44 minute read

Ponto de partida

Next Article
Bibliografia

Bibliografia

A aproximação inicial a este tema se deu através do estudo em pesquisa de iniciação científica5, também sob orientação do Prof. Dr. Agnaldo Farias, da obra do artista Daniel Acosta, em especial de suas “Paisagens Portáteis”. A pesquisa teve como objetivo a elaboração de um relatório com análises dos trabalhos que compõem a obra do artista do ponto de vista do entrelaçamento dos campos da arquitetura, do design e da arte. No período que contempla as obras analisadas, as quais certamente se aproximam deste trabalho em muitos aspectos, Acosta se volta para a forma como nós, que residimos no ambiente construído, incorporamos a ideia de natureza ao espaço em que vivemos. Essa incorporação se dá através de uma depuração racionalizada, por onde são expurgados todos os conceitos imprevisíveis e vivos do ambiente natural, transformando a natureza natural, como se refere Acosta, em uma natureza estandardizada. Salvo o distanciamento temático entre a obra de Acosta e este trabalho, acredito que é relevante informar o momento de aprofundamento em nível de pesquisa sobre a paisagem e a confluência dos trabalhos de artista, arquiteto e designer presentes na obra de Acosta, que certamente pavimentaram o caminho de experimentação proposto aqui.

Mas apenas o contato com a obra de Acosta não justificaria o interesse pela paisagem. Após uma conversa na qual Agnaldo me perguntou de onde vinha o interesse por esse tema, revisitei trabalhos feitos durante o curso de arquitetura e urbanismo e até mesmo a pinturas a óleo que fiz quando era criança, para identificar um interesse comum pela apreensão dos diferentes momentos e temporalidades da paisagem. O resgate desse material foi fundamental para que eu enxergasse um caminho de desenvolvimento e uma comunicação entre as experimentações aqui mostradas.

Advertisement

5. Murilo R. V. da Silva, “A Obra de Daniel Acosta: Entrelaçamento entre arte, design e arquitetura com o objetivo de questionar o estatuto destas três disciplinas”. São Paulo, Universidade de São Paulo, 2020.

Figura 02: Daniel Acosta, “Estação Avançada com Paisagem Portátil - Unidade Compacta”. MDF, compensado, fórmica e lâmpadas fluorescentes, dimensões variáveis, 2004.

14

6. Milton Santos, “A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção”. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

7. Ferreira Gullar, “Manifesto Neoconcreto”. Publicado originalmente em 1a. Exposição Neoconcreta, catálogo. Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1959. In: Aracy A. Amaral (coord.). Projeto Construtivo Brasileiro na Arte: 1950-1962. São Paulo, Pinacoteca do Estado, 1977.

Uma distinção entre paisagem e espaço

Segundo Milton Santos, em “A Natureza do Espaço6”:

“A paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são essas formas mais a vida que as anima [...] A paisagem se dá como um conjunto de objetos reais - concretos. Nesse sentido a paisagem é transtemporal, juntando objetos passados e presentes, uma construção transversal. O espaço é sempre um presente, uma construção horizontal, uma situação única. Cada paisagem se caracteriza por uma dada distribuição de formas-objetos, providas de um conteúdo técnico específico. Já o espaço resulta da intrusão da sociedade nessas formas-objetos. Por isso, esses objetos não mudam de lugar, mas mudam de função, isto é, de significação, de valor sistêmico. A paisagem é, pois, um sistema material e, nessa condição, relativamente imutável: o espaço é um sistema de valores, que se transforma permanentemente”.

No momento em que faço o projeto das experimentações que compõem este trabalho, parto de um espaço do arquiteto, do artista. O processo de execução das experimentações é o espaço temporal delas, de formação até o presente do espectador. O “produto final” pode ser entendido como um fragmento de paisagem (noção que será explicitada no capítulo seguinte) esteja ele em uma galeria, uma casa ou em um gramado. Ele é esvaziado de significados atribuídos pelo artista que não sejam ligados à materialidade e à técnica, cabendo ao espectador ressignificar esta paisagem, atribuindo-lhe um espaço individual. Esta passagem entre espaço do artista, espaço da obra (que se torna aqui fragmento de paisagem) e espaço do espectador se aproxima do processo descrito por Gullar no “Manifesto Neoconcreto7” (1956):

“Terá interesse cultural específico determinar as aproximações entre os objetos artísticos e os instrumentos científicos, entre a intuição do artista e o pensamento objetivo do físico e do engenheiro. Mas, do ponto de

Figura 03: Diller Scofidio, “Blur Building”. Yverdon-Les-Bains, Suíça. 2002.

vista estético, a obra começa a interessar precisamente pelo que nela há que transcende essas aproximações exteriores: pelo universo de significações existenciais que ela a um tempo funda e revela.”

Essa é a forma encontrada aqui para discutir a paisagem, e não o espaço. É importante notar que essa possibilidade só pode surgir no campo da arte, já que, ao contrário do que se dá na paisagem real, o espectador não necessita encontrar no campo da arte uma significação ligada a função, ou seja, cada experimentação não necessita desempenhar um papel prático. Não precisa ser identificada como uma casa, uma ponte, ou uma cadeira, mas sim como algo. Não à toa, a arquitetura tem se aproximado cada vez mais do campo da arte, e dessa aproximação têm surgido alguns dos exemplos mais frutíferos de espaços arquitetônicos contemporâneos, como o Museu de Arte Contemporânea de Kanazawa, do SANAA Architects, o Museu de Arte de Teshima, de Ryue Nishizawa, o Blur Building, de Diller Scofidio + Renfro e até mesmo The Weather Project, de Olafur Eliasson na Tate Modern, embora este último seja uma instalação. Santos evidencia que a paisagem só permite a suposição do passado, pois é constituída de fragmentos. Não se busca reconstituir um passado, uma paisagem natural primordial, mas sim se aproximar dos processos de formação dessa paisagem natural, que está em constante transformação, ainda que simultaneamente sofrendo a transformação imposta pelo homem. São esses processos físicoquímicos que aqui interessam. A paisagem natural não é uma imagem fixa, mas sim algo mutável que tem como denominador comum os seus agentes internos que a modificam. A lógica construtiva e a lógica da vivência do espaço não são indiferentes a esses processos, mas de alguma forma uma resposta a eles. Sendo assim, essa relação é de grande interesse de ser estudada, como já vem sendo por diversos autores, artistas e arquitetos.

