Ana Margarida Ferreira e Raquel Vilaça Coordenação
SANTOS ROCHA, ARQUEOLOGIA E TERRITÓRIOS DA FIGUEIRA DA FOZ
Coordenação Ana Margarida Ferreira e Raquel Vilaça
Livro do Colóquio realizado na Figueira da Foz, de 21 a 23 de novembro de 2019
Figueira da Foz | Coimbra 2021
SANTOS ROCHA, ARQUEOLOGIA E TERRITÓRIOS DA FIGUEIRA DA FOZ
FICHA TÉCNICA Título Santos Rocha, Arqueologia e Territórios da Figueira da Foz Edição Município da Figueira da Foz | Departamento de Cultura e Turismo Universidade de Coimbra | Faculdade de Letras | Instituto de Arqueologia Coordenação Ana Margarida Ferreira e Raquel Vilaça Coleção Conimbriga Anexos 7 Revisão e Edição de Texto Anabela Bento Design Ana Teresa Lopes e Eduardo Oliveira Impressão Prodimprensa, C.R.L. Tiragem 600 Exemplares ISBN 978-989-8903-49-5 Depósito Legal 482980/21
Figueira da Foz | Coimbra 2021
O rigor e as opiniões expressas nos textos, assim como o respeito pelos princípios éticos inerentes à investigação, são da exclusiva responsabilidade dos autores. Alguns dos autores não seguem a norma ortográfica - A.O. 90
SANTOS ROCHA, ARQUEOLOGIA E TERRITÓRIOS DA FIGUEIRA DA FOZ
ÍNDICE 8-9
Mensagem do Presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz
10 - 15
Apresentação de um colóquio e um livro por Santos Rocha
16 - 43
Hacer arqueología: investigación, difusión y defensa del rigor e independencia disciplinar Doing archaeology: research, dissemination and defense of accuracy and disciplinary independence
Carlos Monteiro
Ana Margarida Ferreira e Raquel Vilaça
Gonzalo Ruiz Zapatero
44 - 61
Considerações sobre o papel da Geologia e seus atores no universo arqueológico de António dos Santos Rocha Thoughts on the role of Geology and its actors in the archaeological universe of António dos Santos Rocha
Pedro Miguel Callapez, José Manuel Brandão, Miguel de Carvalho, Pedro Alexandre Dinis, Ricardo Jorge Pimentel, José M. Soares Pinto, Rodrigo Pinto, Pedro Santarém Andrade, Luís Manuel Simões, Fernando Carlos Lopes e Elsa Carvalho Gomes
62 - 75
Entre cortesia e partilha científica: as moldagens arqueológicas oferecidas por Nery Delgado ao Museu Municipal da Figueira da Foz (1894) Between courtesy and scientific sharing: the archaelogical casts offered by Nery Delgado to the Figueira da Foz Municipal Museum (1894)
José Manuel Brandão
76 - 95
Santos Rocha, arqueólogo de corpo inteiro e, portanto, também protector dos monumentos megalíticos da Figueira da Foz Santos Rocha, fully fledged archaeologist and therefore also protector of the megalithic monuments of Figueira da Foz Raquel Vilaça e Ana Margarida Ferreira
96 - 109
O Dólmen do Cabeço dos Moinhos (Serra da Boa Viagem, Figueira da Foz): contributo para o estudo das práticas funerárias pré-históricas do Centro de Portugal The Megalithic Monument of the Cabeço dos Moinhos (Serra da Boa Viagem, Figueira da Foz): contributions to the study of prehistoric funerary practices of the Centre of Portugal Ana M. S. Bettencourt, Ana Maria Silva, Cláudia Costa, Sofia Tereso e Carlos S. Cruz
110 - 127 Os ocupantes dos monumentos megalíticos da região da Figueira da Foz escavados por Santos Rocha: o que os seus restos ósseos nos revelam The occupants of the megalithic monuments of the region of Figueira da Foz excavated by Santos Rocha: what their bones reveal us Ana Maria Silva
SANTOS ROCHA, ARQUEOLOGIA E TERRITÓRIOS DA FIGUEIRA DA FOZ
128 - 137 Contributo para o estudo da ocupação pré-histórica da Figueira da Foz: a “Estação Humana do Arneiro” Contribution to the study of the prehistoric occupation of Figueira da Foz: the “Estação Humana do Arneiro” Carlos E. F. Batista e Ana M. S. Bettencourt
138 - 149 Um punhal de cobre esquecido, um sítio (re)encontrado: Loriga (Alhadas de Baixo, Figueira da Foz) A forgotten copper dagger, a (re)discovered site: Loriga (Alhadas de Baixo, Figueira da Foz) Ana Rita Pereira, Carlo Bottaini e Raquel Vilaça
150 - 161 Contributos para o estudo do depósito metálico de Espite (Ourém) Contributions to the study of the Espite metallic hoard (Ourém) Pietro Musso Mack, Xosé-Lois Armada e Raquel Vilaça
162 - 175 Os Cacos. Sempre os Cacos... Notas sobre a produção de cerâmica em Santa Olaia na Idade do Ferro Revisiting Potsherds, time after time... Remarks about pottery production at Santa Olaia during the Iron Age Sara Oliveira Almeida, Maria Isabel Prudêncio, Rosa Marques, Maria Isabel Dias e Dulce Russo
176 - 191 Sobre as mais antigas mós circulares rotativas no ocidente da Península Ibérica: os trabalhos de Santos Rocha nos povoados da Idade do Ferro do baixo Mondego (Santa Olaia e Crasto de Tavarede) On the most ancient rotary querns in the westernmost area of the Iberian Peninsula: the evidence from Santos Rocha excavations at the lower Mondego River valley Iron Age settlements (Santa Olaia and Crasto de Tavarede) Carlos Fabião
192 - 201 A fauna de Santa Olaia: estudo do material osteológico recolhido na intervenção arqueológica de emergência de 1993-1994 Santa Olaia’s fauna: study of the osteological material collected in the emergency archaeological intervention of 1993-1994 Rodrigo Pinto
202 - 213 Elementos para o estudo da ocupação romana na foz do Mondego Elements for the study of roman occupation at the mouth of Mondego Marco Penajoia
214 - 233 Um farol romano na foz do rio Mondego? A roman lighthouse at the mouth of the river Mondego? Vasco Gil Mantas
6
SANTOS ROCHA, ARQUEOLOGIA E TERRITÓRIOS DA FIGUEIRA DA FOZ
234 - 243 O contributo da fotogrametria na arqueologia: o caso de estudo da muralha nascente do forte de Santa Catarina (Figueira da Foz, Portugal) The contribution of photogrammetry in archaeology: the case study of the east wall of Santa Catarina fort (Figueira da Foz, Portugal) Bruno Freitas e Marco Penajoia
244 - 255 A exploração da mina de carvão do Cabo Mondego: breve apontamento sobre um património degradado The exploration of the Cape Mondego coalmine: a brief note on a degraded heritage José M. Soares Pinto, Pedro Miguel Callapez, José Manuel Brandão e Rodrigo Pinto
256 - 267 Sobre a importância da ocorrência de celestite no Cabo Mondego: singularidade, importância científica e implicações materiais On the importance of celestite occurrence in Cabo Mondego (Jurassic, West Portugal): uniqueness, scientific importance and material implications Ricardo Jorge Pimentel, José M. Soares Pinto, José Manuel Brandão, Pedro Miguel Callapez e Rodrigo Pinto
268 - 277 Do Cabo Mondego à Estação CP – António da Silva Guimarães e a Linha do Americano From Mondego Cape to the railway station – António da Silva Guimarães and the “Americano” railway Inês Pinto e Ana Domingues
278 - 289 Materiais (arqueológicos) para a História da Figueira nos séculos XVIII e XIX (Archaeological) materials for the History of Figueira in the 18th and 19th centuries José Ricardo Nóbrega
290 - 305 R. Laidlaw & Son, Glasgow. O contributo da diversificação do investimento britânico no estrangeiro para a modernização dos sistemas urbanos de distribuição de água na Figueira da Foz R. Laidlaw & Son, Glasgow. The contribution of the diversification of British investment abroad to the modernization of urban water distribution systems in Figueira da Foz José Ricardo Nóbrega e Cláudia Figueira
306 - 315 Princípios para a valorização do Património Industrial do Cabo Mondego Principles for enhancing the Industrial Heritage of the Mondego Cape Francisco Velho da Costa
316 - 323 Património Industrial – Que Futuro? | Mesa-redonda Industrial Heritage – What Future? | Round table discussion 324 - 335 Memória do Colóquio Colloquium Memory
7
Mensagem do Presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz Carlos Monteiro
8
SANTOS ROCHA, ARQUEOLOGIA E TERRITÓRIOS DA FIGUEIRA DA FOZ
Celebrámos, no dia 6 maio de 2019, um dos marcos mais importantes para a cultura na Figueira da Foz, os 125 anos da fundação do Museu Municipal Santos Rocha, um dos mais antigos museus do país. Evoco, num primeiro momento, a memória de todos aqueles que, há mais de um século, partilhando um sonho, sentiram o apelo para fundar um núcleo cultural, iniciando um processo que culminou neste espaço único de sociabilidade e de animação, onde a cultura e o conhecimento se interligam. Um espaço multifacetado, ao serviço da cultura concelhia, regional e nacional. A efeméride foi condignamente assinalada ao longo de todo o ano de 2019, com um programa atrativo e diversificado, destacando-se o colóquio realizado nos dias 21 a 23 de novembro, cujos trabalhos surgem agora em letra de forma neste livro. Esta publicação constitui, por um lado, uma homenagem ao Dr. António dos Santos Rocha, insígne cidadão, homem público, um dos maiores vultos da Arqueologia da sua época e fundador do Museu Municipal e, numa outra vertente, enaltece o poder municipal que, ao longo de 125 anos, através de sucessivas gerações de figueirenses e de gestão autárquica, acarinhou o seu Museu. Deste livro podemos ainda esperar que o leitor passe a conhecer melhor a História da Figueira da Foz, bem como as metodologias usadas para a construir, quer seja o leitor local, o residente ou o visitante, quer seja o investigador longínquo, interessado num qualquer particular assunto, dos muitos aqui abordados.
Deixo, igualmente, uma palavra de agradecimento a todas as personalidades e instituições que, com a sua generosidade e reconhecimento da importância do Museu Municipal, o enriqueceram ao longo da sua centenária existência, por meio das suas preciosas doações e valiosos legados. Estendo este agradecimento às gerações de colaboradores municipais que neste espaço foram deixando o seu contributo. Para terminar, aos Figueirenses e a todos os que procuram o nosso Museu Municipal Santos Rocha, quero deixar a garantia de que este continuará a servir as necessidades da comunidade, a cumprir a sua nobre função e a despertar nas pessoas a vontade de o visitarem, na qualidade de ponto de encontro de saber e de entretenimento.
9
Apresentação de um colóquio e um livro por Santos Rocha Ana Margarida Ferreira e Raquel Vilaça
10
SANTOS ROCHA, ARQUEOLOGIA E TERRITÓRIOS DA FIGUEIRA DA FOZ
No dia 6 de Maio de 1894, um Domingo, a cidade da Figueira da Foz mobilizou-se para uma dupla inauguração: o Museu abria ao público, em instalações provisórias, na Casa do Paço e colocava-se a primeira pedra do novo edifício dos Paços do Concelho. “…foi por isso um dia festivo e memorável para a Figueira, que logo de manhã começou a apresentar um aspecto desusado de vida e movimento, vendo-se nas ruas a maior parte dos seus habitantes, em trajes de gala, uns para tomarem parte nos festejos que iam realizar-se, outros procurando lugar, de onde pudessem presenciá-los.” (Gazeta da Figueira, 9 de Maio de 1894).
Ambos os acontecimentos, que hoje nos podem parecer desligados, não o estavam, de facto. O edifício dos Paços do Concelho construía-se por necessidade de albergar os serviços públicos que andavam dispersos por casas arrendadas, por conveniência de dar trabalho aos artistas (no sentido das profissões de carpinteiro, pedreiro e similares) desempregados, mas também para “oferecer casa” ao “Museu arqueológico, etnográfico e industrial” que a Câmara havia decidido criar, mediante proposta do Dr. António dos Santos Rocha, como veio a acontecer, em Junho de 1899. Então as colecções foram instaladas na ala sul/poente do primeiro andar, contígua ao salão nobre para onde extravasavam, ocupando o tecto com a tapeçaria de Tavira e as paredes com os potes restaurados de Santa Olaia. Na ala sul/nascente, previam-se salas para a Biblioteca e o Arquivo da Municipalidade que, conjuntamente com as salas de aula da Escola Industrial, no segundo andar, respondiam a todo um programa de promoção cultural, consentâneo com progresso material que na cidade se vivia. Passados 125 anos, um colóquio e uma exposição de título homónimo, Santos Rocha, Arqueologia
e Territórios da Figueira da Foz, comemoraram a fundação do Museu Municipal, fazendo justa homenagem ao cidadão de corpo inteiro, jurista, político e arqueólogo e demonstrando a vitalidade da disciplina arqueológica, em torno das colecções museológicas e do território municipal. Do que foi esse colóquio, e da excursão científica que se lhe seguiu, dá conta a publicação que o leitor tem em mãos, ou no écran do seu equipamento digital, e que resulta da estreita colaboração entre a Câmara Municipal da Figueira da Foz, através do seu Museu, enquadrado no Departamento de Cultura e Turismo, e o Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, hoje integrado no Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes daquela faculdade. Publicam-se a conferência de abertura, 12 das 16 comunicações então apresentadas e ainda os 8 pósteres que estiveram expostos no átrio do Museu, durante e após o colóquio. A sequência dos textos acompanha muito de perto a estrutura do programa gizado, que contemplava três painéis distintos. Encerrou-se este encontro científico com uma mesa-redonda, que também aqui se transcreve. E incorpora-se ainda, no final, um álbum fotográfico como memória visual do colóquio, a que acresce mais alguma informação diversa. No total, são os contributos de 38 autores, incluindo jovens investigadores, entre arqueólogos, geólogos, museólogos, antropólogos, químicos e historiadores, com distintas proveniências institucionais, de que se destacam as universidades e a equipa do Departamento de Cultura do Município, e ainda alguns dos agrupamentos de escolas da região. Para todos e todas que escreveram os textos vai o nosso primeiro agradecimento, pois sem eles e elas este livro não existia. 11
SANTOS ROCHA, ARQUEOLOGIA E TERRITÓRIOS DA FIGUEIRA DA FOZ
O livro abre com um texto muito rico de Gonzalo Ruiz Zapatero, Professor na Universidade Complutense de Madrid, expressamente convidado para nos falar de arqueologia. De leitura imprescindível para todos os que fazem, ou querem fazer, arqueologia, é um texto em defesa do rigor, investigativo e divulgativo, de afirmação da disciplina, que nos obriga a reflectir, ao mesmo tempo que nos cativa pela forma como está escrito e ilustrado. Seguem-se três textos que deram corpo ao Painel I, Santos Rocha, vida e obra. O primeiro, assinado por Pedro Miguel Callapez e colaboradores, debruça-se sobre os laços que se criaram entre Santos Rocha e a geologia através de nomes sonantes, como Nery Delgado ou Paul Choffat, tomando como palco de acção a arqueologia do primeiro na Serra da Boa Viagem. O segundo texto é de José Manuel Brandão e revela-nos o interessante caso da oferta de Nery Delgado ao Museu da Figueira de um conjunto de moldagens em gesso de peças de sítios arqueológicos portugueses, nomeadamente da região de Lisboa e do Alentejo. Fecha este grupo o texto da autoria de Raquel Vilaça e Ana Margarida Ferreira que se foca na acção de Santos Rocha como protector de monumentos megalíticos da região da Figueira, faceta pouco conhecida da sua obra tão completa. O livro prossegue com um assinalável conjunto de textos relativos ao Painel II, Sítios e materiais arqueológicos, mas incorporando também outros resultantes dos pósteres, textos que, sendo bem diversos nas temáticas, partilham um lastro comum: todos eles têm como objecto de estudo colecções pertencentes ao Museu, ou em via de ingresso, mercê de intervenções arqueológicas recentes na malha urbana da cidade, de que também se faz eco. Assim, Ana Bettencourt e colaboradoras ocuparam-se do dólmen do Cabeço dos Moinhos (Brenha, Figueira da Foz) numa perspectiva inter-disciplinar. Ana Maria Silva caracteriza na
12
óptica da antropologia as pessoas depositadas nos monumentos megalíticos da Serra da Boa Viagem. A ocupação pré e proto-histórica do sítio do Arneiro (Brenha, Figueira da Foz) é feita por Carlos Batista e Ana Bettencourt, que estudam materiais do Museu, mas também de colecção particular. O contributo de Ana Rita Pereira, Carlo Bottaini e Raquel Vilaça incide no sítio pré-histórico de Loriga (Alhadas, Figueira da Foz), que se contextualiza. Na mesma linha de valorização de antigas colecções insere-se o trabalho, assinado por Pietro Mack e colaboradores, dedicado à parcela do depósito metálico de Espite (Ourém) que o Museu tem à sua guarda. Entre a colecção desta secular instituição não poderia faltar neste livro Santa Olaia (Ferreira-a-Nova, Figueira da Foz), presença desta vez expressa num estudo arqueométrico das suas produções cerâmicas, de que são responsáveis Sara Oliveira Almeida e colaboradoras. De Santa Olaia encarregouse ainda Carlos Fabião, tal como do Crasto de Tavarede, para analisar as mais antigas mós circulares manuais. Alguma fauna daquele emblemático sítio recolhida em 1993-1994 foi tratada por Rodrigo Pinto. Vestígios romanos conhecidos na área da foz do Mondego foram sistematizados no estudo de Marco Penajoia. Nesta mesma moldura geográfica e cronológica, Vasco Mantas coloca a hipótese de ter havido um pequeno farol onde viria a ser construído, no século XVII, o forte de Santa Catarina. Com recurso ao contributo da fotogrametria, a muralha deste mesmo lugar é analisada por Bruno Freitas e Marco Penajoia em texto que encerra este bloco. Com o Painel III, Arqueologia e património industrial, articulam-se os restantes seis textos, de que se faz eco da riqueza geológica e patrimonial do complexo mineiro e industrial do Cabo Mondego, um dos mais icónicos do território português, a par de outros contributos que se debruçaram sobre a arqueologia histórica figueirense, também ela cultivada pelo mentor em que este livro colheu inspiração.
