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Nas engrenagens do tempo
a história do Mestre Geraldo Ramos, o relojoeiro do Cariri
Uma oficina na Avenida Carlos Cruz, em Juazeiro do Norte, guarda o único mestre relojoeiro do Brasil. Com mais de 50 anos dedicados à arte dos relógios, Mestre Geraldo Ramos deu início ao ofício pela devoção ao Padre Cícero. Suas produções podem ser vistas em todo Brasil e constam até no Guinness Book.
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Texto: Guilherme Carvalho
Aos 83 anos, Mestre Geraldo Ramos mantém vivo em seu dia a dia o manejo e a arte dos relojoeiros. Natural de Juazeiro do Norte, é o único especialista em relógios de torre no Brasil. Referência no ramo há mais de 50 anos, Geraldo coleciona experiência, também, em sinos de igreja e colunas. Intitulado mestre em 2015 pela Secretaria de Cultura do Ceará, o juazeirense se diz orgulhoso de sua trajetória e contribuição no ofício dos relógios. Porém, não baixa o tom de voz e faz duras críticas à falta de reconhecimento na área.
Geraldo Ramos nasceu na Terra do Padre Cícero em 1938, mas ao completar 18 anos de idade, seguiu rumo à capital Fortaleza. Lá, ingressou na Força Aérea Brasileira (FAB) com planos de seguir carreira militar. Porém, tudo mudou no início da década de 60. Por motivos familiares, retornou ao interior do Ceará e dedicou-se ao ofício de relojoeiro. Aqui chegando, foi convidado pelo Padre Gino Moratelli, da ordem dos Salesianos, para restaurar a antiga fábrica do relojoeiro
Pelúsio Correia Macêdo, responsável pela coluna da hora na Praça Padre Cícero.
O pontapé para a labuta partiu a exemplo de seu pai, que mantinha uma oficina de ferragem no antigo Juazeiro. Entretanto, a imagem e influência do Padre Cícero foram fundamentais para sua especialização em relógios de torre. Segundo ele, seu retorno ao Cariri aconteceu pela sua fé ao Padre Cícero. Mestre Geraldo acredita piamente que recebeu um chamado espiritual do Padim. “Ele que me trouxe para cá, para fazer um relógio para ele”. A tal homenagem pode ser encontrada no relógio da torre da Igreja O Alto da Conceição, na cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Em dedicatória, o juazeirense escreveu: “Homenagem ao Padre Cícero Romão Batista, patriarca da fabricação de relógios e sinos em Juazeiro do Norte”.
Hoje em dia, o relojoeiro passa sua experiência e conhecimento para seus filhos, principalmente para Marcus Freire, que participou dessa entrevista ajudando a esclarecer a narrativa da
Mestre Geraldo
vida de seu pai. A oficina, localizada na Avenida Carlos Cruz, em frente à linha do trem, em Juazeiro do Norte, está temporariamente fechada por conta da pandemia da Covid-19. Marcus, inclusive, é o atual responsável, junto ao pai, pela manutenção da coluna da hora da Praça Padre Cícero, de autoria do Mestre Pelúsio, antecessor do Mestre Geraldo Ramos.
Foi por conta da pandemia, também, que a entrevista aconteceu por videochamada, para garantir a saúde de todos os envolvidos.
O senhor é o único mestre brasileiro na fabricação de relógios, colunas e sinos de igreja. Mais de 50 anos de atuação neste ramo, não é?
Mestre Geraldo: Exatamente. Quando só se fabricava relógio na Suíça, que é o berço do relógio, e lá em Nova Iorque, nós aqui fabricávamos há muito tempo. Então, nós somos pioneiros na América Latina na fabricação de sinos e principalmente de relógios de coluna e torre de igreja.
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Foto: Acervo pessoal
E como o senhor se aprofundou na prática dos relógios de torre?
Mestre Geraldo: Meu pai era ferreiro, e o ferreiro é como se fosse o ‘ABC’ da mecânica em geral. Tudo começava pelo ferreiro antigamente. O ferreiro era o elemento mais importante. Depois foi aparecendo as oficinas e essas coisas todas. Mas no começo de tudo mesmo, o mais importante era o ferreiro.
