Minotauro 0| Labirintos | Agosto/2010

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jardins, os túneis, as curvas, as galerias; os fios, os novelos, as tensões; os pais, os filhos, as asas; o amor, a morte e as impossibilidades – tudo o que nos devora e nos consome quando caímos em nossos abismos. Nossos monstros e monstruosidades, nossos cortes ainda abertos; estamos sempre em círculos, procurando ou temendo o espelho, o centro derradeiro. Emaranhado de vozes, imagens, letras – fios que nos levam para o interior dos labirintos - qualquer espaço que nos conduza ao nosso próprio Minotauro.

“Queda bien que en el centro de una casa monstruosa haya un habitante monstruoso.” Jorge Luis Borges, El Libro de los Seres Imaginarios



Não ocultei o monstro: Jamais hei de ocultá-lo. Jamais erguerei paredes para vedá-lo às vistas dos curiosos e maledicentes. Jamais hei de exilá-lo. Ao contrário: plantei-o no trono do salão central do palácio que ergui para abrigá-lo, na capital do meu reino, no umbigo desta ilha que eu mesmo tornei eixo do mundo. Que para ele convirjam todos os turistas, todas as rotas marinhas, todas as linhas aéreas, todos os cabos submarinos, todas as redes siderais. Construí canais estradas viadutos ferrovias funiculares pontes túneis até o palácio;

antônio cícero

minos


depois, áditos pórticos limiares entradas umbrais aléias ânditos elevadores passagens escadas ombreiras travessas portas corredores servidões rampas porteiras vielas passadouros escadarias portões arcadas soleiras portelas caminhos galerias sendas portais veredas cancelas áditos pórticos limiares entradas umbrais aléias ânditos elevadores passagens escadas ombreiras travessas portas corredores servidões rampas porteiras vielas passadouros escadarias portões arcadas soleiras portelas caminhos galerias sendas portais veredas cancelas áditos pórticos limiares entradas umbrais aléias ânditos elevadores passagens escadas ombreiras travessas portas corredores servidões rampas porteiras vielas passadouros escadarias portões arcadas soleiras portelas caminhos galerias sendas portais veredas cancelas alamedas e áditos pórticos limiares entradas umbrais aléias ânditos elevadores passagens escadas ombreiras travessas portas corredores servidões rampas porteiras vielas passadouros escadarias travessas portões arcadas soleiras portelas caminhos galerias sendas portais veredas cancelas áditos pórticos limiares entradas umbrais aléias degraus portinholas ruelas ânditos elevadores passagens escadas ombreiras travessas portas corredores servidões rampas porteiras vielas passadouros escadarias portões arcadas soleiras portelas caminhos galerias sendas portais veredas cancelas alamedas áditos pórticos





entrada do labirinto renato marques


dentro do

labirinto

cassiano viana

O homem e seus labirintos A cidade e seus labirintos A inocência e seus labirintos O crime e seus labirintos O amor e seus labirintos A carne e seus labirintos A solidão e seus labirintos O sexo e seus labirintos O estômago e seus labirintos O Verbo e Seu Labirinto Dédalo, Minos, Teseu, Ariadne, Dante, Borges e Maria Kodama, Cortázar, Picasso, Bataille

Dentro de todos, Dentro de mim, Dentro dele, Dentro de você No centro da arquitetura, Nos aguarda Uma Esfinge [diria Édipo] O devir? [diria Deleuze] Identidade? [diria Anais Nin] O monstro Beleza [diriam Gide e Cocteau] Um espelho?[diria Lewis Carroll] O corvo [diria Allan Poe] Dharma [diriam os budistas] Shiva [diriam os hinduístas], quando deveria ser Krishna [Renovação] (No fundo, todos querem o Nirvana).


o enigma subterrâneo Duas pessoas em um vagão de metrô viram simultaneamente a mesma página de um mesmo jornal. Em uma outra estação, alguém cuja probabilidade do reencontro era mínima; o desencontro dos amantes, afetos que cruzam a cidade em sentidos opostos, outros cujo olhar esbarra, os movimentos perfeitamente sincronizados; amigos que se encontram, desafetos que seguem a mesma direção, o mistério que é a mulher que passa chorando, daquela que dorme indiferente ao entra e sai,

indiferente à angustia, o cansaço e a desesperança nos olhos de um homem, indiferente ao buque de flores do campo nas mãos do rapaz, indiferente ao sorriso da outra. Lugar onde o tempo era, é e será, protegido por camadas de pedra e solo, tudo tange inúmeras realidades, aqui embaixo, seja em Paris, São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires, Madri ou Berlim. Todo metrô é também uma espécie de labirinto.