SANTOS ROCHA, ARQUEOLOGIA E TERRITÓRIOS DA FIGUEIRA DA FOZ
José Soares Pinto e colaboradores apresentam-nos a mina de carvão do Cabo Mondego, numa dupla vertente: a da sua ruína, enquanto património construído e explorado, com toda uma plêiade de anexos em torno da mina e a de memorial humano fixado em expressivas imagens das vivências sociais e laborais dos protagonistas desses espaços. O Cabo Mondego distingue-se numa outra frente pouco conhecida do grande público, a da sua particularidade pela ocorrência de celestite, mineral de enorme importância, como demonstram Ricardo Jorge Pimentel e colaboradores. Inês Pinto e Ana Domingues, cientes da importância da fotografia e registo da memória, brindam-nos com um texto que nos conduz, através da “Linha do Americano” e da acção de António da Silva Guimarães, do Cabo Mondego à Figueira e desta a outros mundos, que o caminho-de-ferro prolongava... A pretexto de trabalhos hodiernos de requalificação urbanística, José Ricardo Nóbrega guia-nos numa revisitação, rua-a-rua, praça-a-praça, pelo solo e subsolo figueirense onde se descobrem estruturas e infraestruturas de outrora, umas ainda com préstimo, outras prestando-se ao conhecimento da cidade dos séculos XVIII e XIX. À arqueologia junta-se informação bibliográfica e documental no texto assinado por José Ricardo Nóbrega e Cláudia Figueira sobre as redes de abastecimento de águas à Figueira, que nos remetem para a segunda metade de oitocentos. A encerrar os contributos deste painel encontramos o texto de Francisco Velho da Costa, que nos lança um conjunto de propostas/ reflexões sobre as potencialidades patrimoniais do Cabo Mondego. Aqui chegámos à página 319 e, portanto, aproximamo-nos do final do livro. É a vez da Mesa-redonda e de entrarem em cena, sob a batuta de Ana Margarida Perrolas, Maria Manuel Ataíde, Pedro Miguel Callapez, José Manuel Brandão e Paulo Trincão. Entre o olhar da coruja e o voo do falcão, foram partilhadas experiências e opiniões
sobre o futuro do Património Industrial, no país e no estrangeiro, porém com a razão e a paixão colocadas no nosso Cabo Mondego. Não é ainda hora de terminar porquanto quisemos fixar para Memória futura, alguns aspetos do colóquio que não transparecem no corpo do livro, entre os quais, especialmente, o programa integral dos trabalhos, compreendendo os títulos e os nomes dos autores das comunicações que não foram passadas a escrito, por opção dos próprios. O álbum fotográfico para além de registar momentos das conferências realizadas em auditório nos dias 21 e 22, regista também as visitas de estudo feitas no último dia do evento, 23 de Novembro de 2019. Não podemos terminar este texto sem fazer alguns agradecimentos, necessariamente incompletos, não por nossa vontade, mas pela natureza imperfeita do nosso trabalho e capacidade de expressão. Agradecemos aos membros da comissão de honra e da comissão científica do colóquio, pela solidariedade. Agradecemos à senhora coordenadora da Secção/ Instituto de Arqueologia do DHEEAA da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Professora Doutora Helena Catarino, por todo o apoio institucional desde a primeira hora na parceria que se estabeleceu entre as nossas duas instituições. Devemos-lhe a presença e palavras proferidas aquando da abertura do colóquio e a anuência imediata à proposta que lhe foi apresentada para que este livro viesse a incorporar a colecção da “Conimbriga Anexos”. Agradecemos à senhora directora do Departamento de Cultura e Turismo da Câmara Municipal da Figueira da Foz, Dr.ª Ana Margarida Perrolas, pela coordenação institucional do programa das actividades comemorativas do 125.º aniversário da fundação Museu Municipal e o efectivo apoio à parceria com o Instituto de Arqueologia já mencionada. Um reconhecimento especial é-lhe devido por ter aceitado moderar a mesa-redonda. A preparação do colóquio e a edição deste livro fizeram-se com o contributo da
13
equipa do Departamento de Cultura, envolvendo transversalmente os vários serviços que o compõem. Somos gratas à equipa do Museu Municipal, compreendendo os núcleos do Sal e do Mar. Somos gratas também às equipas da Biblioteca Pública Municipal Pedro Fernandes Tomás e dos Arquivos Histórico e Fotográfico, cujo agradecimento expressamos à respectiva chefe de serviço, Dr.ª Emília Limede. Somos gratas, à Câmara Municipal da Figueira da Foz e expressamo-lo ao Sr. Presidente, Dr. Carlos Monteiro. Cumprida esta etapa, que concretizámos com muito gosto e empenho, é para o futuro que nos viramos, com a certeza de que o caminho prosseguirá firme, sem desvio das coordenadas estruturantes lançadas por Santos Rocha, mas com novas interrogações, com outras inquietações, talvez com achados inesperados e seguramente um caminho com mais conhecimento, a construir. Figueira da Foz e Coimbra, Maio de 2021.
Dólmen das Carniçosas, 1886-1900. Fundo Arquivo Fotográfico Municipal da Figueira da Foz.
14
15
Hacer arqueología: investigación, difusión y defensa del rigor e independencia disciplinar Doing archaeology: research, dissemination and defense of accuracy and disciplinary independence Gonzalo Ruiz Zapatero1
1
Universidad Complutense de Madrid | gonzalor@ghis.ucm.es
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
“Los intentos por mantener vivo el recuerdo de los hombres, en vez de a ellos mismos, son, pese a todo, lo más grande que la humanidad ha hecho hasta ahora”.
La arqueología cuenta con muchas definiciones, en buena medida resultado de su amplitud disciplinar en tiempo y espacio, de las distintas tradiciones arqueológicas y sin duda alguna de las diferentes perspectivas teóricas (Kristiansen, 2009). Aún así, una definición de consenso es, con toda seguridad, la de Clive Gamble (2001: 15): “simplemente el estudio del pasado a través de los restos materiales”; y “trata básicamente de tres cosas: la basura del pasado, los paisajes donde se arrojo y lo que hacemos con todo ello”. En ese sentido los arqueólogos somos los estudiosos de la basura del pasado. Pero estudiar los restos materiales del pasado para elaborar narrativas sobre las sociedades desaparecidas no resulta una tarea sencilla. Porque la arqueología extrae en el presente – a través de las excavaciones fundamentalmente – los registros de tiempos pasados, los restos materiales de las sociedades pretéritas y tiene que destilar su interpretación en narrativas que den cuenta de las historias encerradas en ellos. Y en ello hay que atravesar la profunda brecha de tiempo que separa las actividades de vida de las comunidades en el pasado de las narrativas escritas que construimos los arqueólogos en el presente (Johnson, 2020: 14-15). La arqueología incluye hoy día una variedad increíble de tareas que permiten ir de un extremo a otro de distintas líneas
[Elias Canetti, Apuntes contra la muerte (1942-1948)]
de actuación. Así la arqueología es investigar pero también divulgar, es teoría y es práctica, es evaluar y conservar, es presentar sitios y monumentos arqueológicos y restaurar, es trabajo de campo y de biblioteca, es leer y escribir, es ver y dibujar o fotografiar, es describir pero también imaginar. Un atractivo indudable de la arqueología actual es que desarrolla una intensa y profunda diversidad de tareas, muchas más de las señaladas. Cuando mi generación termino sus estudios, sobre mediados de la década de 1970, la arqueología – y ciertamente también el mundo – eran diferentes. Los últimos 40 años han visto una serie de cambios sustanciales: 1) un avance impresionante de la investigación desde nuestros orígenes a la arqueología de la contemporaneidad (Bahn, 2017; Demoule et al., 2018); 2) la profesionalización de la disciplina (Aitchison, 2009 y 2014); 3) la creciente socialización y divulgación arqueológica que ha llevado a la emergencia de la denominada “arqueología pública” (Moshenska, 2017; Skeates et al., 2012 y Williams et al., 2020), cuya etiqueta es ya usurpada para casi todo; 4) la irrupción desconcertante y cargada de futuro de la arqueología digital (Graves, 2013; Huvila, 2018) y 5) la consolidación de una arqueología verdaderamente mundial, casi cerrando por completo la primera versión de G. Clark (1967) para la Prehistoria (Scarre, 2018) (Fig. 1). 17
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
Figura 1 - La arqueología excava el pasado material para producir conocimiento histórico en el presente en forma de narrativas ilustradas. El registro se destruye en la excavación y se (re)crea en la publicación.
La arqueología ha pasado en poco más de un siglo de ser una actividad asociada al descubrimiento de tesoros en tierras exóticas a ser una disciplina multidisciplinar y aún transdisciplinar en las dos últimas décadas, que es capaz de producir conocimiento sobre las sociedades humanas desde hace cerca de 4 millones de años hasta ayer a través del estudio de la materialidad social (Fagan, 2017). La arqueología es la única disciplina que puede estudiar la Humanidad desde sus inicios a la actualidad por su capacidad excepcional de tratar el tiempo largo y todos los tiempos humanos. Puede abordar la investigación de problemas actuales desde el pasado más remoto a nuestros días, como por ejemplo la emergencia climática (Fagan, 2008; Pétursdótti, 2017), las migraciones humanas (Bellwood, 2013; García y Le Bras, 2017; Manolakakis et al., 2017), la guerra y los conflictos (Keegan, 2004), la alimentación (Reed y Ryan, 2019) y muchos otros 18
temas que atraviesan el tiempo y permiten tender cables que conectan el pasado prehistórico con el mundo contemporáneo, como bien demuestra el éxito mundial – un auténtico fenómeno editorial –, del libro del israelí Yuval Noah Harari (2014) Sapiens. De animales a dioses, un best-seller que ha sido traducido a más de 50 lenguas y en España continúa en los primeros lugares de las listas desde hace ya tres años. Es lo que se ha denominado la Deep History, que pretende estudiar grandes temas de la historia humana en una perspectiva profunda desde el Paleolítico a la actualidad. Un buen ejemplo es el libro del británico Clive Gamble (2013) Settling the Earth. The Archaeology of Deep Human History, en el que convierte el proceso de poblamiento y la colonización de las tierras del globo en la perspectiva para ese gran estudio diacrónico. Por otro lado la irrupción de los Big Data y la Arqueogenética representan tal conmoción que han
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
sido identificados por K. Kristiansen (2014) como los rasgos más definitorios de la Tercera Revolución Científica en Arqueología (ver Fig. 3). Son las nuevas fronteras que desafiaran a la disciplina en las próximas décadas. Mientras que la conciencia creciente sobre la fragilidad y finitud del registro arqueológico está conduciendo a la valoración y desarrollo de la arqueología-no intrusiva, que no destruye registro, como la imaginería de satélite, el LIDAR y los rádares de subsuelo (Bonsall, 2019; VanValkenburgh y Duffon, 2020), porque desde luego llevaba toda la razón Kent Flannery cuando decía que los arqueólogos somos los únicos científicos sociales que “matamos” (destruimos con las excavaciones) a nuestros “informantes” (la gente del pasado). Por último, se debe destacar la importancia de la divulgación arqueológica, por responsabilidad social y porque a los diferentes públicos no-expertos les atrae tanto como las historias de las gentes del pasado la forma en que la arqueología emplea métodos muy diversos para descubrir esas historias (Bahn, 2001), especialmente tecnologías sofisticadas (Fagan, 1995). Incluso la historia de la Arqueología, si se hace bien, ofrece las claves para comprender la generación de ideas y datos actuales (Bahn, 2014), pero también puede fascinar metiéndonos, a través de temas arqueológicos, en las dimensiones sociales, culturales, ideológicas, económicas y políticas de las distintas etapas de construcción de la arqueología y sus pequeños mundos (Fagan, 2018); algo que en los últimos años estamos comprobando debe hacerse también con el Anticuarismo porque tiene más conexiones de las imaginadas hasta ahora (Schnapp et al., 2013) con el pensamiento científico arqueológico contemporáneo (Murray, 2014; Schnapp, 2002, 2018). En la actualidad la arqueología ha devenido en una ciencia contemporánea imprescindible para comprender la historia del mundo en que vivimos (Demoule et al., 2018: 4). Y por ello, de alguna manera, la ciudadanía del siglo XXI debe estar alfabetizada arqueológicamente para afrontar los
retos de una vida en común libre, democrática, responsable e ilustrada. Muy significativamente en la encuesta de NEARCH un 73% de los encuestados europeos declara que los ciudadanos deberían tener conocimientos de arqueología (Kajda et al., 2018: 8). En definitiva, porque la arqueología “mirando hacia atrás al pasado, nos ayuda a mirar hacia delante al futuro” (Fagan, 2018: 266-67).
Afrontando la tercera década del S. XXI: ¿Qué arqueología? La arqueología contemporánea es una especie de navaja suiza para descubrir, proteger y divulgar el pasado en la que diversas tareas conforman los distintos gadgets del instrumento. En primer lugar el conjunto de medidas y normativas para proteger, conservar y presentar los sitios arqueológicos y la cultura material mueble en los museos. En segundo lugar el desarrollo de la investigación de campo mediante excavaciones y prospecciones arqueológicas y toda la batería de analíticas de la Arqueometría (Edwards y Vandenabeele, 2012); en tercer lugar, la publicación especializada de los resultados la construcción de narrativas sobre el conocimiento generado, acompañada de las consiguientes actividades de divulgación dirigidas al mayor número posible de audiencias. Pero hay dos gadgets que no acaban de estar suficientemente desarrollados. Por un lado las políticas arqueológicas de las administraciones públicas que no siempre establecen, implementan y cuidan debidamente todo el conjunto de actividades que gira alrededor de la arqueología; tal y como debiera hacer una auténtica política arqueológica. Y por otro lado, prestar la atención necesaria a los públicos y audiencias, en la medida en que no se realizan muchos esfuerzos para conocer mejor a la gente del presente, nuestras audiencias, sus ideas, creencias y expectativas; para en última instancia ampliar los públicos de la arqueología (Fig. 2). 19
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
Figura 2 - La arqueología como navaja suiza, con una política arqueológica ideal que sirve para buscar, proteger y conservar el registro arqueológico, hacer trabajo de campo, publicar y divulgar, y finalmente conocer y ampliar sus públicos.
La arqueología del siglo XXI debe seguir consolidando todos esos gadgets que integran la disciplina, una disciplina científica pero también histórica y humanística, y una disciplina que tiene que ser relevante en el mundo actual porque no constituye un saber imprescindible en las sociedades contemporáneas y en ningún lugar está escrito que debe existir y perdurar en el futuro. Lo hará en la medida que sea relevante socialmente y para ello la divulgación tiene que ser el brazo potente que lo haga posible. Si la primera revolución científica de la arqueología, en la segunda mitad del siglo XIX, se apoyó en los métodos y avances de la Geología y la Biología para empezar a construir un aparato teórico y metodológico propio (Kristiansen, 2014), podemos paralelizar que la divulgación en aquella época se fue configurando lentamente a través de los museos, las sociedades de sabios y eruditos, las revistas ilustradas y las primeras presentaciones públicas de monumentos y sitios arqueológicos. Una divulgación elitista, confinada casi exclusivamente a las clases altas 20
y educadas de las sociedades europeas del Antiguo Régimen. La segunda revolución científica de la arqueología estuvo marcada a comienzos de los años 1960 con la revolución del Carbono-14 y la emergencia de la New Archaeology anglosajona que modificaron sensiblemente la situación creada desde fines del siglo XIX a 1960, etapa que Colin Renfrew (1983) denomino “el largo sueño” por una cierta estasis de la arqueología. En el campo de la divulgación hubo algunos progresos interesantes como el crecimiento de los museos y la modernización de sus museografías, la aparición de libros divulgativos, el aumento de sitios arqueológicos presentados al público, la inclusión de la arqueología en los manuales escolares, una presencia creciente en la prensa y al final del periodo los primeros programas de arqueología televisada en la BBC británica. Y con la tercera revolución científica ya comentada, identificada con los Big Data y la Arqueogenética, la divulgación ha crecido en importancia, de forma exponencial y mucho más que en las etapas anteriores. En las dos últimas décadas la arqueología se ha introducido con fuerza dispar
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
Figura 3 - Las revoluciones científicas en arqueología (a partir de datos de Kristiansen, 2014).
en los medios de comunicación de masas (prensa escrita en papel, TV y radio), Internet y las TICs han revolucionado la capacidad de llegar a audiencias más amplias, el cine de ficción arqueológica y los documentales han invadido espacios antes apenas explorados, la gestión del patrimonio arqueológico (Cultural Resource Management en los EE.UU.) se ha convertido en un campo especializado y el turismo arqueológico en un fenómeno que afecta a varias partes del mundo (Fig. 3). La arqueología es importante porque, como bien ha dicho Brian Fagan (2018: 6) nos define como seres humanos, revela nuestra ancestralidad africana y nos muestra las maneras en que somos iguales y diferentes al mismo tiempo. Y sobre todo, en palabras de Fagan, porque la arqueología “estudia a la gente en cualquier lugar, en toda su fascinante diversidad. La arqueología es la gente”. El pasado, incluso el más remoto, está en nosotros, está en el presente. Necesitamos construir narrativas para llegar a la gente de hoy, por eso la arqueología encarando la tercera década del siglo XXI, debería tener como
motivación última llegar a cuanta más gente mejor, de formas diversas que respetando las diferencias de las sociedades actuales pueda aportar las claves esenciales para entender nuestros orígenes, nuestros desarrollos en caminos distintos que en ocasiones se cruzan y, en fin, poder atisbar lo que nos hace esencialmente humanos. Curiosidad para mirar hacía atrás, sentido de pertenencia a un lugar e imaginación arqueológica, sentido crítico para imaginar escenarios plausibles (Shanks, 2012) es lo que tendríamos que tener en la cabeza los arqueólogos para estimular a nuestros públicos y en buenas dosis para orientar nuestra propia investigación (Fig. 4). La arqueología que podemos hacer depende, en no poca medida, de los efectivos profesionales. En la actualidad el número de arqueólogos ha crecido – especialmente las arqueólogas –, por todo el mundo aunque no contemos con datos pormenorizados de sus efectivos por países y especialidades. Si vamos teniendo aproximaciones sobre los profesionales de la arqueología en Europa (Aitchison, 2009; Aitchison et al., 2014), aunque las estimaciones de número 21
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
Figura 4 - Una aproximación a algunos colectivos nacionales de arqueólogos europeos.
son complejas y difíciles. Una aproximación estima el colectivo profesional europeo en cerca de 30 000 expertos. El más grande podría ser el británico (6 500), seguido del alemán (ca. 6 000) y el francés (4 000). A más distancia se situarían otros como el español (ca. 2 000) y el portugués (entre ¿300 y 400?). La repartición entre los cuatro grandes sectores (administración, universidades, museos y empresas de arqueología) es más compleja pero su distribución refleja valoraciones y actitudes generales de cada país, como revela el ejemplo de Portugal (Costa et al., 2014).
