Recensão Crítica

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Filme Biográfico sobre: Bill Viola “The Eye of the Heart” Realizado por: Mark Kidel 2002 59’ Recensão Crítica Como se percebe no título da minha recensão, a mesma irá incidir sobre a vida, e a sua narrativa, do artista Bill Viola, onde se perceberá o progresso do seu trabalho, desde os finais da década de 60 do Séc. XX até à actualidade. Tentarei pontuar as principais características e diferenças ao longo deste tempo, na sua obra, bem como a forte ligação do seu trabalho à sua vida pessoal e familiar, que será de alguma forma marcante e decisiva no seu processo artístico e na percepção da mesma, pois até o próprio artista, consoante esses momentos marcantes, altera a sua visão ou percepção do mundo, da arte, e do seu próprio modo de produção ou decisão do que pode ser mostrado, apresentado nas suas obras. Além desta breve nota introdutória, abordo agora, de forma igualmente breve, a vídeo art por ser a prática artística onde o autor de insere, que por sua vez se encontra do campo epistemológico da Arte Conceptual. Não é por acaso que quero abordar estes dois conceitos, até porque, além de se reflectirem na obra de Viola, são de certa forma os que melhor se conjugam para a concretização, mais pura ou plena, da Arte Conceptual e da sua matriz teórica que ‘define’ a Arte como Conceito ou, como nos diz Joseph Kosuth “ (…) a Arte só existe conceptualmente. 1” Ou seja, a Arte está no pensamento e não propriamente na técnica ou na coisa. Sendo que a video art, leva-nos precisamente a esse pensamento em detrimento da matéria em si, leva-nos a um pensamento que nos faz ganhar consciência, seja de uma obra, seja de nós próprios, do outro ou mesmo do mundo que nos rodeia, concretizando-se, com isto e em absoluto a Arte Conceptual, o conceito de arte como conceito absoluto, sendo esta a matriz, a fonte. É o elevar, decisivo, do pensamento à essência, do pensamento como factor indissociável da arte, da sociedade e o Eu, do individuo. Em paralelo à época vivia-se um contexto político-social conturbado, tal como Viola faz referência no filme à Guerra do Vietname, “Era a época da Guerra do Vietname. Para a minha geração de protesto político fazia parte da vida quotidiana e essa foi a minha maneira de obter, até a idade adulta, um sentido político (…) 2”, Que fez despoletar uma enorme contestação social, onde o próprio jovem artista se inseria sendo mesmo o porta-voz de uma grupo de activistas que lutavam, entre outras coisas, contra as regras e convenções dos poderes totalitários que eram impostos à sociedade para que estes fossem manietados do pensamento próprio, particularmente questionando o que era passado, à sociedade, pelos media e pela televisão e tentavam que não houvesse qualquer “ (…) interferência a partir de qualquer fonte externa. Temos que decidir o que vemos e editar. A força motriz por trás do movimento-vídeo no começo foi o facto de que nós, eu, e as pessoas pudéssemos fazer a nosso própria TV. Uma televisão que reflectisse as nossas ideias e não as ideias de uma grande corporação que nos controla e nos diga como devemos pensar (…) 3 “. Com isto, os protestos ganharam força e legitimação nos próprios meios de comunicação, para uma mudança de consciência, a chamada contra cultura. Neste contexto de contestação social e aproveitando o boom tecnológico deste período, os artistas mais atentos 1

Conceito abordado no âmbito da U.C. de História da Arte Contemporânea sobre a Arte Conceptual quando J. Kosuth afirma que a Arte depois de Duchamp é conceptual, em natureza. A Arte só existe conceptualmente. 2 In filmografia “The Eye of the Heart”. Tradução própria. 3 ID, Idem.Idem.