manuscrito hallado en un bolsillo sergio werner


no labirinto Acordo com o marulhar do jato dágua na cisterna, um arco líquido e liso que se projeta da boca do leão de pedra, abre um orifício na laje do pátio e se derrama no vazio. Trabalho no ensaio comparando migrações forçadas e literaturas bilingues. Lavo os olhos e bebo. As paredes estão cobertas de palavras e equações mais antigas do que elas. Uma escada de corda balouça. Prendo a espada ao cinto e começo a escalar. De hora em hora descanso, apoiado aos galhos da sequóia que me envolve por todos os lados, e cujas folhas são todas do mesmo tamanho. Inicio a tradução do conto sobre o porão que se movia. Desprezo algumas passagens, salto para uma plataforma coberta de asfalto negro, onde caminho por meia hora.

bráulio tavares

Chego a uma porta corta-fogo, que forço com a espada. Dali tenho acesso a um túnel escavado entre paredes de calcáreo amarelado, iluminado por lâmpadas que pendem de um fio horizontal, a intervalos de dez metros; o túnel é estreito, mal me dá espaço para ficar de pé. Descanso enquanto finalizo a tradução e começo um artigo provando a falácia da literatura na primeira pessoa. Quando termino, ponho-me de novo em marcha, e percebo que caminho sobre restos dos trilhos e dormentes de uma estrada de ferro. O trajeto faz ziguezagues bruscos a intervalos de poucos metros, o que acaba me cansando. Quando a escotilha de vidro aparece novamente na parede, empurro-a, ela gira nos gonzos cravejados de jóias,


dando-me passagem para uma escada de acrílico transparente, que subo com cuidado, porque ele cede ao meu peso, ameaçando romper-se. A certa altura começo a questionar se vale a pena seguir por ali, pois abaixo de mim, através de sucessivas camadas translúcidas, vejo o que me parece a orla semicircular de uma praia à noite, com minúsculos coqueiros. Uma plataforma transversal de madeira avança suavemente. Deixo-me descansar deitado sobre ela, que mergulha num outro túnel, desta vez ladrilhado por dentro com desenhos feitos às cegas. Aproveito para revisar manifesto pela criação de uma guilda de criptógrafos. Chegando à praia rolo para o lado, sujando-me de areia, e o cansaço me leva a adormecer ali mesmo. Acordo com a maré montante molhando-me as pernas e rastejo até o barranco, onde durmo mais um pouco.A faixa de praia tem dez metros de largura até atingir a parede de metal.

Decido-me pela esquerda e caminho algumas horas até alcançar a porta giratória que me dá acesso à caverna de pelúcia. Começo poema de tema praieiro, em tetrâmetros anfibráquicos. A caverna tem duas saídas: um corredor largo, escavado na madeira, e um aposento de chão espelhado cuja extremidade não se avista. Entro pelo corredor, que aos poucos vai ficando em declive até que começo a escorregar, descendo cada vez mais depressa. Galerias paralelas derramam água com afluentes de um rio, e logo me vejo num tubo encachoeirado, lutando para respirar, mas por fim o tubo se alarga e o jorro dágua me projeta num espaço vazio; girando no ar percebo que fui despejado num arco líquido que se projeta da boca do touro de pedra e se espalha num vazio cintilante de galáxias. Começo as anotações para um haikai sobre a linguagem das abelhas.


o labirinto de cortázar

bia dias

Sobre uma mesa da biblioteca da faculdade, um marcador de livros perdido/encontrado, em que alguém escreveu: Cronópios. Carreguei comigo durante anos, como um enigma, a palavra sonora e labiríntica. Foi também de forma espontânea e livre que, anos mais tarde, encontrei ‘’O Jogo da Amarelinha’’ e descobri Júlio Cortázar e seu quebra-cabeças, que colocou em dúvida a literatura e sua relação com a realidade. Penetrei naquele labirinto, sem saber ainda qual seria a linha de costura que me ajudaria a sair desse infinito cheio de lados.

Eu era Cronópios e também não me contentava com o lado aparente das coisas. Mergulhei no mistério e no enigma sem a intenção de desvendá-lo, mas me permitindo me perder num mundo de criatividade não estruturada, em que uma galeria em Paris conduzia a uma galeria comercial em Buenos Aires com naturalidade;no qual as casas são tomadas pacientemente, cômodo após cômodo, por forças desconhecidas que aterrorizam seus habitantes, mundo onde duas sacadas de um manicômio podem se unir por meio de uma grande tábua.