Considerações sobre o fragmento

Em “Court traité du fragment – Usages de l’oeuvre d’art8” (1986), a filósofa e ensaísta Anne Cauquelin aponta três posicionamentos acerca da noção de fragmento, traduzidos e comentados por Paola Berenstein Jacques em “Estética da Ginga9”. O primeiro enxerga o fragmento como algo insuficiente:

“O que diz efetivamente o crítico amargo da desordem fragmentária? Que o fragmento é parte indevidamente despregada de um todo, do qual sinaliza o lamentável desaparecimento, e, aliado ao furor dos homens, à sua ignorância, nada mais é que fenda, fissura mortífera que introduz a dissonância na harmonia inicial. Por isso, é preciso recolocá-lo em seu lugar, como uma peça de quebra-cabeça que deve entrar a qualquer custo no desenho geral”

O segundo, por sua vez, percebe uma autonomia de significado no próprio fragmento, acentuando seu valor isolado de um contexto, de certa forma como resposta única a ele:

“O fragmento é essa explosão, fechada nela mesma e indivisível, a única resposta a dar ao universo infinito. Forma perfeita, na sua rotunda brevidade, ela iguala, nos limites que são os nossos, a instantaneidade da presença do todo”.

Aproximando-se dos conceitos de paisagem e espaço de Milton Santos, pode-se dizer que o primeiro posicionamento dado pela autora sugere a necessidade da identificação do espaço no qual se insere o fragmento (então paisagem) para que este tenha valor. Já o segundo atribui ao fragmento um valor tão excessivo que ele se transforma, ao mesmo tempo, em paisagem e elemento substitutivo do espaço. Ambos os posicionamentos, como aponta Jacques, funcionam na lógica do elemento em relação ao todo, no primeiro como parte do todo, no segundo como cópia dele. A autora aponta então uma opção que não referencie o fragmento a uma razão já estabelecida e unitária, unificadora:

8. Anne Cauquelin, “Court traité du fragment – Usages de l’oeuvre d’art” . Paris, Aubier, 1986.

9. Paola Berenstein Jacques, “Estética da Ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica”. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2001.

“Em vez de considerar o Fragmento como destituído de sentido – o sentido pertencendo ao “todo” ao qual ele se opõe – ou como o sentido “concentrado” – ele sendo o microcosmo, uma cópia perfeita do “todo” - , é melhor considerar que o Fragmento tem um sentido próprio, singular, intrínseco, que não pode ser compreendido numa lógica unitária. O mais interessante é buscar uma forma singular de tratar o Fragmento, isolando-o, destituindo-o de todas as ligações possíveis, evitando explicações e, sobretudo, recusando as referências exteriores: promover a solidão e a auto referência. Esse isolamento, esse desatamento, se faria necessário, sem sombra de dúvida, a toda e qualquer abordagem relacionada ao universo fragmentário, da mesma forma que é necessário, num laboratório, isolar um vírus in vitro para estudar seu mecanismo particular, seu metabolismo próprio.”

A “Floating Island”, de Robert Smithson, pode ser lida como um fragmento de paisagem que pertence ao todo, ao mesmo tempo que o copia, já que se referencia tanto ao Central Park quanto à ilha de Manhattan como um todo. O fragmento que este trabalho busca atingir se aproxima da terceira consideração:

“A relação interna do Fragmento com ele mesmo (auto referência) não faz parte do que podemos ver, e acontece fora de toda ligação com o exterior. Ou seja, o Fragmento constitui um mundo à parte, um sistema autônomo, difícil de ser captado, mas não totalmente fechado em si: o que o cerca é intransponível, porque inacabado. Um paradoxo. Entretanto, um fragmento não existe para significar o que quer que seja, mas para se designar a si mesmo e, através de seus limites, delimitar o mundo em torno de si. É preciso, sobretudo, aceitar esse vazio de significação resultante da auto referência e renunciar a qualquer linearidade. Na lógica fragmentária, somos confrontados com o acaso, o aleatório, o ocasional, o efêmero e com a incompletude. Mas o que não tem fim é também da ordem do infinito. A anulação do “antes” e do “depois”, somente a consideração do pontual, do detalhe... O verdadeiro fragmento não quer se religar a nada, nem mesmo a outro fragmento; nunca vai em direção à unidade. Isso cria um fragmento isolado, em dissidência, em desunião, em interrupção.”

Ao aproximarmos esta última noção de Fragmento de Cauquelin ao “universo de significações existenciais que (a obra) a um tempo funda e revela” descrito por Gullar, encontramos um mundo particular da obra como denominador comum. Da mesma forma que o sistema material dos elementos da paisagem, os fragmentos e as obras neoconcretas estão ali para serem reinterpretados pelo homem e suscitarem assim um novo espaço. Sobrepor a noção de Fragmento à noção de paisagem leva a uma multiplicidade de escalas, do grão de areia que se desprendeu de uma pedra aos

Figura 04: Robert Smithson, “Floating Island”. Barcaça, rebocador, terra, pedras, árvores e arbustos, dimensões variáveis, Nova York,1970-2005.

10. Jorge Luis Borges, “El Inmortal”. In: “El Aleph”. Buenos Aires, Sudamericana, 2016. estilhaços terrestres que formaram a lua. Essa sobreposição me leva de imediato a três casos. O primeiro, A Piscina das Marés de Leça da Palmeira, de Álvaro Siza. O segundo, a cidade dos Imortais de Borges10. O terceiro, as Suisekis, pedras de exibição japonesas.

As piscinas de Siza não são parte da paisagem natural, e nem parte da cidade, mas são algo único, um elemento que absorve o pedaço de praia e rochas que ali estavam antes dela existir, como também a face do seu terreno que é voltada para a calçada. Siza cria os momentos de interrupção necessários para que sua arquitetura se baste enquanto fragmento, ainda que continue utilizando os elementos que estão ao seu redor. Ali dentro, uma parede tem outro significado; o mundo que adentramos quando descemos a rampa de acesso nos mostra que aquilo já não é o mundo de instantes atrás. Ao descer, a vista monótona que temos da orla é roubada, e só nos é permitido observar as texturas das fôrmas que ergueram as paredes de concreto. Luz e sombra se tornam os protagonistas, até o momento em que encontramos um espaço entre pedras e paredes de concreto que aprisiona as águas das marés. Aquelas pedras e a água do mar não são mais um pedaço da praia rochosa que já existia ali, mas outra coisa – um fragmento – que não pode mais ser vista como um pedaço daquela praia. Ao criar a contenção das paredes de concreto, Siza permite um movimento de absorção: inicialmente da geometria e da espacialidade prévias das rochas - nas quais ele ancora as contenções de concreto - e posteriormente das águas das marés, que ultrapassam as contenções e se aprisionam nas piscinas.

