever o Hino Oficial de Várzea Alegre, sua composição favorita. Entre músicas gravadas e inéditas, ele deixou mais de 200 composições. Algumas delas foram gravadas por artistas como Luiz Gonzaga, Sirano, Dominguinhos, Trio Nordestino, Diassis Martins, Messias Holanda, entre outros. A parceria com Luiz Gonzaga, entre os anos 60 e 80, renderam músicas de sucesso como “O jumento é nosso

Memórias Kariri

irmão”, “Sou do Banco”, “Sertão 70”, “Xeêm” e “Capim Novo” - que foi tema da novela da Rede Globo “Saramandaia”.

Mas, foi a música “Contrastes de Várzea Alegre”, cantada pelo rei do baião, que levou as histórias do município para todo o país. O contato de Zé Clementino com Luiz Gonzaga aconteceu na cidade de Crato, em 1965, quando o cantor encomendou uma letra sobre a moda da época dos homens com cabelos grandes. Assim, Zé Clementino entregou a letra da música “Xote dos Cabeludos”, que foi um grande sucesso, e aproveitou a oportunidade para também apresentar a letra de “Contrastes de Várzea Alegre”.

Em depoimento datado de 29 de junho de 2004, disponível na monografia “Os contrastes de Várzea Alegre: cultura e memória”, escrita por Isabel Alves de Morais, Zé Clementino explica sobre como foi o processo de composição da música que relata os causos da sua cidade natal.

– Eu, sendo um rapaz jovem, já tinha meus sonhos. Sonhos de composições, ficava ouvindo estas contradições interessantes da época e a gente ia arrumando os fatos e dando origem a ‘Contrastes de Várzea Alegre’. A curiosidade pelos contrastes surge na década de 50, quando essas divergências começam a se propagar titulando Várzea Alegre como terra dos contrastes, como: o padre era casado, o juiz era uma mulher, mas tinha também alguns contrastes que precisava a gente dar uma arrumadinha para enfeitar.

E acrescenta como apresentou a letra para o rei do baião:

– Para a gravação por Luiz Gonzaga, ele já havia encomendado a letra da música ‘Xote dos Cabeludos’. Como eu havia também composto ‘Contrastes de Várzea Alegre’, aproveitei a oportunidade do nosso encontro na cidade de Crato, no ano de 1965, e dei a letra para ele cantar, fazendo com que Várzea Alegre fosse propagada além das fronteiras.

O intuito de Zé Clementino com a letra de “Contrastes de Várzea Alegre” foi, certamente, homenagear sua terra e torná-la mais conhecida nacionalmente. E ele conquistou seu objetivo, pois a partir da gravação o município ficou conhecido pelo título da música. Apesar de alguns causos terem um tom de humor, os varzealegrenses nunca se sentiram ofendidos, mas, sim, orgulhosos da sua cultura ser composta por histórias peculiares e únicas.

Desvendando os contrastes

Os contrastes de Várzea Alegre demonstram a cultura e a história de um povo simples e criativo. A própria população propagava os contrastes, com os jornais e as rádios divulgando as histórias e até mesmo criando novas situações engraçadas. Os habitantes de Várzea Alegre incorporaram o nome da cidade ao seu modo de vida e passaram a contar com alegria os causos que envolvem as comunidades ou cidadãos distintos do lugar.

Assim, eles se tornaram uma das nuances da cultura e da identidade dos varzealegrenses, que mantêm preservadas a história, a tradição e os costumes do povo. A música foi um marco na divulgação das riquezas culturais do município, com a letra destacando as singularidades da pequena cidade do interior, inspirado por temas tão pitorescos, revestidos de simbologia e mistério, que despertam a curiosidade popular e o interesse de todos aqueles que se deparam com tanta irreverência e sabedoria.