Descobri que a literatura sempre foi esse estar em trânsito por um mundo, onde as coisas sempre estão fora de seu lugar e só se revelam no caminho. No jogo da amarelinha e nas armadilhas da linguagem me permiti flanar entre trocadilhos, charadas, anagramas, pontes e andei por universos absolutamente novos. Vivi com Clarice Lispector alumbramentos e dores. Descobri Homero com sua Ilíada, Shakespeare com Hamlet, Cervantes com Quixote, Proust com sua recriação do tempo e da memória, Sófocles com seu Édipo fascinante, Flaubert com sua madame enigmática, Baudelaire com suas flores do mal, Faulkner com seu som e fúria, a terra desolada de T.S Eliot, a temporada no inferno de Rimbaud, o estrangeirismo de Camus, a Medéia de Eurípedes, a comédia humana de Balzac, o absurdo de Beckett esperando Godot e, mais tarde, os cantos de Maldoror de Lautréamont.

Entrei em crise com a náusea de Sartre, submergi na poesia de Pound, conheci o mundo fantástico de Borges com seus seres imaginários. E nesse labirinto infinito da linguagem, como o labirinto de Creta que alojava Minotauro monstro metade homem, metade touro – consegui, como Teseu, derrotá-lo e encontrar o caminho de volta, graças ao fio de um novelo desenrolado ao longo do percurso. Meu fio de linha foi Cortázar. Li e reli e mil encadeamentos se fizeram. No jogo da amarelinha as citações, cartas, existencialismos, alegorias, esconde-esconde e desvarios me intrigaram. Uma ponte, uma porta e se cai no reino onírico. Fácil assim, e o imponderável se abre sem volta para quem parece ter nascido para não aceitar as coisas tal como nos são dadas.



europa raptada sergio werner


ariadne em naxos

francesca angiolillo

Antes houvesse amado o labirinto o seu desenho, o engenho – o infinito que escorregar por esse amor escuro em cujo centro me devoro eu mesma. Amar um homem que me quis traída, que corta o fio a que deveu a vida: antes houvesse amado o labirinto em cujo centro o Minotauro espreita. Tendo no Egeu algoz e companhia, contemplo o céu que me negou guarida ao permitir que tão infeliz filha amasse o homem que lhe deve a vida. Aqui na areia desta ilha estreita me dou à espuma vil que me assassina.

– Ouve, Ariadne, a que o amor governa: virá do Olimpo o gozo sempiterno.


sagrada a conspiração georges bataille O homem escapou de sua cabeça assim como o homem condenado escapou de sua prisão. Ele encontrou-se não fora Deus, que é a proibição contra o crime, mas um ser que tem conhecimento da proibição. Além do que eu sou, eu me encontro com um ser que me faz rir, porque ele é decapitado, isto me enche de temor, porque ele é feito de inocência e crime, ele tem uma arma de aço em sua mão esquerda, como as chamas de um Sagrado Coração, em seu direito. Ele reúne na mesma erupção de nascimento e morte. Ele não é um homem. Ele não é um deus qualquer. Ele não é comigo, mas ele é mais do que eu: o seu estômago é o labirinto em que ele

se perdeu, perder-me com ele, e no qual eu me descobrir como ele, em outras palavras, como um monstro.

Tradução:

paola refinetti


ariadne e o delírio da negação

daniela lima renato essenfelder

Shakespeare, em Macbeth, definiu a vida como “um conto narrado por um idiota, cheio de som e fúria, e que nada significa”. O idiota shakespeariano é um arquiteto, que projeta percursos intrincados, criados com a intenção de desorientar quem os percorre: A vida é um processo ininterrupto e desesperado pela busca de um arcano. Quantos labirintos (e arcanos) existem? Externos, internos, externo-internos, criados por um idiota metafísico ou por nós, idiotas de carne e osso.

A estratégia para solucionar estes labirintos é o fio de Ariadne? Na estratégia de Ariadne, entramos no labirinto com um fio condutor que nos levará – sem maiores riscos – até a saída. O fio seria a materialização do amor de Ariadne? Para além de salvar Teseu, Ariadne pretendia conhecer as possibilidades do labirinto. Tocar suas esquinas e ouvir a sua respiração; sua sístole e diástole.


