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O que a psicologia tem a dizer sobre a pandemia e porque isso importa
Paulo Sérgio Boggio Professor do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento e coordenador do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social, na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor visitante na New York University. Membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências (ABC) 2012-2016. Bolsista de Produtividade 1C do CNPq
Uma das grandes lições que a pandemia do SARS-CoV-2 nos tem ensinado a duras penas é que, sem vacinas ou tratamento médico, dependemos dos nossos comportamentos para seu enfrentamento. Dessa lição, um aprendizado fundamental deve ser tirado: investimento em pesquisa deve contemplar os diferentes saberes e não apenas aqueles que gestores do momento acreditem serem áreas prioritárias.
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As ciências humanas e sociais são fundamentais no enfrentamento dessa crise e de diversas outras que virão ou que já estão postas (como os desafios com as mudanças climáticas). Essas áreas são fundamentais para responder a questões como: Por que as pessoas fazem avaliações do risco de contaminação diferentes? O que faz com que algumas pessoas adaptem seus comportamentos às novas normas sociais e outras não? Como fomentar comportamentos de melhor enfrentamento da pandemia (por exemplo, uso de máscaras)? Qual o papel das lideranças nacionais, regionais e locais? Quais os efeitos do isolamento na saúde mental, considerando que nossa espécie é altamente social? Por que as pessoas acreditam em teorias conspiratórias e fake news? Por que existe e quais os perigos da polarização política de uma crise sanitária? A ideologia política ou fazer parte de determinados grupos interfere nas decisões individuais de cuidado e proteção? Quais os efeitos da pandemia na xenofobia e como combatê-los?
A lista de perguntas seguiria adiante por páginas a fio. O interessante é que pesquisadores dessas áreas não têm se furtado de tentar respondê-las. Logo no início da pandemia, publicamos um artigo na Nature Human Behavior (BAVEL et al., 2020) apresentando vários desses aspectos que foram aprendidos a partir de outras situações de crises, catástrofes e, também, de experimentos em laboratório. Explicamos como esse conhecimento poderia ajudar a população, os tomadores de decisão, os meios de comunicação, entre outros, no fomento a comportamentos adaptativos para essa nova realidade. Mais ainda, muitas dessas perguntas têm sido respondidas por estudos desenvolvidos durante a própria pandemia. Neste texto, trarei algumas lições oriundas da psicologia que nos ajudam a compreender o momento atual e podem nos preparar para desafios futuros.
A pandemia pode ser caracterizada dentro de um modelo que chamamos de soma não-zero. Diferente de um jogo de tênis, em que para um
vencer, o outro deve perder (soma zero), a soma dos efeitos de uma pessoa que não se vacine com a de uma que se vacine não é zero, ela é negativa, pois impactará na proteção coletiva. Essa lógica de soma não-zero se aplica a diversas outras medidas, como uso de máscara, higiene e distanciamento social. Ou seja, o bom enfrentamento da pandemia depende de um grande engajamento coletivo, com alta aderência às medidas de enfrentamento. Como obter isso? Existem perfis que tenham maior ou menor propensão a seguir às recomendações? Como aumentar a aderência das pessoas?
Wright e Fancourt (2021) investigaram se diferentes variáveis de contexto (como status socioeconômico) e variáveis individuais (como traços de personalidade) seriam preditores de aderência às novas normas sociais. Os autores verificaram que pessoas mais jovens, com renda mais alta e menor preocupação empática predizem menor aderência às mudanças necessárias de enfrentamento. Nesse estudo, os autores acompanharam as respostas por vários meses e observaram que essas relações ficaram ainda mais fortes com o passar do tempo e com a diminuição de regras mais rígidas.
Para um detalhamento mais fino sobre as características individuais e suas relações com percepção de risco de contágio e aderência às mudanças necessárias, Paiva et al. (2021) investigaram a relação entre traços de personalidade, percepção de risco e frequência de comportamentos, como manter distanciamento social. Ousadia foi o fator que melhor explicou uma percepção de risco diminuído de contaminação e menor engajamento em comportamentos de enfrentamento da pandemia. Venema e Pfattheicher (2021) também investigaram a relação entre personalidade e percepção de risco de contágio. Os autores encontraram que narcisismo grandioso prediz menor percepção de contágio pelo novo coronavírus. Na mesma direção, Zajenkowski et al. (2020) verificaram que pessoas com índices maiores de maquiavelismo, psicopatia e narcisismo eram menos propensas a seguirem comportamentos de proteção. Schiffer, O’Dea e Saucier (2021) expandiram esses achados ao mostrar que, além de valores maiores em narcisismo, maquiavelismo e psicopatia, características como crença na honra masculina (isto é, acreditar que homens devem proteger sua família e propriedade de qualquer ameaça) e crença em um mal puro (por exemplo, acreditar que “algumas pessoas são pura maldade”) se relacionam a uma defesa maior da liberdade individual em não se comportar como preconizado. Um aspecto interessante do estudo de Schiffer, O’Dea e Saucier (2021) é observar a relação entre determinados perfis e a escolha entre a defesa da economia versus o combate ao vírus em um dilema moral nacional. Os autores mostraram que mais crença na honra masculina culmina em maior apoio à defesa da economia. Se por um lado a literatura tem mostrado uma relação negativa entre traços de personalidade como psicopatia e narcisismo e aderência a comportamento de enfrentamento, por outro, alguns estudos mostram que outros aspectos - empatia e pró-sociabilidade - se relacionam positivamente com as medidas necessárias para o adequado combate do novo coronavírus. Twardawski, Steindorf e Thielmann (2021) e Nelson-Coffey et al. (2021) observaram que maior pró-socialidade está associada a mais comportamentos de distanciamento físico e motivos de proteção, tanto para si quanto para o bem-estar social. Schiffer, O’Dea e Saucier (2021) mostraram que crença na bondade pura se relaciona com pró-sociabilidade e comportamento de enfrentamento da pandemia. Na mesma direção, Pfattheicher et
Foto: Unsplash
Foto: Unsplash al. (2020) e Petrocchi et al. (2021) mostraram que empatia para com os mais vulneráveis prediz distanciamento físico e uso de máscaras.
