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Arte, saúde e bem-estar
Exemplos de uso da música no enfrentamento à pandemia da covid-19
Diana Santiago Professora associada aposentada do Programa de Pós-graduação em Música da Universidade Federal da Bahia (PPGMus/UFBA). Líder do Núcleo de Pesquisa em Performance Musical e Psicologia (Nupsimus). Bolsista de Produtividade 2 do CNPq
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A arte e suas funções
A capacidade de simbolização inerente aos seres humanos favoreceu o surgimento e desenvolvimento das artes que, ao lado da ciência, da filosofia e da religião, constituem as diferentes formas de apreensão e manipulação da realidade que nos cerca. As artes assumem funções diversas, sob a ótica de antropólogos, psicólogos ou sociólogos. Resumidamente, podem assumir funções de expressão e prazer emocional, entretenimento, comunicação, representação simbólica, reforço às normas sociais, validação de instituições sociais e rituais religiosos; podem contribuir para a continuidade e estabilidade da cultura e para a integração da sociedade; para o reconhecimento e valorização de nossos sentimentos e emoções, para a construção dos processos de socialização e até para estabelecer padrões de comportamentos, sendo inclusive exploradas comercialmente por este ângulo (NORTH; HARGREAVES, 2008; MERRIAM, 1964). Por sua capacidade de exteriorização expressiva da psique humana, individual e coletiva, tem ainda o poder de abrir novas trilhas ao pensamento humano, tirando-nos do conformismo, questionando padrões vigentes e antecipando o futuro.1
Em momentos de crise, voltamo-nos instintivamente para as artes como meio de expressão emocional e reconforto. Foi o que vimos ao longo da pandemia da covid-19. Passado o choque derivado da necessidade repentina de isolamento social, por imperativo sanitário, surgiram em todo o mundo manifestações artísticas variadas. Inicialmente, de forma tímida, em varandas e sacadas, fomos vendo amadores e artistas cantarem para seus vizinhos ou expressando sua gratidão aos funcionários dos hospitais, apresentando-se gratuitamente na rua, em frente do prédio hospitalar; filmes sendo criados e outros sendo projetados de janelas de apartamentos em paredes de prédios vizinhos, para levar estímulos positivos à comunidade do entorno; museus abertos a visitas virtuais, lives e ações semelhantes.
Sem deter-nos aqui nas desastrosas consequências do isolamento para a prática profissional dos artistas em geral, passaremos a examinar algumas das publicações realizadas pela comunidade de pesquisa brasileira e internacional sobre a temática música e covid-19, com o intuito de ressaltar a função curadora da arte.
1 Podemos perceber isso na produção de artistas de todos os tempos, basta citar, como exemplos retirados de épocas bem distintas, as obras de Sófocles (c.497-406), Leonardo da Vinci (1452-1519), P. Picasso (1881-1973), I. Stravinsky (1882-1971) e W. Eugene Smith (1918-1978).
Confinados e sem ação? A pandemia e a reação dos pesquisadores
Após o impacto inicial decorrente da constatação do primeiro caso de covid-19 no Brasil, em fevereiro de 2020, os pesquisadores da área de arte logo buscavam compreender o que ocorria e a investigar seus desdobramentos. Focaremos na música, por ser minha área de formação e atuação e, portanto, o contexto de onde posso falar.
Em dezembro de 2020, a Revista Música (USP) publicou um dossiê intitulado Música em Quarentena que apresentou interessantes artigos e relatos apontando ações e reações das associações de educação musical, de docentes, pesquisadores e de músicos aos problemas impostos pela pandemia. A edição já apresentava uma pesquisa de Soares-Quadros Júnior et al. (2020), que consistiu numa revisão da literatura científica acerca dos temas música e estado de ânimo, buscando conhecer de que maneira a música contribui para a regulação do humor, no contexto da pandemia de covid-19. As evidências coletadas indicaram que a música pode ser concebida como um importante meio para combater os impactos psicológicos causados pela pandemia. Soares-Quadros Jr. participou, também, de um time internacional de pesquisadores que concebeu uma pesquisa administrada em 11 países, um dos quais o Brasil (GRANOT et al., 2021). Nela, 6.451 participantes responderam a um questionário online buscando compreender a relevância do estabelecimento de metas de bem-estar durante a pandemia e a efetividade de diferentes atividades na conquista dessas metas. A pesquisa foi concebida pelo fato de que, apesar de estar comprovado que a música pode reduzir o estresse e a ansiedade, elevar o estado de ânimo positivo e facilitar a integração social, pouco se sabia sobre seu papel em tempos de isolamento social. As respostas foram obtidas entre julho e outubro de 2020 na plataforma online Qualtrics. Apesar dos pesquisadores admitirem várias limitações da pesquisa, como o fato de basear-se apenas na escuta musical definida de forma ampla, da amostra ter sido de conveniência e dos países estarem em momentos diversos da pandemia na ocasião da coleta, dentre outras, este foi o maior estudo transcultural dos usos da música durante a covid-19, com análise detalhada. Os resultados demonstraram um uso destacado da música para a conquista de todas as metas propostas e destacaram-na como um meio efetivo de facilitar a conexão social e regular o humor e as emoções em várias culturas.