Zé Clementino explicou a origem e o significado dos contrastes relatados na canção em uma entrevista realizada pela sua sobrinha, Ana Emília, em 2004. “Os contrastes destacam os pontos pitorescos, as coisas engraçadas, enfim, o lado folclórico de Várzea Alegre. Os varzealegrenses fingem-se de matutos, mas na realidade são superinteligentes e criativos, além de alegres e extremamente expansivos. É esse o varzeale- grense ao qual eu me refiro na música Contrastes de Várzea Alegre”, relata. Ele ainda conta que Luiz Gonzaga alterou palavras que fugiam do contexto a fim de tornar o assunto mais atrativo e bizarro.

A entrevista está registrada no livro “Zé Clementino: O ‘matuto’ que devolveu o trono ao Rei”, de Jurani Clementino. Professor, escritor e jornalista, Jurani destaca a importância de Zé Clementino para a cultura varzealegrense: “Essa música foi responsável por tornar a cidade de Várzea Alegre nacionalmente conhecida. As pessoas da região já sabiam da existência dos contrastes.

Mas, depois que Gonzaga gravou a música, isso tomou outra dimensão. E ele foi julgado por isso. Por tornar a cidade conhecida por causos negativos. Se você perceber, anos depois, o próprio Zé faz uma espécie de pedido de desculpas, na letra do hino de Várzea Alegre em que diz ‘seus contrastes banais’. Foi uma forma dele dizer que não fez aquilo por mal”.

A curiosidade pelos contrastes surge na década de 50, quando essas divergências começam a se propagar titulando Várzea Alegre como terra dos contrastes

Identidade e tradição

Na cidade, as homenagens para o compositor são muitas. Foi construída uma praça que recebeu o nome “Praça Compositor Zé Clementino”, onde contém o busto com a imagem do artista; há uma rua com o seu nome, situada em frente ao Mercado Público Municipal; e o portal de saída da cidade pela BR-230, em direção ao Cariri, faz uma referência ao compositor, com a mensagem “Várzea Alegre, Terra do compositor Zé Clementino”.

O título de Terra dos Contrastes trouxe notoriedade e identidade para Várzea Alegre e gerou diversas manifestações culturais no município. Assim, os contrastes deixaram de ser encarados apenas como histórias curiosas revestidas de humor para transformar-se em traço característico e marca identitária do povo varzealegrense.

A cultura, a história e a alegria dessa terra também contrastam com a luta e o sofrimento de um povo que nunca fugiu dos desafios. E, por mais que a várzea que inspirou os primeiros colonizadores e lhe deu o nome já não seja a mesma, pelas agressões e modificações decorrentes do progresso ao longo do tempo, a alegria vislumbrada pelos pioneiros permanece uma marca indelével na memória do povo e seus contrastes são uma das características do que é ser varzealegrense.

Para cada situação narrada na canção há uma explicação e, através da entrevista registrada no livro, os versos podem ser compreendidos. A seguir estão listadas as histórias por trás da letra da canção.

“Eu sou da terra que de Mastruz se faz café” - Na letra original, estava escrito “de manjerioba se faz café”. Manjerioba é uma semente que nascia no mato e que, de tão parecida com o grão do café, era utilizada para substituí-lo. Porém, a palavra manjerioba não se “encaixava” na melodia dos contrastes e, por isso, o autor alterou para mastruz.

“Zé Felipe afamado” - Zé Felipe era um caminhoneiro da cidade que, por viajar por vários estados e por seu carisma, se tornou conhecido entre os moradores e recebeu esse título de “afamado”.

“Onde o bode era marchante / E Jesus foi intimado” - “Bode marchante” se refere ao Sr. Raimundo Bodeiro, que trabalhava como marchante no mercado público da cidade. E “Jesus intimado” era Jesus Clemente, o único fotógrafo da época, que foi intimado pelo delegado da cidade por um motivo considerado fútil.

“Do sabido acabrunhado” - Esta era uma forma de referir-se às características da timidez, da discrição, do bom humor e da inteligência dos varzealegrenses, indicando sua facilidade de interpretar e contar histórias.

“Do calango carcereiro / Meu amigo eu sou da terra / Que o peru foi delegado” - Estes dois contrastes são decorrentes de apelidos relacionados às funções desempenhadas. Calango carcereiro faz referência ao Sr. Manuel Calango, que trabalhava como carcereiro na cadeia públi- ca do município; Peru delegado refere-se ao Sr. Vicente Peru, apelido de um delegado local.