Esse é um exemplo de intervenção arquitetônica que se atenta ao sistema material prévio da paisagem e o utiliza, respeitando-o ao mesmo tempo em que se impõe; é uma adição a esse sistema, que espacialmente, desde que foi realizada, é entendida como

uma piscina. Algum desavisado que por ali passe no inverno, época em que a piscina é esvaziada, encontrará apenas a parcela da arquitetura perene, em que o conjunto de funções da piscina inexiste. Nem por isso ele a entenderá como uma continuação da paisagem, mas como algo. Esse indivíduo notará esse caráter fragmentário da intervenção, possivelmente como os primeiros exploradores que sobrevoaram as Linhas de Nazca, no Peru. Nada impede que daqui dois mil anos uma nova sociedade encontre os vestígios da Piscina das Marés e os atribua um significado religioso -uma celebração da água ou das marés, ou porque não, da lua - tal como atribuímos às linhas peruanas ou a Stonehenge. Ela será vista desvinculada de sua função de agora, e encontrará outra em um outro espaço. O que nos escapa a uma compreensão funcional costuma ser deslocado para o campo da ritualística e da religiosidade.

A Cidade dos Imortais de Borges, por sua vez, é uma cidade fechada que por ser imortal transita pelas eras, transmutando-se sempre em forma possível de ser identificada como cidade. Sua imortalidade pressupõe sua sobrevivência através das eras (ainda que esteja vazia). A cidade dos imortais não pode ser vivenciada por um mortal que ali chega. Sua temporalidade é diferente (vide o estado de quase hibernação intelectual que os imortais preservam). Olhar para ela é como olhar para uma montanha: se enxerga toda a sua monumentalidade, e um olhar atento revelará aos poucos suas particularidades. Porém, toda ela é construída em um processo temporal que nos foge do controle. Ali tudo já aconteceu, e o que acontece é imperceptível, como as transformações naturais da paisagem. É o edifício humano elevado à categoria de paisagem. Assim, atua como um fragmento simbólico de toda a paisagem construída, envolto em si só enquanto citadela que se basta. Não à toa é adentrada através de uma série de labirintos escuros e subterrâneos que afastam o desbravador do conto da noção de

Figura 05: Álvaro Siza, “Piscina das Marés”. Leça da Palmeira, Portugal. 1966.

11. Andrei Tarkovski, “Solyaris”. União Soviética, Mosfilm e Chetvyortoe Tvorcheskoe Obedinenie, 1972.

12. Robert MacFarlane, “Montanhas da Mente: História de um Fascínio”. Rio de Janeiro, Objetiva, 2005. tempo que ele passou ali dentro. O labirinto-túnel é um agente que possibilita a transição entre dois cenários extremamente distintos, assim como as paredes de concreto das piscinas de Siza, ou as autoestradas japonesas que tornam possível a viagem da Terra para Solaris no filme de Andrei Tarkovski11. Estas alternativas atuam em um âmbito arquitetônico, ainda que de forma simbólica. A obra de arte, no entanto, não precisa necessariamente ser atravessada espacialmente pelo espectador. O exemplo de fragmento da paisagem que me vem ao pensamento que mais se aproxima da obra de arte descrita por Gullar são as Suisekis - pedras de exibição japonesas, ou “pedras dos estudiosos” - que Robert McFarlane descreve em “Montanhas da Mente12”:

“Eram extraídas de cavernas, leitos de rios e encostas de morros, e montadas em pequenos pedestais de madeira. Tais pedras – guardadas pelos estudiosos em seus gabinetes, ou exibidas sobre as escrivaninhas, a exemplo dos nossos pesos para papéis – eram apreciadas por expressarem a história e as forças relativas à sua própria formação. Cada detalhe na superfície da pedra, cada sulco, nódulo, bolha de ar, saliência ou perfuração expressava uma eternidade. Cada pedra era um pequenino cosmo que cabia na palma da mão. As pedras dos estudiosos não eram metáforas da paisagem: eram a própria paisagem [...] Se as examinarmos bem de perto e nos detivermos algum tempo em tal exame, perdemos a noção de escala, e os círculos, cavernas, colinas e vales que a natureza nelas inscreveu assumem dimensões por onde, segundo parece, seríamos capazes de caminhar.”

Estas pedras atuam como fragmentos que se bastam enquanto paisagem, ao mesmo tempo que se correspondem a uma paisagem maior que é virtual. Seus tamanhos – sempre limitados ao que uma pessoa pode carregar – se aproximam muito, em escala, de algumas das mais célebres esculturas de Brancusi. Ainda, enquanto as suisekis atuam como fragmentos da paisagem natural, as esculturas polidas de Brancusi se apropriam em suas superfícies convexas das paisagens construídas nas quais se inserem, apropriando-se dessa paisagem não através de um mero reflexo, mas de um reflexo que é fruto das particularidades de seu material e de seus trechos côncavos e convexos; do polimento máximo à oxidação proveniente da passagem do tempo. Essa apropriação dos elementos da paisagem na qual a escultura de Brâncusi se insere é visível, mas diferente de como ocorre nas pedras incorporadas no projeto de Álvaro Siza, se dá numa espacialidade virtual. As duas, no entanto, necessitam da espacialidade da paisagem em que se inserem para atingirem sua totalidade.

A suiseki se basta. Mesmo que exista no passado como parte de uma paisagem maior, é elevada pelo ofício do artista - ou do estudioso - a um objeto total e livre de significações externas à sua materialidade, até o momento em que encontra o espectador. Sua superfície orgânica, própria dos processos de formação da paisagem natural, é impossível de ser apreendida totalmente de apenas um ponto de vista. Diferentemente das Piscinas de Siza - que precisam das rochas, do mar e suas marés e da orla de Matosinhos -, da Cidade dos Imortais de Borges – que precisa dos túneis que a conectam ao mundo mortal - a suiseki não tem nenhum vínculo obrigatório com a paisagem para que sejam mantidas suas particularidades que a tornam completa. Creio que esta ausência da obrigatoriedade do vínculo com a paisagem é interessante por si só, mas ganha potência quando observada de dentro do contexto pandêmico que vivemos – e que se instaurou durante a execução deste trabalho. Se antes já era explícita a diferença entre pensar a paisagem que envolve o indivíduo e que se impõe sobre ele em sua força, como nas pinturas sublimes de Turner - ou até mesmo como uma vastidão a ser desbravada e apreciada pelo homem, como em muitos dos quadros de Caspar David Friedrich -, e pensá-la a partir da comodidade do interior de um escritório ou de uma sala onde ela está exposta sobre uma escrivaninha, agora, em um contexto pandêmico, podemos pensar de forma semelhante a paisagem construída das cidades, isolados em nossos apartamentos e casas, olhando a cidade pela janela dia após dia e vendo-a como um ambiente inóspito, perigoso, e sobretudo, distante.