La teoria arqueológica hoy La teoría arqueológica en el siglo XXI (Johnson, 2020; Thomas, 2015a) afronta varios problemas pero en mi opinión dos son especialmente preocupantes. El primero es la desorientación, porque tras las duras polémicas de procesuales y postprocesuales (mejor antiprocesuales según Renfrew) de fines del siglo pasado (Shanks y Tilley, 1989) nos hemos instalado en un horizonte en el que no hay un paradigma claramente dominante que ejerza 22
poderosa atracción en el colectivo arqueológico y sí muchos posicionamientos eclécticos. Se ha llegado a plantear la pregunta de si hemos llegado a la muerte de la teoría arqueológica como sugiere el título de la obra colectiva editada por Bintliff y Pearce (2011) The death of archaeological theory?. Pero la realidad es que la “teoría” – incluyendo por supuesto la epistemología y la historiografía disciplinar –, trata de todo lo que está ligado a la naturaleza de la arqueología, a sus aproximaciones científicas y sus relaciones con el pasado y el presente. Y funcionando como guía de la práctica arqueológica la teoría, por tanto, no puede considerarse el campo específico de especialistas (Kaeser, 2017). Aún así el panorama de la teoría arqueológica actual es muy diverso y complejo (Harris y Cipolla, 2017; Praetzellis, 2015). El segundo problema es el rechazo al teoricismo arqueológico, y la creencia errónea, en el mejor de los casos, de que la teoría es un campo especifico de los arqueólogos teóricos y en el peor de que se trata de una moda pasajera que poco o nada ayuda a trabajar empíricamente con los datos. En cualquier caso como dice Praetzellis (2015: 9) la teoría es la parte de “come-tus-vegetales” de la arqueología, porque
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
Figura 5 - El “firmamento de la teoría arqueológica” de los últimos 40 años: las principales galaxias con tradiciones y arqueólogos teóricos más representativos.
LA TEORÍA ARQUEOLÓGICA Mi metáfora de los paradigmas teóricos de la arqueología contemporánea como galaxias intenta dibujar las perspectivas teóricas más importantes. Y es necesario hacer dos matizaciones: 1) detrás del aparente mismo tamaño en el gráfico existe una clara diferencia en cuanto al número de arqueólogos y arqueólogas que se situan en cada paradigma. El mayoritario sigue siendo el histórico-cultural, pero con influencias crecientes de la Nueva Arqueología, el procesualismo (surgido en la década de 1960), el segundo más importante; con practicantes más reducidos habría que situar al post-procesualismo, iniciado en los años 1980, y todavía con menos al materialismo-histórico, aunque tiene una larga tradición. 2) la influencia real de cada paradigma no se corresponde con sus efectivos numéricos ya que las aproximaciones post-procesuales y marxistas están ganando visibilidad en las dos últimas décadas. Y como las galaxias cada paradigma emite luz que llega a los demás. Por último y por descontado, en cada país los valores relativos de cada paradigma varían. Sin olvidar que los especialistas que se incluirían en posicionamientos teóricos eclécticos no serían pocos.
23
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
todo el mundo te dice que es buena pero hacerlo no se considera muy atractivo (Fig. 5). La situación, a comienzos del siglo actual, simplificando mucho las cosas se puede representar como un “firmamento teórico” en el que existen cuatro galaxias – de mayor o menor importancia según las tradiciones nacionales –, que son: 1) la vieja arqueología o paradigma histórico-cultural, dominado por las aproximaciones tradicionales enfatizando la descripción de las culturas, con la tipología y la cronología convencionales (Webster, 2008); 2) la arqueología procesual (desarrollo de la vieja New Archaeology) con su instalación en una arqueología científica, con la aproximación hipotética-deductiva, de corte antropológico, que aspira a esbozar los grandes procesos culturales con sus coyunturas de cambio y quiere llegar a generalizaciones que den cuenta de los procesos de tiempo largo (Johnson, 2004) y 3) la arqueología postprocesual que a lo largo de las tres últimas décadas ha cobijado un amplio espectro de posiciones (Shanks, 2008), estructuralismo, arqueología simbólica, arqueologías interpretativas (como si no lo fueran todas con mayor o menor fundamento), arqueologías de género y de las mujeres con enfoques feministas, arqueología fenomenológica, que comparten planteamientos muy reivindicativos y cuestionadores de los excesos del procesualismo o la ausencia de ciertos temas en la agenda procesual. Todavía en ese firmamento de la teoría arqueológico hay que incluir, al menos; 4) las arqueologías materialistas, con la hegemonía del materialismo histórico, que reclama la visión histórica del marxismo para aplicarlo a las sociedades pre-capitalistas (Iacono, 2018). Se pueden reconocer distintos grupos o escuelas como la antigua soviética muy venida a menos (Klejn, 2012), la académica anglosajona que mantiene una cierta influencia (McGuire, 1993; Patterson, 2003) y la tradición de la arqueología social latinoamericana, muy activa, la más creativa y con un fuerte compromiso social y político (Bate, 1998; Tantalean y Aguilar, 2012); 24
así como la tradición materialista histórica española con pocos efectivos pero muy activos y realizando investigaciones sólidas (Fig. 6). Resulta imposible matizar y descender a más detalles en esta visión tan general; sin duda quedan fuera paradigmas y planteamientos, como por ejemplo la denominada arqueología evolucionista (O’Brien, 1996; Prentis, 2019). Y no menos cierto es que la integración del pensamiento arqueológico con el debate filosófico está configurando en los últimos años un nuevo paisaje teórico con una fuerte presencia de los nuevos materialismos (Thomas, 2015a). Puede parecer que la teoría en arqueología ha perdido nervio, porque no ha movido tanta bibliografía como en otros ámbitos de la disciplina pero eso no es cierto porque la arqueología se ha integrado en temas contemporáneos cruciales de las ciencias naturales y humanas. Es posible como indica Julian Thomas (2015b: 18) que la arqueología simplemente haya entrado en una fase más sobria de su desarrollo disciplinar (Johnson, 2020).
Hacer arqueología hoy: muchas facetas… pero sobre todo publicar Los arqueólogos en la actualidad llevan a cabo una gran diversidad de tareas, enseñan en las universidades, conservan, cuidan y exponen materiales en museos, gestionan la arqueología en las administraciones públicas, conducen trabajos de campo y documentación en empresas de arqueología, guían visitas en distintos ámbitos, investigan en institutos y realizan muchos otros trabajos. Trabajos que parecían imposibles hace solo veinte años son una realidad: editan libros y revistas divulgativas (Desperta Ferro y JAS Arqueología), crean parques de arqueología (Arqueopinto) o empresas de viajes arqueológicos (Pausanias), e investigan y trabajan en proyectos de centros de alta cocina (El Bulli Foundation). Por solo citar algunos ejemplos que conozco de forma directa en mi entorno más inmediato. Existe una pluralidad
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
Figura 6 - La arqueología teórica en 2019: conflicto entre distintos elementos de pensamiento y práctica en la cabeza de los arqueólogos. Las respuestas a las preguntas ¿Para quién trabajo? y ¿Qué quiero decir? varían según los posicionamientos teóricos de cada investigador (a partir de Johnson, 2020, re-dibujado y modificado).
de salidas profesionales, inimaginable cuando yo termine mi licenciatura, que esbozan una auténtica arqueodiversidad, otro aliciente más de la disciplina. Investigar en arqueología es publicar. La publicación es, por descontado, la contribución más perdurable que cualquier arqueólogo puede hacer a la sociedad (Connah, 2010: 1). Además es una obligación profesional y ética de cualquier excavador (Lavell, 1981), porque según el dictum académico publica o se maldito, ya que sencillamente “sin la publicación un arqueólogo no es mejor que un saqueador de sitios arqueológicos” (White, 2009: 207). De forma contundente hay que afirmar que sin publicación no puede haber arqueología.
Siempre se ha dicho que la lista de publicaciones de un investigador es la mejor referencia posible de su valía y creo que lo sigue siendo. Pero en las últimas décadas han cambiado algunos parámetros. Y así de la motivación personal, ética, de antaño por cumplir las obligaciones hemos pasado hoy a la presión institucional y administrativa de evaluar severamente las publicaciones como indicador imprescindible para la promoción académica y la obtención de plazas. Publicar en las revistas de impacto, especialmente en el primer cuartil (Q1), es la mejor apuesta (Armada, 2016; Román Román y Alcain Partearroyo, 2005). El sistema obliga a buscar esas revistas para construir un curriculum 25
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
Figura 7 - Las publicaciones con un crecimiento exponencial hacen cada vez más difícil identificar y leer lo relevante, y por todo lado realizar una lectura profunda, excavando los textos con precisión.
sólido y competitivo a los jóvenes y a mantener los estándares altos en los seniors. La dominancia de la ciencia en inglés, y por tanto también de la arqueología en inglés hace que muchos buenos trabajos se publiquen en inglés en las revistas de impacto. La presión es tal que puede hablarse de un auténtico “síndrome de Q1”. Lo que conlleva la pérdida de calidad de las revistas en español en la medida en que los mejores apuestan por la internacionalidad. Pero las revistas españolas de arqueología (Armada, 2016) tienen un gran valor 26
para el tejido investigador e institucional, como el caso de las portuguesas, que debemos seguir defendiendo y también por la importancia de la presencia de nuestras lenguas en las tecnologías digitales e Internet (Giménez Toledo, 2019). Mantener la diversidad del ecosistema de las publicaciones periódicas de arqueología es una tarea apremiante porque la investigación necesita esa bibliodiversidad y porque para tener especialistas excepcionales hay que cuidar, como en el deporte, la competencia en distintos niveles con modelos
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
inevitablemente piramidales. Lo importante es que pueda existir movilidad de una parte a otra de los niveles de la pirámide (Fig. 7). El crecimiento brutal de la publicaciones arqueológicas hace que sea muy difícil su control total por los investigadores y por eso su visibilidad y descubribilidad resultan fundamentales. Por otro lado la hiper-especialización crea continuamente nichos académicos y de publicaciones que compartimentan cada vez más las publicaciones en una especie de cajones estancos que dificulta el seguimiento de la investigación publicada, hace muy difícil mantener visiones holísticas y nos hace perder la perspectiva general y transversal de la arqueología; en definitiva de su valiosa unicidad. En otro orden de cosas, la concentración de revistas especializadas en unos pocos grandes consorcios empresariales como Elsevier, Reuters, Thomson, Kluver y Springer, con costes que han ido creciendo en los últimos años, dificulta la disponibilidad de estas revistas – especialmente las más caras –, en algunas bibliotecas y centros de investigación. Todo ello a pesar de que la edición electrónica o digital, desde mediados de los años 1990, ha reducido los costes de producción; aunque resulta evidente que se han defendido los beneficios encareciendo su suscripción (Giménez Toledo, 2019: 65-66). Para combatir esta situación desde inicios de este siglo el movimiento Open Access ha ido creciendo con la filosofía de facilitar el acceso en abierto a una investigación que se hace con fondos públicos y no debería servir para especular desde el ámbito editorial empresarial. Movimiento que sigue creciendo con buenas perspectivas de futuro por sus muchas ventajas (Marwick et al., 2017). Al igual que se debe combatir la publicación depredadora, la de revistas depredadoras, que cargan cantidades importantes por publicar en revistas con apariencia de científicas y que se dirigen a cubrir las necesidades de investigadores desesperados por el “síndrome de Q1” habitualmente fuera de las tradiciones arqueológicas mainstream.
La entrada en juego de la edición digital está alterando los mecanismos tradicionales de la edición académica, tanto en revistas (Ruiz Zapatero, 2016) como en monografías (Opitz, 2018). Hasta el punto que ya está obligando a (re)pensar las formas escribir (Connah, 2010; Fagan, 2016; Ruiz Zapatero, 2014) y organizar la investigación arqueológica. Una frontera poco atendida por ahora, pero que pienso constituye un tema absolutamente crucial a la hora de publicar informes y memorias de excavación sobre unos nuevos presupuestos. El caso de las memorias de excavación es muy relevante porque las limitaciones de las publicaciones tradicionales se pueden superar con una nueva fórmula de publicación electrónica que conjuga la priorización de llegar al público, la síntesis breve, la gran cantidad de datos de la investigación humanística y las ventajas de las plataformas digitales (Opitz, 2018). Se puede así crear un tipo de monografía de excavación que integra diversas formas de comunicación académica y divulgativa; se trata de un producto digital que llega a múltiples audiencias y sirve a la vez como plataforma de datos reutilizables y fácilmente reproducibles y como información de las interpretaciones realizadas. Hay una cuestión reciente, aparentemente marginal con lo que estamos tratando, pero muy importante y con implicaciones en todo el sistema académico que es la doble fórmula de obtención del título de doctor, bien mediante tesis convencionales o por un conjunto de publicaciones (Ruiz Zapatero, 2016). La segunda alternativa no deja de ser un reflejo de la velocidad de los tiempos que considera obsoleta la apuesta por una tesis convencional que se desarrolla a lo largo de varios años y prima, una vez más la rapidez de los papers o sea el “Sindrome de Q1”. En relación con las tesis doctorales, sin duda un indicador de éxito de un departamento o centro de investigación, el número de nuevos doctores constituye un parámetro importante en otro aspecto 27
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
raramente tenido en cuenta: la empleabilidad. No tenemos datos en nuestra tradición arqueológica y tampoco creo en la portuguesa, de la relación entre el número de tesis leídas cada año y la oferta de empleo. Pero un trabajo reciente en EE.UU. aporta una reflexión interesante. Sobre una muestra de 110 universidades entre 1994 y 2014 se leyeron 608 tesis de arqueología, lo que supone una ratio entre tesis presentadas y plazas universitarias ofertadas en el mismo periodo de 5:1 (Speakman et al., 2018). Y con ese dato se destaca la necesidad imperiosa de orientar a los estudiantes de postgrado hacia el mercado no-académico (¿!). Si pudiéramos calcular la situación española es muy posible que la ratio oscilara entre 50 y 100: 1 o incluso más. Se pueden sacar conclusiones sencillas al respecto. En nuestro caso se cruzan el crecimiento de equipos de investigación y tesis producidas y el tapón en la universidad, agravado por la crisis económica de 2008, que se intenta paliar con nuevas plazas baratas de profesorado contratado precariamente, que vergonzosamente aceptamos.
La atracción de la arqueología y el patrimonio La magia de la arqueología, como argumenta Holtorf (2007) consiste en: experimentar la práctica arqueológica e imaginar el pasado. De alguna manera, según Holtorf, existe un arqueoappeal, la arqueología ejerce un profundo atractivo en buena parte de la ciudadanía porque algunos de sus ingredientes básicos resultan muy estimulantes: los paisajes exóticos, la nostalgia de otros tiempos pasados, los progresos científicos y de nuevos conocimientos, la sofisticación tecnológica de muchos métodos y el anuncio continuo en los medios de comunicación de nuevos y excitantes descubrimientos. Y eso está avalado por las encuestas de opinión en diversos países que reflejan el aprecio y el interés por la arqueología 28
(Ruiz Zapatero, 2012). En EE.UU. la Harris Poll, promovida por la SAA, (Ramos y Duganne, 2000) fue la primera gran encuesta nacional para evaluar las ideas y apreciaciones de los ciudadanos y mostró – entre otros muchos datos –, un gran interés por la arqueología ya que un 88% había visitado museos, un 37% sitios arqueológicos y que un 11% había participado en actos y eventos relacionados con la arqueología. En Francia, a iniciativa del INRAP, la encuesta nacional (Sars y Cambe, 2011), solo entresacando algunos datos generales, descubre un gran interés por las excavaciones y hallazgos de cada región, un 20% declara su aprecio por la arqueología y un 15% ha visitado, al menos un yacimiento arqueológico en el último año y asistido a “jornadas de puertas abiertas”. A nivel europeo el proyecto NEARCH (http://www.nearch.eu/) sobre nueve países europeos, entre ellos España, ha proporcionado una buena radiografía de la percepción pública de la arqueología (Kajda et al., 2018: 10 ss.): un 91% de los encuestados creen que la arqueología tiene un gran valor y utilidad, mientras que un 40% piensa que nos ayuda a encontrar nuestro lugar en el mundo. Por otra parte, un 86% cree que tener sitios arqueológicos cerca de su ciudad es una ventaja importante y un 85% piensa que la mejor inmersión en la arqueología es la visita de sitios arqueológicos. Y la última encuesta de EE.UU., la IPSOS American Perceptions of Archaeology (2018) auspiciada por la SAA (https://www.saa. org/education-outreach/public-outreach/publicperceptions-studies), indica que el 93% cree que el trabajo arqueológico es importante, el 82% opina que el patrimonio arqueológico debe ser protegido legislativamente y el 87% considera que la arqueología de debería enseñar en el curriculum escolar. Todas las encuestas destacan el aprecio creciente de la arqueología, su valor para las sociedades contemporáneas y la demanda de más y mejores medios de aprendizaje (Fig. 8).
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
Figura 8 - La magia de la arqueología o el arqueo-appeal (datos según Holtorf, 2007).
Las encuestas sobre percepción de la arqueología son relevantes para poder hacer arqueología con una dimensión social, para construir mejores mensajes (McManamon, 2000) y en definitiva para saber qué aspectos de nuestro trabajo como arqueólogos necesitamos mejorar o que temas deberíamos incluir. Como ya adelanto con inteligencia McManamon (1999) los arqueólogos debemos aprender de cómo aprende la gente. Incluso yendo más lejos, pienso que deberíamos desarrollar proyectos para explorar y analizar detalladamente no solo las percepciones de nuestros públicos sino también como construye la gente sus visiones del pasado,
con qué materiales, de donde proceden, como han llegado a ellos y como los valoran. Sería algo así como una gran excavación de las percepciones sociales del pasado, identificando la procedencia, la calidad y la importancia de los conocimientos aportados por agentes muy diversos, habitualmente no considerados, como libros de divulgación, Internet, videojuegos, cómics, cine, televisión, y otros por el estilo. Sería muy interesante elaborar matrices de Harris de cómo esos componentes han llegado a la mente de la gente y han interactuado entre ellos: en suma como se han producido esas visiones, esas ideas preconcebidas (Fig. 9). 29
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
Figura 9 - Excavar las percepciones del pasado como método para conocer las ideas preconcebidas de la gente.
