conferencia museografia

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Congresso “Redes de Museus — Território, Identidade, Património”, 20 a 21 de maio de 2011 / Casa das Artes, Famalicão.

A que aspiram as tuas formas?1 Francisco Providência

A museografia tem adoptado, ao longo da história, diferentes paradigmas de representação, revelando diferentes intenções e ideias. A Galleria degli Uffizi, em Florença, abriga um dos mais famosos museus do mundo que se constitui em torno da colecção privada de desenhos, esculturas e pinturas da família Medici, catalisando o espírito renascentista de uma burguesia emergente e culta que, superado o domínio financeiro e político, se dirige para o domínio da estética como superlativo humano. Hoje, entende-se que um museu é "uma instituição permanente, sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento que adquire, conserva, investiga, difunde e expõe os testemunhos materiais do homem e de seu ambiente, para educação e deleite da sociedade"2. O papel dos museus, no processo de especialização contemporânea, oscila entre uma vocação preservadora, experimental e educadora. Os museus de ciência, que ensinam demonstrando os fenómenos pela prática experimental de máquinas, são os descendentes directos das aulas de física do séc. XVIII que, na Universidade de Coimbra reuniam um conjunto de aparelhos experimentais, usados ludicamente para surpresa dos nobres e formação dos estudantes. Os museus etnográficos, procurando reter frágeis ambientes culturais genuínos, começam por se constituírem como armazéns de objectos exóticos dispostos taxonomicamente pela dimensão e aparência morfológica, para se organizarem ingenuamente em torno de ambientes cénicos, procurando ”demonstrar”, repondo por simulação, uma experiência inacessível. Mas outros museus herdeiros de antigos tesouros, não estão isentos de mácula já que têm origem na exibição dos despojos de guerra, saqueados a inimigos ou a civilizações colonizadas, como demonstração dominante sobre o vencido. No fenómeno subjacente à apropriação do que o outro tenha de mais valioso, estarão reminiscências de antigas práticas antropófagas como a ingestão do fígado do chefe vencido assim se apropriando o vencedor de toda a sua energia vital. O museu tesouro, aberto à visita popular, fomentará a elevação e orgulho da população, reforçando a identidade e pertença. Assim são alguns dos maiores museus do mundo, ainda que revelando um estigma colonialista.

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PROVIDÊNCIA, Francisco, A que aspiram as tuas formas? (conferência), in: Congresso “Redes de Museus — Território, Identidade, Património”, de 20 a 21 maio de 2011, na Casa das Artes, Famalicão. 2

International Council of Museums (ICOM, 2001)


Na tradição das galerias Uffizi, muitos beneméritos deixam as suas colecções de arte geridas para um fim social, como manifestação de magnanimidade altruísta do capitalismo, quer em fundação própria, quer como mecenas contribuinte de outras colecções, motivados pela importância da Arte enquanto representação do superego social. Talvez originado pelo desejo humano de coleccionar, ocultando razões afectivas, culturais e materiais, os museus têm conservado o património da cultura material e imaterial, assumindo um relevante papel na preservação da memória, interpretação da cultura e educação humana, determinantes para a afirmação da cidadania, da diversidade cultural e, consequentemente, da democracia e qualidade de vida humana. Assim, os museus nascem espontaneamente quando uma cultura se sente ameaçada e esta talvez seja a razão pela qual em Portugal se tem dado tão pouca importância ao património material — veja-se por exemplo o que resta dos 50 anos de exercício da indústria de motorizadas sedeada no norte do país — ou da arquitectura vernacular minhota. Esta é uma sociedade que se adapta demasiado depressa aos novos ambientes sem padecer qualquer nostalgia, julgando que o futuro é melhor que qualquer passado e, por isso, sem memória. Uma sociedade sem memoria é uma sociedade inteiramente disponível à aculturação, é uma sociedade debilitada. Como qualquer esforço de preservação da memória — toda a memória é selectiva— a musealização de artefactos, ou zonas urbanas, acarretam sempre um juízo e uma intencionalidade tanto na escolha como na rejeição do que ficará para memória futura. Verifica-se, no entanto, que os museus não são todos iguais. Um museu de arqueologia revela-se muito distinto de um museu de ciência experimental (como se verifica nos actuais centros de ciência viva), aproximando-se pela forma, alicerçada em caixas de vidro fechadas, de outros como os de história natural, onde as espécies embalsamadas se arrumam taxonomicamente por tamanhos e formas. No entanto, os museus de história e ciências sociais, adquirem um papel interventivo e o desejo de superarem a sua passiva condição de caixa conservadora, para agitar o espírito dos seus visitantes, dotando-os de maior capacidade critica. Passam assim os museus a dar mais importância à palavra, não só na legendagem mas também no enquadramento temático das instalações. A função social do museu adquire assim um propósito político de intervenção na organização social. As diversas áreas de conhecimento, produziram museus epistemologicamente adequados, adquirindo formas paradigmáticas de uso.