Processos de formação

Parece um bom caminho, após olhar para as suisekis e para os processos de formação de rochas contidos nela, que o trabalho se volte para a materialidade da paisagem construída e seus processos de formação. Faz-se necessário então um esclarecimento sobre os termos continuamente aqui repetidos. Foram definidos como processos de formação da paisagem natural aqueles que ocorrem independentemente da ação humana direta, que serão abordados em suas particularidades nos registros das experimentações realizadas neste trabalho. Pode-se considerar aqueles processos que já ocorriam antes do Antropoceno, mas também as ocorrências durante nossa era geológica, resultantes indiretas da ação humana.

Os processos de formação da paisagem construída, por sua vez, são resultantes diretos da atividade humana. Eles diferem, principalmente, por terem uma temporalidade distinta e por serem fruto de uma racionalização. É importante frisar que, quando cito os processos de formação da paisagem construída, estou me referindo aos processos físicos. Essa abordagem pode parecer de início um pouco simplista. No entanto as materialidades com as quais construímos as nossas cidades são fruto de uma racionalização acumulada através dos tempos e de sua adaptação a diversos contextos socioeconômicos, das quais elas são indissociáveis. Assim como qualquer decisão tomada nas experimentações passa por um processo de racionalização; é ela que nos permite colocar lado a lado os dois grupos de processos. Robert Smithson, em “A Sedimentation of The Mind13”, atenta ao fato de que as “manifestações da tecnologia” partem da materialidade natural:

“As manifestações da tecnologia são, algumas vezes, menos “extensões” do homem [...] do que agregados de elementos. Mesmo as ferramentas e as máquinas mais avançadas são feitas da matéria-prima da terra.”

Figura 06: Robert Smithson, “Asphalt Rundown”. Asfalto despejado sobre terra, dimensões variáveis,Cava dei Selce, Roma, Itália. 1969.

13. Robert Smithson, “A Sedimentation of the Mind”. Publicado originalmente em Artforum, Setembro de 1968. In: Jack Flam (org.) “Robert Smithson, The Collected Writings”. Nova York, New York University Press, 1979.

O que existe é uma atualização - disfarçada de aperfeiçoamento - de técnicas construtivas, de materiais, de modificações da paisagem para determinados usos e, consequentemente, novos espaços. Toda essa transformação ainda depende da mesma matéria natural. Da mesma forma, Robert MacFarlane discorre sobre as técnicas de representação no campo das artes, especificamente na pintura a óleo, destacando a sua origem mineral:

“A pintura a óleo é o veículo adequado para a representação dos processos geológicos, pois a tinta traz consigo as paisagens: é feita de minerais. A tinta a óleo foi criada no século XV, quando pintores flamengos – principalmente , os irmãos Van Eyck – experimentaram misturas de óleo de linhaça e vários pigmentos naturais, descobrindo uma substância que, além de ter cor mais vibrante, era mais maleável, em termos de tempo de secagem, do que a têmpera fabricada à base de ovo. Muitos dos pigmentos misturados ao óleo tinham origem mineral. Carvão mineral era utilizado para retratar as sombras da pele humana, especialmente pelos pintores flamengos e holandeses do século XVII. Calcário negro e carvão comum eram empregados na produção da tinta marrom. Os tons de azul-claro utilizados na representação de montanhas como espécie de películas posicionadas ao fundo, digamos, na obra de Claude ou Poussin eram produzidos por carbonatos de cobre ou compostos de prata. O célebre efeito “esbatimento”, tão apreciado pelos mestres holandeses na pintura de céus (e que confere ao céu texturas que reproduzem, de modo extraordinário, a consistência dos cirrosestratos), era obtido por meio de vidro moído, usado como pigmento, e de cinzas, como contexto. “Sinople”, ou terra vermelha, era empregada para emprestar às faces ou às vestimentas tons rosados, ou no esboço de afrescos sobre gesso. A geologia, por conseguinte, está intimamente relacionada à história da pintura; na pintura a óleo de paisagens, a terra é utilizada para expressar a si mesma.14”

Os processos de formação da paisagem construída – assim como os de representação - estão portanto intimamente ligados a uma matéria-prima da terra, e as novas materialidades e

14. Robert MacFarlane, “Montanhas da Mente: História de um Fascínio”. RIo de Janeiro, Objetiva, 2005.

15. Hélio Oiticica, “A transição da cor do quadro para o espaço e o sentido de construtividade”. In: Gloria Ferreira e Cecília Cotrim (orgs.) – “Escritos de artistas, Anos 60/70”. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006. plasticidades resultantes deles são fruto do aperfeiçoamento técnico e do contexto socioeconômico. Se a diferença de escala possibilita que a paisagem seja triturada para que ela mesma se represente em uma pintura - ilusoriamente transportando-se do campo tridimensional para o plano bidimensional da tela - nada impede que ela seja utilizada para se representar em obras espaciais. Aqui também há um estreitamento com o Manifesto Neoconcreto, e com o fardo da escultura, que nunca é indiferente ao bidimensional da pintura.

No texto “A transição da cor do quadro para o espaço e o sentido de construtividade15” (1959) Hélio Oiticica narra um trecho do processo de transição do plano do quadro para o tridimensional em sua obra. Embora ele se refira mais diretamente aos seus Relevos, Bilaterais, e Núcleos, é interessante a este trabalho observar a forma como o pigmento das suas telas transita para o mundo real em seus Bólides, tornando-se muito próximo a materiais como terra e brita, que contidos em vidros, caixas ou sacos plásticos, passam a ostentar uma solidez que não existiria sem esses elementos que os emprestam a forma, ainda que temporária. Afinal, basta a manipulação dos sacos plásticos ou a inclinação do recipiente de vidro ou da caixa de madeira para que a forma se altere, reinventando toda a ordem do conjunto.

Enxergamos o mesmo fenômeno na manipulação de materiais com grande plasticidade utilizados na manipulação da paisagem. É o caso do concreto armado moldado em fôrmas ou as grandes quantidades de terra movidas em obras de terraplanagem, ou na obra “Asphalt Rundown”, de Smithson, na qual o artista despeja asfalto quente sobre uma encosta, que se solidifica a medida que a percorre. A diferença em relação aos Bólides de Oiticica é que a fôrma sai, e a matéria assume uma forma que se aproxima mais do que entendemos como permanente. De fato, na nossa escala

temporal, o concreto desmoldado, o arrimo criado, o asfalto resfriado se mostram como algo permanente. No entanto eles são um momento em relação à paisagem transtemporal sobre a qual eles incidem, seja essa a paisagem construída - urbana e mais imediata - ou a paisagem natural.