La visita de monumentos y sitios arqueológicos parece configurarse como el elemento más atractivo, junto con los museos, para un amplio sector del público potencialmente interesado en arqueología (Grima, 2017; Stone, 2015). Por eso la presentación de yacimientos y monumentos arqueológicos está adquiriendo una mayor importancia (LópezMenchero, 2013; Lorrio y Ruiz Zapatero, 2019), pues a la necesidad de proteger y conservar el patrimonio se suma la de divulgar y ofrecer experiencias gratificadoras que generalmente combinan ocio cultural, conocimientos históricos 30
y disfrute de la naturaleza (Corbishley, 2011). Hay que romper las barreras que nos separan del público (Farid, 2014; Jameson, 2008; Stone, 2015). A pesar de los problemas que rodean la presentación de sitios – en muchas ocasiones con reconstrucciones de estructuras (Masriera, 2009) – de tipo ético y honestidad profesional (Stanley-Price, 2009), de gestión de visitantes y posibles efectos negativos en el patrimonio y de una pura mercantilización de los sitios arqueológicos (Rowan y Baram, 2004), creo que el contacto directo con lugares del pasado – con restos visibles en su paisaje natural o con la ayuda
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
Figura 10 - Diagrama de flujo: del contexto vivo del pasado a la presentación de yacimientos arqueológicos. El pasado es cortado y elaborado como narrativa histórica como si fueran unas tijeras con un filo en el análisis arqueológico y el otro la imaginación arqueológica (según Lorrio y Ruiz Zapatero, 2019).
de las tecnologías visuales (Santacana et al., 2018) –, ofrece la mejor fórmula integral para percibir el pasado (Egloff, 2019; Ruiz Zapatero, 2013). Y si en las presentaciones se puede conciliar el rigor con la emotividad y construir discursos con carga afectiva pues mejor todavía (Smith et al., 2018) (Fig. 10). El patrimonio arqueológico se puede entender desde la perspectiva administrativa y legal pero debería entenderse mejor de una forma más amplia. Así creo que el sentido profundo del patrimonio arqueológico es el acto de transmitir y recibir memorias y conocimiento (Smith, 2006). En
otras palabras, el patrimonio arqueológico no es tanto una cosa física como un proceso cultural y social usado como una ayuda para revisitar memorias y asociaciones, compartir conocimientos y experiencias, reafirmar relaciones y comunicación y construir identidades y sentidos de pertenencia, siguiendo la opinión de Laurajane Smith (2006). El patrimonio arqueológico hay que conservarlo para que los ciudadanos, comprendan y disfruten su significado; y por eso es indispensable divulgar los valores patrimoniales que protegemos, para promover su uso y apropiación social (Gándara, 2016). Y quizás 31
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
lo que falta en muchas presentaciones patrimoniales es relevancia, más que conocimientos, porque como bien señala Manuel Gándara (2017: 151) lo que falta es explicar el significado profundo del patrimonio a los visitantes para que les llegue con “la mezcla de mente y corazón que es la que realmente puede generar empatía y compromiso”. Las propuestas de trabajo en comunidad ofrecen hoy una amplia variedad de iniciativas para divulgar el valor social del patrimonio arqueológico (Díaz-Andreu et al., 2016). Hay mucha literatura sobre la gestión del patrimonio arqueológico, quizás demasiado formalista, ordenadora y reglamentista en los países del Sur de Europa (Querol y Martínez, 1996; Pérez-Juez, 2006 y Ballart, 1997), pero en última instancia la lógica y defensa del valor fundamental del patrimonio precisa tres cosas: evaluar los bienes, hacerlos accesibles y hacerlos atractivos (Ballart, 2019). Y por descontado contar con una verdadera política patrimonial. Para la actuación concreta se pueden seguir lo que llamaría las cinco eses del patrimonio: 1) singularidad del sitio/monumento; 2) sostenibilidad, o sea que se garantice su preservación; 3) situación, tiene que ser accesible de manera fácil para amplias audiencias potenciales; 4) segmentación de públicos, con mensajes dirigidos a diferentes audiencias y 5) sintonía con el entorno local, es decir que la población inmediata comprenda sus valores y pueda beneficiarse de alguna manera de ese patrimonio (Fig. 11). El patrimonio arqueológico es fundamental que se incluya en la enseñanza obligatoria, porque sí, claro que “hay vida más allá de la arqueología” (Egea et al., 2017) y la educación, sin duda alguna, es un área preferente. Y aunque su inclusión se va haciendo tímidamente en España, por ejemplo en los manuales escolares (Meseguer et al., 2017), aún estamos lejos de conseguir su inserción crítica, estimulante e inspiradora en los currícula docentes de los más jóvenes.
32
Figura 11 - La banalización del turismo arqueológico puede tener consecuencias… (según El Roto, Diario El País, 2 de julio de 2018).
La difusión arqueológica: museos, patrimonio y sociedad Como hemos visto la arqueología en el mundo actual es importante y los museos arqueológicos (Swain, 2007; Skeates, 2017) son el primer lugar donde entrar en contacto con el pasado material (Hernández Hérnandez, 2010; Santacana y Hernández, 2006). Por algo los museos jugaron un papel central en la institucionalización de la arqueología. En aquellos museos decimonónicos se crearon las bases de los modelos textuales y las técnicas museográficas de exhibición actuales, que hicieron el pasado visible y real con una identidad científica y pública. Consiguieron mostrar la arqueología como una disciplina con identidad propia, segura y confiada en sus métodos y procedimientos. A lo largo de toda su historia es importante asumir que los museos arqueológicos no pueden
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
entenderse de forma aislada de otras instituciones y prácticas sino que hay que analizar sus relaciones con la investigación arqueológica, las formas de publicación, los sistemas de enseñanza, la creación de plazas específicas, la metodología de excavación y otros parámetros relacionados. La clave es descubrir sus vibraciones con otros campos asociados, instancias y prácticas (Olsen y Svestad, 1994). Las museografías arqueológicas encierran narrativas sobre el pasado pero construidas en cada presente. Y si convenimos que toda ficción no es otra cosa que un reciclaje de la realidad, una narrativa sobre el pasado no deja de ser un reciclaje de una realidad imaginada del pasado. Y la continua (re)escritura de narrativas opera sobre las narrativas previas, ajustando, cambiando, suprimiendo y añadiendo elementos. Eso es lo que han hecho las sucesivas museografías de cada museo arqueológico. Las museografías arqueológicas son acumulativas (en algunas ocasiones física y documentalmente perdidas) y cada vez mejores (Swain, 2007: 296). Si a ello le añadimos su rica diversidad hay motivos fundados para confiar en los desarrollos futuros y en una estética redentora considerando su evolución histórica (Shanks y Tilley, 2017). Los museos arqueológicos se van redimiendo en la medida que en las últimas décadas han realizado el giro hacia el público, esto es han ido teniendo cada vez más en cuenta las necesidades y expectativas de sus públicos. Han apostado por el acceso digital pero también por las acciones de “hands on”. En ocasiones abren sus entrañas para mostrar sus cocinas y permitir visiones más profundas a sus visitantes. Una experiencia que va ganando adeptos es la conjunción de arte y arqueología, diversas fórmulas que permiten a artistas jugar con los restos y/o representaciones del pasado para producir un auténtico pasado filtrado por el arte contemporáneo (Merriman, 2017: 555557). Pero en general y con contadas excepciones ofrecen museografías conservadoras que miran más a la investigación y el oficio; por eso como bien
Figura 12 - El patrimonio arqueológico concebido como algo estático, frío, congelado en el tiempo y almacenable como una conserva.
señala Merriman (2017: 560) quizás es tiempo de escuchar más los puntos de vista de nuestros potenciales visitantes y arriesgar un poco más en lo que hacemos (Fig. 12). Los museos son un formidable medio para la construcción pública del pasado y para la implicación del público en arqueología (Merriman, 2017). Son un auténtico mass-media a largo plazo porque la suma de visitantes a lo largo de los años acaba resultando muy elevada (Merriman, 2017: 543). Los museos tienen la obligación y responsabilidad de ofrecer miradas rigurosas del pasado pero también mostrar la ignorancia e incertidumbre sobre muchos temas. Miradas que sean lo más objetivas posible pero también al mismo tiempo imaginativas. Miradas respetuosas con las distintas audiencias pero al mismo tiempo provocadoras, que interpelen 33
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
Figura 13 - Los restos del pasado muertos y bien muertos en ataúdes de cristal ha sido y en parte sigue siendo una presentación habitual en los museos arqueológicos.
y den voz a la gente de forma que dignifiquen a todos los públicos sin distinciones, como en cualquier divulgación científica verdaderamente inmersiva que supere la tradicional perspectiva “de arriba a abajo” (Nieto-Galán, 2011: 317). Miradas, en fin, que sean relevantes en el mundo actual y que proporcionen sentido de pertenencia para vivir en el presente y para afrontar el futuro con sentido crítico. Las audiencias infantiles y las personas con desventajas físicas, psíquicas o sensoriales son probablemente los colectivos más olvidados (Lopiteaux-Francon y Merpillat, 2006) (Fig. 13). Los museos arqueológicos son los guardianes de la memoria colectiva perdida cuyos restos son los 34
objetos y por eso sus museografías deben ayudar a recuperar parte de esa memoria perdida y presentarla al público (Swain, 2007: 297). A veces los museos arqueológicos no dejan de ser depósitos de basura glamurosa del pasado, con discursos que pierden lo anteriormente señalado. Porque ofrecen exposiciones con objetos descontextualizados – de forma doble: de sus contextos arqueológicos originales y de los contextos de vida del pasado –, que buscan casi un mero atractivo visual y proporcionan pocos mensajes claros y encima con pobres recursos museográficos (Lull, 2007: 364-66 y Ruiz Zapatero, 2009: 27 ss.). En España la mayoría de los discursos de los museos arqueológicos siguen sin reflexionar sobre
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
Figura 14 - Acepciones de Arqueología Publica (a partir de Moshenska, 2016, modificado).
su función en la sociedad actual, casi vaciados de un discurso identitario (en el mejor sentido de la palabra) o de memoria de la comunidad a la que pertenecen (Azuar Ruiz, 2013: 169-70). Porque otra obligación estimulante es la expansión de audiencias para crear nuevos públicos. Esa tarea de crear y atender nuevos públicos es lo que intenta desarrollar desde hace tres décadas la Public Archaeology (Moshenska, 2016) o Arqueología pública (Almansa, 2013), entendida como un conjunto de formas de hacer arqueología para actuar con la gente, desde sus contextos locales, descubriendo sus intereses y articulando fórmulas que los hagan partícipes activos de unas nuevas prácticas
arqueológicas. En definitiva, fórmulas para estrechar y mejorar las relaciones entre la arqueología profesional y la sociedad (Williams et al., 2020), que no obstante ofrecen etiquetas diversas que pueden mover a confusión (Fig. 14). Aunque el fenómeno ha tenido un pequeño decalage fuera del mundo anglosajón, cada vez surgen por todos lados más iniciativas que se inscriben, de una u otra manera, dentro de la Public Archaeology, y sin duda creo que lo seguirán haciendo en el futuro próximo (Almansa, 2018; Moshenska, 2017). La configuración de la Public Archaeology hay que entenderla dentro de los cambios que desde los años 1980 se van produciendo con el caldo de cultivo 35
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
del giro postmoderno, las ideas que va sembrando el World Archaeological Congress (WAC) fundado en 1986 (Sheperd y Haber, 2011), la arqueología de comunidad (Mohney y Nassaney, 2012), la nueva museografía (Merriman, 1991) y el crecimiento de la Living History con el reenacment arqueológico, los grupos de reconstrucción histórica (Agnew et al., 2020). La aparición del Journal of Public Archaeology en el año 2000 simboliza su mayoría de edad con el comienzo del siglo, al que una década después ha seguido AP On line Journal of Public Archaeology.
A modo de conclusiones Hacer arqueología hoy debe integrar la interpretación con la práctica y la sociedad (Van der Linde et al., 2018: 185), para evitar un pasado “deshumanizado” que no diga nada a la gente para la que trabaja. En las actuaciones hay que poner pasión y compromiso y crear prácticas que reúnan patrimonio, investigación y poblaciones locales. Al fin y al cabo, la arqueología se encuentra en una posición privilegiada para liderar debates sobre el patrimonio cultural, las identidades de todo tipo, el postcolonialismo, las migraciones humanas, el cambio climático y el cambio cultural (Nilsson Stutz, 2018: 54). Todos ellos temas cruciales en algunos de los debates intelectuales y políticos más urgentes en nuestro mundo contemporáneo. Por eso las visiones de Gran Narrativa que sinteticen bien la investigación arqueológica resultan cruciales para las sociedades contemporáneas y la propia disciplina (Altschul et al., 2017). Y por otra parte, debemos estar vigilantes con los usos, las manipulaciones y los sesgos del pasado en el presente porque eso es también parte de la ética arqueológica. Y desde luego ser beligerantes y bajar al debate en la arena pública cuando las situaciones lo requieran. En esa tarea resulta crucial llegar a cuantas más audiencias mejor pero sin una capitulación populista y, desde luego, oponiéndose siempre a la tendencia 36
actual de historias post-verdad y falsas (Hodder, 2018: 45) (Fig. 15). La comunidad arqueológica se tiene que implicar abiertamente con los retos de nuestras sociedades y explotar al máximo los recursos que ofrece nuestra disciplina (González Ruibal et al., 2019). Conseguir una arqueología abierta y ciudadana constituye una alternativa ineludible y para ello el rigor investigador y el compromiso con nuestra investigación, las gentes del pasado y con las gentes del presente constituyen las mejores herramientas. Porque los arqueólogos tenemos una doble responsabilidad, por un lado científica con nuestra investigación y por otro, social con las sociedades civiles a las que servimos. Con esta conciencia, que ha ido creciendo en las últimas décadas, la arqueología es hoy una disciplina movilizada y como dice Nathan Schlanguer (2018: 587) está deviniendo en una verdadera disciplina militante, que ofrece nuevos conocimientos sobre el pasado pero también argumentos y reflexiones para la implicación ciudadana de cara a abordar mejor las realidades actuales y los desafíos del futuro. Y si somos muchos y muy motivados podremos actuar como activistas para intentar cambiar, al menos en alguna medida, el mundo en que vivimos (Stottman et al., 2010).
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
Figura 15 - Diagrama del proceso desde la excavación arqueológica a la difusión del patrimonio arqueológico.
LA DIFUSIÓN DEL PATRIMONIO ARQUEOLÓGICO La excavación arqueológica de yacimientos proporciona los materiales mejor informados para elaborar historias de las gentes y las comunidades de esos sitios. Materiales que tras su investigación se guardan y muestran en los museos. Los arqueólogos producen conocimiento histórico, básicamente a través de las publicaciones. El producto que queda en el campo, los sitios y monumentos, solo en contadas ocasiones, se pueden presentar al público. Para ello hay que valorar muy ajustadamente su sostenibilidad y no guiarse solo por beneficios económicos y al mismo tiempo evitar que las presentaciones minusvaloren y distorsionen sus historias. Para lograr una eficaz difusión del Patrimonio Arqueológico todos los aspectos señalados deben ser rigurosos, realistas y además estar bien articulados entre sí.
37
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
Agradecimientos Quiero manifestar mi profundo agradecimiento a la Prof.ª Raquel Vilaça por su invitación para participar en esta reunión de celebración del Museo Municipal Santos Rocha. A la Conservadora del Museo, Dr.ª Ana Margarida Ferreira, y a todos los que hicieron mi visita a Figueira da Foz agradable y estimulante. Pido por adelantado disculpas por mi limitado conocimiento de la arqueología portuguesa.
Referencias bibliográficas AGNEW, V.; LAMB, J. y TOMANN, J. (2020). The Routledge Handbook of Reenacment Studies. Key Terms in the Field. Abingdon, Nueva York: Routledge. AITCHISON, K. (2009). Discovering the Archaeologists of Europe Transnational. Reading, Institute for Archaeologists. https://www.discovering-archaeologists.eu/DISCO_Transnational_ Report.pdf [Acceso: 27-I-2020]. AITCHISON, K. et al. (2014). Discovering the Archaeologists of Europe 2012-14: Transnational Report. https://www.discovering-archaeologists.eu/national_reports/2014/ transnational_report.pdf [Acceso 27-I-2020]. ALMANSA, J. (ed.) (2013). Arqueología Pública en España. Madrid: JAS Arqueología Editorial. ALMANSA, J. (2018). New paths for the future of public archaeology?, Cuadernos de Prehistoria y Arqueología de la Universidad de Granada, 28, pp. 197-209. ALTSCHUL, J. H. et al. (2017). Fostering synthesis in archaeology to advance science and benefit society, PNAS, 114 (n.º 42), pp. 10999-11002. ARMADA, X-L. (2016). Explorando el panorama actual de las publicaciones periódicas de arqueología: Revista d´Arqueologia de Ponent en contexto, Revista d´Arqueologia de Ponent, 26, pp. 295-310.
BAHN, P. (ed.) (2014). The History of Archaeology: An Introduction. Abingdon-Nueva-York: Routledge. BAHN, P. (2017). Archaeology. The Whole Story. Londres: Thames and Hudson. BALLART, J. (1997). El patrimonio histórico y arqueológico: valor y uso. Barcelona: Ariel. BALLART, J. (2019). Paisaje y patrimonio. Madrid: JAS Editorial. BATE, L.F. (1998). El proceso de investigación en arqueología. Barcelona: Grijaldo Mondadori. BELLWOOD, P. (2013). First Migrants. Ancient Migration in Global Perspective. Chichester: Wiley-Blacwell. BINTLIFF, J. L. y PEARCE, M. (eds.) (2011). The death of archaeological theory?. Oxford: Oxbow Books. BONSALL, J. (2019). New Global perspectives on Archaeological Prospection. Oxford: Archaeopress. CLARK, G. (1967). World Prehistory. A new Outline. Londres: Thames and Hudson. CONNAH, G. (2010). Writing about Archaeology. Cambridge: Cambridge University Press. CORBISHLEY, M. (2011). Pinning Down the Past: Archaeology, Heritage, and Education Today. Boydell: Woodbridge. COSTA, C. et al. (2014). Discovering the Archaeologists of Portugal 2012-14. Associação Profissional de Arqueólogos. https://www.discovering-archaeologists.eu/national_reports/2014/ PT%20DISCO%202014%20Portugal%20national%20 report%20english.pdf [Acceso: 29-I-2020]. DEMOULE, J.-P. ; GARCÍA, D. y SCHNAPP, A. (2018). Avantpropos. En DEMOULE, J.-P. ; GARCIA, D. y SCHNAPP, A. (dirs.) Une histoire des civilisations. Comment l´archéologie bouleverse nos connaissances. Paris: La Découverte-INRAP.
AZUAR RUIZ, R. (2013). Museos, arqueología, democracia y crisis. Gijón: Ediciones Trea.
DÍAZ-ANDREU, M.; PASTOR, A. y RUIZ, A. (eds.) (2016). Arqueología y comunidad: el valor social del patrimonio arqueológico en el siglo XXI. Madrid: JAS Arqueología.
BAHN, P. (2001). The Archaeology Detectives: How we know what we know about the past. Readers Digest.
EDWARDS, H. y VANDENABEELE, P. (eds.) (2012). Analytical Archaeometry: Selected Topics. Royal Society of Chemistry.
38
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
EGEA VIVANCOS, A.; ARIAS FERRER, L. y PERNAS GARCÍA, S. (2017). ¿Hay vida más allá de la arqueología? La educación como una oportunidad, Revista Temporis [ação], 17 (2), pp. 20-42.
GIMÉNEZ TOLEDO, E. (2019). Impactos de la publicación académica en español, Revista de Occidente, 463 diciembre, pp. 56-70.
EGLOFF, B. J. (2019). Archaeological Heritage Conservation and Management. Oxford: Archaeopress.
GONZÁLEZ RUIBAL, A.; GONZÁLEZ, P. A. y CRIADO BOADO, F. (2019). Against Reactionary Populism: Towards a New Public Archaeology. Antiquity, 92, pp. 507-515.
FAGAN, B. (1995). Time Detectives. How Archaeologists Use Technology to Recapture the Past. Nueva York: Simon & Schuster.
