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Ilha dos amores
from Sobre a Paisagem
by muriloromeu
A segunda experimentação volta-se para o brotamento de água, o surgimento da água nas nascentes. Embora esta experimentação leve como título uma passagem do Canto IX d’Os Lusíadas26 , sobre a qual me debruçarei mais a frente, a intenção inicial surgiu através do cinema, por onde surgiu também o interesse pela interpretação dos fenômenos da natureza pelo homem através dos mitos.
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O ponto de partida foi “Acidente”, de Cao Guimarães, uma coletânea de pequenos curtas gravados pelo interior de Minas Gerais, em especial “Fervedouro27”, que trata de um mergulho dado por um caminhoneiro em um fervedouro na cidade que dá nome ao curta. Por se tratar de um corpo d’água que impossibilita quem nele nada de afundar, o fervedouro remete a uma transferência de características entre materiais, entre solo e água. Um solo, que temos como algo sólido, extremamente poroso a ponto de dele brotar água, contraposto a uma água tão densa que impede o
26. Luis Vaz de Camões, “Os Lusíadas”. Porto, Porto Editora, 2006.
27. Cao Guimarães, “Fervedouro” In: “Acidente”. Belo Horizonte, Cinco em Ponto e TEIA, 2006.
Figura 12: Ingmar Bergman, Still de “Jungfrukällan”. Suécia, Svensk Filmindustri, 1960.
corpo de penetrá-la. Em um segundo momento, também dentro da filmografia, me voltei para “A Fonte da Donzela (Jungfrukällan)”, de Ingmar Bergman, um filme sueco que mistura elementos do cristianismo, paganismo e mitologia nórdica. O filme associa o surgimento da nascente de água ao local da morte de uma virgem, o que, em uma transferência livre, pode ser interpretado como o surgimento de vida a partir de uma materialidade morta, sólida, como uma rocha, como o solo. Em outras palavras, a transformação do fim de um sistema entrópico – a morte - em um início – nascente –, reiterando a ideia de sistema cíclico, e inserindo o ser humano como parte desse sistema.
A partir do princípio básico do brotamento de água, que nada mais é do que um corpo d’água subterrâneo, que ao encontrar uma camada de solo intransponível, se acumula e aflora por um solo de maior porosidade, pensei que seria interessante, assim como no fervedouro do curta de Cao Guimarães, subverter a característica básica do elemento construtivo mais utilizado na construção das cidades, o concreto. Elemento estrutural, necessita ser intransponível, resistente, armado. Concreto até no nome, real, existente, verdadeiro, assim como sólido e solo. Por isso, me pareceu interessante conceber uma estrutura de concreto que vertesse água.
O projeto em croqui foi mais difícil do que o da primeira experimentação, afinal de contas, a quantidade de dificuldades técnicas é significativamente maior. A imagem inicial, no entanto, não se alterou significativamente. Entre o primeiro croqui e o croqui final, antes do começo da prática, passou-se em torno de um mês.
O concreto utilizado para criar a superfície vertedora de água é similar ao concreto permeável encontrado em pavimentação. De
traço bastante distinto do concreto usual, ele carrega apenas cimento e agregados graúdos - ou seja, pedra - sem a presença de areia. A fôrma de madeira também foi feita a partir da mesma placa de compensado utilizada na primeira experimentação, com largura de 45x45cm e profundidade próxima a 10 centímetros.
A imagem na página ao lado é o registro do último contato com o trabalho no canteiro experimental; devido a um acidente sofrido no final de Novembro, tive que me afastar de atividades que solicitavam esforços físicos. Em Março, fui liberado pelo médico em uma sexta feira, e posto em isolamento social, como todos, na segunda feira seguinte. Olhar para essa imagem e não ter a possibilidade de alterar a experimentação, deixada de lado em processo, ou até mesmo de acompanhar a primeira experimentação já feita, deixada às intempéries, apenas ressalta a importância das escalas temporais presentes no perpétuo fluxo de alteração da paisagem. Imagino a grama crescendo finalmente desenfreada no sítio de trabalho, os musgos crescendo na superfície exposta da primeira experimentação; situações que poderiam ser presenciadas ao longo de um semestre, perfeitamente cabíveis
dentro de um ciclo de vida. No entanto, esse isolamento do indivíduo do local oblitera a possibilidade de vivência da paisagem – e de sua consequente transformação em espaço -, aproximando escalas temporais completamente distintas: ao desvincularmos a temporalidade das experimentações de seu espaço, a paisagem em constante transformação torna-se imaginada, virtual. Assim como imaginamos os processos geológicos por termos sido informados previamente sobre eles, ainda que esses processos atuem em uma temporalidade contada em milhares de anos. A chuva, quando não vivenciada, continua a encharcar o solo, da mesma forma como continua a o erodir; nós apenas não estamos acostumados a experimentar da mesma forma processos com diferentes temporalidades.
Creio que por isso este ambiente de enclausuramento no qual este trabalho continuou a se desenvolver não invalida as experimentações pré-pandêmicas. Novas camadas de significado podem ser adicionadas, e por isso optei por recomeçar a experimentação nº 2 no ambiente doméstico, que possui uma ambivalência potente: se mostra como um ambiente onde a experimentação é propositalmente mais restrita quanto a dimensões, ao mesmo tempo que mergulha de vez sobre o ato da bricolagem, já que não há mais o apoio técnico presente no ambiente acadêmico.
