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As mil vidas de uma praça

Um lugar que já foi oratório, capela, cemitério, igreja, chafariz e cadeia antes de ser praça. O umbigo político de Tarrafas, que recebeu o nome de Tereza Moreira, a fundadora que talvez não a tenha fundado. É um local repleto de memórias e, ainda hoje, é onde tudo acontece.

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Em meio a todas as contradições, encontros, enganos e surpresas, esta é a praça principal de Tarrafas, seja bem-vindo.

Texto: Wesley Vasconcelos

Tarrafas é uma cidade que, pode-se dizer, tem dois umbigos.

Como assim?

Bem, pensando o umbigo como o ponto central, que se relaciona com a vida, com o nascimento . é isso mesmo.

O município de Tarrafas, no Cariri cearense, nasceu (ou se emancipou) duas vezes. Mas é importante uma contextualização.

Em meados do século XVIII, havia uma propriedade chamada Fazenda Aroeiras, que se localizava próxima ao local onde hoje fica a praça principal. Essa fazenda, segundo relatos populares, pertencia a uma senhora de nome Tereza Moreira. E sua casa era um ponto por onde passavam tropeiros e viajantes, a caminho, ou partindo de Crato, Assaré, Jucás e Iguatu.

Atualmente, Tereza Moreira é considerada a fundadora de Tarrafas, a praça principal tem seu nome. Contudo, pesquisas recentes podem sugerir outras interpretações. A história que se tem é que o movimento de tropeiros foi se intensificando, e dona Tereza fez um grande galpão para alojá-los. Em seguida, com um volume maior chegando e alguns gostando do ambiente, passou a distribuir terrenos. Com o tempo, a comunidade foi se formando ao redor.

Certa vez, um rapaz foi pescar no rio Bastiões, e acabou perdendo sua rede de pesca, ou sua Tarrafa. Criou-se um burburinho pelas pessoas da comunidade, que passaram a dirigir-se ao local como “o lugar da tarrafa” até que o lugar acabou recebendo o nome de Tarrafas. Tem mais detalhes, mas, de modo sucinto, essa foi a primeira versão, popularizada principalmente pelos estudos do professor e jornalista Jesus Leite, hoje contando com 67 anos de idade.

Só que novos estudos apareceram.

Em sua monografia, ao estudar as ações praticadas pelo homem no rio Bastiões, a professora e bióloga Gilcarla Lima, 42 anos, descobriu novos fatos que podem fornecer uma nova perspectiva de leitura da história de Tarrafas.

Gilcarla descobriu que a origem de Tarrafas data de meados de 1600. Conseguiu registros históricos datados do início dos anos 1800, que mostravam a existência de um sítio, ou fazenda Tarrafa. O local aparecia em diversos escritos sobre o rio Bastiões.

Pensando nisso, há um impasse. A primeira versão traz uma cidade surgida em meados dos 1800 e que só veio a receber o nome Tarrafas em um período já próximo aos 1900. Na outra, há registros de antes disso, mostrando a existência de uma fazenda já com o nome Tarrafas.

E o que isso tem a ver com a praça?

Ela leva o nome da fundadora. E se essa Tereza não tiver fundado nada?

“Vejo na história contada sobre Tarrafas uma visão aristocrática muito comum em tempos mais antigos, principalmente no Nordeste, onde era conferido a uma família de renome todos os marcos históricos importantes de um lugar”, explica Gilcarla.

“Imagino que em algum momento deva ter existido uma família Moreira, da qual fazia parte essa senhora, dona Tereza, que tinha alguma propriedade batizada de Aroeira, mas que era vizinha da fazenda Tarrafa, essa sim, contada nos anos da história. Essa senhora deve ter tido posses e isso fez com que a cultura popular da época lhe exaltasse a ponto de que no futuro, seu nome fosse projetado como a fundadora do lugar”, acrescenta.

E o trabalho da história é esse. As leituras do passado são retratos da época nas quais são produzidas, não são, e nem devem ser fixas. É essencial que existam trabalhos de revisionismo, revisitando o passado para pensá-lo e repensá-lo criticamente. A história é um conhecimento construído permanentemente e esse é um exemplo disso. As novas pesquisas mudam alguns pontos e, ao mesmo tempo, trazem novos detalhes que preenchem lacunas nas eras em que a memória não alcança.