GRAVES, M. W. (2013). Digital Archaeology: The Art and Science of Digital Forensics. Addison: Wesley Professional.
FAGAN, B. (2008). The Great Warming: Climate Change and the Rise and Fall of Civilizations. Nueva York: Bloomsbury Press.
GRIMA, R. (2017). Presenting Archaeological Sites to the Public. En MOSHENSKA, G. (ed.) Key Concepts in Public Archaeology. Londres: UCL Press, pp. 73-92.
FAGAN, B. (2016). Writing Archaeology: Telling Stories About the Past. Londres: Routledge. FAGAN, B. (2017). Foreward. En BAHN, P. (ed.), Archaeology. The Whole Story: 6-7. Londres: Thames &Hudson. FAGAN, B. (2018). A Little History of Archaeology. Yale: Yale University Press. FARID, S. (2014). From excavation to dissemination: Breaking down the barriers between archaeology and the public. En STONE, P. y HUI, Z. (eds.), Sharing Archaeology: Academe, Practice and the Public. Abingdon: Routledge, pp. 117-132.
GROSMAN, L. (2016). Reaching the Point of No Return: The Computational Revolution in Archaeology. Annual Review of Anthropology, 45, pp. 129-145. HARARI, Y. N. (2014). Sapiens. A Brief History of Humankind. Nueva York: Harwill Secker. HARRIS, O. J. T. y CIPOLLA, C. (2017). Archaeological Theory in the New Millenium: Introducing Current Perspectives. Abingdon: Routledge. HERNÁNDEZ HERNÁNDEZ, F. (2010). arqueológicos y su museografía. Gijón: Trea.
Los
museos
GAMBLE, C. (2001). Archaeology. The Basics. Londres: Routledge. GAMBLE, C. (2013). Settling the Earth. The Archaeology of Deep Human History. Cambridge: Cambridge University Press. GÁNDARA, M. (2016). Valores, significados y usos del patrimonio arqueológico: una propuesta. https://www.researchgate.net/publication/316553993_Valores_ significados_y_usos_del_patrimonio_arqueologico_una_propuesta
HODDER, I. (2018). Big History and a Post-Truth Archaeology. The SAA Archaeological Record, 18 (5), pp. 43-45. HOLTORF, C. (2007). Archaeology is a Brand! The meaning of archaeology in contemporary popular culture. Oxford: Archaeopress. HUVILA, I. (ed.) (2018). Archaeology and Archaeological Information in Digital Society. Tylor & Francis.
GÁNDARA, M. (2017). Nuevas tecnologías y estrategias de comunicación para la divulgación del patrimonio cultural. Antropologia. Revista interdisciplinaria del INAH, 1 (1), pp. 135-153.
IACONO, F. (2018). Marxists Archaeologies. En GARDNER, A.; LAKE, M. y SOMMER, U. (eds.), The Oxford Handbook of Archaeological Theory. Oxford: OUP.
GARCÍA, D. y LE BRAS, H. (dirs.) (2017). Archéologie des migrations. Paris: La Découverte.
JAMESON JR., J. H. (2008). Presenting Archaeology to the Public, Then and Now. An Introduction. En FAIRCLOUGH, G. et al. (eds.), The Heritage Reader, Nueva York: Routledge, pp. 427-456.
GAVIN, L. (2012). Understanding the Archaeological Record. Cambridge: Cambridge University Press.
39
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
JOHNSON, A. L. (2004). The Goals of Processual Archaeology. En Processual Archaeology. Exploring Analytical Strategies, Frames of Reference and Culture Process. Amber Johnson Editor, pp. 11-27. JOHNSON, M. (2020). Archaeological Theory. An Introduction (3ª ed.). Hobokem NJ: Willey/Blackwell. KAESER, M.-A. (2017). La médiation de l’archéologie. Éthique de la complaisance ou impératif épistémologique?, In Situ. Revue des patrimoines 28. http://journals.openedition.org/insitu/12814 [Acceso 5-II-2020]. KAJDA, K. et al. (2018). Archaeology, Heritage, and Social Value: Public Perspectives on European Archaeology. European Journal of Archaeology 21 (1), pp. 96-117. KEEGAN, J. (2004). A History of Warfare. Londres: Pimlico. KLEJN, L. S. (2012). Soviet archaeology: Schools, trends, history. Oxford: OUP.
LULL, V. (2007). Los objetos distinguidos. La arqueología como excusa. Barcelona: Edicions Bellaterra. MANOLAKAKIS, L.; SCHLANGUER, N. y COUDART, A. (eds.) (2017). European Archaeology: Identities & Migrations/ Archéologie européenne: Identités & Migrations. Sidestone Press. MARWICK, B. et al. (2017). Open Science in Archaeology. The SAA Archaeological Record, September, pp. 8-14. MASRIERA, C. (2009). Las reconstrucciones arqueológicas: problemas y tendencias. Hermes, 1, pp. 41-49. MCGUIRE, R. H. (1993). Archaeology and Marxism. Archaeological Method and Theory, 5, pp. 101-157. MCMANAMON, F. P. (1991). The many publics for archaeology. American Antiquity 56 (1), pp. 121-130. MCMANAMON, F. P. (1999). Understanding the Public’s Understanding of Archaeology. Common Ground 4(2), p. 3.
KRISTIANSEN, K. (2009). The discipline of Archaeology. En CUNLIFFE, B.; GOSDEM, C. y JOYCE, R. A. (eds.), The Oxford Handbook of Archaeology. Oxford: OUP, pp. 3-46.
MCMANAMON, F. P. (2000). Archaeological Messages and Messengers. Public Archaeology 1(1), pp. 5-20.
KRISTIANSEN, K., (2014). Towards a new paradigm? The third science revolution and its possible consequences in archaeology. Current Swedish archaeology, 22, pp. 11-34.
MERRIMAN, N. (1991). Beyond the Glass Case: The Past the Heritage and the Public in Britain. Leicester: Leicester University Press.
LAVELL, C. (1981). Publication: an obligation. Archaeological documentation in Britain today. Bulletin of the Institute of Archaeology, 18, pp. 91-125.
MERRIMAN, N. (2017). Involving the public in museum archaeology. En SKEATES, R. (ed.), Museums and Archaeology. Abingdon-Nueva York: Routledge, pp. 543-563.
LÓPEZ-MENCHERO BENDICHO, V. M. (2013). La musealización del patrimonio arqueológico in situ. El caso español en el contexto europeo. Oxford: BAR Int. Series 2535.
MESEGUER GIL, A. J.; ARIAS FERRER, L. y EGEA VIVANCOS, A. (2017). El patrimonio arqueológico en los libros de texto de Educación Secundaria. Didáctica de las ciencias experimentales y sociales, 33, pp. 65-82.
LOPITEAUX-FRANCON, C. y MERPILLAT, M. (2006). L’Archéologie à la rencontre des jeunes publics et des visiteurs handicapés, La lettre de l’OCIM 103, 4-11. http://doc.ocim.fr/LO/LO103/LO.103%281%29-pp.04-11.pdf [Acceso: 5-II-2020]. LORRIO, A. y RUIZ ZPATERO, G. (2019). Un modelo de difusión para la Edad del Hierro: la presentación pública de yacimientos. En MUNILLA, G. (ed.), Musealizando la Protohistoria peninsular. Barcelona: Universidad de Barcelona, pp. 13-44.
40
MOHNEY, K. W. y NASSANEY, M. S. (2012). CommunityBased Archaeology: Research with, by, and for Indigenous and Local Communities. University of California Press. MOSHENSKA, G. (2016). Introduction: public archaeology as practice and scholarship where archaeology meets the world. A typology. https://ucldigitalpress.co.uk/Book/Article/22/47/1610/ [Acceso: 1-II-2020].
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
MOSHENSKA, G. (ed.) (2017). Key Concepts in Public Archaeology. Londres: UCL Press.
QUEROL, M. y MARTÍNEZ, B. (1996). La gestión del patrimonio arqueológico en España. Madrid: Alianza Editorial.
MURRAY, T. (2014). From Antiquarian to Archaeologist: The History and Philosophy of Archaeology. Pen & Sword Books Ltd.
RAMOS, M. y DUGANNE, D. (2000). Exploring Public Perceptions and Attitudes about Archaeology, Society for American Archaeology. Harris Interactive, febrero [en línea]. https://www.nps.gov/archeology/pubs/harris/index.htm [Acceso: 6-II-2020].
NIETO-GALÁN, A. (2011). Los públicos de la ciencia. Expertos y profanos a través de la Historia. Madrid: Fundación Jorge JuanMarcial Pons. NILSSON STUTZ, L. (2018). A Future for Archaeology: In Defense of an Intellectually Engaged, Collaborative and Confident Archaeology. Norwegian Archaeological Review, 51, pp. 48-56. O´BRIEN, M. J. (1996). Evolutionary Archaeology. University of Utah Press. OLIVIER, L. (2008). Le Sombre Abîme du Temps. Mémoire et archéologie. Paris: Editions du Seuil. OLSEN, B. y SVESTAD, A. (1994). Creating Prehistory: Archaeology museums and the discourse of modernism. Nordisk Museologici, 1, pp. 3-20. OPITZ, R. (2018). Publishing Archaeological Excavations at the Digital Turn. Journal of Field Archaeology, 43 (n.º 51), pp. 568-582. PATTERSON, T. C. (2003). Marx’s Ghost: conversations with archaeologists. Londres: Routledge. PÉREZ-JUEZ, A. (2006). Gestión del Patrimonio Arqueológico. Barcelona: Ariel. PERREAULT, C. (2019). The quality of the archaeological record. Chicago (IL): University of Chicago Press. PÉTURSDOTTI, B. (2017). Climate change? Archaeology and Anthropocene. Archaeological Dialogues, 24 (2), pp. 175-205. POPA, C. N. (2019). The Responsibility of European Archaeologists. European Journal of Archaeology, 22 (2), pp. 255-268. PRAETZELLIS, A. (2015). Archaeological Theory in a Nutshell. Abingdon-Nueva York: Routledge.
REED, K. y RYAN, P. (2019). Lessons from the past and the future of food. World Archaeology, 51:1, pp. 1-16. RENFREW, A. C. (1983). Divided We Stand: Aspects of Archaeology and Information. American Antiquity, 48 (1), pp. 3-16. ROMÁN ROMÁN, A. y ALCAIN PARTEARROYO, M. D. (2005). Las revistas españolas de Prehistoria y Arqueología en el entorno de un sistema de valoración integrada. Trabajos de Prehistoria, 62 (2), pp. 7-23. ROWAN, Y. y BARAM, U. (eds.) (2004). Marketing Heritage: Archaeology and the consumption of the past. Walnut Creek (California): AltaMira Press. RUIZ ZAPATERO, G. (1998). Fragmentos del pasado: la presentación de sitios arqueológicos y la función social de la arqueología. En GONZÁLEZ-MARCÉN, P. (ed.), II Seminari d’Arqueologia i Ensenyament. Barcelona, Universitat Autònoma de Barcelona, Bellaterra, pp. 7-33. RUIZ ZAPATERO, G. (2009). La divulgación arqueológica: las ideologías ocultas. Cuadernos de Prehistoria y Arqueología de la Universidad de Granada, 19, pp. 11-36. RUIZ ZAPATERO, G. (2012). Presencia social de la arqueología y percepción pública del pasado. En FERRER GARCÍA, C. y VIVES–FERRÁNDIZ, J. (eds.), Construcciones y usos del pasado: Patrimonio arqueológico, territorio y museo. Valencia: Museo de Prehistoria de Valencia, pp. 31-73. RUIZ ZAPATERO, G. (2013). Percibir, comprender y sentir. La accesibilidad de los sitios paleolíticos. Treballs d’Arqueologia 19, pp. 7-25.
PRENTISS, A. M. (ed.) (2019). Handbook of Evolutionary Research in Archaeology. Londres: Springer.
41
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
RUIZ ZAPATERO, G. (2014). Fotografía y arqueología: ventanas al pasado con cristales traslúcidos. En Catálogo Exposición José Latova. Cuarenta años de fotografía arqueológica española (19752014). Alcalá de Henares: Museo Arqueológico Regional de la Comunidad de Madrid, pp. 51-71.
SHANKS, M. (2012). The Archaeological Imagination. Walnutt Creek: Left Coast Press.
RUIZ ZAPATERO, G. (2016). Publicar revistas de arqueología: cartografía académica y retos de futuro. Revista d´Arqueologia de Ponent, 26, pp. 265-280.
SHANKS, M. y TILLEY, C. (2017). Present the past. Towards a redemptive aesthetic for the museums. En SKEATES, R. (ed.), Museums and Archaeology. Abingdon-Nueva York: Routledge, pp. 312-345.
SANTACANA, J. y HERNÁNDEZ, F.X. (2006). Museología crítica. Gijón: Ed. Trea. SANTACANA, J.; ASENSIO, M. y LLOCH, N. (2018). App, arqueología & m-learning. Reconstruir, restituir, interpretar i avaluar app. Barcelona: Rafael Dalmau Editor. SARS, F. de y CAMBE, G. (2011). Image de l’archéologie auprès du grand public. Étude Ipsos/INRAP. [en línea] https://www.inrap.fr/sites/inrap.fr/files/atoms/files/ipsosarcheologie.pdf. [Acceso: 20-2-2020]. SCARRE, C. (ed.) (2018). The Human Past: World Prehistory and the Development of Human Societies (4.ª ed.). Londres: Thames and Hudson. SCHLANGUER, N. (2018). Archéologie et société. En DEMOULE, J.-P. ; GARCÍA, D. y SCHNAPP, A. (dirs.), Une histoire des civilisations. Comment l´archéologie bouleverse nos connaissances. Paris: La Découverte-INRAP, 584-587. SCHNAPP, A. (2002). Between antiquarians and archaeologists continuities and ruptures. Antiquity, 76 (291), pp. 134-140. SCHNAPP, A. (2018). Face au passé, une courte histoire. En DEMOULE, J.-P. ; GARCIA, D. y SCHNAPP, A. (dirs.), Une histoire des civilisations. Comme l´archéologie bouleverse nos connoissances, Paris: Éditons la Découverte-INRAP, pp. 10-28. SCHNAPP, A. et al. (eds.) (2013). World Antiquarianism: Comparative Perspectives. Los Angeles: The Getty Research Institute. SHANKS, M. (2008). Post-processual archaeology and after. En BENTLEY, R.A.; MASCHNER, H. D. G. and CHIPPINDALE, C. (eds.), Handbook of Archaeological Theories. Walnut Creek: AltaMira Press, pp. 133-144.
42
SHANKS, M. y TILLEY, C. (1989). Archaeology into the 1990s. Norwegian Archaeological Review, 22, pp. 1-12.
SHEPERD, N. y A. HABER (2011). What’s Up with WAC? Archaeology and “engagement” in a globalized world. Public Archaeology, 10(2), pp. 96-115. SKEATES, R. (ed.) (2017). Museums and Archaeology. AbingdonNueva York: Routledge. SKEATES, R.; McDAVID, C. y CARMAN, J. (eds.) (2012). The Oxford Handbook of Public Archaeology. Oxford: Oxford University Press. SMITH, L. (2006). Uses of Heritage. Londres: Routledge. SMITH, L.; WETHERELL, M. y CAMPBELL, G. (eds.) (2018). Emotion, Affective Practices and the Past in the Present. LondresNueva York: Routledge. SPEAKMAN, R. J. et al. (2018). Market share and recent hiring trends in anthropology faculty positions. PLOS ONE 13(9), e0202528. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0202528 [Acceso: 20-I-2020]. STANLEY-PRICE, N. (2009). The reconstruction of ruins: Principles and Practice. En RICHMOND, A. y BRACKER, A. L. (eds.), Conservation: Principles, Dilemmas and Uncomfortable Truths. Amsterdam-Londres, Butterworth-Heinemann: The Victoria and Albert Museum, pp. 32-46. STONE, P.G. (2015). Sharing Archaeology. Introduction. En STONE, P. G. y HUI, Z. (eds.), Sharing Archaeology. Academe, Practice and the Public. Nueva York-Londres: Routledge, pp. 1-11. STTOTMAN, M. J. et al. (2010). Archaeologists as Activists: Can Archaeologists Change the World?. Tuscalosa: The University of Alabama Press.
HACER ARQUEOLOGÍA: INVESTIGACIÓN, DIFUSIÓN Y DEFENSA DEL RIGOR E INDEPENDENCIA DISCIPLINAR
SWAIN, H. (2007). An Introduction to Museum Archaeology. Cambridge, Cambridge University Press. TANTALEAN, H. y AGUILAR, M. (eds.) (2012). La Arqueología Social Latinoamericana. De la teoría a la praxis. Universidad de los Andes, Colombia. THOMAS, J. (2015a). The future of archaeological theory. Antiquity, 84 (348), pp. 1287-1296. THOMAS, J. (2015b). Why “The Death of Archaeological Theory”?. En HILLERDAL, C. y SIAPKAS, J. (eds.), Debating Archaeological Empiricism: the Ambiguity of Material Evidence. Londres: Routledge, pp. 11-31. VAN DEN DRIES, M. H.; BOOM, K. H. J. y VAN DER LINDE, S. J. (2015). Exploring Archaeology’s Social Values for Present-day Society. Analecta Prehistorica Leidensia 45, pp. 221-34. VAN DER LINDE, S. J.; VAN DEN DRIES, M. H. y WAIT, G. (2018). Putting the Soul into Archaeology – Integrating Interpretation into Practice. Advances in Archaeological Practice, 6 (3), pp. 181-186. VAN VALKENBURGH, P. y DUFFON, J. A. (2020). Big Archaeology: Horizons and Blindspots, Journal of Field Archaeology, 45 (sup1, S1-S7). DOI: 10.1080/00934690.2020.1714307 WEBSTER, G. S. (2008). Culture history: a culture-historical approach. En BENTLEY, R. A. y CHIPPINDALE, C. (eds.), Handbook of Archaeological Theories. Altamira Press. h t t p s : / / p d f s . s e m a n t i c s c h o l a r. o r g / 4 4 e e / 9 9 4 6 a 1 e c f c 6f3516ab8a85268df66945a6c.pdf [Acceso: 30-I-2020]. WHITE, R. (2009). Data collection by excavation. En CUNLIFFE, B.; GOESDEN, C. y JOYCE, R. A. (eds.), The Oxford Handbook of Archaeology. Oxford: Oxford University Press, pp. 189-209. WILLIAMS, H.; PUDNEY, C. y EZZELDIN, A. (eds.) (2020). Public Archaeology: Arts of Engagement. Oxford: Archaeopress. ZIMMERMAN, L. (2003). Presenting the Past. Walnut Creek, California: AltaMira Press.
