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Despejo inicial
from Sobre a Paisagem
by muriloromeu
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A primeira experimentação voltou-se para a formação de solos, motivada inicialmente por alguns trabalhos do escritório de arquitetura madrilenho Ensamble Studio – mais precisamente as “Estruturas da Paisagem”, no parque de Tippet Rise, e a “Trufa25”, realizada na Costa da Morte, na Espanha – que consistem em estruturas de concreto armado que são geradas em meio ao ambiente natural, valendo-se deste para conferir sua forma final.
As “Estruturas da Paisagem” são soluções encontradas, segundo os autores, para que a arquitetura resolvesse o programa solicitado pelo parque de Tippet Rise, porém, sem interferir no cotidiano da fauna que ali já existia. Embora muito interessante visualmente, essa intenção, de certa forma, de camuflagem das estruturas, não foi o que me chamou atenção inicialmente, mas sim o processo pelo qual essas estruturas foram construídas – através das manifestações de tecnologia, como diria Smithson. Aportadas
Figura 10: Ensamble Studio, “Structures of Landscape”. Tippet Rise, Montana, Estados Unidos da América, 2016.
25. Ensamble Studio, “The Truffle”. Costa da Morte, Espanha, 2010.
Figura 11: Ensamble Studio, Terra utilizada como fôrma parcialmente retirada em “Structures of Landscape”. Tippet Rise, Montana, Estados Unidos da América, 2016. em meio a montes de terra criados por escavadeiras, cobertos por apenas uma lona que os separava do elemento moldado, o concreto armado despejado de um caminhão betoneira. À medida que essa massa ainda dentro de sua qualidade plástica, como um solo argiloso, preenche o volume a ela designada, a lona é comprimida pelo seu peso, adotando a forma dos montes de terra que cobre, não sem antes registrar suas dobras na superfície da massa, numa condição mútua de pressões e imposição de limites. Após a cura do concreto a terra ao redor é retirada, quase que arqueologicamente. A lona então aderida na superfície do concreto é retirada, e a peça final se impõe visualmente pela primeira vez, demonstrando sua altura total em relação ao solo daquela área. Há a existência da imagem de um solo, tanto no processo construtivo, evocada pelos montes de terra, quanto nas superfícies da estrutura final, em contraponto ao solo que está logo abaixo da estrutura.
O despejo de matéria ainda plástica que se torna posteriormente sólida sobre terra também acontece décadas antes em “Asphalt Rundown” (1969), de Robert Smithson, já mencionado anteriormente, onde é visível a referência a uma matéria transformada diversas vezes, citada pelo próprio artista.
O projeto da primeira experimentação é simples, apenas um croqui em três passos. No primeiro, uma forma de madeira. No segundo, um monte de terra. No terceiro, o negativo dos outros dois em argamassa armada. O despejo me pareceu uma técnica interessante de se estudar nessa primeira experimentação, aliado a uma observação livre dos processos de formação de solo, sedimentação, compactação.
A execução começava pelas fôrmas de compensado, simples, de 30x30cm. Utilizei uma placa que estava a bastante tempo no canteiro experimental da FAU. Após serrá-la nas dimensões idealizadas, lixei as rebarbas que sobraram em suas laterais, encontrando o contraste entre a superfície da madeira recém lixada e a superfície que ficara exposta ao tempo do canteiro, que evidenciava um processo de sedimentação da própria placa.
Logo após, preguei os compensados obtendo a fôrma do primeiro passo do croqui, adicionada de fundo, e logo parti para o despejo de terra. De imediato já foi me apresentada a instabilidade da movimentação de terra enquanto parte de projeto.
Fui incapaz de estabelecer um pequeno morro de terra com características próximas das quais eu havia idealizado no croqui inicial. A força da terra e a inclinação do talude que se formava com o seu despejo, bem como a forma como se comprimia de acordo com a adição de cada camada despejada sobre a anterior, tornavam a superfície do pequeno morro de terra imprevisível e de difícil controle. Logo, me vi forçado a alterar a fôrma de madeira inicial, acrescentando outros pedaços da placa de compensado, prolongando a fôrma de um cubo de 30x30x30 para um prisma de 30x60x30.
A limitação de tempo me levou a improvisar, o máximo possível, a realização do projeto naquele mesmo dia, estendendo-se do começo da manhã até ao fim da tarde. Assim, fui juntamente do Romerito, técnico do canteiro experimental da FAU e que foi indispensável para essa experimentação, agregando todos os materiais possíveis que encontrava para segurar todo o volume de terra que despejava naquela fôrma. A composição resultante dos esforços de compressão necessários para conter a terra ali despejada me pareceu bastante interessante, e pode ser vista na página seguinte.