Então, foi o pai do senhor que o instruiu a começar a trabalhar com relógios?
Mestre Geraldo: Não, por incrível que pareça, meu pai era ferreiro e nós entramos na arte através dele. Mas essa arte apareceu assim: eu não sou beato, mas eu sou, como se dizª
Marcus Freire: Devoto.
Mestre Geraldo: Isso, devoto do Padre Cícero e eu mantenho o respeito por ele. Eu estava servindo na base aérea, eu queria ser aviador.
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Daí ele [Padre Cícero] me trouxe para cá, para fazer um relógio para ele, e até hoje eu continuo fazendo. Eu fiz uma homenagem, o relógio mais importante que eu tenho. Ele está hoje em Mossoró, na Igreja O Alto da Conceição. Daí eu coloquei assim: ‘Homenagem ao Padre Cícero Romão Batista, patriarca da fabricação de relógios e sinos em Juazeiro do Norte’.
Como foi que se deu a reativação da fábrica de relógios aqui de Juazeiro do Norte?
Mestre Geraldo: Rapaz, eu era menino velho, como se diz, e já era conhecido neste setor, meu pai era ferreiro e nós já tínhamos uma oficina. Daí, um dia o Padre Gino Moratelli chegou e disse: ‘É uma oficina tão bonita e lá tá tudo parado. Vá lá para a gente ver isso’. Daí eu disse: ‘Não, meu pai já tem uma oficina. Pra que isso?’. Mas ele pediu. Daí quando eu cheguei lá, que vi aquela coisa todinha, a oficina parada, deu pena. Daí nós fizemos um contrato. Quando eu estava lá, apareceu um padre lá de Mossoró, no Rio Grande do Norte, para comprar um relógio.
Aí, ele chegou e disse: ‘Rapaz, é aqui a fábrica de relógios de Juazeiro? Quem é que faz?’. ‘Sou eu’, respondi. Ele disse: ‘Já fez quantos?’. Eu disse: ‘Rapaz, já fiz alguns, não me lembro, mas já fiz alguns.’ Mentira! Nunca tinha feito, né? [risos]. Foi feito o contrato, fiz o primeiro relógio e ele está lá em Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde coloquei a dedicatória do Padre Cícero.
O senhor trabalhou também no relógio da Praça Padre Cícero?
Mestre Geraldo: Não, é de um antecessor chamado Pelúsio Correio de Macêdo. Eu era novo ainda e ele tava já nos últimos dias dele. Eu não tinha nem ideia que iria ficar sendo o substituto dele, mas graças a Deus, acho que o Padre Cícero me trouxe para cá. Eu tava na base aérea e queria mesmo era ser aviador. Mas o Padre Cícero me trouxe para cá e já fiz mais de 60 relógios. E agradeço muito a ele.
Marcus Freire: Quem fez esse relógio foi o Mestre Pelúsio. Meu pai assumiu a oficina dele depois que ele morreu. Quando ele faleceu, ficou desativado por um tempo, as coisas ficaram abandonadas, e os padres do Salesianos fizeram o convite para pai arrendar a oficina. No começo, ele ficou um pouco relutante porque ele já tinha a oficina do meu avô. Ele não precisava de outro espaço. Mas eles [padres salesianos] insistiram muito, daí meu pai foi lá e deu uma chance. Quando chegou lá, viu as coisas abandonadas, né? Daí ele pegou restos e outras peças de relógios, começou a estudar e começou a entender o mecanismo. Ele é como um sucessor espiritual
Mestre Geraldo
do Mestre Pelúsio. Ele pegou o conhecimento que ele deixou em relação ao espaço e começou a desenvolver.
Então grande parte disso tudo o senhor aprendeu sozinho, não é? Na prática.
Mestre Geraldo: Exatamente. Para o bom entendedor, meia palavra basta. Chama-se autodidata.
Quantos relógios o senhor fabricou?
Mestre Geraldo: Rapaz, na faixa de 60, que fiz só por minha conta depois que saí no Salesianos. Destes 60, quais são possíveis de ser encontrados na Região do Cariri?
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Mestre Geraldo: Aqui na região, eu tenho no Crato, aquele com seis mostradores, que é o primeiro do mundo com seis mostradores. Tá até no Guinness Book. É aquele da Igreja de São Francisco. Tem um em, se não me engano, Jardim. Por aqui, eu tenho bastante, não me recordo agora, mas tenho uns 3 ou 4 aqui na região do Cariri. Tenho um em Crateús, parece, e assim, sucessivamente.
Foi um orgulho
Mestre Geraldo: Mas é claro, rapaz! Quem é que não se orgulha de um título desse, né? Você saber que está representando sua terra e essa coisa toda, pra mim é um prazer e uma honra. Foi um reconhecimento que foi muito bem reconhecido, como se diz.
Marcus Freire: Era uma coisa que, inclusive, meu pai se questionava muito. Ele via que outros tipos de pessoas eram reconhecidas por muito menos, e pessoas que fazem um trabalho tão importante como o dele, que leva a história aqui da região para o Brasil e para o mundo, não tinha esse reconhecimento. Aí isso mudou tudo.
Onde fica a oficina do senhor?
Mestre Geraldo: Fica aqui bem distante da minha casa, meio quarteirão de distância daqui [risos]. Fica na Avenida Carlos Cruz, em Juazeiro.
Ela é aberta ao público?
ele [Padre Cícero] me trouxe para cá, para fazer um relógio para ele, e até hoje eu continuo fazendo
Como é que veio o reconhecimento de mestre pela Secretaria de Cultura do Ceará?
Mestre Geraldo: Rapaz, isso surgiu eventualmente, né? Lá na oficina saiu a conversa, no boca a boca, que a gente fabricava relógio. Daí o pessoal foi lá, me entrevistou e eu contei mais ou menos a história: como foi no começo e essa coisa toda.
Marcus Freire: Inclusive, quando ele recebeu esse título, o pessoal até disse que ele era um mestre peculiar comparado aos outros. Geralmente, os outros mestres trabalham mais com outros tipos de artesanato mais conhecidos, como por exemplo, manipular barro, ou couro, no caso do Espedito Seleiro. Ele já tem essa parte de produzir esse tipo de tecnologia que é tipo um artesão que tem também uma engenharia ali envolvida.
Mestre Geraldo: Agora, eu queria até fazer uma exigência para você. Quero que você procure divulgar isso aqui no Guinness Book para dizer que: Juazeiro, aqui no Ceará, foi a primeira cidade a fabricar relógio em todo Nordeste brasileiro. Antes, só se fabricavam relógios na Suíça e em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Então, nós somos os terceiros. E no Brasil, somos os primeiros, somos pioneiros. E o pessoal não sabe. É uma tristeza. Isso aí é obrigação da SECULT, eles deveriam fazer um apanhado do pessoal. Não é que eu queira ser importante, é por conta do pessoal que tem importância, mas fica aí à toa.
Então, apesar do termo de mestre, ainda falta reconhecimento?
Mestre Geraldo: Exatamente, nós somos reconhecidos mais lá fora do que na nossa terra natal, o que é uma tristeza. Isso era para ser matéria de escola: o relógio lá da Igreja de São Francisco, no Crato, está no Guinness Book, e foi feito no Juazeiro, mas não divulgam.
O senhor está com 83 anos e tem mais de 50 anos dedicados a essa arte. Hoje em dia, o senhor ainda trabalha?
Mestre Geraldo: Rapaz, assim, é como bicicleta. Bicicleta, se você parar, cai. Eu tenho que trabalhar. E eu gosto do trabalho, então tenho que trabalhar direito e de fato.
Mestre Geraldo: Por enquanto ela não tá aberta ao público por causa dessa pandemia, né? E aí, também, a gente mudou de local, estamos em um lugarzinho meio apertado. Mas, se precisar de alguém ver, vem aqui em casa e a gente vai lá e mostra tudo direitinho, explica como que é. Dá explicação de como funciona, as máquinas e essas coisas todas. Se não tiver relógio lá, mas instrumentos vai ter. A nossa intenção é essa.
E como é o dia a dia hoje na oficina? Quais as principais demandas que são recebidas?
Marcus Freire: Assim, atualmente ele está mais como um mestre mesmo. Ele hoje aconselha e ensina a mim e a meu irmão mais velho. Quem pega mais pesado hoje em dia somos nós mesmos. Ele está mais nesta função de professor.
Mestre Geraldo: Estou só assessorando [risos].
E como o senhor se sente em ver todo esse ensinamento sendo passado e eternizado para seus filhos?
Mestre Geraldo: Rapaz, eu me sinto, assim, orgulhoso por fazer parte deste setor e saber que eu já tenho seguidores. Quando eu partir lá para o outro lado, alguém vai ficar dando continuidade ao nosso trabalho, que é muito importante para a nossa cidade e nossa região, principalmente a cidade de Juazeiro do Norte, que deveria ser conhecida como a capital da fabricação de relógios. Isso era para fazer parte de livros didáticos do primário até a faculdade. Isso é a história da nossa terra!
Em sua avaliação, qual a importância de um relógio de torre para manter viva a memória de um povo,
Mestre Geraldo
como por exemplo, o relógio da coluna da hora na Praça Padre Cícero?
Mestre Geraldo: É o seguinte: você sabe qual o relógio mais importante do mundo hoje?
Não. Qual é?
Mestre Geraldo: É o Big Ben, em Londres. Ele é um relógio mecânico tal qual esses daqui, ele marca a hora mundial. Então para você ver: o relógio mais importante do mundo é igual a esse que nós temos aqui. Você vê o seguinte: o relógio de torre é tão importante, que você tem um compromisso às 10h, mas no seu dia a dia, você vai lá e esquece. Mas quando o relógio começa a bater, você vai lá e: ‘Eita rapaz, eu tenho aquele negócio’.
Hoje nós vivemos em tempos digitais, onde tudo é mostrado por um tela, até mesmo a hora. Eu, por exemplo, estou usando um relógio digital neste momento. O senhor acredita que essa digitalização de tudo tem algum impacto na arte dos relojoeiros?
Mestre Geraldo: Rapaz, é o seguinte, eu vou fazer uma comparação: é como o cabra ser casado com uma mulher bem bonita, mas ela bota ‘chifre’ nele que só a peste [risos]. O relógio mecânico eu acho que é mais importante que esse, porque ele é o precursor desses aí. Já aconteceu de um padre deixar de comprar um reló- gio nosso porque era arcaico, não sei o que, foi comprar outro e depois se arrependeu porque deu defeito o digital que ele comprou.
Nesta sua trajetória dedicada à arte dos relógios, o que o senhor mais se orgulha?
Mestre Geraldo: Rapaz, o que mais me orgulho é ter dado prosseguimento a arte que era do meu pai, que tudo começou com ele, ele era ferreiro. Então, o precursor foi meu pai neste negócio de mecânica. E hoje, os relógios que fiz tudim ainda funcionam, e tem muitos deles que eram eletrônicos, não sei o que, que já sumiram, acabaram. E também tá divulgando a nossa terra aqui, Juazeiro, do Ceará, do Padre Cícero, porque, falando de relógio em Juazeiro, vem o que logo à tona? O Padre Cícero, que foi realmente ele que incentivou essa fabricação de relógios. Aí o segundo mais importante é o Pelúsio Correia de Macêdo e acho que o terceiro sou eu, né?
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Se o senhor pudesse deixar uma mensagem de alerta ou um chamado para a arte de relógios, qual seria?
Mestre Geraldo: Mensagem para os meus filhos aqui, que, mesmo que eles não fossem sujar a mão de óleo como eu sujei, mas que eles dessem prosseguimento e não deixassem acabar esse negócio. Passar aqui para o meu filho e depois para os meus netos. Mesmo que ele não ficasse ali, à finco, mas que desse pelo menos uma continuidade.
Daqui a 100 anos, quando alguém lembrar do senhor, o que você deseja que fique de legado?
Mestre Geraldo: Eu quero que fique na memória do povo que foi, depois dos Salesianos, eu fui o cara que deu continuidade a fabricação de relógios aqui, que representa muito bem a nossa terra. Tô passando aqui para o meu filho, e possivelmente para algum neto que se interessar por isso, que é uma coisa histórica. Como eu tô dizendo, deveria ser inserido no jardim da infância até as universidades.
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