43
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Considerações sobre o papel da Geologia e seus atores no universo arqueológico de António dos Santos Rocha Thoughts on the role of Geology and its actors in the archaeological universe of António dos Santos Rocha Pedro Miguel Callapez1 . José Manuel Brandão2 . Miguel de Carvalho3 . Pedro Alexandre Dinis4 . Ricardo Jorge Pimentel5 . José M. Soares Pinto6 . Rodrigo Pinto7 . Pedro Santarém Andrade8 . Luís Manuel Simões9 . Fernando Carlos Lopes1 . Elsa Carvalho Gomes1
1 Universidade de Coimbra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Departamento de Ciências da Terra, CITEUC | callapez@dct.uc.pt 2 Universidade NOVA de Lisboa, HTC-História, territórios, comunidades, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/CEF |
jbrandao@fcsh.unl.pt 3 Livraria Miguel de Carvalho, Figueira da Foz | miguel-carvalho@livro-antigo.com 4 Universidade de Coimbra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Departamento de Ciências da Terra, MARE |
pdinis@dct.uc.pt
5 Agrupamento de Escolas de Guia, Guia, Pombal | ricardo.pimentel@aeguia.edu.pt 6 Agrupamento de Escolas Figueira Mar, Escola Secundária Dr. Bernardino Machado, Figueira da Foz | jvonpintoff@live.com 7 Museu Municipal Santos Rocha, Divisão de Cultura, Município da Figueira da Foz |
rhodespinto@outlook.pt
8 Universidade de Coimbra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Departamento de Ciências da Terra, CGUC | 9 Departamento de Ambiente, Instituto Politécnico de Viseu |
44
lsimoes@estv.ipv.pt
pandrade@dct.uc.pt
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
A natureza geológica de um território constitui um dos fatores determinantes da sua ocupação humana, pelo que existe uma relação próxima entre a localização de sítios arqueológicos, a paisagem e o substrato geológico. O espaço da Figueira da Foz regista numerosos exemplos dessa conexão. António dos Santos Rocha terá tido a perceção da sua importância na instalação de um povoamento primitivo na Pré-história Recente e Proto-história, em torno do maciço calcário da Serra da Boa Viagem. Nesse entendimento inovador, contou com estudos de campo publicados e com colaborações regulares de vários geólogos, incluindo Nery Delgado e Paul Choffat, da Comissão Geológica de Portugal, e Gonçalves Guimarães, lente da Universidade de Coimbra. O primeiro contraiu matrimónio e detinha casa na Figueira da Foz, onde foi autor do primeiro projeto de abastecimento de água, tendo tido bastante influência nos estudos de Santos Rocha sobre o Neolítico. Guimarães, integrou a comissão que legitimou as primeiras descobertas arqueológicas. Choffat estudou os terrenos jurássicos da mina de carvão do Cabo Mondego e da Serra da Boa Viagem, onde se concentravam muitos dos sítios descobertos por Santos Rocha, tendo-o também auxiliado na questão do sílex de Casal Verde. Este relacionamento multifacetado constitui um dos exemplos primordiais mais interessantes de colaboração com geólogos, na historiografia da Arqueologia portuguesa.
The geological nature of a territory is one of the influential factors of human occupation. A close relationship exists between the location of archaeological sites, landscape and geological substrate. The physical area of Figueira da Foz records numerous examples of this connection. António dos Santos Rocha was probably aware of its importance for the Recent Prehistory and Protohistory primitive settlement that was established around the calcareous massif of Serra da Boa Viagem. For this innovative approach, he benefited from published fieldwork studies and regular collaborations with several geologists, including Nery Delgado and Paul Choffat from the Geological Commission of Portugal, and also Gonçalves Guimarães, professor of the University of Coimbra. The first got married and owned a house in Figueira da Foz. He designed the first water supply project for the town and played a significant influence on Santos Rocha’s studies on the Neolithic. Guimarães was a member of the commission that validated the first archaeological discoveries. Choffat studied the Jurassic geology of the Cape Mondego coalmine and the Serra da Boa Viagem massif, where many of the sites discovered by Santos Rocha were located. He also assisted him in the study of the Casal Verde flint. This multifaceted relationship is one of the most interesting early examples of collaboration with geologists in the historiography of Portuguese Archaeology.
Palavras-chave: Envolvente geológica; Matériasprimas; História da Arqueologia; Pré-história Recente; Figueira da Foz (Portugal).
Keywords: Geological framework; Raw materials; History of Archaeology; Late Prehistory; Figueira da Foz (Portugal). 45
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Geologia e Pré-história: uma longa relação A par de condicionantes de ordem geográfica, climática e da disponibilidade de recursos alimentares, a natureza geológica de um território desde sempre constituiu um fator determinante para a ocupação humana. O seu grau de importância é percetível em contextos de diferentes tipologias e cronologias, neles se observando uma relação próxima entre a localização e a repartição espacial dos sítios arqueológicos, e a
sua envolvente geológica. Como principais elementos constituintes dessa ligação, evidenciam-se: (1) o modelado do relevo e a organização do espaço físico (Fig. 1); (2) a composição, espessura e estrutura das unidades litostratigráficas aflorantes; (3) a rede de drenagem e a disponibilidade em recursos hídricos superficiais e subterrâneos; (4) a abundância de recursos minerais suscetíveis de utilização como matérias-primas (Fig. 2) e (5) a suscetibilidade à
Figura 1 - Excerto da carta corográfica da Figueira da Foz, de 1866, baseada em levantamentos geodésicos efetuados pela comissão dirigida por Filipe Folque e que terá servido de base topográfica aos trabalhos de campo de Santos Rocha e Nery Delgado. Fonte: Coleção P. Callapez.
46
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Figura 2 - Esboço litológico do maciço calcário da Serra da Boa Viagem, estuário do Rio Mondego e domínios circundantes, com indicação dos principais tipos de matérias-primas disponíveis localmente e utilizados pelas comunidades pré-históricas. Adaptado de: Carta Geológica de Portugal, esc. 1:50 000, folha 19-C Figueira da Foz. Legenda: 1 - Unidades margosas e calco-margosas (Jurássico Inferior); 2 - Calcários e margas (Jurássico Médio); 3 - Calcários e margas (Jurássico Superior); 4 - Conglomerados arenitos e lutitos vermelhos (Jurássico Superior); 5 - Conglomerados e arenitos grosseiros (Cretácico Inferior); 6 - Calcários e calcários margosos (Cretácico Superior); 7 - Lutitos vermelhos (Cretácico Superior); 8 - Depósitos arenosos (Quaternário); 9 - Cascalheiras de depósito de terraço fluvial (Plistocénico); 10 - Depósitos aluvionares (Holocénico).
ocorrência de eventos geológicos extremos. Consoante a sua conjugação, estes fatores favoreceram ou inibiram a fixação das comunidades humanas, influenciando o seu desenvolvimento material, económico e cultural. O território da Figueira da Foz e os seus registos geológico e arqueológico, este último indissociável da obra pioneira de António dos Santos Rocha (18531910), revelam vários exemplos desta relação. Durante mais de 30 anos de pesquisas, Santos Rocha terá
tido a perceção da importância da geologia local no desenrolar da Pré-história Recente, do Megalitismo e da Proto-história figueirenses, cujas especificidades terão condicionado a instalação de um povoamento primitivo, o qual, ainda que esparso, encontrou caminhos para a sua ruralidade no maciço calcário das serras da Boa Viagem, Alhadas e Castros, e sua envolvente próxima (Fig. 3).
47
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Figura 3 - Panorâmica da frente e cumeada norte do maciço calcário da Serra da Boa Viagem, segundo postal ilustrado de meados do primeiro quartel do séc. XX. Note-se o alcantilado de cornijas calcárias e estratos basculhados para sul e a escassez de coberto arbóreo de grande porte. Foi ao longo desta cumeada que se implantaram parte dos megálitos da Figueira da Foz. Fonte: Coleção P. Callapez.
Ao norte e leste da Figueira, apenas na distancia de dois kilometros, ergue-se uma pittoresca serra, cuja extremidade vai formar, ao oeste, o Cabo Mondego. Entre a povoação das Alhadas e o Cabo segue approximadamente o rumo de LO, e tem n’alguns sitios uma largura não inferior a quatro kilometros. Cortada de valles, que na maior parte se dirigem, formando grandes sinuosidades, para a bacia do Mondego e enseada de Buarcos, são os seus terrenos na vertente meridional geralmente productivos e bem aproveitados para a cultura, o que lhes dá em certos logares um aspecto dos mais aprazíveis. Mas quando nos approximamos das suas mais altas cumiadas, e passamos á vertente do norte, muito menos larga do que a opposta, ahi pelas cercanias de Brenha, grandes massas de rocha estratificada, muito abundantes em fosseis, aparecem por toda a parte á superfície do solo. Entre aquella povoação e o Cabo, sobretudo, há alguns sitios onde estas massas são de tal modo desnudadas, que apresentam um notável aspecto de desolação. Ainda assim n’essas chapadas, onde o solo tem declives menos rápidos, alguns tractos de terreno vegetal, de uma
48
extensão ás vezes considerável, mas de pequena espessura, cobrem as camadas de rocha, e dão logar a diversas culturas, ou formam grandes maninhos, que servem em parte de logradouro aos povos das freguesias vizinhas. É nesta última região, açoutada palas ventanias do norte e empobrecida pelas torrentes pluviais, que se acham os monumentos que em seguida vamos descrever (Rocha, 1888: 11).
A grande mole calcária destas serranias, à época ainda despida do manto florestal plantado sob a égide de Alberto Rey1, desde sempre se impôs na paisagem circundante de terras baixas, como derradeiro contraforte calcário do espaço do Baixo Mondego2, herança da neotectónica alpina e da 1 Do plantio da serra, iniciado extensivamente a partir de 1914, terá resultado alguma destruição furtuita de monumentos megalíticos compreendidos no interior do perímetro florestal. 2 V. p. ex. a carta geológica do Baixo Mondego, da autoria de Soares e Marques, in Almeida et al. (1990), ou ainda a carta geológica à escala 1:50 000, de Rocha et al. (1981).
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Figura 4 - Aspeto das Areias de Lírio expostas em afloramento na sua localidade tipo, a Várzea do Lírio e junto ao sítio clássico de Santos Rocha, de onde provieram os materiais líticos e cerâmicos conservados nos acervos do Museu Municipal da Figueira da Foz. Foto: P. Callapez.
evolução dinâmica da faixa litoral e do estuário durante o Plistocénico e a transgressão flandriana, com consequente colmatação sedimentar por extensos corpos arenosos. As condicionantes favoráveis deste espaço permitiram o sucesso de pequenos grupos durante o Mesolítico, como o da Quinta das Pitanças, atualmente em estudo e por dois de nós descoberto há década e meia, naquilo que é um registo quase inédito deste período para a região. Por outro lado, se admitirmos a “tradição marítima” para o Neolítico Antigo do litoral português, as importantes descobertas de Santos Rocha na Serra da Boa Viagem evidenciam uma relação óbvia com o quadro geomorfológico local, a abundância em água e solos arenosos de fácil sulcar do arado, a menor suscetibilidade a agentes geológicos e a grande disponibilidade em recursos líticos, incluindo argilas vermelhas com qualidade para a confeção de pastas cerâmicas e
materiais siliciosos utilizados na debitagem de utensílios. Em estudo cartográfico recente, no qual se corroborou a exatidão das observações de Santos Rocha e a profundidade do seu trabalho de campo, só possível através de um conhecimento geológico do terreno e de como esta condicionante influenciou a localização dos sítios de ocupação neolíticos, Callapez e Carvalho (2012: 41) definiram as Areias de Lírio (Fig. 4) e mostraram a estreita relação que existe entre esta unidade de cobertura do maciço calcário e os locais descritos, à época, nas Antiguidades Pré-históricas3.
3
V. António dos Santos Rocha, Antiguidades Pré-históricas do Concelho da Figueira: memoria oferecida ao Instituto de Coimbra (1888). Monografia reeditada em 1949.
49
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Figura 5 - António dos Santos Rocha, entre 1879 a 1883 (Vilhena, 1937).
Um aprendiz de arqueólogo (ao som de Paul Dukas) Mais de um século volvido sobre o seu desaparecimento, numa idade madura mas ainda vivaz, em que muito ainda poderia vir a legar a este seu berço fronteiro da Munda, assaz se tem debatido sobre o carácter e a obra de António dos Santos Rocha, por certo um dos mais ilustres e marcantes filhos de sempre da Figueira, detentor de uma notável dimensão intelectual e de uma imensa capacidade empreendedora, com esteios assentes nos anais da 50
Arqueologia e da cultura histórica, da Museologia e do municipalismo, em Portugal (Loureiro, 1910: 73) (Fig. 5). Causídico de profissão, arqueólogo de coração, figueirense de gema, bacharel (saudoso no seu âmago?) dos tempos do Hilário e das trupes de Direito da Academia Coimbrã, eis o Santos Rocha das tardes libertas de afazeres do seu escritório de advocacia, de pronto, ligeiro, serra acima, de colher na sacola, de coup d’oeil atento a vetustos cacos e mamoinhas dissimuladas, ao tinir de finas lâminas de sílex retocadas por tetravós de antanho. A sua principal biografia, bastante documentada e corrida ao sabor da pena douta e letrada de Henrique Vilhena (Vilhena, 1937), detalha, deste modo, a essência de um ente multifacetado e de sensibilidade inata, a que outro percurso paralelo, outra vida menos fugaz, não escaparia por certo a um doutoramento na vetusta Universidade de Coimbra, talvez, quem sabe, se na Faculdade de Filosofia Natural e versado em Mineralogia e Geologia, para que o Instituto recebesse de braços abertos mais um dos seus Lentes, douto e insigne de saberes sobre as rochas da Figueira e as medalhas petrificadas dos seus primeiros habitantes. Certo é que, bacharel em Leis, dos bons, ou mesmo o mais ínclito de todos os que, ao tempo, exerciam na praça, como o demonstram o seu papel na questão das águas4, ou ainda os seus contributos na esfera municipal e comercial5, Santos Rocha poderia ter-se ficado pela pacatez de uma carreira aliciante e bem remunerada, fomentadora de um estatuto social elevado na burguesia figueirense. Bons auspícios faziam antever tal tendência, como 4 António dos Santos Rocha, Questão d’aguas. Contra-minuta d’appellação
offerecida por parte da Sociedade anonyma The Anglo-Portuguese Gaz and Water Company Limited na causa em que são auctores e appellantes Antonio de Lemos e outros (1891); Veja-se, também, Brandão e Callapez (2017) para a compreensão de todo este processo.
5 Santos Rocha foi Vereador do Município da Figueira da Foz entre 1877-1878 e seu Presidente entre 1878-1880 e 1902-1904. Foi ainda Provedor da Santa Casa da Misericórdia, entre 1878 e 1881 e Secretário e Presidente da Associação Comercial Figueirense, entre 1889 e 1891 (Loureiro, 1910).
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
a escrita ainda precoce de um espesso volume sobre a décima de juros, corria o longínquo ano de 1873 (Rocha, 1873). Mas Santos Rocha não era um espírito quedado, indiferente ao dilatado cenário natural da terra do Abade Pedro, onde o Mondego se espraiava frente à longa ossatura calcária de uma serra despida, entre arrozais e salinas, dunas de areia dourada e o mar, sempre o mar, que bafeja com a sua salsugem o bulício dos figueirenses. Como é natural dos espíritos vivazes, inteligentes e argutos, não terá sido indiferente a questões existenciais – àquelas que se mascaram por detrás do passado, resistindo ao apagar do tempo e esperando quem sinta o apelo de […] investigar os archivos do mundo, extrahir das entranhas da Terra os antigos monumentos […]6. Pudéssemos, assim, recriar os seus pensamentos: – Onde e como nasceu esta minha terra?... e os seus homens de logo após a Criação, que arrancavam à aspereza do clima e à dureza das pedras a provação das suas pobres existências?
Ainda algo leigo em cousas doutas dos volumosos tratados de Mortillet7, mas bastante culto e capaz de assimilar o que na época se escrevia sobre a Préhistória do território e a sua inevitável relação com o espaço físico e a sua envolvente geológica, Santos Rocha não terá ficado indiferente aos contributos de vultos como Carlos Ribeiro (1813-1882), Pereira da Costa (1809-1889), Estácio da Veiga (1828-1891), Martins Sarmento (1833-1899) e Nery Delgado (1835-1908) (Fig. 6), pioneiros da Geologia e da Arqueologia em Portugal que nos deram a conhecer, 6 Parafraseia-se aqui Georges-Louis Leclerc, Conde de Buffon (17071788), na introdução das suas Épocas da Natureza: […] na História Natural se faz necessário investigar os archivos do mundo, extrahir das entranhas da Terra os antigos monumentos, congregar suas ruínas, e encorporar em provas todos os indícios das vicissitudes physicas, que nos podem fazer remontar às diversas idades da naturesa» […] (tradução portuguesa de 1837). 7 Gabriel de Mortillet (1821-1898) foi um dos mais influentes arqueólogos franceses da época, contribuindo significativamente para o conhecimento da Pré-história de França e para o estabelecimento de subdivisões cronológicas, ainda hoje, em parte, seguidas internacionalmente.
Figura 6 - Joaquim Filipe da Encarnação Nery Delgado, diretor da Comissão Geológica do Reino, geólogo, engenheiro e arqueólogo, um dos mais ilustres homens de ciência filhos da Regeneração (Choffat, 1909a).
através de um excecional conjunto de estudos e trabalhos monográficos, o tangível e intangível da Pré-história e Proto-história portuguesas, por entre estações humanas, algumas dos alvores da ocupação do território, grutas-necrópole, concheiros, antas e citânias. Ao âmago de Santos Rocha não terão ainda sido estranhos grandes eventos e polémicas da época, como o IX Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-históricas, decorrido em Lisboa, em 1880, com forte impacte mediático, ou a questão dos eólitos da Ota e do homem do Terciário, a que Carlos Ribeiro ligou o seu nome. 51
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Desde os ecos e repercussões da Regeneração que a Comissão Geológica do Reino vinha fazendo o seu trabalho, no sentido do reconhecimento da Geologia e dos recursos naturais do país, através da cartografia e da recolha exaustiva de coleções de minerais, rochas e fósseis, representativas da estratigrafia, petrologia e depósitos minerais do território8. A este esforço liderado por Carlos Ribeiro e, após o seu falecimento em 1882, por Nery Delgado, juntou-se o conhecimento da Geologia do Quaternário e da Arqueologia Pré-histórica. Quiseram as singularidades do destino que estes dois atores, determinantes no processo de influência vocacional de gerações de arqueólogos e geólogos portugueses, ligassem algo das suas vivências à Figueira da Foz, ambos o fazendo por casamento e através de convergências do seu trabalho como geólogos e engenheiros, o primeiro em torno da mina de carvão do Cabo Mondego9 e o segundo com relação a trabalhos de hidráulica no vale do Mondego10. Fruto magritiano da objetividade do acaso, ou feliz coincidência do percurso de dois homens notáveis de uma geração que contribuiu significativamente para o progresso científico e modernização do país, certo é que Santos Rocha e Delgado se conheceram e privaram, através de uma nutrida admiração mútua, em que a personalidade, dimensão intelectual e sapiência do grande geólogo, engenheiro e pioneiro 8 Na esteira de Delgado (1883-1887) sucederam-se diversos ensaios sobre a história da Comissão Geológica e o papel desempenhado pelos seus principais atores. Citam-se, entre estes: Choffat (1883), Delgado (1905), Simões (1919-22, 1923), Fleury (1920), Costa (1941-42), Assunção (1979), Rocha e Kullberg (2010) e Brandão (2009). 9
A atividade de Ribeiro no Cabo Mondego deve ser vista na esteira da sua colaboração com Daniel Sharpe (1806-1856) e culmina na importante monografia de 1858 sobre as minas de carvão dos distritos de Leiria e Coimbra. Veja-se Choffat (1883, 1891) sobre a vida de Ribeiro e esta sua obra, em particular.
10
V. Choffat, 1908, 1909a, 1909b, com extensas biografias sobre a vida e obra de Delgado.
52
de Cesareda e da Furninha, terão constituído motivo íntimo de culto para o arqueólogo figueirense. Quizemos por essa ocasião, como era nosso dever, entregar-lhe o proseguimento dos trabalhos; mas, com inexcedivel delicadeza, recusou-se a acceital-o, levando a sua afabilidade ao extremo de nos oferecer o seu precioso auxilio; de que, por mais de uma vez, nos valemos, sobretudo na classificação das rochas e na organização de algumas plantas dos principaes monumentos, que nos foram feitas pela própria comissão, e em diversas noções geológicas, ou propriamente archeologicas, que o ex.mo sr. Nery Delgado se dignou fornecer-nos. (Rocha, 1888: VI-VII).
Certo é que, por entre conselhos, leituras, visitas de campo e viagens à Andaluzia e ao Algarve, à época locais distantes e de percursos morosos, para além de uma crescente experiência de campo baseada na observação meticulosa de contextos arqueológicos e geológicos, o aprendiz acabou por se tornar mestre e merecer o reconhecimento de todos.
A caleche dos lentes e a bênção dos juízes Numa época de descobertas pioneiras, em que a noção de arqueólogo como especialização profissional ainda se encontrava em fase embrionária, eis que Santos Rocha cuidou de fundamentar a veracidade das suas descobertas, observações e escritos minuciosos, através da bênção in loco de uma comissão de especialistas capazes de se deslocarem ao campo e, qual São Tomé, de corroborarem factos científicos… ou eventuais devaneios de um bacharel, bastante versado nas desavenças dos homens do seu tempo, mas ainda sem créditos firmados nas recônditas convivências dos seus tetravós. Para esse propósito, informou a direção do Instituto, ao tempo a instituição prestigiada, detentora de saberes e coleções, que fazia as vezes de “Academia das Ciências” pelas terras de Coimbra, longe do bulício da capital. Proseguindo nas investigações, obtivemos pouco depois algumas das pedras de raio achadas nas circunvizinhanças de Brenha, Cabanas e Quiaios, e ao mesmo tempo fomos, pelas chapadas septentrionais da serra, descobrindo
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
successivamente os megalithos do Cabeço dos Moinhos, da Serra de Brenha e das Carniçosas, servindo-nos de indicadores não só os montículos de terra ou mammoinhas, mas os topos das lages e a circumstancia de estas não serem da localidade. Para obtermos a plena certeza de que não nos illudiamos, encetámos as explorações; e logo os resultados confirmaram todas as indicações que havíamos alcançado. Assim estávamos, realmente, em face de monumentos erguidos pelos nossos antepassados de há mais de seis mil annos! Communicámos então o acontecimento ao Instituto, de Coimbra, que, pela secção de archeologia, nomeou uma commissão, composta dos ex.mos srs. Adolpho Ferreira de Loureiro, drs. Antonio José Gonçalves Guimarães e Henrique Teixeira Bastos, e Luiz Augusto Pereira Bastos, a fim de fazer os necessários estudos sobre os monumentos descobertos. Esta commissão, acompanhada do ex.mo sr. Joaquim Phillipe Nery Delgado e de outros cavalheiros, tomando conhecimento dos nossos humildes trabalhos, examinou os objectos que havíamos colleccionado, e visitou todos os monumentos, presidindo á exploração de parte da galeria da anta das Carniçosas, da anta da Serra de Brenha e parte da Cumieira.
Eis os ingredientes (Fig. 7 e Fig. 8) de uma viagem pitoresca, uma oportunidade de libertação temporária do bafio da Alta de Coimbra, qual simulacro de expedição científica, como a sua contemporânea à Serra da Estrela11. Imaginemos a caleche dos lentes, ligeira serra acima, não a que Figura 7 - Representação original do dólmen das Carniçosas, conforme décadas antes se dirigia ao beija-mão de Lisboa e desenhos efetuados com a colaboração do Instituto, após a visita da acabou, afinal, emboscada numa azinhaga, com comissão convidada ao local por Santos Rocha (Rocha, 1888, fig. 5). consequências nefastas para a universidade12. Depois, afinal, uns bons petiscos, uma boa merenda, a certo, pleno de confiança e reconhecido pelos seus famigerada broa das Alhadas, e eis que Santos Rocha pares. Entre estes os geólogos, sempre os geólogos… regressa ao lar, já pelo crepúsculo, satisfeito por não apenas Delgado, mas também António José Gonçalves Guimarães (1850-1919), o insigne lente 11 Na época ficou famosa a expedição científica à Serra da Estrela, de Coimbra, Diretor do Museu Mineralógico da em 1881, como que se de algo longínquo e perigoso se tratasse. Faculdade de Filosofia Natural, especialista em Dos vários estudos então levados a prelo, Martins Sarmento (1883) Mineralogia e Cristalografia, professor de grego, ficou encarregue da “Secção de Archeologia”. 12 Este episódio, tão trágico como tradutor dos ódios que o pedagogo e autor de manuais escolares13 (Fig. 9). Liberalismo e Absolutismo suscitaram na sociedade da época, foi abordado pelo grande Camilo na sua novela “Retrato de Ricardina”. Recorde-se que o mesmo Camilo Castelo Branco escreveu uma outra, deliciosamente pitoresca, sobre os amores de juventude de Carlos Ribeiro.
13
V. Carvalho, 1942 e Ferreira, 1986, 1998, para uma biografia deste notável lente de Coimbra e para um entendimento do seu papel no ensino e museologia em Portugal do último quartel de novecentos.
53
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Figura 8 - Aspeto da Sala de Arqueologia Pré-histórica do Museu Municipal, na sua primitiva localização no edifício dos Paços do Concelho da Figueira da Foz, segundo postal ilustrado de meados do séc. XX, vendo-se algumas das vitrinas com peças recolhidas por Santos Rocha, no decurso das suas pesquisas nos megálitos e em Santa Olaia. Fonte: Coleção P. Callapez.
54
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
O caso do sílex negro A proveniência das matérias-primas de natureza geológica utilizadas na confeção de artefactos, desde cedo constituiu uma preocupação manifesta por parte de Santos Rocha. De origem local, regional, dentro do espaço do Baixo Mondego e orla sedimentar a ele adjacente, ou mesmo tradutora de locais de extração mais longínquos e, como tal, suscetíveis a uma rede de comunicações e intercâmbios entre as comunidades locais e o hinterland beirão, esta diversidade de matériasprimas reflete a complexidade geológica regional e, para o seu entendimento, implica saberes na esfera do geólogo. Talvez um dos exemplos mais interessantes com que Santos Rocha se deparou, comparável ao que, mais tarde, seria a descoberta das galerias mineiras de exploração do sílex cenomaniano de Campolide14, constituiu o achamento de uma outra jazida, entre Paião e Alqueidão, nas formações cenozoicas do lado sul do concelho (Fig. 10). Para a sua caracterização, recorreu Santos Rocha a Delgado e a Paul Choffat (1849-1919), sobretudo a este último, que já trabalhava na geologia figueirense desde há quase uma década (Fig. 11). Na mesma freguesia do Paião, junto ao Casal Verde, em prédio de Antonio Secco, sobranceiro ao Campo, reconhecemos a existência d’uma pedreira de sílex. Tendo recolhido alguns fragmentos, que mostrámos ao ilustre geólogo sr. Nery Delgado, pedimos a este cavalheiro que nos fizesse classificar o jazigo; e por sua intervenção o sr. Paul Choffat visitou o sítio, e apresentou as indicações que transcrevemos textualmente. […] (Rocha, 1888: 232). 14 O sílex cinzento de Monsanto e de Campolide foi amplamente utilizado durante a Pré-história, como o demonstram numerosos sítios, hoje em parte destruídos pelo crescimento urbano de Lisboa, mas de que são excelente exemplo os do Bairro da Serafina, com abundante debitagem de cronologia Musteriense. Esta matériaprima também seria extraída em galerias descobertas aquando da abertura do túnel do Rossio (Choffat, 1889), naquele que constitui exemplo singular em Portugal de exploração subterrânea préhistórica destes materiais.
Figura 9 - Retrato de António José Gonçalves Guimarães, lente da Faculdade de Filosofia Natural da Universidade de Coimbra, mineralogista, filologista de Grego e pedagogo. Fonte: DCT/FCTUC.
As observações de Choffat, numa visita que se subentende ter efetuado na companhia de Santos Rocha, foram por ele reproduzidas nas Antiguidades Pré-históricas e, um pouco mais tarde, já em 1900, na extensa monografia que este primeiro autor dedicou ao Sistema Cretácico de Portugal15.
15 Foi este um dos principais trabalhos do geólogo suíço, colaborador
de Delgado e da Comissão Geológica desde a sua vinda para Portugal, a convite de Ribeiro, em que a Geologia e a Paleontologia da Figueira da Foz foram focadas e se revestiram de importância internacionalmente. Alguns dos materiais então recolhidos, encontramse hoje conservados, por exemplo, no “Museu de Paris”.
55
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
A
B
Figura 10 - A jazida de sílex de Casal Verde, na Freguesia de Paião, Figueira da Foz, reportada por Santos Rocha e Choffat: A - Detalhe de amostra de sílex negro, proveniente da jazida; B - Panorâmica dos campos de Casal Verde. Fotos: P. Callapez.
56
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
ce qui est aussi le cas en montant vers le signal. Les silex n’occupent donc qu’un espace restreint, aussi bien dans le sens vertical que dans le sens horizontal. La masse silicieuse imprègne le grès et forme, en outre, des concrétions ne présentant que la silice. Ces dernières sont fort irrégulières, vacuolaires, fragiles; l’intérieur; c’est-à-dire la partie la plus compacte, est généralement noire, par places rouge violacé et jaune miel, l’extérieur, blanc, est en partie formé par de la calcédonie e de l’opale. Je n’ai pas vu de morceaux assez grands et assez réguliers pour avoir pu servir à la fabrication des instruments préhistoriques, je crois du reste ce silex trop fragile pour servir à la taille. […] (Choffat, 1900: 261-262).
Concretizou-se, desta forma, mais uma intricada colaboração entre o arqueólogo e o geólogo, ambos dedicados ao estudo do mesmo território, embora sob perspetivas diferentes. Na realidade, o sílex negro de Casal Verde apenas ocorre de forma pontual em contextos do Neolítico da Serra da Boa Viagem, como Santos Rocha oportunamente reconheceu, tendo sido preterido em detrimento do de Verride e Cantanhede, ou ainda do sílex vermelho da Carpalhosa e Nazaré, conforme se pode deduzir do estudo da debitagem em sílex proveniente das estações neolíticas da Figueira da Foz (Fig. 12). Figura 11 - Paul Léon Choffat, notável geólogo suíço, colaborador de longa data da Comissão Geológica de Portugal e de Nery Delgado (Fleury, 1920).
L’extrémité N. O. du grand affleurement de Vinhada-Rainha, c’est-à-dire la partie située au N. O. de la voie ferrée, ne présente rien qui soit digne de mention, si ce n’est un gisement de silex résinite se trouvant à 2 kilométres au N. E. de Paião, gisement qui m’a été signalé par M. le Dr. Antonio dos Santos Rocha. A 200 mètres au N. N. O. du signal géodésique de Facho (Casal Verde), au lieu-dit Acoelha ou Pedreiras, est située une petite barraque en pisé, au pied de laquelle se trouvent des tas de silex provenant du sol avoisinant et surtout des fondations de la maisonnette, tandis que le sol qui la sépare du talweg situé 15 mètres au-dessous, est formé par un gravier argileux ne contenant pas de silex,
Perspetivas e carências de uma longa relação Finda a época de Santos Rocha e os tempos áureos da Comissão Geológica de Ribeiro, Delgado e Choffat, a Figueira seguiu profícua com a sua geologia e os seus geólogos. Nela viria a nascer João Carrington da Costa (1891-1982), professor, lente e sucessor de Delgado no estudo do Paleozoico português. Também a continuidade da mina de carvão do Cabo Mondego e da fileira industrial a ela associada (Brandão et al., 2016) motivaram o contributo de outros vultos importantes das Ciências da Terra, como foi o caso do professor do Instituto Superior Técnico Ernest Fleury (1878-1958) (Aires-Barros, 2008)
57
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
e, mais tarde, já durante as décadas de 1950 e 1960, de investigadores franceses dedicados ao estudo do Mesozoico e dos riquíssimos acervos paleontológicos de um concelho em que os fósseis mesozoicos são particularmente abundantes16. Com repercussões mais diretas para a Arqueologia, salientam-se ainda as contribuições de António Ferreira Soares e de António Campar de Almeida, ambos professores da Universidade de Coimbra, cujos estudos de Geomorfologia e de Geologia do Quaternário muito contribuíram para a caracterização da envolvente da Pré-história figueirense, reavivando a longa ligação com a escola de Coimbra, que se começou a firmar ao tempo de Santos Rocha17. Não obstante esta realidade gritante, o Museu Municipal Santos Rocha nunca enveredou, verdadeiramente, por desempenhar um papel como repositório da importante diversidade de minerais, rochas e fósseis que caracterizam a geologia do concelho e da região do Baixo Mondego, cujos materiais se encontram dispersos por outros locais e em coleções, nem sempre contextualizadas e acessíveis a investigadores, às escolas e ao público em geral. Por fim, a dimensão do contributo de Nery Delgado para o conhecimento científico e progresso da Figueira da Foz também deveria merecer uma justa homenagem, através, por exemplo, da ligação do seu nome à toponímia figueirense, à imagem de três outras ruas e de uma praceta já existentes no espaço urbano e com menção a vultos da Geologia: Carlos Ribeiro, Paul Choffat e Carrington da Costa18. 16
Para uma bibliogafia detalhada consulte-se Rocha et al., 1981.
17
Para uma bibliogafia detalhada veja-se, por exemplo, Almeida et al., 1990. 18 V. Callapez e Pinto, 2005. A Figueira da Foz presta justo tributo aos geólogos portugueses com ligação à Figueira da Foz, entre os quais o Professor João Carrígton da Costa, por nascimento, homenageado numa rua e numa travessa. Para quando Nery Delgado?
58
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Figura 12 - Proveniência e fontes geológicas locais e regionais de rochas siliciosas (sílex, cherte) disponíveis para as comunidades neolíticas do maciço calcário da Serra da Boa Viagem, Serra das Alhadas e Serra de Castros: 1 - Clastos de cherte cinzento do Jurássico Superior da Formação de Boa Viagem; 2 - Clastos de sílex dos conglomerados paleogénicos de Queridas; 3 - Rognons de formações carbonatadas marinhas do Jurássico Médio de Outil; 4 - Chertes de unidades pré-câmbricas e paleozoicas do Maciço Hespérico; 5 - Sílex dos conglomerados silicificados paleogénicos da base da Formação de Bom Sucesso; 6 - Rognons do Jurássico Médio de Sicó; 7 - Rognons do Jurássico Médio de Verride; 8 - Sílex do Casal Verde, Paião; 9 - Silicificações vermelhas do Souto da Carpalhosa; 10 - Leitos de sílex vermelho do Cretácico Superior da Nazaré; 11 - Clastos vermelhos dos conglomerados heterolíticos do Cretácico terminal do Sítio da Nazaré e da Praia Norte. Adaptado de: Carta Geológica de Portugal à escala 1:500 000, 5.ª edição, 1992, Serviços Geológicos de Portugal.
59
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Agradecimentos Trabalho realizado no âmbito do Projeto HISTIGUC (ref. FCT: PTDC.FER-HFC.30666), do CITEUC - Centro de investigação da Terra e do Espaço (financiado por fundos nacionais, através da FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia (Projeto: UID/Multi/00611/2013) e do FEDER - Fundo de Desenvolvimento Regional Europeu através do COMPETE 2020 - Programa Operacional de Competitividade e Internacionalização (projeto: POCI-01-0145-FEDER-006922) e do CGeo (com apoio financeiro da FCT-MEC através de fundos nacionais e, quando aplicável cofinanciado pelo FEDER no âmbito da parceria PT2020, através dos projetos de investigação UID/Multi/00073/2013 e OE/CTE/UI0073/2011 e 2014).
Referências bibliográficas AIRES-BARROS, Luís (2008). Evocação de Ernest Fleury no cinquentenário da sua morte. Lisboa: Academia das Ciências. ALMEIDA, António Campar de et al. (1990). Proémio ao estudo do Baixo Mondego. Biblos, 66, pp. 17-47. ALMEIDA, Francisco Moitinho de e CARVALHOSA, António de Barros e (1974). Breve história dos Serviços Geológicos em Portugal. Comunicações dos Serviços Geológicos de Portugal, 68, pp. 239-265.
BRANDÃO, José Manuel; CALLAPEZ, Pedro Miguel e PINTO, José Soares (2016). O Couto Mineiro do Cabo Mondego e o contributo técnico de Ernest Fleury (1878-1958) na indústria extrativa e cimenteira locais. Um relatório geológico inédito de 1923. Revista de História da Sociedade e da Cultura, 16, pp. 343-367. BUFFON, Conde de (1837). As Épocas da Naturesa, obra do Conde de Buffon, transladadas em linguagem portugueza por João Antonio dos Santos com uma introdução do traductor. Lisboa: Imprensa de Candido Antonio da Silva Carvalho. CALLAPEZ, Pedro Miguel e CARVALHO, Miguel de (2012). Contributos da envolvente geológica para o povoamento da Serra da Boa Viagem durante a Pré-história Recente. In VILAÇA, Raquel e PINTO, Sónia (eds.). Santos Rocha, Arqueologia e a Sociedade do seu Tempo. Figueira da Foz: Casino da Figueira. CALLAPEZ, Pedro Miguel e PINTO, José Soares (2005). Carlos Ribeiro, Léon Paul Choffat e João Carrington da Costa – vultos da Geologia portuguesa homenageados na toponímia figueirense. Litorais, Revista de estudos figueirenses, 2, pp. 21-32. CARVALHO, Anselmo Ferraz (1942). Doutor Gonçalves Guimarães. O Instituto, 100, pp. 696-703. CHOFFAT, Paul (1883). Notice nécrologique sur Carlos Ribeiro. Bulletin da la Société Géologique de France, 3éme Série, 11, pp. 321-329. CHOFFAT, Paul (1889). Étude géologique du tunnel du Rocio: contribution à la connaissance du sous-sol de Lisbonne. Lisbonne: Commission des Travaux Géologiques du Portugal.
