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de machos velhos armados com metais velhos forjados com vozes de veludo amarram minhas pernas acariciam minhas pernas ao que miram meu rosto contorcido então raspam-me o leito não tiram nunca de dentro suas garras frias até que se aniquile a própria idéia do calor até que a câmara solte-se do coágulo num ruído agudo e volumoso e você já pode ir para casa eu estou para atravessar a avenida e eu nem posso estar de pé e nem dói nem nada, ou melhor, eu não faço força, eu tento estar ao sol,
até o romper de músculos
minhas entranhas já não vibram cheias de vontade, já não dilatam em câmaras o conjunto já não provocam mistérios na carne ampla e dissemelhante minhas entranhas sangram moles feridas, igual quando sozinho quando deixado sozinho o sol se põe e não se pode fazer nada, e já não posso manter meus olhos abertos, eu vejo a luz cair por uma fresta e adormeço sinto uma vertigem incontrolável por dentro, de um ponto exato eu vejo do prisma do sangue cercado por lobos meu útero se esvai de cansaço, se aproxima a matilha por muito aguardou a matilha
camila moura
como estivessem os canais do desejo preenchidos de alarme eu permaneço calada, eu não me mexo e nem faço força a máxima intimidade oferece jantares a grandes médicos, e mais o sangue escorre pelos canais e cai numa cuba refrigerante, e instala-se o frio, e o estéril trauma, e o sangue será jogado na privada, e tudo será banhado com álcool, e a ferida será deixada sozinha e sem nenhum ritual de paz
o útero se deixa rasgar, o útero inteiro ergue-se ao corte, ele persiste em sua forma mesmo sob ataque frontal: não desaparece, não volta ao barro, não participa nem sofre com o flagelo o que sinto que tenho não passa de um tremor localizado distribuindo numa ação direta a potência que então concentrava entre todos os homens, em ondas, perdendo intensidade de acordo com o afastamento radial do epicentro mas sem jamais chegar a zero meu corpo alimenta uma cidade desconhecida e as avenidas que cruzo de olhos fechados como setas e entre nós esta rede de carne como uma idéia prematura como se a cabeça transferisse toda sua importância ao ventre como se ali, enfim, um olhar se concretizasse, depois do fim...
o soluรงo renata de bonis
dentro do
quadro azul patrícia reis
O soldado mantém-se quieto, calado. Consegue cheirar o seu suor, o seu sexo, a sua boca seca, o azedo do medo. Tem 19 anos. Apenas 19 anos. O carro andou aos solavancos e o homem ao volante, gritou qualquer coisa em árabe. Havia um padrão preto e branco de um kaffiyeh. Lembrou-se das imagens de Yasser Arafat, cartazes que viu em criança, com a legenda “sempre contigo”, há muito tempo, antes de Ramallah, da velhice, da doença, do hospital em Paris, da morte. Nessa altura ele, o soldado de 19 anos no carro a fugir à vida, tinha beijado e penetrado a sua primeira mulher. O cheiro a sexo era distinto de tudo o resto. Tinha sido num fim de tarde, em casa dos pais dela, no centro de Telavive, um bairro de gente com dinheiro. Ele dissera: Não sabia que a tua família tinha dinheiro. Dizes bem, a minha família. Eles e eu: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Fora um momento erótico, ela a roçar-se nele com os jeans apertados, o soutien preto a despontar da camisa. A erecção doía-lhe. Doía-lhe tanto. As gotas de suor no vale dos seios dela, entre as pernas, na barriga, junto ao mundo que é a forma do umbigo. Ela disse que não era preciso ter pressa e chupara-o até ao orgasmo e no desalento de tudo aquilo, ali no sofá, com a cnn a dar o boletim meteorológico do mundo, sentou-se em cima dele, no sexo ainda erecto, branco de esperma, e começou a mexer-se em cima dele até que o desejo regressou e ela riu, quase num tom jocoso, celebrando: Ah, 17 anos. Ela tinha 20. Uma velha. Uma veterana. Acabara de sair dos dois anos de exército obrigatório, tinha estado em Goa, fumado e metido todo o tipo de pastilhas. Agora, em Israel, ia trabalhar com o pai, dono de uma empresa de ferramentas com contratos milionários com o Japão. De dois em dois anos regressaria ao exército, para reciclagem. Até aos 45 anos o exército seria uma rotina. A ideia de que o país é quem o defende era uma lengalenga desde criança, uma voz constante. Somos um pais jovem, temos inimigos, somos os eleitos do sofrimento de Deus. Pode ser que tenha sorte e um dia mate um filha da puta de um árabe.