As obras de Frank Gehry em Los Angeles são de certa forma uma resposta a esse momento. Ao entender que a constância do contexto no qual seus projetos serão inseridos é na verdade a constante transformação dos edifícios16, Gehry vê a oportunidade de criar uma arquitetura que se encaixa em seu contexto metamórfico pela negação dele. Assim, cria fragmentos de paisagem autossuficientes, que se comunicam não com a temporalidade imediata dos edifícios ao seu redor, mas que respondem às suas próprias paisagens, temporalidades e contextos. Seus edifícios, assim como a paisagem para Milton Santos, se tornam transtemporais. Não à toa eles se tornam icônicos, alçados muitas vezes à categoria de monumento e aproximados do campo da arte.

Um desavisado pode supor que essa hiperindividualização do edifício em relação ao contexto é seu próximo estágio evolutivo. Mas é claro que a paisagem da cidade não pode ser composta apenas por edifícios como os de Gehry. Uma cidade que passa a ter edifícios que respondem apenas às suas próprias lógicas perde seus ícones - que lhes dão os endereços e sua funcionalidade -, e passa a ser apenas um apanhado de formas diversas. Esse mesmo desavisado pode supor que quando Oiticica narra seu processo de transição do quadro para o espaço ele o atribui um sentido evolutivo. Se isso fosse verdade, não existiriam mais pintores, que teriam se transformado não só em escultores como também em fotógrafos. Estes últimos já teriam inclusive se transformado em cineastas. É interessante então olharmos para a

16. Ver Rafael Moneo, “Inquietud teórica y estrategia proyectual En la obra de ocho arquitectos contemporáneos”. Barcelona, Actar, 2004, e Alejandro ZaeraPolo, “Arquitetura em Diálogo”. São Paulo, Ubu Editora, 2016.

entrevista de Smithson que dá nome ao próximo capítulo, na qual o artista enxerga esse sentido na formação da paisagem não como evolutivo, mas como entrópico, em que um sistema que contém energia caminha para o repouso. Como tento mostrar brevemente ao longo do próximo capítulo, isso não contempla totalmente o entendimento das temporalidades da paisagem, do homem e das situações que caminham de forma contrária a esse sentido entrópico, como por exemplo a pintura que é ressignificada a partir da produção tridimensional posterior a ela, ou a interferência dos novos materiais criados pelo homem nos ciclos que já ocorriam antes do Antropoceno.

A entropia se faz visível

Livre tradução da entrevista de Robert Smithson para Alison Sky “Entropy made visible17” de 1973, o título desse capítulo aborda a ideia central da entrevista, na qual Smithson chama a atenção para o papel do processo entrópico de transformador da paisagem e sua relação com a atividade humana, e uma tentativa de observar esse conceito de um outro ponto de vista. A tradução dos trechos citados do livro, como o título, também é livre.

Smithson define inicialmente a entropia como “uma condição que é irreversível, que vai de encontro a um equilíbrio gradual”, bastante próxima à definição da segunda lei da termodinâmica, o que elabora mais a frente, no mesmo parágrafo:

“Você tem um sistema fechado que eventualmente se deteriora e começa a se desfazer, e então não há como você refazê-lo como era. Um exemplo pode ser o estilhaçamento do vidro de Marcel Duchamp , e sua tentativa de reunir todos os pedaços de acordo com a composição original, tentando superar a entropia.”

Em determinado momento, Sky pergunta se a entropia não é uma metamorfose, ou um processo contínuo no qual elementos passam por uma transformação em um sentido evolucionário. Smithson recorre ao conceito de “entropia fluvial”, no qual toda a energia vai diminuindo em um sentido, em um processo irreversível que pode ser entendido como uma metamorfose evolutiva, porém não de forma idealista. A evolução neste caso não se pretende aperfeiçoamento, mas sim a apresentação de uma situação diferente. Neste caso há apenas a transformação de tudo em direção a algo que não existe. Essa noção de sistema em constante transformação tendendo a um equilíbrio escapa do projeto arquitetônico, no qual quase sempre há a necessidade de se encontrar a solução final, como aponta Sky. Smithson relembra o erro de engenharia que criou o lago que deu nome à região de Salton Sea, no sul da Califórnia, onde, numa tentativa de conter

Página anterior: Figura 07: Plantações em Salton Sea, Califórnia, Estados Unidos da América. Fonte: Google Earth

17. Robert Smithson, “Entropy Made Visible”. Publicado originalmente em On Site #4, 1973. In: Jack Flam (org.) “Robert Smithson, The Collected Writings”. Nova York, New York University Press, 1979.

18. Alicja Kwade, “Light Transfer of Nature”. Espelhos, cobre, madeira e pedra, 150 x 250 x 268 cm, 2015. as enchentes causadas pelo rio Colorado na região, foi construído um canal por onde a água do rio escoou, ocupando toda uma região localizada abaixo do nível do mar, inundando cidades e linhas férreas. O local se transformou em um paraíso turístico nos anos 1960, até que a salinização da água do lago - que não podia ser escoada - aumentou drasticamente com a evaporação e com os pesticidas das plantações vizinhas lançados no lago, matando peixes e tornando a água imprópria para banhistas. À época da entrevista, esse processo ainda não tinha ocorrido por completo:

“É impossível nadar em Salton Sea porque cracas cresceram em todas as rochas. Ainda há algum esqui aquático e alguma pesca. Há também um plano para dessalinizar Salton Sea. É há diversos tipos de projetos estranhos para fazê-lo. Um deles consistia em trazer escória da Kaiser Steel e com ela construir um dique. E então temos um exemplo de uma espécie de efeito dominó onde um erro gera outro erro, ainda que estes erros sejam, de certa forma, empolgantes para mim - eu não os vejo como algo desanimador.”

A própria temporalidade na qual se encaixam a entrevista e as posteriores ocorrências em Salton Sea reforçam a fala de Smithson sobre uma evolução de não aperfeiçoamento; relembrar os diversos planos futuros em uma entrevista passada para salvar um local que está morto no presente gera uma confusão de temporalidades e espacialidades interessante ao campo da experimentação artística. Uma confusão de espacialidades, que de certa forma pode ser usada para ilustrar esse caso, é a encontrada em alguns dos trabalhos de Alicja Kwade, como “Light Transfer of Nature18” (2015), no qual a artista sobrepõe materialidades diferentes - inicialmente dispostas em um triângulo fechado - através de um simples, mas engenhoso jogo de espelhos. Algo que de certa forma lembra o que Smithson diz sobre o projeto arquitetônico enquanto imagem final, impossível, ao que oferece como exemplo de contraposição o caso do parque em Anchorage, Alaska, e das erupções vulcânicas na Islândia:

“É como o terremoto de Anchorage, responsável pela criação de um parque. Depois do terremoto uma parte da área danificada foi transformada em parque, o que me parece um modo interessante de se lidar com o inesperado e com sua incorporação dentro de um ambiente comunitário [...] também as recentes erupções próximas à Islândia. Uma

Figura 08: Salton Sea, Califórnia, Estados Unidos da América. Fonte: Google Earth

19. Robert Smithson, “Partially Buried Woodshed”. Kent, Ohio, Estados Unidos da América, 1970.

20. Ver Nathalie Farigu, “What Happened Here, At The Salton Sea?” In: ourworld.unu.edu comunidade inteira foi submersa por cinzas vulcânicas. Isso gerou um tipo de sistema de casa enterrada [...] você pode dizer que isso gerou um tipo de arquitetura enterrada temporária que relembra meu (trabalho) “Partially Buried Woodshed19” de Kent State, Ohio, onde despejei toneladas de terra sobre um galpão até a viga principal de sua cobertura colapsar.”