e revolucionários aproveitam da melhor forma os ‘meios’, como já referido, para se fazerem ouvir, agarrando a oportunidade, como o exemplo de Bill Viola, e começam a utilizar a televisão mas, essencialmente o vídeo na sua arte e forma de acção, podendo dizer-se que com isto surge a Video Art, pois nada melhor que usar os meios utilizados pelos ‘poderosos’ para fazer chegar a mensagem a mais gente, pois, como é evidente o vídeo e a tecnologia são um fortíssimo canal de comunicação para as massas. Assim, a video art transforma-se na própria comunicação, não com o intuito de mostrar um mero registo, como no caso das outras variantes artísticas inseridas na Arte Conceptual, como a Body Art – Performance ou Land Art-Site Specific, nem tão pouco tem fins narrativos, ou seja, não tem um fim em particular como a televisão ou o cinema (outros meios em crescimento e a vingar à época). O que tememos, sem correr grande risco, com a video art é o conceito de linearidade mas, a meu ver, essencialmente o conceito de continuidade e de movimento. Sabemos que estes temas foram abordados em aula mas depois de os perceber e ‘encaixar’ na obra de Bill Viola, os mesmos ganham ainda mais fundamento e sustentação na minha forma de ver e pensar. Sabemos também que vídeo implica o movimento associado à imagem, a tal que nunca pára, que se dilata no tempo e, por isso, torna-se animada e contínua como já referido, permitindo-nos, por exemplo, ter a consciência do nosso comportamento humano, como na obra de Dan Graham “Present Continuous Past (1974) ” 4, que, por norma, no momento da acção nos é impossível ter, quer pela espontaneidade ou instinto, mas que mais tarde, ao visionar a filmagem, poderemos analisar o comportamento, estar atento a outros detalhes e mesmo à nossa acção e com isso ganharmos consciência de nós mesmos ou do que fizemos numa determinada acção. Aqui entendo que o vídeo dá-nos, pelo seu prolongar no Tempo bem como a possibilidade de o controlar, uma consciência ou pensamento e reflexão da acção realizada, sendo que o meio é como que auto-consciente, pois é ele que nos dá a mesma, ou seja o médium além de ser auto-consciente, por nos mostrar, mais tarde, a possibilidade de termos consciência dos nossos actos, é também, como já dito, a própria mensagem a passar e o que nos dá a possibilidade de explorarmos além do corpo em si, além do corpo físico, ou seja, o corpo metafísico, considerando a mente, a alma ou a consciência desse mesmo corpo físico. Assim, dizemos que o vídeo explora a imagem expandida ou dilatada e não o corpo em si, como por exemplo na body art acontece, ou seja, explora o corpo negativo-o que está ausente do corpo mas no próprio corpo, e aqui pode dizer-se que se concretiza o conceito de heterotopia, como outro espaço do corpo (metacorpofísico) considerando uma presença do ausente (fisicamente, pois é uma imagem) onde se dá ou percebe a divisão primordial entre corpo (presença) e consciência (ausente). Consciência da imagem, invisível, do corpo, sendo uma presença ausente, ou seja, ‘imatérico’, esta ideia está assente nas palavras de Bill Viola quando ele nos diz que “O meu trabalho tenta introduzir as pessoas às dimensões invisíveis da vida, (…) invisíveis porque não são perceptíveis para nós, como as coisas que acontecem rápido demais para nós vermos. 5” Esta frase pareceme um momento adequado para referir a vontade ou tentativa e luta que o artista procura em dar forma a uma consciência, numa larga abrangência, quer seja à sociedade quando luta para que esta pense por si própria e com isso seja crítica, quer à vida em si ou a nós mesmos, interessa incutir a ideia de tomada de consciência dos actos e não fazê-los somente porque sim ou porque nos mandam ou porque o nosso instinto o exige, teremos que ser nós, 4 5

In Present Continuous Past . https://www.youtube.com/watch?v=aLNfUB7JtA4. In http://www.bbc.co.uk/portuguese/cultura/story/2003/10/031023_violarg.shtml. Tradução própria.