Falei antes de dois umbigos, né? Pois é, o primeiro deles foi a praça. Mas a praça já foi tanta coisa O segundo foi a escola, que, depois do trabalho de alguns professores, mobilizando a população, fez com que a comunidade fosse se desenvolvendo ao redor dela. A primeira escola foi um fator chave para a emancipação definitiva.

Mas este texto se debruça sobre o primeiro umbigo, que foi o centro por um tempo. A praça.

Continuemos, então, com a nossa história.

Maria das Dores Vasconcelos, memorialista tarrafense já falecida, conta em seu caderno de memórias que dona Tereza Moreira era devota de Nossa Senhora das Dores. Por isso, no local onde hoje fica a praça, ela construiu, em uma pequena parte, uma casinha para colocar a imagem da santa, com o objetivo de funcionar como um oratório. E passou a servir como uma capelinha, pequena, onde as pessoas que lá viviam também frequentavam para rezar.

Pelo fato da vila ser pequena, as pessoas passaram a usar o território próximo à capelinha para enterrar seus mortos.

E foi assim que surgiu o primeiro cemitério.

Aconteceu que, certo dia, já na primeira década do século XX, um jovem casal resolveu noivar. Só se casariam quando o noivo conseguisse uma renda para manter a noiva e a futura família. Ele, chamado José Arrais, seduzido pelo ciclo da bor- racha, resolveu que seguiria para o Amazonas, para trabalhar nos seringais.

Era uma época com uma cobertura vacinal praticamente inexistente no interior, o Nordeste ainda não havia sido inventado e a febre amarela, o tifo e demais doenças tropicais levavam muitos jovens esperançosos, como este personagem.

Então, antes de partir, o jovem foi até a capela e pediu à Nossa Senhora das Dores que o ajudasse, mostrando uma outra fonte de renda, para que ele não precisasse ir para longe. Se a

As leituras do passado são retratos da época nas quais são produzidas, não graça fosse alcançada, ele voltaria para construir uma capela maior no lugar.

Chegando em Fortaleza, quase na hora de pegar o trem, resolveu jogar na Sorte Grande, e acabou ganhando.

Voltou para Tarrafas e investiu quatro contos de réis para construir a capela. Agora de tijolos, não mais de taipa. Em 1911 a capela ficou pronta, construída em cima da antiga e também do antigo cemitério, já desativado. Segundo Jesus Leite, em 1909 foi construído um novo cemitério, que é o utilizado até hoje.

A capela ficou muito bonita, a população era engajada para organizar as festas religiosas, eventos sociais e culturais. Tudo girava ao redor da igreja.

Em 1919, resolveram que era importante comprar uma imagem nova da padroeira, Nossa Senhora das Dores. A que se tinha era a antiga imagem, de madeira, pequena, e que, segundo os relatos, pertencia à dona Tereza Moreira, que já havia falecido na época. Já haviam se organizado para comprar um sino bonito, e a igreja merecia uma imagem nova.

O rapaz da Sorte Grande, inclusive, casou com sua amada e se mudou para Fortaleza. Trouxe ele de novo porque o sortudo vai entrar novamente na história. Os líderes comunitários se organizaram e entraram em contato com Arrais, por carta ou telegrama, as versões variam, pedindo que comprasse uma imagem nova de Nossa Senhora, que a comunidade se organizaria para pagar.

A imagem veio diretamente da Europa, e foi mandada de trem para que fossem buscar em Iguatu, porque era até onde ia a linha ferroviária que partia da capital.

E aí foi uma grande caravana, com pessoas importantes da comunidade: José Cândido, com os irmãos Cícero e Terto, Francisco Alves de Vasconcelos, com o irmão Abel e mais um bocado de pessoas. Foram caminhando até Iguatu. No caminho, encontraram com uma caravana que vinha do distrito de Amaro, que ainda hoje pertence a Assaré. Por coincidência, estavam também em busca de uma imagem que encomendaram, nesse caso, foi a de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.

Juntas, as caravanas chegaram até Iguatu e trouxeram as imagens nos lombos de animais.

A santa chegou em Tarrafas no dia 19 de agosto de 1919.

Agora temos três versões para o que acontece em seguida:

I - Chegaram em Tarrafas, abriram a caixa e perceberam que a santa não era Nossa Senhora das Dores. Foram até o Amaro para trocar, mas a deles havia chegado certa.