A sua função será sempre simbólica, se atendermos à etimologia do grego "s‡mbolon", verbo "symbállein" ou "com-jogar". No início, símbolo era meio de esclarecimento (ou desincriptamento) de inígmas: um objecto partido em duas partes, cujo ajuste e confronto permitia, aos portadores de cada um dos fragmentos, reconhecerem-se. O símbolo é pois, a expressão de um conceito de equivalência, que se expressa por uma "re-união" porque, se o signo é sempre menor do que o conceito que representa, o símbolo representa sempre mais do que o seu significado evidente e imediato3. Esta será, portanto, a função simbólica e social do museu: re-unir a sociedade consigo própria, transferindolhe tecnologia para que compreenda o seu passado, o seu lugar, ou a sua cultura. Compreendendo a importância social e política de tal instrumento, o antigo conservador do museu de obras de arte depressa se transformou em comissário, seleccionando acervos e dispondo-os como ilustração discursiva, instalando discursos verbais. Na enorme tradição museográfica, de que os presentes conhecerão muito mais do que eu, Derrick de Kerckhove, um especialista em comunicação, Professor da Universidade de Toronto e Director do Instituto McLuhan, encontrou três fases que designou mais ou menos assim: Museu vitrina, onde se guardam despojos de guerra e a energia vital do povo dominado; as colecções de burgueses cultos do séc. XVI, ainda integram esta tipologia. Pela natureza disciplinar, muitas das colecções arqueológicas e galerias de Arte apresentam-se organizadas este modo. A figura do conservador nasce desta espécie funcional. Museu ideológico, quando a existência de comissários ou curadores, constroem discursos sobre as documentos conservados, assim gerindo acervos e gerando conteúdos históricos, políticos, sociais e estéticos. Mais do que conservar, o museu passou a ser um espaço de produção de narrativas, questionando e respondendo, por vezes sob uma certa demagogia ideológica. Este é o museu moderno que interpreta o mundo e o seu tempo a partir dos documentos que estão à sua guarda. Kerckhove conclui que os museus raramente representam uma vantagem para os seus visitantes em tempo útil, propondo alternativamente uma nova tipologia museográfica que designou por Museu acelerador; este museu consiste num espaço de mediação tecnológica com o visitante que, preservando toda a liberdade da sua escolha, o convidará a explorar interactivamente e de modo directo, máquinas de produção de conhecimento que se liguem às suas necessidades e problemas reais. De certo modo este é o modelo dos museus de ciência experimental que nasceram no séc. XVIII — salas com máquinas onde se assiste experimentalmente aos fenómenos físicos, modelo que hoje subsiste nos centros de ciência viva. 3

http://www.mundodosfilosofos.com.br/mito.htm


Estes três arquétipos museográficos servem-nos para compreender a recente disponibilidade para a integração de tecnologias no museu. Os museus hoje são jogos virtuais, onde se pode mexer, espreitar e manipular. Neste ambiente técnico poderá questionar-se o papel do designer. — Um facilitador técnico que permite a exploração humana da tecnologia? Que facilita a relação homemmáquina? Que promove a alienação pela subjugação do homem à máquina?

Questionado o relacionamento do homem com a máquina feita à sua medida e imitação, Heidegger observa que na essência da máquina encontramos o homem, mas na essência do homem não há nada de mecânico. Para Heidegger, só o discurso da poesia (semiconsciente ou mesmo inconsciente) é revelador da verdade, nem o do palavreado, nem o da ciência superam a sua condição de esquecimento do ser. “o ser desvela-se na linguagem, não na linguagem científica própria dos entes, ou na linguagem do palavrório, mas antes na linguagem autêntica da poesia. (...) Na forma autoral da poesia, a palavra tinha carácter “sacral”: na língua originária, a poesia deu nome às coisas e fundou o ser” (Heidegger); o desenho das formas poderá constituir o acesso a uma função poética dos artefactos, dispositivos e serviços de intermediação cultural que constitui o objecto do Design. Recorrendo ao discurso de Kerckhove poderemos estimar três grande arquétipos museológicos e museográficos: A partir da forma, a partir do conteúdo e a partir da acção:

1. da Forma Função: preservar o passado Tipologia: museu vitrina (conservador) Processo: pensamento indutivo Objectivo: fruir / experiência estética Origem: história de arte Visitante: vigiado pela guarda do conservador Metadesign A valorização de uma segunda função comunicacional para o museu, atribui-lhe um desígnio meta-operativo, da sua valorização simbólica enquanto metáfora. O museu é entendido como espaço de fruição estética, capaz de transformar as percepções daqueles que o visitam, através de meios de encenação da sua própria forma. Essa tecnicidade da metáfora no modo como oculta e revela os


objectos, é o seu maior valor poético. O museu é entendido, ele próprio, como obra de arte. 2. do Conteúdo Função: perceber o presente Tipologia: museu palavra (ideológico) Processo: pensamento dedutivo Objectivo: perceber / experiência analítica Origem: ciências sociais / antropologia Visitante: conduzido pelo guia do comissário Ecodesign A museografia supera a dimensão de caixa fechada, estendendo-se ao território, a partir do qual procura compreender e valorizar etnograficamente, uma relação dos indivíduos com o ambiente. De certo modo o museu reforça o seu estatuto de serviço pedagógico e social, que começa desde logo por questionar os seus limites e objectivos, recorrendo ao discurso analítico verbal para salvaguardar os interesses maiores da sociedade. O museu é entendido como instrumento politico. Consciência social 3. da Acção Função: antecipar o futuro Tipologia: museu interactivo (acelerador) Processo: pensamento abdutivo Objectivo: experimentar / investigação científica Origem: ciências experimentais / design Visitante: autonomia do livre arbítrio Biodesign A museologia é entendida como serviço integrado através da tecnologia, quer pela realidade aumentada a partir do telemóvel, do computador pessoal, ou de outros dispositivos técnicos que promovam a continuidade da experiência museológica para além da sua origem física. A organização biológica e simbiótica que a instituição propõe à sociedade, adquire uma dimensão funcional operativa automática de interacção permanente, mediada pelo equipamento técnico. O museu é entendido como recurso prático de sobrevivência. Instrumento social. Entre os técno-optimistas como Kerckhove ou Pierre Levy, reconhece-se uma evolução histórica nos paradigmas museográficos, com evidente vantagem contemporânea para aqueles que integram tecnologias interactivas (meio de uma inteligência conectiva e colectiva), reduto de maior liberdade na escolha da informação e na compreensão visual dos fenómenos. Mas se o acesso à


informação é hoje incomparavelmente maior, a dificuldade em discriminá-la também aumentou desmesuradamente e, consequentemente, o nível de alienação do utente. Sob a ideia de que há uma evolução do conhecimento, urge saber de que é feita a sua inovação e a sua obsolescência. Não há obsolescência como a da tecnologia; toda a tecnologia tende para a sua rápida obsolescência, condenada a desperdício, evoluindo como as espécies naturais. Mas a criatividade, fundada no pensamento abdutivo, é de natureza poética. Só a poesia imagina o mundo como poderia vir a ser, assim superando os imperativos herdados da história, diz-nos Aristóteles. É a função poética e simbólica dos objectos que transcendendo a sua função prática-funcional, assegurará a humanização da técnica. Slavoj Zizek, no seu texto O design como ideologia, recentemente publicado4, tenciona o Design entre dois pólos: o puro desenho da forma estética, e o design como código, geneticamente transmitido entre organismos. Nesse pressuposto, não distingue Zizek as estruturas naturais das artificiais, considerando o design como produto da vida e para a vida dos seres humanos. A ideologia, diz, nunca é tão aparente quanto a inocente referência á utilidade. No sistema simbólico a “utilidade” funciona como noção reflexiva; ou seja, a afirmação da utilidade está implicada como sentido (assim se compreende aqueles que, vivendo em grandes cidades como Nova Iorque, se fazem transportar por jeeps Land Rovers, assim indicando uma vida vivida, ou pelo menos desejada, sob o signo da terra). Zizeg termina o texto estabelecendo uma associação entre a actividade artística e a capacidade de persuasão sexual dos homo sapiens, que sobrepondo-se ao puro desempenho funcional, desperdiça aos indivíduos grandes quantidades de energia, condição que, aliás, os aproxima de outras criaturas como o pavão macho. Na verdade, a qualidade “estética” não-funcional do objecto fabricado é primordial e a sua eventual utilidade só vem depois, o que o subalterniza em relação à função primeira. Nesse sentido, a definição contemporânea de homem não deveria ser “o homem é um animal que fabrica ferramentas” mas antes, “o homem é um animal que “designa” as suas ferramentas”. Zizeg atende assim à primordial importância que tem a função comunicacional dos objectos, comum tanto aos machados de pedra lascada como aos museus que hoje os expõem, reclamando a maior atenção para uma estética da recepção — perdoem-me a redundância. A forma do museu enuncia ideologias, diz coisas, não é indiferente nem neutra, mas assume o conteúdo de ideias. Se por lado percebemos que certas formas e desempenhos são mais ilustrativas de certas épocas da história — como por exemplo o museu vitrina na exibição pública dos despojos de guerra das Invasões francesas do início do séc. XIX e consequentemente cumprindo o papel de tesouro — por outro verificamos que não há um processo evolutivo exclusivo mas acumulativo. Quer isto dizer que o 4