conscientes de nós mesmos a consciencializarmo-nos das coisas, dos actos, das vontades, do que queremos. Como se percebe, no meu mind maps, senti necessidade de enquadrar, parte da matéria, sobre a video art, abordada na unidade curricular, para percebermos melhor o seu conceito e para enquadrar estes no trabalho teórico e visual de Bill Viola mesmo que haja outros que serão abordados posteriormente. Mas, já neste momento quero fazer uma referência a uma frase de Bill Viola que vai ao encontro do escrito até aqui e ainda mais além, pois já introduz algum do seu pensamento sobre a sua relação ao ‘olho que tudo vê’, ou seja, ao vídeo/ câmara de filmar, quando ele nos diz que as câmaras “São o meio que nos agarra à vida, uma espécie de compreensão dos sentimentos, para os manter vivos. 6” Com esta frase, a meu ver, muito do que foi escrito até aqui ganha fundamento e está nela reflectido e, não querendo de todo repetir-me, parece-me que esta pequena frase é demonstrativa da necessidade do meio, ou seja, do vídeo para que possamos não só ter consciência dos actos em si mas, mais que isso, estarmos sempre a eles ligados, recorrermos a eles quando pretendermos e com isso perceber os sentimentos que eventualmente possamos não ter sentido, passe o pleonasmo, num determinado momento da nossa vida, e voltar a eles sempre que queiramos e quiçá ter sentimentos ou percepções diferentes com o passar do tempo e da nossa vida. Posto este exemplo, agarro na palavra Tempo para dizer que a mesma está implícita à video art e logicamente ao trabalho de Viola, bem como o espaço mas dessa relação falaremos mais tarde. Refiro-me ao tempo na sua obra desde logo porque ele faz uso do mesmo nos seus vídeos experimentais mais privados e da vida pessoal bem como, mais tarde, nos seus trabalhos já muito mais controlados, pensados e programados com imagens em grande escala e de alta resolução que leva à sua relação a Giotto di Bondone e ao Renascimento Italiano. Posso dizer, sem correr grande risco, de forma sucinta que numa primeira fase do seu trabalho, Bill Viola estava ligado além das experimentações, sendo as próprias imagens criadas de baixa qualidade, à privacidade e obviamente a questão do foro familiar, onde não tinha por objectivo mostrar esses trabalhos, como nos trabalhos activistas, por estarem fortemente influenciados, claro está, por questão familiares e por serem além de privados, reais, pois nem sequer tinham edição. No entanto, há um momento que muda esta forma de pensar que é o caso da morte da sua mãe, onde ele percebe a forte ligação à vida, do nascimento e da morte, como questões que estão intimamente ligadas e passa a perceber, esta mesma ligação, como necessária e decisiva para a compreensão dos sentimentos e vê no vídeo essa mesma eternização ou possibilidade de manter vivos todos e quaisquer sentimentos e com isto o que, até então, era considerado privado passa a público. O nascimento do seu filho, alguns meses após a morte da sua mãe vem pôr a nu este seu entendimento e é como que um cunho para a sua mudança e produção a partir de então. Esta relação entre o nascimento e a morte é trabalhada por ele na instalação Heaven and Earth (1992), mostrada no filme estudado, onde coloca dois monitores de televisão virados um para o outro, sendo o de baixo quem nasce e está na terra, no caso o filho do artista, recém-nascido e em cima e, como no céu, a mãe no leito da morte, que o artista tinha filmado cerca de um antes, aquando os seus últimos momentos de vida, no vídeo The Passing (1991), assumindo que “o filho, ao abrir os olhos pela

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In “The Cameras are Soul Keepers”, https://www.youtube.com/watch?v=uenrts2YHdI. Tradução minha.


primeira vez verá reflectido o rosto da minha mãe a deixar o mundo” 7. Entendo eu como que a ligação falada anteriormente entre o nascimento e a morte e como uma transição, uma passagem, cíclica e contínua, mas, já antes tinha realizado uma obra que continha estes dois momentos, o nascimento e a morte que estavam ligados com a vida, em suspensão, como é o caso da obra Nantes Triptych (1991) 8, obra realizada numa fase em que o próprio artista estava a passar por momentos fortemente sentimentais e conturbados, pela morte da mãe e nascimento do filho. A peça consiste na junção de três vídeos onde são mostradas etapas da vida em dois momentos distintos, sendo o nascimento um momento inicial, seguido do momento da vida e no final a morte, onde apresenta o vídeo da sua mãe no leito da morte, isto acompanhado por um som de choro, respiração e movimento de água durante 30 minutos. Bill Viola confronta, assim, a passagem entre os dois pólos geradores do humano num curto espaço de tempo criando a peça com filmagens reais, não editadas e privadas como uma forma, quiçá, de libertação para ele próprio. Aqui, encontro paralelismo nas suas palavras quando diz que a obra, Room For St. John Of The Cross (1983), que retrata a Inquisição, “Muda a sua forma de pensar e com isto de produzir. Que é quando percebe que a sua luta para mudar o mundo ou o outro, terá que ser antecipada por, primeiramente, mudar-se, aperfeiçoar-se a ele mesmo. Só assim é possível alcançar a possibilidade de libertação da alma e do corpo, que estão vinculados às realidades políticas” 9. Sendo que, num segundo momento, podemos distinguir a obra de Viola desta primeira fase, quando ele passa a explorar as imagens etéreas, as mais belas ou mesmo sublime associadas à vida em suspensão e que se encontra, precisamente, entre o nascimento e a morte já abordados. Parece querer dar outro significado, sentimento ou realce à vida e sua ligação com a pessoa em si, para que este tome, ainda mais consciência e a valorize mais. Assim, explora estas imagens, em movimento, com os novos media e, ao contrário da fase inicial onde a qualidade da imagem não era prioritária, agora em alta resolução, uma imagem de grande escala, diria imponente e até hollywoodesca. Imagem perfeita numa fase em onde ele mesmo já se tornara perfeccionista e trabalhava agora, não em base de documentarista mas, com um rigor e um controlo ao mais alto nível quer da sua parte quer mesmo por já trabalhar com uma enorme equipa, com personagens, figurinos e cenários onde tudo era feito ao mais pequeno detalhe. Recriando obras de grandes antigos mestres da pintura monumental, imponente e perfeita por exemplo dos Renascentistas com especial foco no trabalho de Giotto que ele tanto admira e que mais à frente irei abordar mais pormenorizadamente. Bill Viola como que faz um retorno ou aproximação à pintura, mesmo que em movimento, por mais subtil que seja, como uma representação do real, através do meio, o vídeo, e igualmente uma aproximação ao conceito de janela aberta para o mundo fundamentada na consciência do real, como algo referente. Se percebermos, e eu além de perceber percepciono isso mesmo, alguns dos trabalhos, referidos no filme, de Bill Viola, como por exemplo o “The Quintet Of The Astonished”, “Observence” ou “Emergence” e os contextualizarmos, obviamente com as obras reconstituídas, facilmente se percebe que estamos perante uma pinturas em movimento, por mais pequeno que seja, e onde 2 minutos de gravação se podem tornar em 20 minutos, ou nas palavras do autor quando afirma que: 7

In filmografia “The Eye of the Heart”. Tradução própria. In https://www.youtube.com/results?search_query=bill+viola+nantes+triptych&sm=3 9 In filmografia “The Eye of the Heart”. Tradução própria. 8


“Quando tornamos uma experiência mais lenta, abrimos essa coisa e a torna-se possível para nós penetrar e perceber essa coisa, como um sorriso rápido. Um pequeno sorriso, que na vida real dura dois segundos, eu com a minha câmara faço durar dois minutos. 10" Isto dá possibilidade ao autor, não só de controlar o tempo e as acções ao pormenor como já referido mas, acima de tudo, dá um brutal realce às emoções, aos sentimentos, das pessoas representadas nas obras e logicamente aos observadores das mesmas, a nós, que passamos também a ser observados, sentimos que todos somos observadores e observados, especialmente na obra “Emergence” onde o olhar das pessoas nos parece focar e nos transmite sentimentos vários e ao mesmo tempo alguma inquietação por nos sentirmos observados e até mesmo pela subtilidade dos movimentos, pelo acentuado slow motion que está implícito nas obras, intencionalmente. E é precisamente nesta obra que podemos ver o conceito de omnipresença, a questão da presença e do olhar para todo o lado, estarmos a ser focados, visionados, algo que se perdeu na contemporaneidade. Outra factor nas imagens criadas por Bill Viola, e nas imagens dentro de imagens, quando ele recria os cenários bem como o espaço interior/exterior, dando profundidade à obra usando imagens dentro de imagens, num apelo à continuidade à linearidade, ao espaço e às emoções já utilizadas por Giotto, que foi um dos primeiros artistas a dar a ilusão de vida real (às imagens representadas), quer, precisamente, em termos da emoção dada às pessoas que pintava quer ao espaço que introduzia, com base na perspectiva, mesmo que numa superfície plana, leva-me a fazer uma relação com um outro nome incontornável essencialmente na questão da imagem, da imagem dentro de imagem, da sua ilusão e traição causada, se for vista de forma simplista, quando nos exige que vejamos para além da imagem representada e nos fala na metalógica das imagens, estou a falar dos conceitos de René Magritte. Outra relação que poderei atribuir entre Viola e Magritte será a questão da condição humana, em que de forma distinta ambos lutam para que a mesma se reflicta no pensamento, na consciência mesmo que de forma distinta, ambos a questionaram e tentaram mudá-la. Dar-lhe uma forma, por assim dizer. Outra questão que os une é o paradoxo que tentarem eliminar o próprio meio, se por um lado Magritte quer e anula a própria noção de pintura, usando a tela para o eliminar, como por exemplo na obra “A Traição das imagens”, Viola, penso eu, também anula o médium, no caso o vídeo, quando nos faz entender a sua obra como uma pintura ou um retorna à mesma. Mas estes factores insólitos, de ambos os artistas, e propositados têm por objectivo conseguir fazer com que o espectador ou observador veja as obras apartados de quaisquer convenção ou regra, ou seja, teremos que conseguir ver antes da linguagem utilizada, perceber o registo antes da linguagem e só assim podermos ver a perfeição. Só assim poderemos ver e visionar apartados de qualquer arquétipo ou colectivo social, só assim se fará sentir o Eu. É esta perfeição e pureza que Bill Viola pretende alcançar, a obra dele e ele exigem que vejamos antes da linguagem para anularmos ver de forma formatada de qualquer ética ou moral. Exige que vejamos o que lá está e só isso, da forma mais descomplexada e despreconceitosa, para vermos de forma mais pura e a forma mais pura. Como quando diz, no filme, que: “Após o nascimento, quando abre os olhos, é quando vê na pura forma, pois ainda estamos fora de qualquer convenção e não viciados por questões do contexto.” já falada e sobejamente conhecida no seu discurso. Em todo o caso e em relação à questão de vermos de 10

