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Serra Pelada

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Conclusão

Conclusão

serra pelada

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“Serra Pelada” foi diretamente motivada pela entrevista “Entropy Made Visible”, de Robert Smithson. Foi difícil ler a entrevista de Smithson e não sentir a necessidade de a espacializar através da busca de imagens de satélite do Lago de Salton Sea; busca, inclusive, que ilustra o capítulo deste trabalho que leva o nome da entrevista. Ela levou à frustração já comentada anteriormente de tentar apreender – sem sucesso - a paisagem através das imagens de satélite. Em um determinado momento da entrevista, Smithson comenta sobre os três estágios da exploração de minérios: a paisagem “selvagem” (wilderness), o buraco surgido através da exploração do minério, e o futuro incerto daquela paisagem. Como escreve Milton Santos, essa paisagem é essencialmente transtemporal; como forma de me aprofundar na justaposição dos tempos – ou estágios – na paisagem, retornei a um texto visto pela primeira vez nos primeiros anos de faculdade, “The City of Artificial Excavation28”, de Peter Eisenman. O texto foi apresentado como memorial de projeto da proposta de habitação social de Eisenman ao concurso “South Friedrichstadt as a Place to Live and Work”, organizado pela Internationale Bauausstellung (IBA), como parte das estratégias de ocupação da Berlim Ocidental em 1981. Eiseman diz nos primeiros parágrafos do texto que os centros das grandes cidades têm sido - à época do texto - transformados em objetos de fetiche. Neles, alguns fragmentos são preservados como em um museu natural, ou então são remontados como animais empalhados. Diz que a cidade Berlim, no entanto, oferece uma alternativa a esses processos:

“[a cidade de Berlim] é um objeto único: o local de um vazio histórico. O muro que percorre seus arredores e a atravessa já a torna quase uma cidade-museu. É um organismo recortado de uma parte dele mesmo, e uma capital recortada de seu próprio país. Portanto é a essência do fragmento: um pedaço petrificado de algo velho e um pedaço vivo de outro “algo”. Ao exibir, inevitavelmente, a presença do que era, torna-se a memória de sua própria história interrompida.”

Página anterior: Figura 13: Lago da cratera de Serra Pelada, Curionópolis, Pará. Fonte: Google Earth

28. Peter Eisenman, “The City of Artificial Excavation “. Publicado originalmente em 1981. In: JeanFrançois Bedard (org.) - “Cities of Artificial Excavation: The Work of Peter Eisenman, 1978-1988”. Nova York, Rizzoli International, 1994

A quadra do concurso, localizada na interseção entre a Friedrichstrasse e o muro de Berlim, é para Eisenman o local paradigmático dessa noção de memória, já que foi palco de diversas transformações significativas ao longo da história alemã. É local de uma memória ambivalente, já que coexistem a memória de algo que já ali existiu, como também o embalsamento de algo que existe no presente. Tanto o muro quanto o Checkpoint Charlie, que está ao lado da quadra de projeto, incorporam as duplas condições de separação e conexão, exclusão e inclusão. A estratégia utilizada por Eisenman diante do constatado é dupla: a primeira, expor a história daquela quadra, tornando visível tudo aquilo que algum dia já foi algo singular; a segunda é assumir que Berlim pertence ao mundo, que suas especificidades e identidade foram sacrificadas na história moderna, e que agora - à época do texto - ela é o encontro de todos os lugares e ao mesmo tempo de nenhum. Essa dualidade, para Eisenman, é expressa na arquitetura através da anti-memória, que ele define como sendo:

“[...]diferente da memória sentimental ou nostálgica, já que não demanda e nem busca um passado (ou um futuro). Mas também não é apenas esquecimento, porque usa o ato de esquecer, de depurar o padrão anterior, para chegar em sua própria ordem ou estrutura. A memória obscurece a realidade do presente, isto é, tenta negar a existência do Muro de Berlim a fim de restaurar alguma ideia de passado. Antimemória, no entanto, obscurece a realidade do passado - passado que gera a realidade do não-lugar do presente - para gerar outro lugar, algum lugar. A Anti-memória não procura um progresso, não clama por um futuro perfeito ou uma nova ordem, não faz previsões [...] envolve a construção de um lugar que deriva sua ordem do obscurecimento do resgate de seu próprio passado. Dessa forma, memória e anti-memória se opõem e se colidem para produzir um objeto suspenso, um fragmento congelado que não é do passado e nem do futuro, um lugar. Digamos que pertencente ao seu próprio tempo.”

Eisenman recorre a um procedimento de “escavação artificial”, transformando o terreno em um sítio arqueológico; primeiro, inserindo o terreno dentro das coordenadas cartesianas de Mercator, localizando-o no mundo da forma mais neutra e artificial possível; esse grid é então sobreposto aos edifícios pré-existentes do terreno. Segue-se então a escavação dos muros da Berlim do século XIX; não os muros que existiram, mas uma proposta artificial deles e de suas posições, com base nos edifícios préexistentes do terreno. Da mesma forma, vão sendo incluídas informações como as tipologias de quadra existentes, os muros do século XIX, e por fim o Muro de Berlim. A intensa sobreposição e consequentemente enfraquecimento individual destes diversos sistemas de grids, eixos e informações do espaço constroem a Anti-memória.

“O terreno se torna um local de atividade e reflexão [...] [os edifícios resultantes] enquanto formas não recordam ao passado, validam o presente ou aspiram ao futuro. Suas escalas e proporções são próprias [...] o restante do terreno se dedica à autorreflexão. Torna-se um museu de sua própria arqueologia- a arqueologia que se revela pela primeira vez pela escavação artificial.”

A sobreposição dos textos de Smithson e Eisenman me levou ao garimpo de Serra Pelada, que coincidentemente começou a ser explorado em 1981, ano em que Eisenman escreveu “The City of Artificial Excavation”. O processo dessa experimentação partiu da escolha de três momentos da paisagem do garimpo; o anterior à descoberta do ouro, o da cratera resultante da exploração máxima e o atual, pós alagamento, lago artificial. Diferentemente do projeto de Einsenman, aqui o projeto se dá com base em um terreno que não é o do presente. É adotado o espaço de tempo intermediário em que o garimpo, alagado acidentalmente pela primeira vez, é drenado para a continuação da exploração. Nos dias de hoje, só se preserva o perímetro da cratera gerada pela exploração,

Figura 14: Office of Eisenman/ Robertson Architects, Modelo de Apresentação de “IBA Social Housing”. Tília Americana pintada, papelão e acrílico, 7 x 22 x 27cm, 1981.

29. Ver Sebastião Salgado, “Gold - Mina de Ouro Serra Pelada”. Curadoria de Lélia Wanick Salgado, São Paulo, SESC Paulista, 2019. In: sescsp.org.br nivelado pelo corpo d’água que esconde a profundidade de duzentos metros, que é o ponto de partida. Através de imagem em escala retirada do Google Earth, tracei o limite do corpo d’água, conseguindo extrair suas medidas.

Antes de se tornar cratera, Serra Pelada era uma montanha, de cento e cinquenta metros de altura. Não é possível resgatar a superfície topográfica exata dessa montanha, tampouco a superfície do fundo do lago; é possível incorporar essas medidas, no entanto, através da escavação artificial. A montanha foi dividida pelos homens que chegavam ao garimpo em “barrancos”, pedaços de terra de dois por três metros destinados à exploração de cada garimpeiro, e depois cada grupo de garimpeiros. A forma encontrada de organizar e dividir a montanha nos barrancos tão

pequenos é inusitada. Sobrepor esse grid sobre uma montanha de topografia de inclinação acentuada, e partir desse grid para escavar um terreno de forma a aumentar ainda mais essa inclinação torna a sua apreensão extremamente difícil.

Realizei então a sobreposição desse grid de 2x3m sobre o perímetro, em planta. O próximo passo foi escavar e aterrar artificialmente a partir do perímetro. Desenhei uma série de curvas de nível livres, sem qualquer correspondência com a realidade correspondendo a níveis aleatórios, apenas com a obrigação de a mais alta corresponder a 150 metros de altura. Em seguida, inverti essas curvas e as estiquei, para gerar uma superfície espelhada, que por sua vez contemplasse ao invés dos 150 metros de altura da montanha os 200 metros de profundidade da cratera. A partir desses dados, gerei um volume de terra equivalente ao indicado pelas curvas de níveis.

Não pretendo que esse volume seja equivalente ao real, ou ainda que seja uma aproximação. Ele é um volume correspondente a esse lugar criado na experimentação, através de uma depuração da memória (que se torna apenas o registro das alturas de 150m e 200m e do grid de 2x3m) e do presente como ponto de partida. Ele é um fragmento que atinge sua totalidade a partir da sobreposição desses dados depurados, que o desvinculam do presente e da memória, e o tornam um fragmento da Anti-memória. O último passo, já com o modelo tridimensional, é a criação de dois planos de seção, um vertical e outro horizontal. A área seccionada nos dois cortes é preenchida, então, com um grid ou de 3x3m, ou de 2x3m. A transposição do grid da superfície horizontal para a vertical adiciona a possibilidade de contabilizar o processo de escavação, atribuindo a ele uma temporalidade expressa não em tempo, mas em medida de profundidade de escavação. As seis imagens desta experimentação são pensadas para a exposição

em um conjunto de três pranchas, cada uma com um metro e meio de altura, a metade da altura indicada nos cortes representados. Na montagem deste trabalho na sala do meu apartamento, ficam registrados à noite sobre as pranchas as linhas dos caixilhos da sala e dos fios de alta tensão dos postes da rua, que juntos compõem um grid externo ao sítio de Serra Pelada, mas interno ao desenvolvimento do trabalho como um todo.

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