Zizek, Slavoj, O design como ideologia, in Bártolo, José, Revista comunicação e linguagem, Design, nº 41, ed. Centro de Estudos de Comunicação e Linguagem, Universidade Nova de Lisboa, Outubro de 2010, pp 137 a 148.


modelo museu vitrina, não foi substituído pelo museu interactivo ou museu acelerador mas que, ambos os sistemas, tendem a viver em simbiose, alargando a complexidade da resposta museológica e, consequentemente, o envolvimento semiótico dos seus utentes. Por ouro lado, os modelos modernos e experienciais adoptados nos centros de ciência viva, são comuns às aulas de física do séc. XVIII, assim atravessando o tempo e justificando mais a origem de uma matriz do que da sua evolução paradigmática. As estratégias de museografia parecem emergir mais de uma necessidade de adequação material à natureza dos seus documentos do que à evolução das tendências de consumo. Os museus que no seu processo de comunicação e atracção de públicos, desejam resistir à selecção natural da selva cultural, estão hoje condenados a serem mais sexis. Esta é também uma consequência do processo democrático, e da garantia de total liberdade à escolha popular. Na livre concorrência, a atracção é condição de eficiência. É dessa capacidade para atrair que trata a beleza? A beleza da atracção à consumação sexual é a mesma da transcendência poética? Da catarse (purificação) e sublimação (elevação), como realização simbólica que torna experienciavel pela artificialidade da arte o que parece faltar ao mundo: um particular sentido de ordem onde prevaleça a justiça e a liberdade. A beleza funcional como alienado dispositivo de persuasão sexual ou comercial, produtora de um consumo insaciável, e a beleza como nostálgica aferição de sentido, como superação artificial da ausência pela construção estética da presença que apazigua a alma. Uma beleza que carência pela insatisfação do desejo, que é desejo de repetição e que incrementa a dependência, distingue-se de outra que nos transporta para o interior das nossas próprias experiências, onde residem marcas de memória fundadoras do ser a que desejamos verdadeiramente voltar como condição de existência plena. Se uma traz a excitação sempre insatisfeita, a outra traz a tranquilidade da transcendência do indivíduo e a sua liberdade, porque a sua realização não depende dele mas da relação com o outro. Oposição entre submissão e felicidade. As formas poderão assim assumir uma função libertária, contrariando o processo de repressão da imagem, enquanto instrumento capitalista de alienação pela antecipação representacional da experiência e devolvendo ao consumidor o prazer da experiência em primeira pessoa, redescobrindo-se e redescobrindo o mundo a partir do próprio corpo de existências. A poesia do design não é feita das imagens invocadas pelos seus objectos. O seu valor de metáfora está na própria assunção construtiva, nas soluções técnicas adoptadas, nos materiais e sistemas de transformação, na forma. E na forma simples do quase nada, do fácil e inteligente processo de transformar a adversidade numa vantagem operativa, nasce um prazer artificial que nos faz


sorrir, porque é prova material de um grande milagre que acabamos de testemunhar: a liberdade através da criação de artefactos que são metáfora de uma existência sem constrangimentos, que são lacónicos e nisso a promessa de um mundo menos cínico. Há uma diferença entre os objectos com os quais mantemos relações de afecto pela memória indexada (como se fossem uma espécie de lugares-lugares) e os outros, que nos são indiferentes (como se fossem lugares-não-lugares); a impossibilidade do designer em provocar experiências marcadores emocionais aos objectos que desenha, poderá no entanto despertá-lo para a diferença entre responder às tendências do mercado ou subvertê-las. Levanta-se a questão: deverá o designer desenhar reactivamente o que o mercado lhe pede? Ou pelo contrário, propor proactivamente o que sente necessário, antecipando-se criativamente ao futuro. Isto é, desenhando o futuro e criando novas necessidades ao mercado, surpreendendo-o.


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