In http://www.bbc.co.uk/portuguese/cultura/story/2003/10/031023_violarg.shtml. Tradução própria.


forma pura, esta ideia ou luta/procura, remete-me para outros autores que procuraram precisamente o mesmo na questão da forma ou do objecto. Piet Mondrian no Neoplasticismo e Kasimir Malevich no Suprematismo, a meu ver e mesmo que com outras intenções, trilharam um caminho para chegarem à forma mais pura, numa desconstrução total da forma dando como exemplo a obra de Malevich “Black Square (1913) ”. Mas de todas estas referências ou relações, a que mais me interessa, por ser a mais relevante e actual, corroborada pelas palavras de Alexander Sturgis, Curador do National Gallery de Londres quando nos diz “Eu não acho que haja qualquer outro artista em actividade no mundo que tenha uma ligação tão profunda com a arte do passado. 11” E, depois da minha tentativa de fazer entender o caminho até aqui, é a que Bill Viola faz, na sua fase já como realizador, à pintura Italiana do Renascimento, com ponto de referência na Basílica de São Francisco de Assis, em Arezzo, Itália. Que, como o artista refere no filme, é onde: “Estão as obras de vários artistas mas com quem eu mais me identifico como o Giotto, ele pintou uma série extraordinária de frescos na vida San Francisco, em ambos os lados da nave, num certo número de conjuntos de em três painéis em todos os corredores da igreja. 12” Apesar de já ter falado, no decorrer do texto, sobre a ligação e o retorno à pintura, na noção de ‘câmara como mente’ que ‘vê’ e nos dá consciência, concretizada no conceito de ‘High Resolution Image’, quererei agora enquadrar estas premissas do trabalho de Viola nas suas obras concretas. E assim sendo começo por referir a série The Passion, que como o artista refere nos conta: “Evoluiu de forma gradual. O que me cativou foi a forma como me sinto conectado com as pessoas através das obras dos antigos mestres da pintura. Quero dizer a profundidade dos seus personagens (…) desfrutar da presença de uma pessoa de outra época que não está mais connosco.13” Esta é uma série em que Violla reconstitui de forma minuciosa e perfeccionista algumas das obras dos ‘jovens mestres radicais à época’, como carinhosamente lhes chamava. Ainda no filme, mais propriamente que está à conversa, precisamente, dentro da Igreja de São Francisco de Assis, e nos fala sobre ela, dizendo que: “O que me impressiona e inspira neste local é a ideia da totalidade dimensional deste trabalho (…) quando entramos aqui e contemplamos estes Frescos, cada um destes painéis absorve a nossa atenção, mas na realidade o trabalho que mais cativa é o espaço como um todo que nos rodeia e está repleto de imagens” 14, parece ver naquele espaço de dimensão imponente, único, a forma de uma Instalação, visual, Artística. Passando a uma obra concreta, refiro uma onde está, também, presente a questão da maternidade, afectividade e logicamente sentimentos, o vídeo The Greeting (1995), mesmo que marque, significativamente, uma mudança dos trabalhos anteriores, mostra-nos uma figura central feminina, depois vê-se duas mulheres a conversarem, numa praça urbana, até que surge uma terceira figura feminina, grávida, que citará a Virgem Maria. Nesta peça, reconhece-se perfeitamente Jacopo Pontormo, A Visitação 15. Uma outra obra, esta onde a relação a Giotto é evidente, surge da produção The Journey, mais precisamente na Instalação Going Forth By Day, que nos mostra um quarto, em corte, dando para ver o seu interior, aqui surge a relação do espaço, pois estamos em espaço 11