Tanto o terremoto quanto as erupções são processos de formação da paisagem natural que existem há milhares de anos. O próprio lago de Salton Sea também se insere na discussão destes processos, já que foi comprovado recentemente que o vale onde se situa, antes da criação do lago desértico, vêm se alternando entre deserto e lago de forma cíclica, em um processo que dura milhares de anos20. Talvez este seja o principal desencontro entre os processos de formação da paisagem natural e os processos de formação causados pelo homem, a temporalidade. O discurso entrópico de Smithson é válido para discutir a paisagem ao levarmos em conta o Antropoceno, tão recente em comparação com o tempo geológico. A entropia ganha força no exemplo dado pelo artista, as crateras resultantes da exploração de minérios:

“Aparentemente, quando foram feitas as leis de recuperação de minas (mining reclamation laws) pretendia-se restaurar as minas como eram antes de serem exploradas[...] você pode imaginar o resultado ao tentarem lidar com a mina Bingham, em Utah, uma escavação de uma milha de profundidade e três de diâmetro[...] uma pessoa da companhia de mineração responsável me disse que eles pretendem encher o buraco gerado pela exploração; mas é claro que alguém se perguntará onde a companhia conseguirá o material para enchê-lo[...] eles dizem que demoraria algo como 30 anos e que teriam que pegar a terra de uma outra montanha [...] é uma tentativa de recuperar um terreno selvagem que não existe mais. Aqui temos que aceitar a situação entrópica e aprender como reincorporar estas coisas que nos parecem feias.”

O impacto deixado pela mineração citado por Smithson se observa de duas formas distintas nas escalas temporais humana e da paisagem; se na primeira enxergamos esse impacto como algo irreversível, na segunda o que vemos é um pequeno impacto que acarreta em alterações ao longo de um processo de milhares de anos. O conceito de entropia na paisagem se sustenta do ponto de vista da abordagem humana, antropocênica, porque entendemos a paisagem como algo esgotável ao nosso usufruto. Quando falamos em um canudo que demora algumas centenas ou milhares de anos para se decompor não estamos necessariamente nos preocupando com a natureza, mas com a deterioração dela durante o tempo em que vivemos e que, portanto, a usamos. A mina citada por Smithson é um ponto de encontro entre um sistema entrópico (do usufruto da natureza pelo homem) com um sistema cíclico da natureza. O mesmo se dá com o lago de Salton Sea. Afinal vivemos com sorte 90 anos sobre uma terra que tem bilhões de anos. Não podemos resgatar um início dos processos, tampouco adivinhar um fim deles. Buscamos, no entanto, observar as mudanças da paisagem construída, e contentar-se com os vestígios de um sistema cíclico em andamento, da mesma forma que nos contentamos em contar um ano sem sentirmos a translação da terra ao redor do Sol.

O time-lapse é talvez o meio de registro que mais explicita essa diferença temporal e a busca para dominá-la. Ele não apenas satisfaz a nossa necessidade de compreender e consumir um processo que se desenrola em uma temporalidade diferente da nossa atenção, como também nos coloca em uma posição de dominação sobre ele. Um time-lapse em um documentário nos mostra como uma flor desabrocha ou como o sol nasce e se põe em segundos. Ele abate qualquer grandiosidade do processo e o torna subjugado à vontade do homem; um dia pode ter 24 horas ou três segundos. As fotografias de Michael Wesely21 capturam

21. Ver Michael Wesely, Série “Potsdamer Platz, Berlin”. Fotografias de longa exposição,1997-1999.

através da longa exposição diversas temporalidades diferentes simultaneamente: a altura do sol em cada dia do ano somada à construção de um edifício, com adição da animação das pessoas no local e o afastamento de mobiliário de um lado para o outro. O que se altera com mais frequência evidentemente é aquilo que é mais temporário ou recente. Ali ficam evidenciadas as folhas de uma árvore que caem no outono, mas ainda assim a paisagem territorial permanece intacta, já que o tempo de exposição de um ano, considerado longo para nós, é insignificante no registro da variação do território que escapa ao homem. Se deixássemos a câmera esse tempo todo voltada para uma montanha desinteressante do ponto de vista econômico teríamos um registro praticamente estático, apenas com a posição do sol se alterando acima dela. Não a veríamos lentamente se transformando em um planalto ou tampouco notaríamos sua diminuição de centímetros de altura.

Por isso julgo importante a representação da soma dessas temporalidades, contemplando tanto um sistema entrópico quanto um sistema cíclico. As experimentações que são apresentadas ao longo deste trabalho foram uma forma que encontrei de me debruçar sobre isso. Acredito que um artifício fundamental e simples para abordar essa soma de temporalidades seja o diálogo entre o bidimensional e o tridimensional, o que de novo me leva à produção neoconcreta, ao olhar para o círculo e a esfera, o triângulo e a pirâmide (ou cone), o quadrado e o cubo (ou cilindro). Um cone refletido, como um pião, talvez seja o volume que exemplifica de forma mais objetiva a justaposição desses dois sistemas (entrópico e cíclico). O uso de formas e volumes primários também facilita a equiparação de materialidades diferentes para reorganizá-las enquanto conjunto, contrapondo a distinção delas de acordo com o aperfeiçoamento técnico de cada uma, como na obra de Kwade. Mecanismo que é útil para espacializar a discussão do capítulo seguinte, que conclui a primeira parte, teórica, deste trabalho.

O Pensamento Selvagem

Este capítulo leva o nome traduzido para português da obra de Claude Lévi-Strauss de 1962 “La Pensée Sauvage22”, e é um breve comentário do primeiro capítulo do livro, “A ciência do concreto”, no qual são discutidos os conceitos de bricolage, conhecimento científico e pensamento mítico, que se mostraram bastante relevantes a este trabalho. Optei, para melhor entendimento e coerência, por desenvolver esse capítulo partindo de um resumo do texto de Lévi-Strauss, para que este instrumente o comentário que o segue, onde o relaciono aos capítulos anteriores deste trabalho. Ele é o último capítulo teórico geral deste trabalho, e foi fundamental para que as últimas experimentações ocorressem.