Para caracterizar melhor essas relações, Dinic e Bodroza (2021) consideraram tanto os fatores de personalidade (tendências pró-sociais e antissociais) quanto os fatores relacionados ao contexto (medo da pandemia e empatia pelos vulneráveis). Acima dos efeitos contextuais, os autores observaram que tendências pró-sociais (em particular, ajudar alguém sem conhecer quem está ajudando) relacionam-se a maior aderência a comportamentos de proteção, ao passo que o egoísmo (tendência antissocial) se relaciona negativamente com a aderência.
Christner et al. (2020) estudaram esse tópico utilizando uma abordagem que divide a motivação em dois fatores: orientado para si próprio ou orientado ao próximo. Como exemplos de um fator de orientação a si próprio estão o medo de ser punido ou de ser contaminado. Já o fator de orientação ao próximo é composto por identidade moral, empatia com os outros e julgamento moral. Os autores verificaram que a orientação ao próximo se relaciona mais fortemente com comportamentos de distanciamento físico.
Tais achados também se sustentam quando são utilizados outros instrumentos psicológicos, avaliando construtos diferentes, mas que captam a dimensão ‘individualismo e coletivismo’. Biddlestone et al. (2020) utilizou um instrumento que avalia o individualismo-coletivismo por questões como “Minhas decisões não são influenciadas pelos demais”, “Os meus planos para o futuro estão acima de qualquer coisa”, “Minha felicidade depende daqueles que me rodeiam” e “Deveria ser ensinado às crianças colocar o dever antes do prazer”. Os autores verificaram que o individualismo prediz negativamente a aderência a regras de distanciamento físico, ao passo que o coletivismo prediz positivamente a aderência.
Além da aderência ao distanciamento físico, uso de máscaras e higiene, muito tem se discutido sobre tecnologias de rastreio da mobilidade das pessoas por meio de aparelhos celulares. Tais tecnologias ajudam a identificar os padrões de comportamento das pessoas e, consequentemente, compreender como se dá a disseminação do vírus, facilitando assim o manejo da pandemia. Wnuk, Oleksy e Domradzka (2021) estudaram fatores que predizem a aceitação ou não do uso dessas tecnologias. Assim como com as outras medidas de enfrentamento, os autores encontraram uma relação positiva entre a pró-socialidade e a aceitação das ferramentas de rastreio. Por outro lado, verificaram uma relação negativa entre apoio às liberdades individuais e essas ferramentas.
Uma crítica possível a todos esses achados é que esses estudos são correlacionais e baseados em medidas de autorrelato. Estudos prévios à pandemia já mostravam ser possível fomentar comportamentos mais cooperativos e coletivos por meio de experimentos de indução de empatia, exposição a pessoas com características pró-sociais e elevação da identidade moral (AQUINO et al., 2009; LANGE; LIEBRAND, 1991; WINTERICH; MITTAL; AQUINO, 2013). Durante a pandemia, experimentos focados em fomentar a cooperação e aderência às novas normas sociais também têm sido observados. Alguns grupos têm investigado essas relações discutidas anteriormente entre pró-socialidade, empatia e aderência por meio de experimentos. O estudo de Pfattheicher et al. (2020) é um desses exemplos que traz dados para além das medidas de correlação. Os autores testaram o efeito de fornecer apenas informações sobre a covid-19 e as mudanças necessárias para o enfrentamento versus as mesmas informações juntamente com um vídeo de um idoso de 91 anos de idade relatando com muita tristeza que parou de visitar sua esposa que está no hospital com uma doença crônica. Ou seja, nesse experimento eles testaram o efeito da indução de empatia nos
participantes. Os autores verificaram que induzir empatia, e não simplesmente informar sobre o que deve ser feito, aumentou a motivação em seguir as normas de cuidado.
Esse breve apanhado de parte da literatura produzida na pandemia evidencia a natureza social da nossa espécie e como isso impacta no enfrentamento da pandemia. Não se combate uma crise global como a pandemia do SARS-CoV-2 sem ações coordenadas, implementadas coletivamente. Sacrifícios individuais em prol da coletividade são fundamentais. O que essa literatura nos ensina é a conexão entre sociabilidade (indo de traços antissociais até pró-sociais) e aderência às novas normas sociais e como é possível fomentar comportamentos mais adaptados. Esses achados trazem informações preciosas para todos os profissionais que buscam engajar a população no apoio às políticas públicas de enfrentamento da pandemia. Tempos de crise envolvem a valorização de uma das características que compõem a natureza humana: a solidariedade.
Referências
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