ID. Idem. In filmografia “The Eye of the Heart”. Tradução própria. 13 ID.Idem.Idem. 14 ID.Idem.Idem. 15 In http://www.patiodosgentios.com/belas-artes/pontormo-visitacao/ 12


exterior com possibilidade de ver o interior, é a privacidade a ser posta como pública. A relação entre terra e água também está aqui percebida, pois há um barco que vem carregar os pertences dos donos da casa. Outra dicotomia presente é a tranquilidade patente que por sua vez é conjugada com o drama, que se percebe no desenrolar, lento, da sequência do filme. Há aqui também uma referência à iconografia cristã. Onde a alusão ao nascimento, à morte e à ressurreição estão implícitos. Apesar de ainda não ter falado, o som tem uma importância relevante no trabalho de Viola, pois além dele mesmo afirmar, a certa altura, que o som é primordial, e um acréscimo muito significativo em determinadas obras mas, como o autor trabalha muito com os opostos e os limiares ou a dicotomias como por exemplo a dor/alegria; a morte/vida; o claro (luz) /escuro; a água/fogo e o céu/terra, apresento agora uma obra onde a falta de som realça outros factores ou sensações e, apesar do som não existir o observador da peça ‘percebe’ esse mesmo som, ou melhor percepciona nos gestos, nas expressões na forma de estar das personagens a dor, o desespero, a mágoa, o grito e todas outras sensações que cada um de nós possa ‘ver’. Ou seja, aqui, a meu ver, a falta de som realça mais ainda os sentimentos a serem passados pelos personagens, como é o caso da obra Silent Mountain16(The Passions), 2001. Uma outra obra, Emergence 17 (The Passions),2002, inspirada num Fresco de 1400, de Masolino Panicale, na qual Cristo morto é mostrado no momento da ressurreição, e aqui, no que se refere ao visionado no filme a que esta minha recensão faz referência, é onde se percebe todo o seu rigor, controlo e todo um trabalho de equipa, sendo uma produção plena de estudos para o momento reconstituído seja perfeito e nada possa falhar. Aqui percebe-se, igualmente, que o artista faz todo o processo mental e de esboço, onde se evidencia o seu papel de realizador, apesar de nunca perder o de artista, como é evidente, precisamente por ser ele o pensador. O cuidado com o espaço, os figurinos e os cenários, bem como a acção dos personagens envolvidos juntando à produção de edição de vídeo do autor, a questão do slow motion dão a clara noção de pintura, em movimento já abordada anteriormente, e perfeitamente assumida no trabalho mais actual de Bill Viola. Realço para o personagem de cristo que se levanta, lentamente, como que a ressuscitar no momento que sai da água, elemento importante e associado à vida, ao nascimento. Aqui faço um paralelismo, a este nível, com a obra realizada no Gasometer Oberhausen, Germany, Five Angles For Millenium 18 (The Passions),2003, diria, como a reconstituir uma Basílica monumental contemporânea, pois a forma circular e bastante alta deste local permitiu aos 5 enormes painéis ficarem em dimensões imponentes e com a sua luminosidade bem realçada a contrastar com a escuridão que o local permitia ter. A relação com não será com o nascimento de cristo mas pela elevação dos personagens, tal como o de cristo, onde Viola usa, como recorrente no seu trabalho, a imagem invertida para dar uma sensação de vida cíclica, a questão no nascimento-vida em suspense-morte dando a sensação que os anjos estão a elevar-se ao céu, e com o desenrolar do filme perceber-se-á que alguns deles se elevam da água. Esta dualidade, juntamente com a imagem híper-lenta e com os cinco painéis de dimensões imponentes dão ao espectador imagens visuais e sensações tão fortes quanto belas. A luminosidade, nesta obra em específico é determinante. Os anjos/personagens que aqui falo, poderão também ser considerados 16