Comecei testando o traço do concreto poroso, que é uma das dificuldades técnicas principais dessa experimentação. Realizei os testes em potes descartáveis que tinha em casa. No primeiro teste, inclinei levemente a fôrma antes da secagem para entender o comportamento do pó de cimento diluído na pequena quantidade de água da mistura, e também vibrei a fôrma com leves batidas, de forma a diminuir as bolhas de ar dentro do concreto, o que resultou em um acúmulo de cimento na parte baixa, tornando-a
insuficientemente porosa. No segundo, deixei a fôrma nivelada e não a vibrei, o que gerou uma distribuição homogênea do pó de cimento diluído, deixando a superfície suficientemente porosa para a passagem de água.
Após os testes feitos, parti para a execução da fôrma de madeira e de seu subsequente preenchimento, que foi feito em camadas. A primeira, de concreto de traço poroso: uma fina camada ocupando toda a fôrma com uma elevação central. Após a secagem, desenformei a peça, que acabou se dividindo em uma parte central e pedaços que se quebraram das bordas. Coloquei novamente o pedaço central na forma e o cobri com uma película de plástico. Em seguida depositei os pedaços que se soltaram e despejei por cima do conjunto uma camada de argamassa com plasticidade o suficiente para preencher todos os vazios, com exceção do trecho central, coberto por plástico. Essa camada serviu de impermeabilização entre a primeira e a terceira camada, também de concreto, mas não poroso. Com a retirada das fôrmas, foi possível ver o modo como a argamassa preencheu alguns dos
vazios das da camada porosa - o que deixou algumas manchas planas em meio às pedras da superfície – como também o registro dos diferentes traços nos compensados que serviram de fôrma. Através de um vazio deixado do meio da camada porosa até o final da última camada de concreto, foi possível conectar uma mangueira de silicone, conectada também a uma pequena bomba hidráulica, usualmente utilizada em aquários de pequeno porte.
O próximo passo – e que se mostrou o mais complicado – foi a execução do invólucro que sustenta a peça de concreto e envolve a água e a bomba hidráulica. Devido a pandemia, foi impossível utilizar as máquinas e contar com o apoio técnico do LAME; os revendedores nos quais eu comprava as chapas de compensado faziam apenas cortes simples nas madeiras. Como eu não possuía maquinário disponível (e nem espaço físico para manipulação das chapas), elaborei um projeto simples, que foi executado em uma marcenaria, o que também solucionou a questão da impermeabilização da peça. Ao mesmo tempo, ser obrigado a
desenvolver algo no AutoCad, que até então era um recurso que eu pretendia evitar, me motivou a circular mais livremente entre os polos do projeto e da bricolage, o que inclusive me levou a utilizar não apenas o AutoCad, como também o Revit – outro programa de Computer Aided Design - na experimentação seguinte, como mostrarei mais a frente. Com o conjunto funcionando – a peça de concreto, o invólucro de compensado, a bomba hidráulica e, por fim, a água – foi possível observar então como se dava o preenchimento da superfície porosa da peça de concreto pela água, e o caminho desta até cair pelas laterais e seu retorno à peça de concreto. Foi possível separar a peça em um pequeno fragmento de relevo, onde rios e ilhas se formavam com a ação da água; observar a distinção do reflexo gerado pelo fluxo de água sobre as pedras e sobre as áreas preenchidas pela argamassa; os veios deixados pelo plástico na argamassa direcionando os cursos d’água; e o som das gotas pingando no compensado e no corpo d’água que não pode ser visto.
Quando comecei os desenhos iniciais, pensando sobre a união entre um fragmento e água, foi inevitável o surgimento da ideia de ilha. Olhar para a mitologia retratada no filme de Bergman me fez pesquisar sobre a água na mitologia grega, o que me levou a Tétis, que é o nome dada a duas divindades: a titânide Thetys, esposa de Oceano e que representa a fecundidade “feminina” do mar, e Thetis, neta de Thetys, uma das nereidas, ninfas do mar. Thetis aparece no livro “Os Lusíadas” de Camões. É ela quem, na Ilha dos Amores, apresenta a Vasco da Gama a “máquina do mundo”, como recompensa pelas dificuldades encontradas nos mares durante as navegações. Na obra, a ilha é em si uma recompensa idílica aos marinheiros, onde se unem às nereidas através do amor. A equidade entre imortais e mortais supera a distância temporal entre eles, que possibilita a Vasco da Gama receber a “máquina do mundo”.
Penso essa experimentação como uma ilha-máquina capaz de gerar um mundo; um local idílico que possibilita a superação da mortalidade através de um brotamento infinito. É claro que essa ilha-máquina não tem a pretensão de substituir a paisagem. A bomba em algum momento parará de funcionar, a energia elétrica que a move em algum momento será interrompida, a madeira do invólucro em algum momento irá ceder. Não à toa, o canto IX é o trecho mais utópico do épico de Camões.