Ele, no sofá, depois do sexo, sem prestar atenção à conversa, sem saber o que dizer, lembrou-se da boca dela e do cheiro do perfume no seu pescoço. Não queria saber de árabes. Não queria saber de autocarros a explodir, sirenes a passar. Desde sempre que fora treinado para aquilo. Viver em Israel. É-se treinado para viver ali, naquele sítio inventado. Uma bomba caí hoje, amanhã já está tudo normal, não há sinais. Como é que se sabe se a explosão foi grande? Se foi mortal? Espera-se pelas ambulâncias. Quantas mais forem, mais mortos, quantos mais mortos, menos devemos querer saber. Palavras da mãe. A mãe, olhos azuis, loira, unhas de gel, um passaporte cheio de carimbos dos países do mundo. A mãe que lê para combater as bombas, os árabes, o holocausto e até as 25 horas de jejum do Yom Kipur, o dia perdão, da purificação do espírito. Mãe é um bicho universal, dissera ela, a rapariga ao seu lado. Ele discordou mas calou-se. Antes de ser mãe, é-se judia, antes de ser mãe, é-se israelita, da Alemanha, da Polónia, da Rússia. Como o filho de Isaque, filho de Abraão, Jacob que luta com um anjo do senhor e torna-se o primeiro guerreiro israelita, mudando de nome, tornando-se Israel. Agora nos carro, depois dos túneis junto a Gaza, Giled lembra-se dela, da voz dela. O medo que sente está para lá da dor no ombro, na mão partida, vermelha e inchada, os dedos que não fecham. O medo faz-lhe lembrar coisas idiotas. Ela, a mãe, o professor a dizer que adiar os estudos para ir para o exercito era uma pausa, uma brincadeira. No meu tempo é que era à séria. Nada podia ser mais sério do que isto. Giled já nem tenta abrir os olhos. Fica com eles cerrados a tentar ver outras coisas. Alguém o irá buscar. Alguém o irá salvar. Nunca ficará por ali. Nunca ninguém é deixado para trás. O pai desesperado por trocarem soldados palestinianos, terroristas pretensamente do Hamas, por corpos de soldados israelitas. A mãe a concluir: Só te desespera a troca dos mortos pelos vivos porque não é o teu filho que tens de enterrar.
Giled percebe agora que toda a vida que planeou pode desaparecer à velocidade de um segundo não contabilizado. Todos os seus planos trocados, embrulhados, desfeitos pela vida. A vida trocou-me as voltas, pensa. O ombro dói cada vez mais e a mão está a latejar. Alguém o arrasta para fora do carro, brutal. Sente o seu corpo magro contra a chapa do carro, a areia da rua, as pedras de uns degraus que sobe trôpego. Nada será como planeou. Nada. Em Israel assumir que a idade é uma bênção parece uma coisa estranha. Giled deixa-se escorregar por uma parede que o arranha. Não tem camisola, a farda, a chapa de identificação, tudo o que é, ou era, o seu nome e origem. O pai dizia, tantas vezes, tantos almoços: um soldado é a sua unidade. Até agora não lhe ocorreu pensar nos companheiros, sente o estômago, sente frio, sente dor, mas não sente preocupação com os outros. Não tem que ver com ser boa pessoa, é sobrevivência. Instinto. Tem a cara inchado do murro que levou, um gesto inesperado. O homem da kaffiyeh entra no quarto e diz-lhe Passaram umas horas. Eles dizem que vêm vingar-te. Que nenhum soldado é abandonado. Tu sentes-te abandonado? Giled não responde. O homem agacha-se lentamente, fica à altura dos olhos dele. Tem um sorriso ligeiro. Olha para a mão inchada, com a ponta do dedo pressiona o ombro. Levanta-se. Não é desta que vais morrer, soldado.Ainda não é agora. Quando chegar a tua hora, aviso. Não te preocupes. Eu cumpro sempre com a minha palavra. Giled pensa que não sabe pensar em árabe. Que a diferença essencial entre eles é uma só: eles não têm medo de morrer. Eu tenho. Eu tenho medo de morrer. A sua voz, a meia voz, desperta-o por fim para a verdade de tudo aquilo. Ao fundo, na parede, está uma tela grande em tons de azul, rasgados por brancos rosados. Giled começa a chorar. O seu futuro é aquele quadro desconhecido. Não vai ver mais nada.
autoexplicativo cecĂlia cavalieri
onça-boi
julia debasse
Quando ouviu atrás de si um ruído imediatamente pressentiu perigo. Não são muitos os ruídos que pontilham o constante murmurar do rio distante. Os pássaros pouco trinam, alguns frutos maduros caem, as forças invisíveis fazem folhas arfarem e galhos rangerem. Mas o ruído súbito e isolado do galho se partindo destoou do ambiente sonoro, um ruído terrestre que só poderia ser causado por um corpo pesado que pisasse o chão. E atrás dele lá estava ela, não inteira, apenas uma enorme cabeça despontando entre as árvores. Mas foi ao correr em busca de proteção que ouviu o mais perturbador de todos os ruídos: o batuque surdo de cascos em trote que rapidamente se transformou em um galopar furioso. Pensou imediatamente que talvez um porco selvagem ou um cervo fugisse logo atrás dele e que ele sairia ileso, deixando para trás o outro animal de sangue quente para sucumbir baixo as garras do predador. Subir na árvore foi apenas um paliativo, uma maneira de se afastar do animal enquanto ele consumia a refeição menos veloz. Ele sabia muito bem que onças não conhecem limites verticais. E, enquanto subia, sofregamente se agarrando aos galhos e às protuberâncias do tronco áspero, ouvia o galopar delirante tornar-se mais próximo até subitamente cessar. Entre os galhos ele ergueu o rosto esperando ver um bicho agonizante, mas não. Lá estava a onça, imóvel e desafiante sobre seus quatro cascos negros. O animal nem mesmo olhava para cima, para os galhos, apenas serpenteava seu rabo e olhava fixamente o chão onde se projetava a sombra da copa da grande árvore. Ele encarou o animal fantástico e com pânico constatou que ele ainda era e sempre havia sido a presa. Examinou seus cascos brilhantes e divididos como o de um boi. O assombro que a criatura causou logo foi substituído por alívio quando assomou que Deus, de fato, não dá asa à cobra e que enormes onças com casco de boi não podem subir em árvores. Era questão de tempo para que este ser inacreditável se convencesse desta limitação que questionava a sua natureza de onça e partisse atrás de algum animal que, como ela, tratasse de assuntos de vida e morte no plano estritamente horizontal.Vendo o bicho encarar inutilmente o tronco da árvore sentiu-se condoído por aquela onça condenada a querer ser onça e não poder ser onça. (...)
O animal teimoso havia se sentado sobre as pernas traseiras, às vezes batendo um dos cascos frontais contra o chão, à moda dos bovinos. A espera deveria ser mais angustiante para a criatura, que ele supunha faminta. A onça-boi pacientemente aguardava em vigília silenciosa enquanto a luz dançava sobre sua pele amarela. Ele, empoleirado no galho, não sentia fome ou sede, apenas um vago cansaço vindo da constante preocupação em estar seguramente distante do chão. Ali, na copa da árvore, não havia onça-boi que pudesse lhe fazer mal. No fim das contas a onça tinha uma escolha, ele não. E a resistência de quem não tem escolha sempre vence. Ali, montado em um galho, ele encaixou o corpo tenso contra o tronco, permitiu que seus olhos se fechassem e dormiu. (...) Ela estava sempre lá. Ele não conseguia mais computar a passagem do tempo pois dormia frequentemente, seu corpo amargando a sede e a fome. Mas durante essas horas lúcidas em que abria os olhos, consciente de seu entorno, lá a via, parda e impávida, sobre os quatro cascos brilhantes como turmalinas negras. Fixava a onça com os olhos intensamente, observava os cascos, trocando momentaneamente seu papel de presa pelo de predador. E viu, na terra, muitos rastros de cascos que se afastavam e retornavam a árvore. Ela havia, em algum momento, dado as costas para ele e ele perdera sua oportunidade de fuga. Em uma outra hora lúcida viu, ou imaginou, gotículas de sangue nos bigodes dela. Ele já não confiava nas recordações que tinha das suas horas lúcidas. Pegadas, gotículas de sangue, os cascos da onça. Tudo era irreal e sem sentido, a única certeza era o constante rumor do rio. O rio equalizava tudo. (...) A lua surgiu inteira naquela noite. A onça dormia, deitada com as patas da frente cruzadas sob o peito que arfava silenciosamente. Acima do som do rio ele pensou ouvir o rumor distante de cascos. O trote suave tornou-se cada vez mais próximo até que ela surgiu, a outra onça-boi. Surgiu e se pôs ao lado da primeira onça que, agora desperta, lambia os restos de sangue dos bigodes daquela que viera render sua guarda. Enquanto as onças confraternizavam ele percebeu a inutilidade e a real angústia da sua espera. Ele entendeu tudo que buscara entender sobre a onça-boi. Aquilo não era uma caçada, era uma queima de arquivo inegociável. Não era a sua carne nem o seu sangue - o segredo era tudo que elas queriam consumir. E, enquanto sentia seu corpo desfalecer, antecipou o som dos cascos contra o murmúrio tranqüilo e constante do rio.
alcatra louise dd
ana fay
refleshing
Balança mais um pouco o lugar do desejo o desvio para dentro para fora para isso que se pega me mexendo aqui lentamente que se movendo me mói prenhe a pele toda vagarosa e põe aqui e torce o cerne da minha animalidade emborcada em oscilação de carne aberta que goteja para lá e para cá maçarocas de gordura músculo pele pêlos ossos ora espessura ora silêncio e eu caía animal desajustado e eu esmagada tremia os braços que desmaiam a minha boca aberta de sangue vômito de minúsculos pingos hímen gota quente e suor que se abre e me fecha pele que berra eu estou por dentro que está por dentro da carne em grito giro que urra mete aqui dói mete e berra mete mexendo e sê o que arrebenta sê nu sê pele sê pedaço de dedo sê corte jorra e sorve o líquido ralo pasta de sangue pó de pólen com nojo e eu e vê o descontorno da face possuída e me enfia lanhada o cabelo em queda lânguida e livre no jogo torpe de fazer desfiar a derme úmida em entranha exposta a lâmina e o meu debaixo na sua mão estranha mexendo para frente e para trás disse de pernas abertas a palavra que em mim busca e não encontra
alcatra, picanha e chuleta zander catta preta A menina sentada no bar com o cigarro aceso e a cerveja que esquenta. Está cercada de amigos desenhados na pele. Gastam conversa, saliva e vontades. Aproveitam a vida que é curta e o velho que desce a Augusta estica o olho para repreender e desejar o tempo que pode ser perdido. Já não tem mais tempo. Nem para amar. Nem para comer. São Paulo fazia uma tarde belíssima, tão diferente de suas ruas e histórias. A menina com o cigarro apagado espera sentada na mesmíssima mesa. A cerveja renovada não se demora e nem os poucos amigos que partiram e caminham na Paulista. A espera é parte da vontade. Ela se exibe como mercadoria cara para os poucos que espiam. São Paulo lhe presenteava com céu azul e sol morno, impossíveis de se pensar fora de uma canção. E ela era só desprezo. A menina com as costas pintadas dança a música do carro que estacionara na esquina. A sua música. A música dele. Os amigos já partem e deixam a conta paga. O sábado convida para outras vitrines e São Paulo mostra os dentes na noite que se anuncia. Augusta revela-se. A menina sorri para o carro. O carro sorri pelo moço do volante. Ele pensa que pensa que pensa que o jogo está ganho. O movimento é velho e todos já treinaram as jogadas. Toda semana é isso. É só combinar com o time adversário agora. Jogo ganho, partida certa. “É nóis!” Na parede infinita de São Paulo: “Trate bem depois de me usar”. Use-me. A menina e o carro saem em disparada na direção da Paulista. Não há limites pudores ou falta de crédito. O bar é uma boca devoradora de mentes.A menina despe as costas para o vapor. Algo brilha mais forte dentro do baticum do carro e por vinte minutos eles são felicidade e disposição e tesão brancos, secos e puros. São Paulo agora é besta-fera que uiva seus prazeres madrugada adentro. A menina e o carro avançam na direção contrária. Como sempre. Todo avanço é um retrocesso; um atalho na espiral da história. Emburacam no Inferno e dançam como se não houvesse música. Dançam como se não houvesse gente. Dançam como se não existissem. A dança toma conta de sua carne e membros e eles são só felicidade estroboscópica, suada, fedida e arrítmica. São Paulo é o ritmo inumano que move as almas. A menina e o carro saem da boate e entram no motel de quinta. Gemem, grasnam e urram. Duas. Três vezes. O sol nasce. Quatro. Pessoas tomam seus cafés de domingo. Cinco. Chegam o almoço e a preguiça da tarde. Conta paga, carro carregado, emoções meladas, entojo nascente, enjôo de dois. Bora para casa. O velho desce a mesma rua, no mesmo caminho e inveja a beleza das peles, o viço dos olhares, a virilidade dos rapazes, a oferta das meninas e a disposição de coito das peças penduradas no açougue urbano. Açougue São Paulo.
carne fraca ana rodrigues
livro de carne artur barrio
exercícios sobre a carne
ana b.
Escorrer cru entre esquinas, Tremor: tuas pálpebras oscilavam no tempo, minguava enchia luas soltas nada brandas. (tudo o que escrevi foram palavras e as palavras se foram; repetia incessante numa tentativa exausta de apreender o que fugia) Escorrer cru pelo asfalto em ondas como um mar de cabelos um mar simples: em movimentos vermelhos mortos (talvez você se afogasse mas foi assaltado egeu. Salto úmido fino frio envernizado, longínquas viagens sem retorno. Estamos mascarando o desespero) Escorrer crimes plenos: crus pela calçada Uvas amassadas na sola dos pés teu nome ficava esperando um sentido Quem sabe um fígado ou ossos de pelúcia (Somos muito sensíveis para a tarefa de engolir lâminas cuspir fogo Mas gentilmente ele perguntou Se poderia aplicar guizos nos seus sapatos).
francesca angiolillo
problema existencial
Como esperar que você compreenda o milagre da carne abrindo espaço, fibra a fibra a partir de meio centímetro de vida? A vida, meu filho, é mesmo uma ferida (no flanco de um ciclo ela se abre para nos dar e receber) “Por que a caveira tem dente?” “Mamãe, a caveira foi gente?” “O olho da caveira, cadê?” “A terra comeu.” “A terra comeu.” “A terra comeu.”
Anatomia Maria de Fátima Fosse teu corpo malha, buscaria a ponta do fio a puxá-lo com carinho e desconstruir-te a carne. Mas não sem um lastro de dor, um ardor tímido, a fazer-te implorar a Deus a tua morte. Usurpar-te a beleza, na pele estendida, desvelar-te o cerne e o sono, subtrair das fáscias os músculos, desconectar os órgãos e polir-te as córneas para reanimar-me o pulso.
os ossos estalando
rafael sperling
Ele ficou parado e sua carne começou a explodir, o sangue a manchar as paredes e os ossos estalando, todo mundo ficou cantando umas músicas, muito alto, não dava pra entender nada, e o sangue ficava sendo esguichado na cara das pessoas, algumas até paravam de cantar para beber algumas gotinhas que voavam em sua direção, mas logo vinha o maestro e obrigava as pessoas a voltarem a cantar, pois era errado parar de cantar, elas também batiam palmas com força e bem devagar, saboreando cada bater e olhando para as palmas vermelhas, tanto das batidas quanto do sangue esguichado, os gritos do homem também atrapalhavam a concentração, pois ele gritava muito alto, alto que nem o estalar de seus ossos, e o maestro continuava a reger a música das pessoas que cantavam, todas com a roupa empapada de sangue, e o homem também, com o corpo empapado de sangue, com alguns ossos à mostra, estalando, a orquestra tocava a música muito alto e com vigor, alguns instrumentistas chegavam bem perto do homem que esguichava sangue e tocavam perto de seu ouvido, para ele sofrer mais, então ele gritava mais alto ainda, os percussionistas batiam com os pratos ao lado de seus ouvidos, o homem ficava com os ossos estalando e os ouvidos em chamas, depois vinham as pessoas com imagens feias e horríveis e as mostravam ao homem, e isso o fazia sofrer mais ainda, imagens de sua família pegando fogo, de seus parentes esquartejados, e imagens dele fazendo sexo com seus filhos mostrando um rosto feliz, enquanto isso o maestro pede pra orquestra tocar mais alto ainda, pede para todos se levantarem e ficarem o mais próximo possível do homem e que toquem bem alto em seu ouvido, o coro também, estava se esgoelando, e os ossos do homem estavam todos se estraçalhando enquanto estalavam, o público do concerto estava muito feliz e extasiado, se contorcendo ao som da música dodecafônica e ao som dos ossos estalando do homem, todos gritando muito alto, tentando gritar mais alto do que toda a orquestra, que o coro e que o homem berrando com seus ossos estalando, os policiais invadiram a sala de concerto e começaram a gritar, mas ninguém notou, não dava pra ouvir nada além da massa sonora disforme sendo entoada por todos presentes, então um policial subiu no palco e começou a espancar o homem, começou a bater em seus ossos estalados e voou muito sangue, depois que o homem caiu morto, todos começaram a gritar para o policial, já que não havia mais porque gritar para o homem, que estava morto, e o policial começou a se sentir muito mal, estavam todos tocando, gritando e olhando em sua direção, foi aí que os ossos do policial começaram a estalar e ele começou a esguichar sangue.
ex touro kelly lima
açougue fê castello branco oliveira
Sempre achara que ter um corpo dentro de si era um exagero. Exagero também dela, porque aquele pedaço duro de carne e sangue não era exatamente um corpo. Mas era parte, era vivo, invadia quase sem pedir licença. Sentia um certo desconforto - não no ato, mas na sua situação de fragilidade diante daquele pedaço vivo que entrava, saía e fazia parte de um corpo que não ligava no dia seguinte. Estava certa que se transformaria em uma mal amada. MAL AMADA com letras maiúsculas. Sabe assim? O pior tipo: aquela que nem disfarça. E mal amada não por não ser comida. Exatamente pelo contrário: porque era comida e jogada fora. Era prato que só alimentava uma vez. Antes que essa fatalidade invadisse a sua vida, retalhou as coxas grossas, os braços longos, os seios fartos. E pendurou no açougue da esquina.
cassiano viana & jorge rocha Primeiro serão teus olhos, que sorverei ainda vivos, para que perca toda vergonha. Rasparei até ficarem apenas buracos, antes onde haviam dois. Farei teu corpo em pedaços, separarei membros de forma organizada, os abraços, logo o ventre, pernas. Nada de tremer mãos. É preciso que seja definitivo: isso tudo depois passa. Todos bem embalados. Atente para o fato que é preciso, nesse momento, guardar todo sangue sem derrama-gota, para um posterior provável cozimento. O molho pardo é sempre o mais saboroso prato. A vingança é um prato quente. A lâmina obedece o desejo das fibras na hora do corte, evitando as artérias. Ah, essas curvas.Todos os dias naquele nosso matadouro. Ah, esse trecho que vai deste o umbigo até o ex-sexo. Uma vida inteira de entradas, bandeiras e entranhas. Teus pêlos sempre tão bem cortados. Antes, a marretada segura na nuca da vaca, o pescoço torcido da galinha, a faca degolando a porca. Caldo de piranha fervida. Essa aqui, o senhor pode bem-ver, é de pouca gordura esporrando. O cheiro do cabelo ainda é o mesmo passado tanto tempo. Nunca quis mudar o perfume. Ficava tão bem de saias e botas. E depois, o rubro da face naquelas horas..
Perfeito contraste com as cores de geleira daqui de dentro desse frigorífico toráxico que sustento como câmara mortuária. Que comete arremedos de marcha fúnebre enquanto prossigo meu ofício. Como se celebrasse uma missa, como se comandasse uma liturgia, como se dedilhasse eczemas em harpas de filamentos e fibras. O improviso, a certeza do ritmo, a pele quase a tocar. Maestria é alcançar afinação de perfuro-cortantes entre as orelhas. E eu, que tanto gostava de passar a língua em seus ouvidos. Agora, como passatempo de oficina do diabo, dobras de origami em seus dedos. Entrelaçados: das mãos e dos pés. Unhas pintadas daquele cor de possessão que não consigo definir. E, possesso, estipulo que, depois de retirada a tampa craniana, regarei cabelos como plantinhas. Com o tempo que você sempre quis, observarei possíveis desenhos formados pela degeneração fibróide, tentando dar um sentido para as imagens resultantes. Isso é prazer, eu te digo. Em conserva. A carne, ah, esta é imperfeição; deriva daí a necessidade sacrossanta de meu ofício. Porque é preciso, você me ensinou, manter minha integridade reencarnada. Tudo para que eu permaneça honesto. Como solo de coveiro.
dĂŠrmico marta egrejas
juliana amato este é o meu resquício pedaço de pele na página o que fica a menor presença, o rastro o risco do vago: eu-superfície
os pés da bailarina sangram nas pedras mas ela dança ondas atrás o segredo cifrado o que treme, implora e vence, está sempre por baixo da casca (e se desconhece)
pele
alice sant’anna
a água da banheira amolece a carne há oito anos os dedos enrugados no banho quente são os dedos da avó
questões contemporâneas
ramon mello
cadáveres lama pele carne misturada entre escombros na frente da foto: uma criança nua chora olhando para câmera (você) será realidade?
carolina andrade palavras descobertas, vontade em carne viva. a carne única, abrigando um mundo de nomes e desejos que precisam ser executados, arrisca e chama para que seja descoberta mais uma vez ................................................ a carne única, casa de um mundo de nomes e desejos precisando ser executados, arrisca e chama para que seja descoberta mais uma vez. corpo que não cansa de esperar, desconhece tempo e não, ignorante de moral e de risco ................................................ carne única abriga nomes desejos que precisam ser executados. arrisca uma nova descoberta. o corpo não cansa de esperar ignora tempo não moral risco cabeça encapetada corpo atentado sim: faço tudo que penso.
diagnóstico
leo marona
é necessário algo fluido feito mãos entre lâminas. precisa-se urgentemente de uma boca bem aberta. para coalhar esse tempo que não se fez cicatriz. nem tampouco sangra agora e ainda é tempo sobre tempo, sem noção entre terra e cais. em suma é necessário mais, porque os olhos imaginários exigem filho, casa, mulher. pode-se fazer o que se quer: matar-se com tiro entre olhos, convidar corujas para jantar. mas sempre existirá esse canto, essa mensagem rouca de louco, esse erguer os olhos aos sinos, tão anterior à foice sob a pele, que enfim entregamos à saliva. e quem pensa sobre isso morre de amor ou doença coronária.
minotauro
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