No entanto, havia ainda o segundo despejo, do concreto armado, e que também me preocupava em questão de carga a ser comprimida pela estrutura externa montada de improviso. A mistura que preencheu o negativo da fôrma de madeira e terra foi composta por diferentes camadas de concreto, argamassa e argamassa armada, com traços diferentes para cada propósito. A primeira camada despejada foi uma fina camada de argamassa bastante plástica, quase aquosa, voltada para absorção em sua superfície das texturas da camada de terra logo abaixo dela. Ela foi aplicada ao longo de toda a terra e fundo da forma.
Passada a primeira camada que registraria a textura, era necessário colocar uma armadura metálica para resistir aos esforços de tração, que foi colocada logo acima dela. Em seguida, novo despejo, dessa vez de uma camada de concreto, ou seja, a argamassa acrescida de pedras. Por fim, foi adicionada uma nova armadura metálica, seguida de uma última camada de argamassa. A fôrma foi coberta com o restante do compensado, e o processo de cura durou 5 dias.
Passado o tempo de cura, a movimentação de terra se deu de forma muito diferente da inicial. Retiradas as peças externas que
continham a fôrma e o monte de terra, iniciou-se um processo de escavação para revelação da estrutura resultante, de forma semelhante ao processo das estruturas de Tippet Rise. Já podiam se ver as diferenças de cor, textura e materialidade de cada camada de argamassa e concreto, diferentes entre si pelo traço. À medida que a terra ia sendo retirada com a ajuda de um pedaço de madeira de forma aleatória, percebia-se a dissolução do monte de terra logo abaixo da estrutura recém moldada. As diferentes camadas de terra e areia se sustentavam de formas distintas entre si, após terem sido compactadas pelo peso da argamassa e do concreto acima delas, e o morro de terra pareceu muito mais denso e resistente. Ao retirar as fôrmas laterais improvisadas, notava-se a impressão registrada por todo o processo na madeira.
Neste momento, surgiu uma problemática que se estendeu por todas as outras experimentações: a questão espacial, não conceitual, mas de armazenamento. A partir do momento em que o processo se mostrou de grande relevância, tornou-se difícil condicionar toda a experimentação. Ela segue armazenada tanto no canteiro experimental quanto na Seção Técnica de Modelos, Ensaios e Experimentações Construtivas da FAUUSP, antigo LAME.
À medida que a terra ia sendo retirada, apareciam galhos, pequenos insetos, trechos de teia de aranha. Um pequeno ecossistema que se instalou ali por aqueles poucos dias de cura, e que já sofria de novo outra alteração. Uma incógnita durante o processo foi a sustentação da peça moldada conforme a fôrma ia sendo retirada. Ela permaneceu erguida na posição das fotos por toda a retirada da terra, tombando apenas no momento de retirada dos compensados da fôrma.
As materialidades envolvidas no processo geraram interpretações curiosas sobre a escala da experimentação. Por serem terra, argamassa, concreto e compensado materiais que aparecem usualmente na escala da paisagem, a maior parte das pessoas que viram as fotos do processo tomaram a experimentação como muito maior do que realmente é, o que de certa forma reforçou sua identidade fragmentária. Alguns amigos desavisados pensaram inclusive tratar-se de uma encosta que havia desmoronado.
Olhando com certa proximidade, notam-se as pequenas pedras, folhas, galhos e insetos em meio à terra, e que fincam sua presença e textura na argamassa. Retirada toda a terra e a fôrma de compensado, pôde-se notar, mesmo com o acúmulo de terra imediata na argamassa, as texturas resultantes da compressão estimulada pelo peso da argamassa e os limites impostos
pela fôrma de madeira e pela terra. A grandeza inversamente proporcional de terra e argamassa ao longo da estrutura gerou esforços de compressão diferentes, que podem ser observados nas imagens. A própria fôrma, onde havia maior quantidade de argamassa armada sobre a terra, compactou-a de forma que ela ficou presa no compensado. A imagem abaixo mostra a fôrma rotacionada em 90 graus, com a parte do fundo coberta por terra comprimida.
A superfície em alguns pontos de menor compressão, localizados na esquerda da estrutura, se assemelha a um recife de corais, observação talvez influenciada pela sobreposição do marrom terroso ao cinza da argamassa, com maiores aglomerados de terra. A superfície da direita, que sofreu maior compressão, tem um aspecto quase granular, arenoso. A peça foi colocada fora da cobertura do canteiro experimental, de forma a ser limpa, gradativamente, pela ação da chuva.
Toda a terra utilizada voltou para o mesmo local de onde foi retirada. A expectativa é que a peça fique exposta até o momento em que toda a terra seja retirada de sua superfície. Não está descartada a possibilidade de se voltar para a terra e para o solo em outra próxima experimentação. A terra continuará lá para eventuais experiências.