In https://www.youtube.com/watch?v=IEVZ1gN4fB8. In https://www.youtube.com/watch?v=hx5Cu7U-Fkg. 18 In https://www.youtube.com/watch?v=LaQhdOrF-EI. 17


Santos e assim associar, uma vez mais, este trabalho ao de Giotto di Bondone, pois uma das suas características, no seu trabalho, era a identificação dos Santos como seres humanos, ou seja, de aparência comum. Estes Santos com ar humanizado eram os mais importantes das cenas que Giotto pintava, assim, a sua pintura de foi ao encontro de uma visão humanista do mundo, que se afirmará cada vez mais até ao Renascimento. Esta referência, acredito que Viola a tenha em consideração no seu trabalho, até porque não só usa humanos como personagens bem como quer uma consciencialização desse mesmo humano e do mundo melhor, mais justo e mais Real. Antes de abordar a última obra que irei falar, e porque é tão relevante quanto o facto de estar presente no filme, é dizer que quando falei no momento da perda que Bill Viola teve e na necessidade de se auto-aperfeiçoar para depois, sim, poder aperfeiçoar o mundo que o rodeia, baseou-se em amplas variedades de fontes, como a arte oriental e ocidental, as tradições espirituais, como o Zen e o Sufismo Islâmico e Misticismo Cristão. É sabido disto mas não queria deixar de fazer referência, até para realçar toda a sua capacidade de auto-avaliar e perceber que muito lhe faltava para fazer face ao que pretendia, é de facto um exemplo a seguir. E desta ideia parto para a obra que deixei para o final, The Quintet Of The Astonishead 19 (The Passions), 2000. Além e ser uma das principais obras de Bill Viola e, obviamente por estar inserida na série ‘As Paixões’ é, assumindo o risco que será escolher uma obra, para mim das obras mais completas, talvez por ser a que, provavelmente, me criou mais sensações, sentimentos vários e percepções que nenhuma outra me suscitou. Bem, receio que com isto seja a obra que me inibirá mais em falar sobre ela mas a ver vamos. Dizer, antes de mais, que é uma obra inspirada numa pintura de Hieronymus Bosch sobre um quarteto de carrascos que rodeavam Cristo. O filme, ao que consegui apurar, “é filmado a alta velocidade, permitindo que a acção fosse abrandada drasticamente quando produzida, o vídeo é um quadro intenso de mudanças de emoções momentâneas. 20” Ora nesta pesquisa e constatação, e só a vi posterior ao sentido perante a peça, posso, eventualmente, decifrar o porque de a mesma me dar uma mais compecta ou mais fortes sensações e sentimentos, pelo facto de ter havido, por parte do artista, algo que não vejo ser efectivado noutras obras, a radicalização dos movimentos/sentimentos dos personagens causados pela acentuada diferença entre a forma real como foram feitos, em alta velocidade, e o posterior ajuste ou edição realizada pelo autor quando trava esses movimentos usando um forte slow motion, acredito que este factor dê aos personagens e, consequentemente aos observadores mais percepções, sensações, conjugado com o facto do seu posicionamento e da sua performance individual. Destaco a figura feminina que além de estar num primeiro plano, ostenta uma expressão fortíssima e reveladora, bem como a expressividade das suas próprias veias ou até mesmo o facto de estar pálida, onde a luz tem enorme incidência e claro, por ser uma mulher e em sofrimento, induz ainda mais ao sentimento. Estou a pensar novamente na peça Silent Mountain, abordada atrás, e também esse personagem, mesmo sem som, nos dava enormes sensações mas, porque tinha gestos mais bruscos, ou seja, menos subtis como nesta peça, é que para além de toda a subtilidade ela torna-se ambígua, e se olharmos para uma certa parte (da tela, vou considerar assim) parece calma e tranquila, de repente mudamos o nosso olhar e ela torna-se impiedosa, é aqui também que percebo, uma vez mais, a dicotomia que o trabalho de Viola alcança com uma facilidade eloquente. 19 20

In https://www.youtube.com/watch?v=As7OtWMYPRc. In http://nga.gov.au/viola/passions.cfm.


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