“Onde o sobrado é nos oitão” - “O sobrado é nos oitão” é resultante do terreno acidentado em que foram edificadas as primeiras casas. Estas, para seu nivelamento, possuem ainda hoje uma fachada fronteiriça normal, enquanto a parte posterior é sempre no primeiro andar.

“Houve três anos de guerra / Não morreu um só cristão” - No ano de 1926 houve um conflito político em que foi travada uma batalha a mão armada. Há comentários de que houve tiros, mas sem o objetivo de atingir as pessoas, e, por isso, ninguém morreu.

“Onde o eleitor amigo pra votar não faz questão / Elegeram pra prefeito / Numa só semana / Quatro nobres cidadãos” - Este contraste refere-se a uma eleição ocorrida em 1958 que, após a apuração, foi declarada a vitória dos candidatos da 1ª chapa (Zé Carvalho e Zé Teixeira). Entre-

Em Várzea Alegre, foi construída uma praça que recebeu o nome “Praça Compositor Zé Clementino”, onde contém o busto com a imagem do artista tanto, em seguida, foi constatada fraude, com o desaparecimento de uma urna. Após uma semana, foi realizada uma nova votação, desta vez, apenas com os eleitores da urna desaparecida. O resultado da eleição foi diferente, com a vitória dos candidatos da 2ª chapa (Dr. Dário e Zé de Ginú), que ganharam legalmente e atuaram durante quatro anos.

“Meu amigo em minha terra / Já pegou fogo no gelo / Apagaram com carbureto / Foi o maior desmantelo” - O relato diz respeito a um incidente que aconteceu no bar do Sr. Mário Cassundé, em que uma geladeira, movida a querosene, incendiou de maneira repentina e, para apagar o fogo, a população presente no local utilizou um tamborete, que foi atirado debelando rapidamente o fogo. Luiz Gonzaga propôs a troca da palavra “tamborete” para “carbureto” no intuito de enfatizar a história.

“São Brás lá é São Raimundo / Se festeja com muito zelo” - São Raimundo Nonato foi escolhido como santo padroeiro da cidade, porém, os fiéis se confundiram e colocaram a imagem de São Brás no altar da primeira capela da cidade (atual Igreja Matriz). A imagem errada permaneceu no local por cerca de 20 anos, até que o Bispo da região, em uma de suas visitas, deu os devidos esclarecimentos.

“O prefeito completava idade / Era de quatro em quatro anos / E nunca penteou o cabelo” - Esse fato trata-se do prefeito Vicente Honório, que nasceu no dia 29 de fevereiro (ano bissexto) e, por isso, só fazia aniversário de quatro em quatro anos. O comentário sobre o cabelo despenteado era em referência ao seu cabelo cacheado.

“Que o padre era casado / Enviuvou duas vezes / E depois foi ordenado / Ainda hoje reza missa / Os filhos já estão criados” - Na época, o Sr. Otávio ingressou no seminário para se tornar padre, porém, desistiu e quando saiu acabou se casando e tendo filhos. Após alguns anos, sua esposa faleceu e ele casou-se novamente, enviuvando pela segunda vez e, assim, decidindo optar pela Igreja de vez. Para o seu retorno, ele explicou a situação ao Bispo, que autorizou. Ele se ordenou e tornou-se padre da Paróquia de Várzea Alegre até o fim de seus dias.

“O juiz era uma mulher” - A Dra. Auri Moura Costa foi a primeira mulher juíza do Brasil. O fato foi citado como contraste pela raridade na épo- ca de uma mulher exercer um cargo tradicionalmente ocupado por homens.

“Que o cruzeiro é isolado” - O cruzeiro da Igreja Matriz de Várzea permaneceu por um tempo isolado e não em frente à Igreja, onde deveria estar. Isso aconteceu pelo fato de o cemitério ter sido transferido para outro local, ficando o Cruzeiro como lembrança e permanecendo até hoje intacto.

Mapa Dos Constrastes

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