Escuta e labirinto1
Leonardo Aldrovandi
Não posso pisar sobre estes esplendores pintados sem que o medo não seja jogado pelo caminho.
Agamemnon, Ésquilo.
Escutar é como entrar num labirinto. Percorrer entrevias, entornos, reentrâncias, pausas e volteios. A música e a poesia podem ser vividas e criadas como um labirinto; arquiteturas para o esforço de uma viagem efêmera. Viagem efêmera como razão de um esforço construtivo. Num labirinto nunca estamos nus e sempre parecemos entrar em outra esfera de tempo. Conjunto de sombras e cristais, vias e câmaras abertas, embutidas umas nas outras, onde cultura e linguagem tecem paredes condutoras junto à pele. Ferramentas e utensílios da inteligência permanecem
1
Este texto é uma versão curta e readaptada do primeiro capítulo do livro O Sonoro e o Imaginável. São Paulo: Lamparina Luminosa, 2014. O livro pode ser adquirido através do website da editora: <http://www.lamparinaluminosa.com>.
entorpecidos. A pele, medrosa, estremece, escuta e estrebucha, enquanto vias se multiplicam ou involuem. Vias nunca subtraídas, apenas recuadas da percepção e da memória. A entrada no labirinto é a aventura de uma outra espécie de sensação do mundo, assim como a escuta, a música e a poesia podem ser. Como definir distâncias e formas em condições tão passageiras ou sombrias? Estrelas cadentes, fios de palha incandescente, práticas estranhas. Uma chama sonora arde efêmera enquanto os pontos, os signos e as passagens podem promover alguma fixação constelada, abstrata e cintilante. Um labirinto pode ocultar a receita da sua saída, o meio mais ou menos simples de encontrar uma solução. Por mais rebuscado e complexo que seja, é sempre uma construção arquitetada e finita, na qual um curso histórico pode ou não triunfar. Mas o que importa no labirinto, como na escuta musical ou na poesia, não é solucioná-lo. Sua vitalidade encantatória alimenta e é alimentada por duas grandes faces vorazes: esforço e errância (labores et errores)2, onde rito e jogo fazem bodas eternas. Circunstâncias matizam e riscam o espaço e o tempo onde a vida pode se transformar, atônita. Labirinto da poesia, da música, da escuta. É preciso adentrar, entrecortar, costurar, bordejar por entre paredes intermináveis. Terreno de atos sem planejamento, lei ou regra de antemão. Sonhos sempre amanhecentes. Gestos de composição. Se o labirinto está presente em quase todas as tradições humanas, o que ele, como a escuta, oferece de tão fundamental à nossa experiência? Emergência em um novo mundo, transcendência, renascimento, vitalidade dos desvios e dos retornos, gestação, útero, via da digestão, operação sem guia terreno ou divino, jogo dançante, enredo corporal e material,
campo social limítrofe, marcado por uma certa indiferença ao grupo,
impessoalidade munida de uma consistência intemporal, forma de trabalho lúdico, ação do corpo e da alma. Podemos encontrar tantas potências significativas para o labirinto quanto se queira. Viver seus volteios, enredar-se em sua armadilha, tecer um trajeto delirante e errático, tudo isto parece nos alimentar de forma análoga à experiência da música e da poesia. Nenhum olhar científico, estético, 2
Referência à Eneida, de Virgílio, onde há vários momentos de associação entre a ideia de labor e a ideia de erro para contextos labirínticos. Exemplo: “Minotaurus inest, Veneris monimenta nefandae, hic labor ille domus et inextricabilis error”, livro 6, versos 26-27.