O autor começa o capítulo mostrando como, por muito tempo, foi agradável olhar para diversas línguas como sendo incapazes de ter um pensamento abstrato, omitindo que não era só a riqueza em nomes abstratos que essas línguas possuíam. Lévi-Strauss cita o exemplo do povo chinuque, que, para uma frase como “O homem mau matou a pobre criança”, diz “A maldade do homem matou a pobreza da criança”. O homem mal, substantivo adjetivado, transforma-se em dois substantivos. Cita também o exemplo de um povo havaiano que apenas dava nome ao que lhe era útil. O que se conclui é que o se entende como um nível de abstração alto ou baixo dos termos varia não em função das capacidades intelectuais, mas dos interesses particulares de cada sociedade, que são, naturalmente, desiguais entre si. O que uma denomina extensivamente na outra é denominado por um termo, e viceversa.

“Como nas linguagens profissionais, a proliferação conceitual corresponde a uma atenção mais firme em relação às propriedades do real, a um interesse mais desperto para as distinções que aí possam ser introduzidas. Essa ânsia de conhecimento objetivo constitui um dos aspectos mais negligenciados do pensamento daqueles que chamaremos de “primitivos”. Se ele é raramente dirigido para realidades

22. Claude Lévi’Strauss, “O Pensamento Selvagem”. Campinas, Papirus, 2012.

23. A.C. Fletcher, “The Hakoo: A Pawnee Ceremony”. Washington, Bureau of American Ethnology, 1904. Apud Claude Lévi’Strauss, “O Pensamento Selvagem”. Campinas, Papirus, 2012. do mesmo nível daquelas às quais a ciência moderna está ligada, implica diligências intelectuais e métodos de observação semelhantes. Nos dois casos, o universo é objeto de pensamento, pelo menos como meio de satisfazer a necessidades.”

Da mesma forma, cada civilização superestima a orientação objetiva de seu pensamento. Ao olhar para o “selvagem” como guiado apenas pelas necessidades orgânicas ou econômicas, não percebemos que ele nos olha da mesma forma, julgando seus desejos como mais equilibrados que os nossos. Após citar diversos exemplos de profunda distinção e nomenclatura de fauna e flora por parte dos indígenas e de outros povos tidos como primitivos, Lévi-Strauss evidencia a relação de causa e consequência entre conhecimento e utilidade:

“[...] as espécies animas e vegetais não são conhecidas porque são úteis; elas são consideradas úteis ou interessantes porque são primeiro conhecidas.”

A ciência está diretamente ligada à classificação, que é entendida pela nossa civilização como objetiva, e, portanto, ciência. Ela, no entanto, apenas supre a necessidade de classificação, que é por si só mais virtuosa do que sua ausência. o objeto da ciência é se afastar cada vez mais da desordem inicial. Essa exigência de ordem constitui a base do pensamento primitivo, porque constitui a base de qualquer pensamento. O autor cita um pensador indígena23 que nota que “cada coisa sagrada deve estar em seu lugar”. Estar em seu lugar é o que a torna sagrada, já que sua retirada deste posto desencadearia a desordem geral. Assim se explicam também as ritualísticas, onde cada pequena parte ocupa seu devido lugar.

Muitas abordagens se aproximam do pensamento mágico, tido como ilusório pela ciência. A primeira distinção entre magia e

ciência é que a primeira postula um determinismo global, e a outra distingue níveis nos quais apenas a alguns é aplicável um determinismo, inaplicável aos outros. O autor então questiona se poderíamos, também, já que esse pensamento mágico segue seus ritos que ainda não foram diagnosticados pela ciência, compreender esse determinismo mágico como uma pré-ciência que ainda não foi desvendada, já que a ciência é tão recente na história da humanidade.

Isso o leva ao Paradoxo Neolítico, relativo ao período em que se confirmou o domínio do homem sobre as grandes artes da civilização: cerâmica, tecelagem, agricultura e domesticação de animais. Nada disso foi atingido por uma observação passiva ou por acaso, mas sim através de séculos de observação ativa e metódica. Mas se o homem neolítico é o acúmulo do interesse contínuo em observar ativamente, como explicar os milênios de estagnação que o separam da ciência moderna? Esse paradoxo é respondido apenas com a divisão do conhecimento científico em dois: um próximo da percepção e do sensível, e outro mais distanciado. Dessa forma, é satisfatório por um bom tempo atribuir a semelhanças estéticas a mesma propriedade, já que qualquer classificação é mais interessante que nenhuma. A partir de um momento se mostra necessário reclassificar o que é então percebido como mitos e ritos. Eles não são, portanto, menos científicos. Lévi-Strauss introduz então uma das discussões que este trabalho procura abordar:

“Aliás, subsiste entre nós uma forma de atividade que, no plano técnico, permite conceber perfeitamente aquilo que, no plano da especulação, pôde ser uma ciência que preferimos antes chamar de “primeira” que de primitiva: é aquela comumente designada pelo termo bricolage.”

Cabe aqui o aprofundamento do termo. A nota dos tradutores da primeira edição brasileira do livro24 é um bom ponto de partida. Diz ela que:

24. Nota de Almir de Oliveira Aguiar e M. Celeste da Costa e Souza, tradutores da 1ª edição pela Editora Nacional.

“O Bricoleur é o que executa um trabalho usando meios e expedientes que denunciam a ausência de um plano preconcebido e se afastam dos processos e normas adotados pela técnica. Caracteriza-o especialmente o fato de operar com materiais fragmentários já elaborados, ao contrário, por exemplo, do engenheiro que, para dar execução ao seu trabalho, necessita da matéria prima.”

O Bricoleur, para o autor, é aquele que trabalha com as mãos - e com o que tem à mão - , mas sem que seu produto seja a finalidade direta desse trabalho manual, como é em muitas vezes o caso do artista. Assim como no pensamento mítico, o bricoleur trabalha com o repertório que tem, e que, mesmo sendo limitado, é o único de que dispõe. É o pensamento mítico, então, umas espécie de bricolage intelectual, e ambos passíveis, portanto, de resultados excepcionais e imprevistos. Sobre as atribuições do bricoleur, o autor continua:

“O Bricoleur está apto a executar um grande número de tarefas diversificadas, porém, ao contrário do engenheiro, não subordina nenhuma delas à obtenção de matérias-primas e de utensílios concebidos e procurados na medida de seu projeto: seu universo instrumental é fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se com os “meios-limites”, isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteróclitos, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento nem com nenhum projeto particular, mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construções e destruições anteriores.”

