Beirute - Uma Ibiza com Buracos de Bala

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BO18: deixe a luz entrar

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beirut clubbing

BO18: “Isso é um club?!”

Um dos clubs foi erguido no local onde houve um massacre, o outro parece um abrigo antiaéreo. Mesmo tendo sido assolada por anos de guerra, Beirute tem uma vida noturna que é das mais efervescentes do mundo Te x t o C h r i s C o t t i n g h a m

Holiday Inn: hospedagem ao estilo de Beirute 60 agosto/setembro 2010

n São 4 horas da madrugada de sábado. Na balada mais maluca da cidade, o teto da BO18 se abre como se estivéssemos num filme de James Bond. Através de um espelho inclinado gigantesco, localizado atrás do bar, é possível ver o movimento dos carros na rua lá fora. O DJ residente Gunther El Sabbagh, da dupla libanesa Gunther & Stamina, prepara a próxima música, Argento, de Rodrigo Diaz. A galera vibra quando o baixo entra. Gunther nos olha sorrindo e diz: “É um club legal, não?” Está sendo modesto. BO18 é o tipo de lugar que faria até o baladeiro mais desiludido acreditar que dançar até as 7 horas da manhã vale a pena. O prédio em si é incrível! Um bunker de concreto e aço, construído junto ao chão numa área industrial. Da rua, parece um estacionamento. A trilha sonora é prog pesado e embriagante. John Digweed, Steve Lawler e Danny Howells já tocaram aqui. Mais do que qualquer outra coisa, parece um after, pois só começa a bombar depois das 3h da manhã e isso dá um toque especial ao local. Tem aquele gostinho especial das coisas secretas. E, pelo menos para aqueles que não vivem no Oriente Médio, é um mistério. O Líbano enfrentou uma guerra civil sangrenta que durou de 1975 a 1990. Depois, houve o conflito com Israel em 2006 e, em 2008, novos combates civis assolaram o país. Não é o tipo de lugar onde as pessoas gostariam de passar as férias. Entretanto, o país está passando por um período de estabilidade e as pessoas o estão redescobrindo. No ano passado, Beirute ficou no topo da lista das cidades que temos de visitar do The New York Times. Uma de suas maiores atrações é a vida noturna. Trinta e cinco anos de distúrbios alimentaram uma mentalidade de ‘viva o momento’ nos jovens libaneses. “A guerra é algo terrível e a música era uma das únicas válvulas de escape que tínhamos”, explica Sabbagh, cujo pai foi comandante de uma das milícias e o tio foi morto nas lutas. Na pista do BO18, um baladeiro nos resume a situação: “Quando vivemos situações extremas e não sabemos o que pode acontecer no dia seguinte, pensamos: ‘Dane-se, estou vivo, vou curtir tudo ao limite’. Várias vezes a guerra começou quando menos esperávamos. Quando sentimos que estamos sob constante ameaça, vivemos assim.” Os cidadãos de Beirute gostam de cair na balada. Sempre gostaram. Até os anos 60, a cidade era a mais cosmopolita do Oriente Médio e tinha

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reputação de boêmia. A guerra civil mudou tudo, mas não apagou essa essência. O BO18 surgiu em 1984, bem no auge dos conflitos. Seu criador, Naji Gebran, começou a fazer festas em seu apartamento em Jounieh, nos arredores de Beirute. O nome surgiu do código da porta de entrada. No começo, tocava basicamente jazz. O BO18 mudou para Beirute Oriental antes de se alojar onde está hoje, em 1998. O passado da cidade é visível a todos – muitos prédios antigos têm buracos de bala –, mas em nenhum outro lugar isso é mais impressionante que no BO18. O prédio foi projetado pelo famoso arquiteto libanês Bernard Khoury para parecer uma tumba. Além de ser um club, é um memorial. E ainda, o local contribuiu para a explosão da dance music no Líbano. O BO18 ajudou a fundar as bases dessa nova era e permanece sendo seu centro, mas nos últimos anos, um grande número de bares e clubs pipocou. Bons exemplos são o Sky Bar, localizado na cobertura de um prédio com vista para o mar Mediterrâneo, e o Basement. Os baladeiros mais velhos da cidade consideram 2004 e 2005 os anos dourados da noite. Depois, começou a guerra com Israel em 2006. As coisas ficaram mais complicadas e alguns clubs fecharam. Sabbagh, que trabalhava em um club diferente na época, lembra que as pessoas viajavam três horas de carro por estradas secundárias, desde Tripoli, norte do Líbano, só para vê-lo tocar. A balada era rodeada de sacos de areia. Jad Souaid, mais conhecido como Jade, dono e DJ residente do Basement, também manteve seu club aberto. Como o nome sugere, é num sótão. Ele divulgava o slogan: ‘É mais seguro sob a terra’. “No Líbano, todas as construções têm um sótão para que as pessoas se protejam de ataques aéreos, então no Basement você se sente seguro e distante de todos os problemas”, diz ele. “É uma atmosfera diferente. Você pode se jogar na música”, complementa. No sábado seguinte, fomos ao Basement, que tem uma vibe diferente da do BO18, menos prog e com mais house e electro, especialmente alemães. Convidados recentes incluem M.A.N.D.Y e Toolroom Crew. Souad está tentando trazer Trentemøller. Naquela noite, ele toucou um set de tech-house energético, com músicas como ‘Siberian’ de Anton Pieete e o remix de ‘Confronted’ feito por Pan Pot.

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DJ Big Al no BO18

Club Basement

O ambiente era bastante hedonista, mas aparentemente, a noite estava calma. “Você devia ter visto isto aqui antes do Natal”, diz Souiad com um sorriso maroto. Olhando ao redor, fica difícil de acreditar que o local já esteve em meio a uma guerra. Definitivamente, não parece ser mais perigoso que sair em Berlim. Entretanto, há mais do que jovens simplesmente se divertindo nas pistas do Basement e do BO18. Grande parte da violência vivida nos últimos quarenta anos foi causada por conflitos religiosos, cristãos contra muçulmanos. Aqui, pessoas de origens diversas se misturam com facilidade. “Sou Cristão, mas não tenho nada contra o Hezbollah (partido político islâmico)”, diz Souaid. “Dentro do club não há divisões, não há religiões. Se vejo alguém usando algo que remeta a alguma religião, peço para esconder. Só houve três brigas nos últimos cinco anos e a causa delas foi boba. As coisas estão mudando e o mundo eletrônico realmente ajuda. Quando tinha uns 20 anos, simpatizava com a Phalange (uma das principais milícias cristãs), mas agora não gosto mais. Descobri que tudo isso é besteira. Não estou do lado de ninguém. Sou pelos humanos, pelas pessoas. A nova geração não liga mais para a guerra. É um novo capítulo. Nossa galera é composta por sírios, jordanianos, ingleses, alemães, libaneses – todos unidos aqui pela música.” Uma nação por um groove. Talvez ainda seja cedo para afirmar isso, mas eles estão quase lá. º

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