histórico, antropológico ou social, parece satisfazer esta curiosidade e esta experiência por completo. Escuta-labirinto, toalha de renda granitada por imagens. Botânica do devaneio. Como viver este mundo? Há no labirinto um enleio vital que vai muito além do mero desafio espacial. Tantas peças soltas de um mundo sonhado. Nos parques de diversão e no imaginário mais fantástico, portas falsas e passagens camufladas, espelhos, truques e seres sobrenaturais; estes últimos, quase sempre inofensivos, embora pouco confiáveis. Suspeição como grande motor. Tudo no labirinto é vivido na forma da mistura espúria: signos e sensações bastardos, fugidios, efêmeros. Vestígios encalacrados. Suspense. Não se pode descartar dali qualquer memória eidética. Volúpia dos fantasmas, dos reflexos, graça do engano, perambulação amnésica, sedução dos mistérios imaginativos. Qualquer descrição possível através dos nossos conceitos e gramáticas, sujeitos, seres, entes, linhas, planos, afetos, estruturas, objetos, substâncias ou pronomes, teorizações ou palavras, não poderá substituir sua experiência de feitura e de viagem. Se descrito como campo paratático, por exemplo, abstrai-se e reduz-se sua vitalidade a condições lingüísticas ou psíquicas. Mas sempre poderemos afirmar algo sobre suas características infinitamente desdobráveis. Formas e signos como ervas daninhas. Ação multiplicadora do espelhamento, não apenas das paredes, mas de todas as formas de vida ali encontradas, objetos e seres esquivos, refletidos e reflexivos, conscientes ou inconscientes, deformados ou não por anamorfismos diversos. Tudo pode moldar ou influenciar o rico processo de uma decisão, povoar de diferença o estágio e a direção de uma travessia, como na escuta, como na poesia, onde o risco é a própria efetuação do traço ou retraço, mimesis um tanto quanto indefinível. A marca de caminhos e descaminhos em historicidade frágil. As projeções psíquicas refletidas, deformadas, deformadoras. Risco, também, como lance de coragem da nossa ignoscência3 e, com ela, das impropriedades necessárias em toda ação artística, em toda imaginação.
3
Ignoscência como algo diferente de ignorância, já que esta pode ter conotação pejorativa. Como a fosforescência ou a luminescência, a ignoscência seria a condição frágil e momentânea na qual nos dispomos a conhecer sem nos guiarmos por um conhecimento prévio ou uma espécie de estado criativo de ignição momentânea sem base em conhecimento.
La escucha y el laberinto4 Leonardo Aldrovandi “No puedo pisar sobre estos esplendores sin temor por el camino”
Agamemnon, Ésquilo
Escuchar es como entrar en un laberinto. Recorrer senderos, entornos, desniveles, pausas y vueltas. La música y la poesía pueden ser vividas y creadas como un laberinto; arquitecturas para el esfuerzo de un viaje fugaz. Viaje efímero como motivo de un esfuerzo constructivo. En un laberinto nunca estamos desnudos y siempre parece que entramos a esfera del tiempo. Conjunto de sombras y cristales, vías y cámaras abiertas, incrustadas unas en otras, donde cultura y lenguaje levantan paredes conductoras junto a la piel. Herramientas y utensilios de la inteligencia resultan torpes. La piel, temerosa, se estremece, escucha y se sacude mientras las carreteras se multiplican o involucionan. Vias nunca anuladas, apenas advertidas en la percepción y la memoria. La entrada al laberinto es la aventura de otro tipo de sensación del mundo, así como la escucha, la música y la poesía pueden serlo. Cómo definir distancias y formas en condiciones tan efímeras y sombrías? Las estrellas fugaces, hilos de paja brillantes, prácticas extrañas. Una llama sonora arde pasajera como
4
Este texto es una versión corta y readaptada del primer capítulo del libro O Sonoro e o Imaginável (Lo sonoro y lo imaginable), São Paulo: Lamparina Luminosa, 2014. El libro se puede adquirir por internet en el website de la casa editorial: <http://www.lamparinaluminosa.com>.
los puntos, los signos y los pasajes pueden promover alguna fijación constelada, abstracta y cintilante. Un laberinto es capaz de ocultar el mapa de su salida, el medio más o menos simple de encontrar una solución. Por más rebuscado y complejo que sea, es siempre una construcción pensada y finita, en la cual un curso histórico puede triunfar o no. Pero lo que importa en el laberinto, como en la escucha musical y en la poesía, no es resolverlo. Su vitalidad encantatoria alimenta y es alimentada por dos grandes etapas voraces: esfuerzo y errancia (labores y errores5), donde rito y juego contraen nupcias eternas. Circunstancias matizan y arriesgan el espacio y el tiempo donde la vida, atónita, puede tranformarse. Laberinto de la música, de la poesía, de la escucha. Es preciso profundizar, entrecortar, coser, bordear paredes interminables. Terreno de hechos sin planeación, ley o regla de antemano. Sueños siempre amanecibles. Gestos de composición. Si el laberinto está presente en casi todas las tradiciones humanas, ¿qué es lo que él ofrece, como la escucha es tan fundamental para nuestra experiencia? Emergencia en un mundo nuevo, trascendencia, renacimiento, vitalidad de los desvíos y los retornos, gestación, útero, vía de digestión, operación sin guía terrenal o divina, juego danzante, guión corporal y material, campo social limítrofe, marcado por una cierta indiferencia al grupo, impersonalidad provista de una consistencia intemporal, forma de trabajo lúdico, acción del cuerpo y del alma. Podemos encontrar tantas potencias significativas para el laberinto como se quiera. Vivir sus meandros, enredándose en su trampa, tejer un camino delirante y errático; todo parece alimentarnos de forma análoga a la experiencia de la música y de la poesía. Ninguna mirada científica, estética, histórica, antropológica o social, parece satisfacer esta curiosidad y esta experiencia por completo. Escucha-laberinto, toalla cuajada de imágenes en su ingreso, botánica del devaneo. ¿Cómo vivir este mundo? Hay en el laberinto un encantamiento vital que va mucho más allá del mero desafío 5
Referencia a la Eneida, de Virgílio, donde hay varios momentos de asociación entre la idea de labor y de error para contextos laberínticos, por ejemplo: “Minotaurus inest, Veneris monimenta nefandae, hic labor ille domus et inextricabilis error”, libro 6, versos 26-27.
espacial. Tantas piezas sueltas de un mundo de sueños. En los parques de diversión y en el imaginario más fantástico, puertas falsas y pasajes camuflados, espejos, trucos y los seres sobrenaturales; estos últimos, casi siempre inofensivos, aunque poco fiables. Lasospecha como gran motor. Todo en el laberinto se experimenta en forma de mezcla espuria: signos y sensaciones bastardas, fugaces, efímeras. Vestigios atrapados. Suspenso. No se puede descartar de alguna memoria eidética. Voluptuosidad de los fantasmas, de los reflejos, gracia del engaño, errancia amnésica, seducción de los misterios imaginativos. Cualquier descripción posible a través de nuestros conceptos y gramáticas, sujetos, seres, entes, líneas, planos, afectos, estructuras, objetos, sustancias o pronombres, teorizaciones o palabras, no se podrá reemplazar su experiencia de hechura y de viajes. Si es descrito como campo paratáctico, por ejemplo, se abstrae y se reduce su vitalidad a condiciones lingüísticas o psíquicas. Pero siempre podemos afirmar algo sobre sus características infinitamente desdoblables. Formas y signos como las malas hierbas. Acción multiplicadora del reflejo no sólo de las paredes, sino de todas las formas de vida allí encontradas, objetos y seres esquivos, pensativos y reflexivos, conscientes o inconscientes, deformados o no por varios anamorfismos. Todo puede dar forma e influir en el rico proceso de una decisión, pavor de la diferencia a la estación y la dirección de una travesía, como en la escucha, como en la poesía, donde el riesgo es la propia huella de acción y retorno, mimesis un tanto cuanto indefinible. La marca de caminos y descaminos en historicidad frágil. Las proyecciones psíquicas reflejadas, deformadas, deformadoras. Riesgo, también, como arrojo de coraje de nuestra Ignoscencia6 y, con ella, de las impropiedades necesarias en toda acción artística, en toda imaginación.
6
Ignoscencia, como algo diferente de ignorancia, pues ésta puede tener connotaciones peyorativas. Como la fosforescencia o la luminiscencia, la ignoscencia sería la condición frágil y momentánea en la cual nos disponemos a conocer sin guiarnos por un conocimiento previo o una especie de estado creativo, ignición espontánea sin base en el conocimiento.