Ariadne não se via como os outros a viam. E, se a amavam, era “pelos motivos errados”. Sofria de síndrome de Cotard, o Delírio da Negação da própria existência do mundo. Vagava sem visitar amor-paixão; sem perder de vista o horizonte da própria mão grudada ao corpo, noite e dia longe do ar. Teseu foi usado por Ariadne; foi um meio para chegar ao labirinto – abismo – que lhe habitava; para se entregar enfim não a homem postergado, besta, mas a si mesma: era presa de outros minotauros. Ariadne sacrificara-se pelo herói idealizado, num impulso de autodestruição. Ou outra pulsão reprimida, morte e vida feminina, que seu interesse secreto só poderia ser regredir: Princesa>mulher>besta>selvagem natureza>macaco>pedra>pó Deslizaria entre os cornos do minotauro até anular-se de tudo. “Intercâmbio de líquidos, de fluidos, de saliva, hálito e cheiros fortes, urina, sêmen, merda, suor, micróbios, bactérias”. A pulsão de um sexo autodestrutivo. Sem limites. Repulsa ao corpo, repulsa à gratidão pela vida – que afinal não escolhera. A intenção não é guiar Teseu afinal; é conhecer o som e a fúria.



desfiartecer pedro curi


o minotauro hodierno

maykson de sousa

e era homem, coberto de uma espera circular entre paredes de ópio e cal. e as mãos eram sujas e a face era dura como duro é o chão. e era homem, incerto de uma esfera contínua de um canto antigo entre o dia esquecido e a sombra do espelho incisivo de um sonho.

era homem, cativo em O Labirinto de um Minotauro Hodierno.




labirintos manuel caeiro


0 1 0 2 , o r a íc

mariana amaral

Todo o dia era sempre o mesmo: acordava antes do despertador. Chuva ou sol, caminhada. Em seguida, ducha fria. Barba rente, pente, gel. (Uma rotina rigorosa brindada a cada manhã com dois tabletes de vitamina C.) Chegava cedo ao escritório; usualmente, adiantado. Postava-se em frente ao espelho do banheiro. Admirava satisfeito a camisa bem passada, e os esmerados vincos da calça social. Os dias prosseguiam entre normas e prescrições médicas.

Contador concursado, há mais de década na mesma empresa, administrava a vida com rigor matemático. Dormia oito horas por noite. Comia de três em três horas. Não bebia nem fumava. Exímio cumpridor de regras, correto, obediente, Ícaro mantinha-se longe de todo mal. Também não costumava conversar com pessoas do trabalho. Apesar disso, em uma manhã igual a todas as outras, um colega observou: - Ícaro, por que as persianas da sua janela estão sempre fechadas? Deve estar perdendo dias lindos lá fora.


Não conseguiu responder. Mesmo incerto, girou as hastes que comandavam as lâminas de alumínio e descortinou um azul tão intenso... Abriu a janela e afrouxou o nó da gravata. Aqueles que o viram sentado no parapeito afirmam: lançou-se firme, de braços abertos ao seu destino.


minotauro Jorge Luis Borges

nº 0

Antônio Cícero antoniocicero.blogspot.com Clarissa Cestari clarissacestari.blogspot.com Tânia Paleólogo Renato Marques Cassiano Viana cassianoviana.blogspot.com Sergio Werner aji2000.free.fr Bráulio Tavares mundofantasmo.blogspot.com Bia Dias flordebelalma.blogspot.com Manuel Caeiro lurixs.com Francesca Angiolillo jardimpublico.blogspot.com Georges Bataille Paola Refinetti Daniela Lima danielalima.com/blog Renato Essenfelder contosdefarpas.com Pedro Curi pedrocuri@gmail.com

Maykson de Sousa cafemosaique.blogspot.com Mariana Amaral mariana.amaral@gmail.com Julio Cortázar § capa e contracapa O Banheiro de Ariadne Diego Paleólogo infernocafe.wordpress.com


“A nau chegara quando as sombras, calcinadas de meio-dia, simulem o caracol que se recolhe para considerar, úmido e secreto, as imagens de seu âmbito de repouso. Ó caracol inominável, ressonante desolação de mármore, que silêncio fosco discorrerão tuas entranhas sem saída! Lá reside, legítimo habitante, essa tortura de minhas noites, Minotauro insaciável”. Julio Cortázar, Os Reis Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman.

“Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto”.

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Jorge Luis Borges, O Labirinto Tradução de Miguel Angel Paladino

Minotauro Número 0 Rio de Janeiro (RJ) - Agosto de 2010 Editores: Cassiano Viana e Diego Paleólogo Projeto Gráfico: Diego Paleólogo Impressão: Walprint Gráfica e Editora Tiragem: 500 exemplares

minotauro.revista@gmail.com



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