Por sua vez, a brasileira Patrícia Vanzella também realizou pesquisas sobre a música e a pandemia. Com uma equipe internacional, explorou as mudanças nos comportamentos musicais de crianças e seus cuidadores, familiares, no período de distanciamento social. (RIBEIRO et al., 2021). Esse estudo investigou as mudanças nas rotinas das famílias e os níveis de bem-estar e estresse dos cuidadores, e ainda se houve mudanças nos comportamentos musicais dos cuidadores e das crianças (entre 3-6 anos de idade) que atendiam durante este período. Os resultados indicaram mudanças significativas na dinâmica das famílias durante a crise pandêmica, com os cuidadores permanecendo mais tempo com as crianças, particularmente as mães, e um decréscimo significativo no nível de bem-estar dos cuidadores; mudanças consideráveis nas atividades musicais no lar durante o período de isolamento, incluindo um aumento dos comportamentos musicais das crianças sozinhas e das atividades compartilhadas com os cuidadores. A maior parte dos cuidadores participantes utilizou a música de forma intencional para a regulação de seu humor. Por sua vez, as crianças engajaram-se com maior frequência que no período pré-pandemia em atividades que utilizavam música (como dançar ou mover-se com a música) e em atividades propriamente musicais (como cantar ou compor). A despeito das limitações do estudo relatadas pelas autoras, várias estratégias puderam ser constatadas e foram sugeridas diversas implicações para pesquisas futuras.
Com outra equipe de pesquisa, Vanzella estudou os hábitos musicais de universitários durante a pandemia (FRUTUOSO et al., 2021). O objetivo deste estudo foi investigar níveis de bem-estar e mudanças nas rotinas diárias e em comportamentos musicais em universitários brasileiros de 18 a 30 anos em isolamento social devido à covid-19, por meio de um questionário online,
Foto: Pexels aplicado entre 14 e 24 de agosto de 2020. A amostra incluiu 120 participantes e os resultados revelaram que as medidas oficiais adotadas para conter a disseminação da pandemia afetaram severamente as rotinas diárias, o bem-estar e os comportamentos musicais dos participantes. Também mostraram que houve uma diminuição significativa de algumas atividades, devido ao distanciamento social (como ouvir música com os amigos); um aumento no consumo de música e uma nova forma de engajamento musical - as live streamings. Mostraram, ainda, que a música pode ajudar na abordagem multidisciplinar necessária para enfrentar os efeitos da pandemia, reforçando os papéis sociais e psicológicos (como forma de modular o humor) que a música desempenha na vida dos jovens.
Apesar de não ter estado diretamente envolvida em pesquisas sobre o bem-estar em tempos de covid, no transcorrer da coleta de dados para um projeto de pesquisa de cuja equipe faço parte, em fase final de análise e cujos resultados ainda não foram publicados, obtivemos declarações espontâneas do efeito da música durante o isolamento social (LISBOA; SANTIAGO, 2021). Direcionado para mães de crianças com microcefalia e seus filhos, sua metodologia teve que ser modificada devido à pandemia, inclusive mudando as intervenções do modo presencial para o online. Algumas das mães discorreram sobre como as intervenções musicais foram elementos indutores de alívio do estresse decorrente do isolamento, estabelecendo novas rotinas no relacionamento com suas crianças.
Música e enfrentamento de crises sanitárias
Para a fundamentação deste escrito, consultamos as principais revistas acadêmicas em música do Brasil e algumas das principais no exterior. Também realizamos buscas na internet2. Pelos artigos encontrados e examinados, constatamos primeiramente, em noticiários online, que várias intervenções práticas foram desenvolvidas em hospitais brasileiros, utilizando a música como moduladora do estado de ânimo de pacientes internados por covid-19 e das próprias equipes
2 Utilizando os termos arte + covid e/ou pandemia; música + covid e/ou pandemia; musicoterapia + covid e/ou pandemia. Acesso em 4/10/2021.
médicas que os tratavam3, o que também ocorreu no exterior (GIORDANO et al., 2020). Além disso, percebemos o interesse de profissionais da saúde e pesquisadores de áreas afins pelo seu estudo e sua utilização (e.g.,WEISZ, 2020).
Ao consultar as bases de pesquisa, pudemos observar que as primeiras investigações relacionando as artes, seus usos e a pandemia da covid-19 já estavam sendo realizadas em abril de 2020 no Brasil. As publicações acadêmicas encontradas podem ser agrupadas, até o momento, em três grandes eixos: publicações sobre as ações desenvolvidas por professores, instituições e associações para o enfrentamento da covid do ponto de vista pedagógico e tecnológico; pesquisas sobre novas formas de viver a arte e a música devido à pandemia e seus efeitos; pesquisas sobre a música (e a arte) como enfrentamento à pandemia. A maior parte das mesmas, na comunidade internacional e no Brasil, ainda se encontram majoritariamente em anais de eventos. Abordamos apenas algumas, que selecionamos a título de exemplo.
Juntas, ações e pesquisas apontam o valor da música e das artes como meio eficaz e acessível, inclusive economicamente, para a saúde e o bem-estar individual e coletivo. Referências
FRUTUOSO, P; OLIVEIRA, G.A; DELMOLIN DE; VANZELLA P. Bem-estar e hábitos musicais de universitários durante a pandemia de COVID-19. In: XV SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE COGNIÇÃO E ARTES MUSICAIS – SIMCAM (LIVRO ELETRÔNICO), 2021, Curitiba. Caderno de resumos e programação. Curitiba: 2021. p. 199-202.
GIORDANO, F. et al. Receptive music therapy to reduce stress and improve wellbeing in Italian clinical staff involved in COVID-19 pandemic: A preliminary study. The Arts in Psychotherapy, v.70:101688. 2020. https://doi.org/10.1016/j. aip.2020.101688.
GRANOT R. et al. “Help! I need somebody”: Music as a global resource for obtaining wellbeing goals in times of crisis. Front. Psychol. v. 12:648013. 2021. doi: 10.3389/ fpsyg.2021.648013
LISBOA, T.; SANTIAGO, D. Diário de campo do projeto de pesquisa “Gerenciando as necessidades psicossociais das famílias afetadas pelo vírus Zika: explorando o impacto da música como ferramenta social (2019-2021).” Trabalho não publicado. Londres, 2021.No Prelo.
MERRIAM, A. The anthropology of music. Chicago: Northwestern University Press, 1964.
NORTH, A; HARGREAVES, D. (Eds.). The social and applied psychology of music. Oxford: Oxford University Press, 2008.
RIBEIRO F. S.; JANZEN T. B., PASSARINI L; VANZELLA P. Exploring changes in musical behaviors of caregivers and children in social distancing during the COVID-19 Outbreak. Front. Psychol. v. 12:633499. 2021. doi: 10.3389/ fpsyg.2021.633499
SOARES-QUADROS JÚNIOR., J. F.; ROMÁN-TORRES, C. M.; DINIZ NETO, A. J.G.; SANTANA, I. F. O uso da música para a regulação do estado de ânimo no período pós-COVID-19. Revista Música, v. 20, n. 2. 2020, p. 397-415.
WEISZ, I. C. COVID-19: A canção como instrumento de enfrentamento emocional da quarentena. Asas da Palavra, v. 17, n. 2. 2020 - ISSN 1415-7950. 47-53.
3 Tais como no Hospital Metropolitano de Várzea Grande (MT), no Hospital de Campanha do Hangar (Belém,
PA), Hospital de Clínicas, em Campina Grande (PB), no
Hospital de Itumbiara (GO).