A semiparticularização dos elementos do conjunto é chave aqui, pois dá o suficiente para que o bricoleur opere as ferramentas e materiais sem determinar exatamente o uso deles. É nesse meio do caminho que também se encontra a reflexão mítica, entre o percepto (conjunto de sensações que ultrapassa a escala do indivíduo) e o conceito (como ideia, projeto). Entre a imagem/

percepto e o conceito está ainda o signo, já que este se refere a si mesmo, mas também a algo (o que também é feito pelo conceito). A diferença do signo para o conceito é que sua capacidade é limitada. Utilizando como o exemplo o bricoleur; ele pode se entusiasmar com o projeto, mas confrontará o que tem a seu dispor para colocá-lo em prática, da mesma forma que um mito surgirá a partir do conjunto de conhecimentos e vivências pré existentes de uma civilização (percepto), apenas organizado de uma forma específica. Isso fica claro quando o autor utiliza o exemplo de um cubo de madeira com função atribuída e como matéria:

“Este cubo de carvalho pode ser um calço, para suprir a insuficiência de uma tábua de abeto, ou ainda um soco, o que permitiria realçar a aspereza e a polidez da velha madeira. Num caso, ele será extensão, no outro, matéria. Mas essas possibilidades são sempre limitadas pela história particular de cada peça e por aquilo que nela subsiste de predeterminado, devido ao uso original para o qual foi concebida ou pelas adaptações que sofreu em virtude de outros empregos.”

O mesmo ocorre com o engenheiro, que não pode fazer qualquer coisa. Ainda que ele tenha um potencial ilimitado, ele esbarra no conjunto de ferramentas e meios possíveis quando da execução de seu projeto. Ele ainda continua operando através do conceito, e não do signo. O engenheiro (conceito) expande o conjunto existente. O bricoleur (signo), reorganiza esse novo conjunto. O autor fala sobre esses papéis no campo da arte:

“[...] a arte se insere a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico, pois todo mundo sabe que o artista tem, ao mesmo tempo, algo do cientista e do bricoleur: com meios artesanais, ele elabora um objeto material que é também um objeto do conhecimento.”

O autor adentra então outro assunto que também interessa a este trabalho, a escala, partindo de um retrato de autoria de Clouet:

Figura 09: François Clouet, detalhe de “Elisabeth d’Autriche (1554-1592) reine de France”, óleo sobre tela, 250 x 370 cm, 1571. “[...] se sabe que ele gostava de pintar em proporções menores que as da natureza; seus quadros são, portanto, como os jardins japoneses, os carros em miniatura e os barcos dentro de garrafas o que, em linguagem de bricoleur, denominam-se “modelos reduzidos”[...] pode-se perguntar se o efeito estético de uma estátua equestre maior que o natural provém do fato de ela elevar um homem às dimensões de um rochedo e não de reduzir às proporções de um homem, o que, no início é percebido de longe como um rochedo. Enfim, mesmo o “tamanho natural” supõe o modelo reduzido, pois que a transposição gráfica ou plástica implica sempre uma certa renúncia a certas dimensões do objeto.”

Para o autor, a redução da escala torna menos temível a totalidade do objeto em questão. Ao o diminuirmos, ele obrigatoriamente é simplificado, o que gera uma ilusão de controle. Em resumo:

“a virtude intrínseca do modelo reduzido é que ele compensa a renúncia às dimensões sensíveis pela aquisição de dimensões inteligíveis”.

Esse modelo reduzido se assemelha a segunda noção de fragmento mencionada por Cauquelin, trazida anteriormente:

“O fragmento é essa explosão, fechada nela mesma e indivisível, a única resposta a dar ao universo infinito. Forma perfeita, na sua rotunda brevidade, ela iguala, nos limites que são os nossos, a instantaneidade da presença do todo”.

Dessa forma, Lévi-Strauss atribui a arte uma finalidade de conceber uma imagem homóloga ao do objeto, restringindo-a a agir dentro da concepção de fragmento acima. No entanto, é interessante a este trabalho a discussão sobre como a escala pode ser trabalhada de diversas formas para contemplar as diferentes noções de fragmento, em especial, a terceira noção de fragmento descrita anteriormente, onde ele tem “um sentido próprio, singular, intrínseco, que não pode ser compreendido numa lógica unitária” e ainda “isolando-o, destituindo-o de todas as ligações possíveis, evitando explicações e, sobretudo, recusando as referências exteriores”. É claro que o artista essencialmente reflete - querendo ou não - o espaço no qual está inserido quando cria algo. É aí que se torna interessante ao desenvolvimento desse tipo de fragmento o espaço da obra mostrado por Ferreira Gullar no “Manifesto Neoconcreto” - o “universo de significações existenciais que ela a um tempo funda e revela”.

Retomando o retrato de Clouet, Lévi-Strauss mostra como a arte ocupa uma posição intermediária entre a ciência e o bricolage, ao comentar sobre os conhecimentos envolvidos na reprodução por Clouet de um colarinho de renda em escala menor na pintura:

“Mesmo se a figuração de um colarinho de renda num modelo reduzido implica, como demonstramos, um conhecimento interno de sua morfologia e de sua técnica de fabricação (e, se se tratasse de uma representação humana ou animal, teríamos dito: da anatomia e das posturas), ela não se reduz a um diagrama ou a uma tabela de tecnologia, ela realiza a síntese das propriedades intrínsecas e das que dependem de um contexto espacial e temporal.”

Creio que é interessante salientar, como conclusão dos capítulos teóricos deste trabalho, essa posição intermediária da arte, e consequentemente, do artista, assim como também do arquiteto. O interesse inicial no livro que origina este último capítulo se deu, para mim, a partir do olhar para a produção das cidades, e consequentemente da paisagem urbana, em particular a brasileira. Produção essa que se dá hora de forma altamente instrumentada, sobre a qual os arquitetos e engenheiros se debruçam em maior número para projetar edifícios de vinte pavimentos, hora pelos bricoleurs, das favelas das grandes cidades à arquitetura vernacular do sertão nordestino, hora pelos mutirões de habitação que reúnem arquitetos e futuros moradores. Essa produção que se acumula concilia o projeto com o acaso, além de se inserir sobre a paisagem natural, gerando uma paisagem que é essencialmente transtemporal. Como já dito anteriormente, julguei interessante que a paisagem, ao ser extraída do espaço, tenha sua materialidade enfatizada, e que ela ganha então grande importância nas experimentações deste trabalho. A posição intermediária do artista, ou do arquiteto, entre o concreto e o abstrato, entre o bricoleur e o engenheiro, entre funcionalidade e infuncionalidade, dá a liberdade de caminhar por entre os polos, sem a necessidade de se comprometer totalmente com um deles, gerando infinitas possibilidades de discussão da paisagem.

48

Sobre a paisagem

Despejo inicial

Ilha dos amores

Serra Pelada

Totêmico + Suiseki

Serrapilheira

50

76

100

114

142

This article is from: