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A Professora de Tarrafas
Em uma Tarrafas iniciante, marcada pelo atraso, a estrela da educação brilhou em sua primeira revolução. Desde cedo sonhou com a docência, brincou tanto de ensinar, que acabou ensinando de verdade. Com uma pedagogia quase freireana, tom conciliador e compreensivo, Tarrafas teve sua professora preparando o distrito para ser emancipado. A cidade marcada pela educação, foi um distrito marcado por sua educadora.
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o sul do Ceará, na região do Cariri, mais especificamente em Assaré, havia um distrito que hoje é cidade. Nas casas que lá existiam, um jovem casal vivia os primeiros anos de seu casamento. Moacir e Maria eram primos, e passaram a morar na Boa Vista, a casa onde Maria passou a infância e haveria de morar até... enfim, não vou começar a contar esta história já antecipando coisas que só vão acontecer lá na frente, né?
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Bem, mas não é sobre esse casal que essa história se concentra, a Maria que citei, não é a mesma Maria que dá nome a este texto.
Moacir e Maria são muito importantes, isso é inegável a todas as fontes com quem conversei, também foram pessoas que ainda hoje são extremamente queridas.
Mas essa história não é sobre eles. Vamos falar sobre sua primogênita. O ano era 1942. Aos 45 do segundo tempo, quando o mês de agosto estava quase dando lugar para setembro chegar, nasce nossa estrela: Maria Luiza Leite.
Nossa personagem teve mais quatro irmãos: Zezito, Socorro, Jesus e Junior. Acho importante falar brevemente sobre esse quarteto.
Zezito, ou Pretinho, como era conhecido, tinha uma deficiência cognitiva, então nunca estudou. Mas tinha um talento ímpar para a música, e rapidamente aprendia a tocar os instrumentos que tinha acesso.
Socorro, ou Socorrinha, foi professora, e durante o ano de 1970 foi radialista esportiva na antiga rádio Araripe. A primeira radialista esportiva do interior do Ceará.
Jesus é um faz tudo, formado em Direito, Comunicação e Letras, é jornalista e historiador, também foi professor, vereador, vice-prefeito, secretário de cultura e um dos responsáveis pela emancipação de Tarrafas.
Junior, o caçula, formou-se em agronomia e matemática, foi professor, agrônomo e político, e contra a ordem da natureza, mas seguindo as reviravoltas da vida, partiu cedo.
Uma família quase toda composta de professores.
Não precisaria ter falado um pouco sobre cada um dos irmãos de Maria Luiza, mas na verdade, precisava sim. Convivi com quase todos da prole de Moacir e Maria, principalmente com Socorrinha, que foi o anjo que me acolheu. Inclusive são meus primos, assim como todas as pessoas que foram entrevistadas, todo mundo é parente em Tarrafas.
Enfim, por mais interessante que isso seja, e por mais linhas que possa render, voltemos à primogênita do quinteto.
Maria Luiza foi uma professora de Tarrafas, e talvez eu repita isso porque foi um sonho que ela cultivou desde criança, que realizou logo quando cresceu, e a realização deste sonho tornou possível inspirar outras pessoas a também sonharem.
Ter sonhado sempre em ser professora pode ter servido de inspiração aos seus outros irmãos. Por coincidência do destino, ao procurar a genealogia da família, Jesus descobriu que a família Leite, da qual fazem parte, é a que possui a maior quantidade de educadores, dentre todas as famílias dos países lusófonos, ou seja, falantes da língua portuguesa. A tradição docente atravessando gerações, didática no sangue.
Sentada numa poltrona, na sala de seu apartamento em Juazeiro do Norte, Socorrinha, 73 anos, ao esquadrinhar memórias vividas com a irmã, relembra que “quando Maria Luiza estava estudando o Normal, ela disse que se tivesse nascido em cidade grande ia ser médica, mas não tinha jeito não, a sina dela era ser professo- ra. Quando criança, ela brincava de alfabetizar a gente, brincou tanto de ensinar, que acabou ensinando de verdade. Nossa alfabetização começou com a Biliu”, recorda, trazendo à tona o apelido de infância da irmã.
Maria, a mãe, que foi aluna de Emília Ferreira, a primeira professora de Tarrafas, era quem dava os primeiros passos para alfabetizar os filhos. Maria Luiza, a primeira a ir para a escola, quando brincava de ser professora, ajudava no processo, ensinando o que aprendia na escola e alfabetizando irmãos e primos.
Falando nisso, é importante contextualizar a situação educacional de Tarrafas naquela época.
Tarrafas não tinha escola. Até 1935, o mais perto de professora que se tinha era uma mulher chamada Sifronia, que havia sido alfabetizada em Saboeiro, e trabalhava ensinando o básico que sabia. Mas não ensinava no distrito, porque não havia interesse de contratar uma professora, então montava num burro, e ia a galope até Campos Sales, onde passava 15 dias, e depois ia até um povoado próximo de Iguatu, onde passava outra quinzena. Em Tarrafas, ensinava aos sobrinhos e primos, fazendo o que podia, iniciando-os nos primeiros passos da alfabetização.
Em 1935, tivemos um avanço. Aos dezoito anos, Dona Emília chega em Tarrafas, vinda de Assa-
Como não havia escola, ensinava no pátio da casa da Boa Vista, às vezes em salões emprestados ré. Nora de José Cândido, um rico fazendeiro e primeiro delegado civil de Tarrafas, ela ensinava num salão, localizado onde hoje fica o centro da cidade. Emília Ferreira foi a primeira iniciativa de educação pública em Tarrafas. Detinha o terceiro ano, o que, na época, era o suficiente para assumir uma sala de aula. Alfabetizando com rigidez, palmatória, cartilhas e com os escassos recursos que conseguia, lá ficou por 15 anos. Quando adoecia, ou tinha filhos, ou quando a demanda de alunos era grande, era substituída ou auxiliada por outras duas professoras, sua cunhada, Pura Cândido, e Lurdes Moreira, que a acompanharam por muito tempo.
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Em 1950, Emília Ferreira foi embora para Iguatu e levou consigo o seu contrato. Ou seja, a vaga de professora, deixando Tarrafas sem educação formal. Depois de sua partida, algumas professoras que haviam sido suas alunas, ou que estudaram fora de Tarrafas, foram fazendo o que podiam. Informalmente, enquanto nada aparecia, para que a educação não parasse por completo. Ensinavam em casa, e os que eram alfabetizados faziam o mesmo e assim se iniciou um processo em cadeia, algo iniciado na época de Sifronia.
Em meados dos anos 50, foi construída uma casa grande, que funcionava como escola. Em um sítio chamado Barra do Urucu, as professoras moravam nas casas e davam aulas, era uma instituição comunitária. Lá, moravam as professoras Antônia Leite, tia de Maria Luiza; Oneida Cândido, filha de dona Emília; Dalcides, dona Nitinha e Conceição Alcântara. Mas o colégio foi desativado alguns anos depois. Por ser afastado do “centro” do distrito, costumava ser frequentado por estudantes que viviam no sítio lá perto. A instituição era mantida precariamente pela prefeitura de Assaré, e muitas vezes as professo- ras contavam com ajuda das famílias dos alunos para se manterem.
E assim foi a educação em Tarrafas por muito tempo. Caminhando a passos lentos, aos tropeços e sem nenhum amparo governamental. “A educação foi caminhando graças ao esforço de quem não aguentava ver aquele descaso e fazia o que podia com o pouco que tinha”, diz Lila Cândido, 80 anos, outra filha de Emília Ferreira. Ela ainda complementa, dizendo que “naquela época, Maria Luiza ainda era uma mocinha e vinha brincar lá nas férias”.
Panorama feito, sigamos para a história de Maria Luiza.
Maria Luiza foi para Jucás, onde havia colégios e parentes para abrigá-la. Aos cinco anos, iniciou os estudos no Grupo Escolar Nelzinho Leal. Como não tinha como seguir os estudos em Jucás, foi para Tauá, onde morava um primo de seu pai, e lá começou o ginasial no Ginásio Antônio Araripe. No ano seguinte, foi para Iguatu, onde estudou no colégio São José, no qual também funcionava um convento. Lá ela estudou até o segundo ano do Normal.
Nesse meio tempo, voltava para Tarrafas, brincava de professora, e visitava a família sempre que ficava de férias.
Foi também no Iguatu que conheceu o amor. Um rapaz, chamado Antônio Ferreira dos Santos, irmão de uma colega de aula, se encantou logo que a conheceu.
“Ah, meu filho, ali foi ligeiro. No começo de 1962 ele foi lá para a Boa Vista, pedir a papai para namorar com Maria Luiza. No começo de 1962, começaram a namorar e em outubro se casaram”, recorda Socorrinha.
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Casada, Maria Luiza Leite, adotou o sobrenome Santos. E, aos 20 anos, interrompeu os estudos para se dedicar à sua nova família. Mas não deixou o sonho de lado. Conseguiu um contrato pela prefeitura de Assaré, e começou a ensinar em Tarrafas. Como não havia escola, ensinava no pátio da casa da Boa Vista, às vezes em salões emprestados.
Esse ambiente foi o mais próximo de uma primeira escola, mais institucionalizada, chamava-se Escola Isolada de Tarrafas. Maria Luiza conseguia livros em Iguatu e assim continuou por al- guns anos. As crianças traziam as cadeiras de casa e, ao fim da aula, as levavam de volta. “Era impressionante como ela conseguiu resultados tão bons, mesmo em turmas multisseriadas, ou seja, as que possuíam alunos em diversas séries diferentes na mesma sala e a professora devia acompanhar diversos níveis na mesma turma”, explica Jesus Leite, 67 anos. No período, foi a única professora do distrito.
Em meados de 1963, aconteceu a primeira tentativa de emancipação de Tarrafas. O então deputado estadual Erasmo Rodovalho de Alencar, do Partido Trabalhista Brasileiro - PTB, se aliou com as lideranças da UDN local e conseguiu a emancipação. O feito foi de grande aceitação popular, festejado com unanimidade partidária. “Havia uma história que queriam mudar o nome Tarrafas para Cruzeiro do Norte, ainda bem que não foi adiante, nome feio”, relembra Socorrinha.
O distrito havia se tornado cidade e se organizava para a primeira eleição. O prefeito de Assaré já se movia para eleger um aliado, e assim não perder o controle sobre o antigo domínio. “Lembro de minha mãe ter dito que uma vez o prefeito mandou fechar o lugar onde ela ensinava porque disse que ela ensinava daquele jeito porque queria ser prefeita”, recorda Raquel Leite, 44 anos, filha caçula de Maria Luiza. Quando não havia lugar para ensinar, sua sala de aula se localizava sob a sombra de um cajueiro.
Mesmo com as dificuldades, nada a havia impedido de seguir realizando seu sonho.
Mas ainda havia muito a fazer.
Em 1964, aconteceram as primeiras eleições, Tarrafas elegeria o primeiro prefeito. Mas a alegria iria durar pouco.
Neste mesmo ano, instalou-se no Brasil a Ditadura Militar, e com uma canetada de Virgílio Távora a mando de Castello Branco, todos os municípios recentemente emancipados voltaram a ser distritos. A justificativa era que menos municípios seriam mais fáceis de administrar.
Também em 1964, Maria Luiza teve seu primogênito, Manoel Idelano Leite.
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Em 1965, resolveu terminar os estudos. O contrato municipal vinha com uma exigência de submissão aos líderes locais, e ela não precisaria se preocupar com isso se conseguisse a cadeira estadual. Com essa conquista, ela conseguiria autonomia.
E foi o que fez. Mas não sem sacrifícios.
Ao chegar em Iguatu, no seu antigo colégio, não foi aceita. O colégio de freiras não aceitava mulheres casadas. Em Iguatu, ela conseguiria voltar para Tarrafas com mais frequência, para cuidar do filho e seguir os estudos. Mas não foi possível.
Teve que ir para mais longe.
Deixou Idelano com Maria, avó de primeira viagem, e partiu para Fortaleza.
Depois de quatro anos afastada da sala de aula, como aluna, foi mais um desafio. E também mais uma conquista.
No começo de 1966, terminou o Normal.
E na diplomação, foi considerada a mais dedicada de todas as 360 alunas. Como reconhecimento, recebeu das mãos do então governador Virgílio Távora dois prêmios, um em espécie, e um outro, que foi ainda mais valioso.
Conquistou uma cadeira especial, que lhe dava o direito de ensinar em qualquer cidade do território cearense.
Poderia ir para Juazeiro ou Crato, as maiores cidades do Cariri. Ou até mesmo permanecer em Fortaleza, um emprego garantido na capital, com oportunidades de seguir estudando e até mesmo ensinar na universidadeª
Mas seu sonho não era esse. Não sonhava apenas em ser professora.
Seu sonho era ser professora em Tarrafas.
E Tarrafas precisava dela.
E foi assim que teve início a primeira revolução educacional de Tarrafas.
Maria Luiza Leite Santos é a primeira professora filha de Tarrafas com formação.
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Retornou para Tarrafas logo após a formatura, em 1966. Ensinou na casa da Boa Vista, em salões emprestados ou em cajueiros, assim como antes. Mas agora não dependia de políticos locais.
Em 1967 teve seu segundo filho, Moacir Leite Neto, como homenagem ao pai de Maria Luiza.
Ensinou no MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização, por um tempo. Mas não se limitou a ele. Tinha uma mente criativa e inquieta, e gostava de utilizar recursos diferentes para ensinar.
Maria Romana, 65 anos, professora aposentada e prima de Maria Luiza, ao falar sobre o MOBRAL, lembra que “todo mês vinha um fiscal do Mobral para assistir às aulas de Maria Luiza, depois passavam horas reunidos numa sala. Acho que por ela ter se formado na capital né, eles deviam ter medo que ela fosse uma ameaça, e ficavam de olho”.
Associava a prática docente à socialização, fazia com que os estudantes pensassem nas próprias realidades e os limites da sala de aula se dissolviam. Trazia saberes externos para as salas de aula, e fazia com que os alunos levassem consigo o que aprenderam nas aulas. A educação transforma, e foi o que ela os ensinou.
“Maria Luiza foi minha professora por muitos anos, era tão gentil, tão doce, tão paciente com os alunos. Não fazia distinção, era rígida sem precisar levantar a voz ou castigar, conversava muito com os alunos. Quando o aluno era danado, ela conversava para entender a realidade dele. Depois disso a danação acabava”, recorda Cristiano Bantim, 67 anos, um ex-aluno que hoje reside no Rio de Janeiro.
Organizava eventos, comemorações de feriados, peças teatrais, realizava formatura. “Os primeiros festejos de dia das mães, dia dos pais, dia do estudante, dia dos professores, foram todos organizados pela Biliu. No Sete de Setembro, ela organizava o desfile e o braço direito dela era o Luizinho, que ajudava demais, ensinava os meninos a marchar, organizava os pelotões... ela dizia que Luizinho enfrentava tudo”, diz Socorrinha. Luizinho, apelido pelo qual Luiz Alves de Sousa, 76 anos, é conhecido, é um ex-aluno de Maria Luiza, foi comerciante e hoje é aposentado.
Maria Luiza também contribuiu para o desenvolvimento do distrito. Como forma de responder pavimentadas e que chegasse a energia elétrica. Até então a luz era a motor.
Socorrinha relata que “Tarrafas tinha uma professora impecável, mas não tinha escola. Naquele tempo, ter uma professora formada, e principalmente com a dificuldade que ela teve, era uma honra muito grande. E o distrito tinha a melhor dentre 360, não era pouca coisa”. Em seguida, relembra um episódio interessante.
Em 1968, ao final do ano, Maria Luiza organizou uma formatura dos estudantes que estavam concluindo o quinto ano. E o prefeito da época, Raul Onofre (UDN), havia sido convidado. Era um evento grande para o distrito, muita gente viria à revogação da emancipação, o distrito continuou se comportando e se organizando como uma pequena cidade. A comunidade se ajudava, foi reconhecendo o próprio poder eleitoral e seus moradores foram elegendo mais vereadores, se organizaram para reformar ou construir determinados prédios e assim seguiu. E Maria Luiza, com algumas cartas enviadas ao governo estadual, ajudou a fazer com que ruas fossem assistir. As eleições voltaram e estavam próximas, seria uma oportunidade perfeita para o povo colocar ele contra a parede, para cobrar por uma escola. Mas quem iria “peitar” Raul Onofre? E logo em público?
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E foi aí que Socorrinha entrou em cena. Por escrever e falar bem, e também por ser corajosa e não ter papas na língua, foi escolhida para ser a paraninfa da turma.
Chegou o dia e o prefeito não foi, mandou o vice, Paulo Paiva. Socorro lembra que “Paulo era bom, gostava muito de Maria Luiza, mas acabou levando a lapada por Raul”.
Socorrinha discursou por quase meia hora, expôs o descaso com o distrito, acusou o prefeito e demais políticos de só olharem para Tarrafas quando queriam votos, mas só se importavam com o centro de Assaré. Também falou sobre o desrespeito com Maria Luiza, que se formou na capital e tinha que dar aula embaixo de um cajueiro, e outras coisas mais. “Naquele dia eu lavei a alma, a gente tem que cobrar mesmo né? Os políticos se achavam donos dos lugares e do povo, mas são funcionários a serviço da gente, se fosse hoje eu dizia era mais coisas”, relata Socorrinha.
Ao fim do discurso, Paulo se levantou, foi em direção à jovem estudante e a parabenizou. Chamou-a de corajosa por ter dito o que disse, e prometeu que Tarrafas teria sua escola.
No ano seguinte, a construção começou.
E no final deste mesmo ano, 1969, nasceu sua terceira filha. Católica, devota de Nossa Senhora de Fátima, Maria Luiza pediu à santa para que fosse feliz no parto, em agradecimento, batizou a filha em sua homenagem, e assim nasceu Maria de Fátima, a Fafá.
A escola recebeu o nome do pai de Raul Onofre, o ex-prefeito de Assaré Euclides Onofre. Como lá havia duas salas, e a demanda vinha crescendo, Maria Luiza precisava de ajudantes.
Foi nesse período que organizou as Regentes de classe. Es- colheu algumas alunas, dentre elas, sua prima Maria das Graças, conhecida como Gracinha, que era filha de Antônia, professora mencionada anteriormente; as irmãs Salete e Dalcides, que já ensinavam e eram responsáveis e dedicadas; e também Francisca Rodrigues, que ensinou até pouco tempo atrás. Com as regentes selecionadas, elas se dividiam no ensino e, nas férias, faziam estágios e formações em Barbalha e Crato.
Com a construção da primeira escola, a dinâmica do distrito mudou. E se iniciou um processo onde os pais que moravam em localidades mais distantes, passaram a construir casas em lugares próximos à escola. Enquanto a grande maioria das cidades se organiza ao redor de igrejas, Tarrafas se organizou ao redor de sua primeira escola.
Sua atuação também se dava na igreja, participava de atividades religiosas, o vigário da época, Pe. Agamenon Coelho, tinha um carinho muito especial por ela. Fafá recorda que “sempre que o Pe. Agamenon vinha para Tarrafas, ele se hospedava lá na Boa Vista, porque gostava demais de minha mãe”. Maria Luiza também tinha uma grande quantidade de afilhados, por ser muito querida e ter grande prestígio no município, quase uma autoridade.
Com o passar do tempo, recebeu inúmeros convites para deixar Tarrafas. Propostas de emprego em cidades maiores, a fama da professora alcançou distâncias. Mas ela sempre declinava, dizia que seu sonho era ensinar em Tarrafas e sua terra ainda precisava muito dela.
Tarrafas é o primeiro município cearense a ter um patrono da educação, e o segundo do Brasil. É o único a conceder essa homenagem a uma professora
Sua fama também percorria distâncias dentro do distrito. Luiz Vasconcelos, 60 anos, disse que seu sonho, quando criança, “era ser aluno de dona Maria Luiza. Gostava muito dela e ela era muito querida por meus pais e tios, mas como a gente morava longe da escola, não deu certo”.
No início da década de 70, assumiu mais uma função: recenseadora. Durante semanas, percorreu, a pé e no lombo de um cavalo, toda a extensão do distrito para fazer o recenseamento do IBGE. Debaixo de sol e chuva, foi contando quantas pessoas viviam em Tarrafas, visitou sítios, conheceu e foi conhecida por todas as pessoas que lá viviam. Também foi importante para que percebesse a quantidade de alunos que ainda não tinha acesso à educação. Nesse período, contabilizou 7.058 pessoas residindo no distrito.
Em 1975, veio ao mundo o seu quarto filho, Jáder Ferreira Leite.
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No ano seguinte, em 1976, Tarrafas foi uma das comunidades assistidas pelo Projeto Rondon. O projeto tinha o objetivo de levar a juventude universitária a conhecer a realidade deste país continental, multicultural e multirracial, e proporcionar aos estudantes universitários a oportunidade de contribuir para o desenvolvimento social e econômico do País. E os estudantes foram para a casa de Maria Luiza.
“Todas as pessoas de fora que vinham para Tarrafas, iam para a casa da Biliu. Deputados, prefeitos, vereadores, padres, bispo, todos chegavam já perguntando ‘onde fica a casa da professora Maria Luiza?’. E com o projeto Rondon não foi diferente”, explica Socorrinha.
“Tenho recordações muito boas desse período. Eu era pequena quando eles vieram. Minha mãe cozinhava para eles e os tratava tão bem que eles passaram a chamá-la de Mãe Luiza. Foi um vínculo muito forte, anos depois, ainda mandavam cartas, nos convidaram para as forma- turas e choraram demais quando souberam do falecimento de minha mãe”, diz Fafá.
E continuou ensinando e trabalhando pelos tarrafenses. Lurdes Moreira, 92 anos, lembra o quão incentivadora foi Maria Luiza: “meus filhos foram alunos dela. Um deles, Altair, era muito inteligente, e queria ser professor, assim como ela. Um dia, Maria Luiza conversou comigo, disse que ele tinha muito potencial, que eu o incentivasse a estudar porque ele tinha futuro. Ela me deu coragem para enfrentar meu marido e botar meu filho para fazer faculdade. Hoje ele é professor já aposentado, e sempre lembra com muito carinho da mestra. Devo muito a ela, Maria Luiza me deu coragem, e essa coragem mudou o futuro do meu filho”.
Em 1977, depois de muito ser incentivada por amigos e parentes, resolveu fazer faculdade. Para isso, teve que deixar Tarrafas e se mudou para Assaré com a família. Mas não deixou Tarrafas desamparada. “Quando Maria Luiza quis ir para o Assaré, foi no tempo em que eu me casei, e queria ir para Tarrafas. Aí eu tinha uma cadeira para ensinar no Moacir Mota. Então trocamos, ela foi para o Assaré, e eu para Tarrafas”, recorda Dona Chiquinha, 67 anos. Francisca Alves de Lima Sousa, ou Dona Chiquinha, é uma professora aposentada, assumiu diversos cargos na educação, sua vida foi totalmente dedicada a essa área e ao potencial transformador dela. É nossa Dama da Educação e a responsável pela segunda grande revolução educacional de Tarrafas. Mas essa é outra história.
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Então, no ano de 1977, grávida novamente, mudou-se para Assaré. Foi quando nasceu a caçula, Ana Raquel Leite.
E em 1978, prestou vestibular e passou para o curso de pedagogia, na antiga Faculdade de Filosofia do Crato, hoje conhecida como Urca, Universidade Regional do Cariri. Foi um período cheio de percalços. Para ir estudar, às vezes conseguia carona com algum colega que tinha carro, às vezes ia em um ônibus muito precário e às vezes ia com algumas colegas esperar na beira da pista por alguma carona. Chegou a ir para o Crato em cima de um caminhão carregado de algodão. E assim se seguiram os quatro anos, onde sempre ia quando tinha folga, ou no período das festas da padroeira Nossa Senhora das Angústias, em agosto.
Em 1987, Tarrafas finalmente conquista sua emancipação. Em meados de 1988, aconteceria a primeira eleição e uma das pessoas mais cotadas para se candidatar à prefeitura foi Maria Luiza. “Além de ter sido uma professora ímpar, ela contribuiu para preparar o distrito para ser emancipado, fez com que naquela população marcada pelo atraso, surgisse uma geração socialmente ativa. Nada mais justo do que ser nossa primeira prefeita”, disse Jesus Leite, um dos responsáveis pela emancipação. Mas Antônio foi contra, e Maria Luiza também não quis deixar a sala de aula.
Em 1989, sua filha Fafá se casa e vai morar em São Paulo. “Uma lembrança muito boa que tenho é essa. Porque tinha uns primos que viviam chamando minha mãe para viajar para São Paulo e ela nunca ia, porque tinha medo de avião e não tinha coragem de passar três dias dentro de um ônibus. Aí foi só eu me casar e mudar para lá, que em seis meses ela voou ao meu encontro. Amor de mãe dá tanta força, né?”, recorda.
Ela me deu coragem para enfrentar meu marido e botar meu filho para fazer faculdade. Hoje ele é professor já aposentado, e sempre lembra com muito carinho da mestra. Devo muito a ela, Maria Luiza me deu coragem, e essa coragem mudou o futuro do meu filho ensinava de manhã e à tarde, e à noite ia para a pista esperar por algum transporte.
Até que finalmente, em 1982, se formou. Seguiu ensinando em Assaré, porque logo depois, os filhos passaram a estudar. Idelano foi para o Crato, cursar Direito. Depois, Moacir foi para Fortaleza, cursar Farmácia e Biomedicina. E a vida seguiu, com Maria Luiza ensinando em Assaré, mas sem esquecer da querida Tarrafas, para
Em 1991, Raquel se muda para o Crato, para estudar e morar com Jáder, que já estava por lá. Em uma de nossas conversas, dona Chiquinha recorda que “na festa de agosto daquele ano, Maria Luiza estava especialmente radiante, sempre simpática e atenciosa com todos, foi em todas as mesas, falou com todo mundo, conversando, abraçando ex-alunos, sempre sorridente. Parecia uma despedida”.
Maria Luiza
A festa de agosto em Tarrafas é o período de oito a quinze de agosto, quando se comemora o dia de Nossa Senhora das Angústias, padroeira do município. Dois dias depois, faltando 14 dias para os seus 49 anos, Maria Luiza sente uma dor de cabeça forte e vai para o hospital de Assaré. Sente as pernas adormecendo, e a dor de cabeça persistindo. Lá fica durante a noite, sentada, esperando passar.
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Ao romper da aurora, ela partiu.
Em 17 de agosto de 1991, aos 48 anos, 11 meses e 17 dias, morreu Maria Luiza Leite Santos. Levada por um aneurisma.
Assim, repentinamente.
Foi uma comoção total. O velório aconteceu no CERU - Centro Educacional Rural, o maior espaço possível para acomodar a quantidade de pessoas que veio se despedir da professora do povo. Nunca viu-se tanta gente aglomerada para dizer adeus a alguém. Foi o maior velório que se tem notícia em toda a história de Tarrafas.
Antes de sua morte, tentaram fazer homenagens à essa que tanto fez pela jovem Tarrafas. Dona Chiquinha, juntamente com Francisca Lédio, ao fundarem o ensino médio no município, batizaram a escola com o nome de Maria Luiza. “Mas o conselho de educação não reconheceu a escola, e o governo do estado dizia que a demanda era pouca e não compensava, então a escola foi incorporada à que já existia, e que já havia sido batizada com o nome de dona Emília Ferreira”, recorda Chiquinha.
Em seguida, já após seu falecimento, batizaram a principal avenida da cidade com o seu nome. Uma homenagem que ainda hoje permanece. Enquanto cidades batizam avenidas com nomes de políticos, Tarrafas batizou a sua com o nome de uma professora. Mas ainda não era o suficiente. Uma professora merece uma homenagem associada à educação.
E ocorreu a segunda tentativa. Com a chegada de uma escola exclusivamente de ensino médio, da rede estadual, em 2009, novamente tentaram batizá-la com o nome de Maria Luiza, mas não deu certo.
Em meados dos anos 2010, construíram o primeiro Centro de Educação Infantil, que recebeu o nome de Maria Luiza. Mas, pouco tempo depois, uma das professoras que lá ensinavam faleceu tragicamente, o que ocasionou na mudança do nome da escola.
Ao pesquisar sobre a vida dela, sempre a apresentei como a nossa Paulo Freire. Maria Luiza tinha consciência do potencial emancipador da educação. Reconhecia a importância de se pensar a realidade em sala de aula, e de transformá-la com a educação. Certo dia, ao acordar, tive um insight. O Brasil tem seu patrono da educação. Não se pode pensar na educação brasileira sem passar pelas contribuições de Paulo Freire.
Em Tarrafas, acontece o mesmo, não se pode pensar no nosso desenvolvimento educacional sem passar pelas contribuições de Maria Luiza Leite Santos. Conversei com três vereadores com os quais tenho mais proximidade: Sonha Germano e Tonozinho (ambos do PDT) e Lane Arrais (PTB), que gostaram da ideia e se puseram à disposição. Em 11 de novembro de 2021, fui à Câmara de Vereadores defender um projeto de lei que a tornasse Patrona da Educação Tarrafense. Havia um precedente em uma cidade, Recife. Se eles podiam ter um patrono, nós também poderíamos.
Em 25 de novembro o projeto foi aprovado por unanimidade. Sancionado logo depois. Hoje, temos a Lei Municipal N 426/2021, que declara a professora tarrafense Maria Luiza Leite Patrona da Educação tarrafense. Uma homenagem merecida, 30 anos após seu falecimento.
Esta homenagem garante que seu legado se perpetue na memória desta geração e das próximas que virão. Não cheguei a conhecê-la, nasci quando completavam-se sete anos de sua partida. Mas a memória dessa educadora tem poder transformador, e essa homenagem permite que sua luz continue brilhando pela educação dos tarrafenses.
Tarrafas é o primeiro município cearense a ter um patrono da educação, e o segundo do Brasil. É o único a conceder essa homenagem a uma professora.
E não à uma professora qualquer. Mas à professora de Tarrafas, que desde criança sonhou em ser.
Socorro Braga, sua prima, diz que “só em estar com a gente, ela já agradava. Bastava estar presente”.
Bastava estar presente. E ela está. Maria Luiza, presente!