II - Abriram a Caixa e estranharam a pose da santa, a expressão e a posição das mãos. Chamaram o padre Emílio Cabral, vigário de Assaré, que confirmou que a santa não era Nossa Senhora das Dores.

III - Chegaram com a santa, colocaram ainda na caixa na igreja e esperaram pela missa. Tarrafas ainda não era distrito, o que só aconteceria no ano seguinte, então o vigário vinha uma vez por mês celebrar na capela. Deixaram então que ele abrisse no dia da missa, quando fosse batizar a estátua em setembro, que era quando se comemoravam os festejos de Nossa Senhora.

Na missa, o padre abriu a caixa e estranhou.

“Essa não é a mãe das Dores!”

O povo ficou chocado, sem saber o que fazer. Então o padre explicou que aquela santa era Nossa Senhora das Angústias, uma santa muito rara, que só tinha conhecimento de uma cidade que a tinha como padroeira, que era Granada, na Espanha.

O padre Emílio também explicou que a santa era muito boa, e aconselhou a comunidade que não ficasse triste, e a aceitasse. Além de tudo, também daria muito trabalho ter que devolver a santa até a Europa. Nossa Senhora também é mãe de Cristo, e a comunidade a aceitou de bom grado depois disso. A partir do ano seguinte, as festas passaram a acontecer entre os dias oito e quinze de agosto.

O largo da igreja era um local onde as pessoas se concentravam para eventos, festivais e brincadeiras. Também era onde aconteciam comícios e alguns movimentos articuladores da primeira emancipação, que aconteceria em 1963, e seria derrubada logo depois.

A igreja ficou de pé por 57 anos. Alguns moradores relembram que, por ter sido construída em cima de um cemitério, em períodos mais quentes subia uma “gordura” dos defuntos que sujava os joelhos de quem se ajoelhava para rezar.

Em períodos de cheia, por se localizar próxima do rio, entrava água na igreja.

E foi esse um dos motivos adotados para que a comunidade se organizasse para construir uma nova igreja, maior, em um lugar mais alto.

A obra foi liderada por João Bantim de Vasconcelos, líder comunitário, que, com a ajuda de outros tarrafenses, foram conseguindo recursos para compra de materiais e mão de obra para a construção da igreja.

Em 1968, a nova igreja foi inaugurada. E, nesse mesmo ano, mandaram derrubar a antiga.

No lugar onde ficava a antiga igreja, cavaram um poço e colocaram um chafariz, de modo que as pessoas pudessem ter acesso à água por lá também. E isso aconteceu por volta dos anos 70.

“Mas a água não prestava, meu filho. Era gordurosa, fedorenta, eles não limparam direito o solo, aí subia a gordura dos defuntos. Usamos daquela água por pouco tempo”, recorda Antônia, conhecida como Toinha do Luto, 75 anos.

O chafariz ficava dentro de uma casinha, e esta, muitas vezes, serviu como cadeia.

Na época, não havia policiais no distrito, então a comunidade selecionava uma pessoa para assumir a função de delegado. José Cândido foi o primeiro, e outros como Antônio José dos Santos, e meu avô, Antônio Bantim de Vasconcelos, também assumiram essa função.

“Quando algum homem bebia muito e começava a bagunçar, o delegado trancava ele na casinha até o efeito da cachaça passar”, explica Luiz Vasconcelos, 60 anos.

Com o tempo, desfizeram o chafariz, e por iniciativa do então vereador João Bantim de Vasconcelos, foi iniciada a construção da praça.

O local ainda serviu de ambiente para histórias de visagens e assombrações. “Quando foram cavar os alicerces para fazer a praça, tiraram tanta ossada de gente que chega dá gastura de lembrar. Mas papai uma vez viu na praça o fantasma de um homem que já tinha morrido, e foi um medo tão grande que ele quase caiu quando deu fé que tinha visto o finado”, relata Toinha.

Foi lá também onde colocaram a primeira televisão que chegou no distrito. De modo que as pessoas passaram a frequentar assiduamente para assistir novelas e acompanhar a programação televisiva.

A praça também foi, e ainda é, ponto de encontros, lazer, eventos, feiras de agricultura familiar, cultos evangélicos, eventos católicos e estudantis. É onde acontecem comícios, festas, leilões e a tradicional seresta da ressaca, que encerra os festejos da padroeira.

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