ASSUNÇÃO, Carlos Fernando Torre de (1979). Alguns aspectos das Geociências no quadro da cultura Setecentista e Oitocentista. Comunicações dos Serviços Geológicos de Portugal, 66, pp. 3-16.
CHOFFAT, Paul (1891). Memorias de Carlos Ribeiro sobre os Carvões dos Terrenos Mesozoicos do Districto de Leiria e suas vizinhanças. Revista de Obras Publicas e Minas, 22, 262/264, pp. 257-272.
BRANDÃO, José Manuel (2009). Museu Geológico: lugar de memórias históricas e científicas. Actas do I Seminário de Investigação em Museologia dos Países de Língua Portuguesa e Espanhola. Porto, 12-14 de outubro de 2009, pp. 164-174.
CHOFFAT, Paul (1900). Recueil de monographies stratigraphiques sur le Système Crétacique du Portugal, Deuxième étude, Le Crétacé supérieur au Nord du Tage. Lisbonne: Direction des Services Géologiques du Portugal.
BRANDÃO, José Manuel e CALLAPEZ, Pedro Miguel (2017). O abastecimento de água à Figueira da Foz em finais de Oitocentos. Comodidade e modernidade. Figueira da Foz: Município da Figueira da Foz.
CHOFFAT, Paul (1908). Notice nécrologique sur J. F. Nery Delgado. Extrait du Jornal de Sciences Mathematicas, Physicas e Naturaes, 2éme Série, 7 (28).
60
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
CHOFFAT, Paul (1909a). La géologie portugaise et l’œuvre de Nery Delgado. Bulletin de la Société Portugaise de Sciences Naturelles, 3 (supl. 1). CHOFFAT, Paul (1909b). Notice Nécrologique sur J. F. Nery Delgado (1835-1908). Communicações da Commissão do Serviço Geologico de Portugal, 7, pp. VI-XXI. COSTA, João Carríngton da (1941-1942). Do conhecimento geológico de Portugal Continental. Anais da Faculdade de Ciências do Porto, 26: pp. 206-229; 27: pp. 23-38 e pp. 75-88. DELGADO, Joaquim Filipe Nery (1883-1887). Considerações acerca dos estudos geológicos em Portugal. Communicações da Secção de Trabalhos Geológicos, 1, pp. 1-13. DELGADO, Joaquim Filipe Nery (1905). Elogio Historico do General Carlos Ribeiro. Revista de Obras Publicas e Minas, 36, 421/423, pp. 1-44. FERREIRA, Martim Ramiro Portugal (1986). A Mineralogia em Portugal no Séc. XIX: História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal, II Centenário da Academia das Ciências de Lisboa. Memórias da Academias das Ciências de Lisboa, 27, pp. 666-709. FERREIRA, Martim Ramiro Portugal (1998). 200 anos de Mineralogia e Arte de Minas: desde a Faculdade de Filosofia (1772) até à Faculdade de Ciências e Tecnologia (1972). Coimbra: Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. FLEURY, Ernest (1920). Une phase brillante de la Géologie portugaise, Paul Choffat. Memórias da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, 3 (1920), pp. 1-53. LOUREIRO, Adolpho (1910). Dr. Antonio dos Santos Rocha. Boletim da Associação dos Archeologos Portuguezes, série 5, 12(2), pp. 73-86. RIBEIRO, Carlos (1858). Memórias sobre as minas de carvão dos districtos do Porto e Coimbra, e de carvão e ferro do districto de Leiria. Vol. I, parte II. Lisboa: Academia Real das Sciencias. ROCHA, António dos Santos (1873). A decima de juros. Estudo pratico das leis que regem este imposto, com a indicação e analyse critica das decisões dos tribunaes e do ministerio da fazenda, com um formulario de reclamações, recursos e todos os mais actos dos processos do manifesto, e do lançamento. Coimbra: Imprensa da Universidade.
ROCHA, António dos Santos (1891). Questão d’aguas. Contraminuta d’appellação offerecida por parte da Sociedade anonyma The Anglo-Portuguese Gaz and Water Company Limited na causa em que são auctores e appellantes Antonio de Lemos e outros. Figueira da Foz: Casa Minerva. ROCHA, António dos Santos (1949). Memórias e Explorações Arqueológicas. Vol. I - Antiguidades Pré-históricas do Concelho da Figueira da Foz (2.ª Edição). Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis. ROCHA, António dos Santos (1971). Memórias e Explorações Arqueológicas. Vol. II - Estações Pré-Romanas da Idade do Ferro nas visinhanças da Figueira (2.ª Edição). Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis. ROCHA, António dos Santos (1975). Memórias e Explorações Arqueológicas. Vol. III - Memórias sobre a Antiguidade (2.ª Edição). Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis. ROCHA, Rogério Bordalo da et al. (1981). Carta Geológica de Portugal na escala de 1:50 000. Notícia explicativa da folha 19-C, Figueira da Foz. Lisboa: Serviços Geológicos de Portugal. ROCHA, Rogério Bordalo da e KULLBERG, José Carlos (2008). Paul Léon Choffat: uma vida dedicada à Ciência. In PAIS, João José Cardoso; ROCHA, Rogério Bordalo da e KULLBERG, José Carlos (eds.). Paul Choffat na geologia portuguesa. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação, pp. 23-44. SARMENTO, Francisco Martins (1883). Expedição scientifica à Serra da Estrela em 1881: secção de Arqueologia. Lisboa: Imprensa Nacional. SIMÕES, Jorge de Macedo de Oliveira (1919-22). Biografia de geólogos portugueses. Léon Paul Choffat (1849-1919); J. C. Berkeley Cotter (1845-1919). Comunicações dos Serviços Geológicos de Portugal, 13, pp. V-XVI. SIMÕES, Jorge de Macedo de Oliveira (1923). Os Serviços Geológicos em Portugal. Comunicações dos Serviços Geológicos de Portugal, 14, pp. 5-123. VILHENA, Henrique (1937). O Dr. António dos Santos Rocha (elogio, notas bibliografia de S.R.). Lisboa: Edição do autor.
ROCHA, António dos Santos (1888). Antiguidades Pré-históricas do Concelho da Figueira: memoria oferecida ao Instituto de Coimbra. Coimbra: Imprensa da Universidade.
61
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Entre cortesia e partilha científica: as moldagens arqueológicas oferecidas por Nery Delgado ao Museu Municipal da Figueira da Foz (1894) Between courtesy and scientific sharing: the archaelogical casts offered by Nery Delgado to the Figueira da Foz Municipal Museum (1894) José Manuel Brandão1
1Universidade NOVA de Lisboa, HTC-História, territórios, comunidades, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/CEF |
jbrandao@fcsh.unl.pt
62
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
Este texto discute o significado e valor de uma coleção de moldagens em gesso de peças arqueológicas recolhidas pelos membros da Comissão Geológica, oferecida por Nery Delgado ao Museu Municipal da Figueira da Foz, aquando da sua inauguração. Encomendada a um formador da Academia de Belas-Artes de Lisboa, essa coleção, foi incorporada por Santos Rocha na “exposição permanente” do museu, representando as indústrias neolíticas de outros arqueossítios portugueses.
This text discusses the meaning and value of a collection of plaster casts of archaeological artifacts collected by the members of the Geological Commission, offered by Nery Delgado to the Figueira da Foz Municipal Museum upon its inauguration. Ordered to a moulder from the Lisbon Academy of Fine Arts, this collection was promptly incorporated by Santos Rocha into the museum’s exhibition representing the Neolithic industries of other Portuguese archaeological sites.
Palavras-chave: Nery Delgado; Santos Rocha; Museu; Moldagens; Figueira da Foz.
Keywords: Nery Delgado; Santos Rocha; Museum; Plaster casts; Figueira da Foz. 63
ENTRE CORTESIA E PARTILHA CIENTÍFICA: AS MOLDAGENS ARQUEOLÓGICAS OFERECIDAS POR NERY DELGADO AO MUSEU MUNICIPAL DA FIGUEIRA DA FOZ (1894)
Introdução António dos Santos Rocha (1853-1910), causídico, político e arqueólogo, é uma das figuras marcantes dos anos em que a Arqueologia portuguesa se afirmava, na senda dos trabalhos pioneiros dos membros da Comissão Geológica do Reino1, e da reunião em Lisboa, em 1880, da IX Sessão do Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-Históricas. A sua produção científica e papel enquanto promotor e diretor do Museu Municipal da Figueira da Foz e fundador da Sociedade Arqueológica da Figueira, têm sido exaustivamente abordados por diversos autores. Igualmente conhecido é, também, o seu universo de relações de trabalho e cumplicidades científicas, entre as quais avulta Joaquim Filipe Nery Delgado (1835-1908), engenheiro, geólogo e diretor da Comissão Geológica. Enquanto colaborador do museu, personalidade prestigiada da sociedade figueirense e amigo pessoal de Santos Rocha, Delgado foi convidado para a cerimónia de inauguração (Fig. 1), um ato cujo significado cultural e científico ultrapassava em muito o horizonte regional, embora não tivesse merecido grande relevo na imprensa diária. Não obstante o tardio convite, fez questão de estar presente, sublinhando o evento com a oferta de uma coleção de réplicas em gesso de peças arqueológicas do acervo da Comissão, um gesto de consolidação das (boas) relações pessoais e institucionais. Prontamente incorporada por Santos Rocha no acervo do museu e referida no Catálogo, foi mencionada por Vale e Sousa (1896) e por Belchior Cruz (1896); desde então não parece ter merecido atenção de maior e, só mais recentemente, é João Luís Cardoso (2012), que a refere brevemente. Menor visibilidade tiveram as respetivas matrizes, esquecidas por entre o acervo do Museu Geológico do Laboratório Nacional de Energia e Geologia 1 Embora a Comissão Geológica tenha mudado diversas vezes a sua designação, será aqui referida, apenas com esta designação ou Comissão.
64
(LNEG), herdeiro dos materiais coligidos pela antiga Comissão. Se bem que a oferta e permuta de coleções entre instituições fosse uma prática corrente à época, o gesto de Delgado legitima a presunção de que tal oferta tenha sido, sobretudo, um gesto de cortesia, sem descartar, porém, a possibilidade dessas peças poderem corresponder a um pedido de Santos Rocha tardiamente correspondido, relacionado com os estudos arqueológicos que há anos vinha desenvolvendo nas imediações da Figueira Foz. Volvidos mais de 120 anos sobre a generosa oferenda, e não tendo sido encontrada documentação que permita juízos avisados, resta-nos contextualizar o gesto e identificar as peças, recordando o seu significado científico e cultural.
Delgado e Rocha: “uma certa intimidade cultural ” O conhecimento de Delgado e Santos Rocha data, possivelmente, do período em que o primeiro, contratado pela edilidade, esboçou e acompanhou as obras para abastecimento de água à (ainda) Vila da Figueira da Foz do Mondego, um trabalho lançado durante o primeiro mandato do segundo como presidente da Câmara (1878-1880), e por ele posteriormente acompanhado enquanto advogado da concessionária daquele serviço (Brandão e Callapez, 2017). Uma aproximação porventura mediada pelo engenheiro Adolfo Loureiro (1836-1911) que privava com a família do ilustre figueirense (Loureiro, 1910: 73), e sob cuja orientação Delgado trabalhara nas obras de encanamento das águas do Mondego. As relações científicas de ambos, glosadas por Henrique Vilhena (1937: 53) como expressão de “uma certa intimidade cultural”, plasmaramse no acompanhamento que Delgado prestou ao arqueólogo, aquando dos seus primeiros trabalhos na Serra da Brenha, em 1886, visitados com os membros da comissão nomeada pelo Instituto de Coimbra
ENTRE CORTESIA E PARTILHA CIENTÍFICA: AS MOLDAGENS ARQUEOLÓGICAS OFERECIDAS POR NERY DELGADO AO MUSEU MUNICIPAL DA FIGUEIRA DA FOZ (1894)
Frente
Verso
Figura 1 - Convite para a inauguração do museu (frente e verso). A nota a lápis, no rosto, indica a reexpedição do telegrama para a residência de Delgado, em Lisboa. Cortesia LNEG/AHGM.
65
ENTRE CORTESIA E PARTILHA CIENTÍFICA: AS MOLDAGENS ARQUEOLÓGICAS OFERECIDAS POR NERY DELGADO AO MUSEU MUNICIPAL DA FIGUEIRA DA FOZ (1894)
a quem Santos Rocha pedira apoio, ajudando-o na determinação das litologias das peças exumadas (Rocha, 1949). Todavia não deve esquecer-se que o relacionamento de ambos devia decorrer também na esfera privada, já que Delgado era casado com uma figueirense, mantendo residência no Bairro Novo, ainda que intermitente, e frequentando, certamente, os mesmos círculos sociais. Reconhecendo Nery Delgado como autor de algumas das mais importantes escavações arqueológicas até então realizadas em Portugal, o figueirense não terá hesitado em sugeri-lo como membro honorário da comissão encarregada da organização do Museu Municipal (Fig. 2), a par de Adolfo Loureiro e dos abades de Miragaia e de Quinchães, a que se juntaram mais tarde, o espanhol Francisco Cobes e o cónego Joaquim Pereira Boto (Ferreira, 1994: 79). Uma honra que o geólogo não enjeitou, apesar das suas múltiplas solicitações profissionais. Os trabalhos de Santos Rocha na Serra da Boa Viagem e a criação do museu, devem ler-se no quadro de uma época marcada por um interesse crescente pelo passado remoto da humanidade, uma cultura caldeada por uma elite letrada de que faziam parte, sobretudo, académicos, médicos, advogados, militares e padres, que beneficiava de uma conjuntura de reconhecimento da importância da Ciência e da criação de alguns museus: o da Real Associação dos Arquitetos Civis e Arqueólogos Portugueses (1863); o do Instituto de Coimbra, na dependência da Universidade, que funcionava desde 1868; a Sala de Arqueologia Pré-histórica da Comissão, aberta em 18802 e, em finais de 1893, o Museu Etnográfico Português, cuja direção foi confiada a Leite de Vasconcelos (1858-1941). Este ficaria instalado junto da Comissão Geológica e subordinado, durante algum tempo, à mesma tutela; um museu a que nunca faltaria o apoio do Estado, que asfixiava, pela 2 Só nessa altura, Carlos Ribeiro, diretor da Comissão, e Delgado, conseguiram os recursos necessários para equipar e abrir essa ala do museu aos participantes do Congresso Internacional (Brandão, 2009a; 2009b).
66
vocação centralista, as iniciativas regionais (Martins, 2012: 31), hegemonia, aliás, decorrente da própria lei. Em paralelo, um pouco por todo o país, aumentava o número de estudiosos e pequenos museus ou coleções visitáveis privadas, de caráter local que, não raras vezes, contrariavam “a tradicional imagem do amadorismo associado às práticas arqueológicas locais” (Pereira, 2018: 102).
Figura 2 - Ofício da Câmara Municipal da Figueira da Foz comunicando a nomeação de Nery Delgado para a comissão organizadora do museu. Cortesia LNEG/AHGM.
ENTRE CORTESIA E PARTILHA CIENTÍFICA: AS MOLDAGENS ARQUEOLÓGICAS OFERECIDAS POR NERY DELGADO AO MUSEU MUNICIPAL DA FIGUEIRA DA FOZ (1894)
De moda a objeto científico e didático A moldagem em gesso é uma técnica muito antiga para replicar peças em três dimensões e a maneira mais fácil de obter múltiplos do mesmo objeto, independentemente do material que os constitui. Difundiu-se largamente entre os colecionadores privados da Renascença que adquiriam, e exibiam, reproduções de esculturas gregas e egípcias moldadas por formadores italianos, prática que se constituiu como verdadeira moda. A técnica alargou-se também à reprodução de elementos decorativos de monumentos, que foram enriquecendo os acervos das escolas de Arquitetura e Belas-Artes e Museus Públicos, dando lugar, durante os séculos XVIII e XIX, por toda a Europa, ao aparecimento de gipsotecas, algumas das quais, entretanto restauradas, ainda hoje desempenham um importante papel didático e cultural (Barbanera, 2000; Nichols, 2006). Durante a segunda metade do século XIX, o fabrico de réplicas estendeu-se ainda à Antropologia, à Arqueologia e à História Natural, recurso largamente explorado pelas instituições científicas, que viam assim facilitada a permuta e/ou oferta de reproduções fiéis dos seus exemplares, mantendo a integridade dos acervos e permitindo, à distância, a análise detalhada das suas características morfológicas. As moldagens em gesso, contraponto de larga vantagem sobre a representação bidimensional, foram também usadas pelos dealers de material científico, alguns deles naturalistas, cuja reputação era garantia da qualidade das réplicas fornecidas a estabelecimentos de ensino e museus (Brandão et al., 2016: 435-437). Pereira da Costa (1809-1889), que partilhara a direção da Comissão Geológica com Carlos Ribeiro, já recorrera ao fabrico de moldagens, ao preparar quatro dezenas de réplicas de exemplares osteológicos e outros artefactos do Cabeço da Arruda e da Gruta de Cesareda, para ilustrar a apresentação oral de uma “memória” sobre os estudos de Préhistória em Portugal, apresentada ao “Congresso de Antropologia e de Arqueologia Pré-Históricas de Paris, 1867” (Costa, 1868: V-VI). Recebidas por Gabriel
de Mortillet (1821-1898), secretário do congresso, as moldagens de ossos foram encaminhadas para o Museu de História Natural, e as de objetos de pedra e bronze, enviadas para o Museu de Saint-Germain-enLaye3, onde pontificava aquele respeitado arqueólogo. Anos depois, seria Delgado a utilizar esta técnica para efetuar reproduções de fósseis, para oferta a alguns dos seus confrades e instituições estrageiras; refiram-se, em particular Édouard Lartet (18011871), reputado geólogo e um dos fundadores dos estudos de Pré-história franceses, a quem envia três moldes de bilobites (maio de 1884), o Museu de História Natural de Londres, também moldes de bilobites (Delgado, 1892: XVII ) e o Smithsonian Institution, em Washington (fevereiro de 1889), este último em cumprimento de uma promessa que fizera ao eminente paleontólogo americano Charles Walcott (1850-1927)4. Uma receita repetida em março de 1891 na oferta ao Museu Nacional de Lisboa (atual Museu Nacional de História Natural e da Ciência), de 12 moldagens de fósseis, figurados na sua importante monografia “Estudo sobre os bilobites e outros fosseis das quartzites da base do systema silurico de Portugal” (1888). No que respeita a rochas, fósseis, ou minerais, não era difícil encontrar duplicados nas reservas da Comissão para ofertas ou permutas; porém, no que respeita ao acervo arqueológico, regista-se uma marcada parcimónia na saída de exemplares, como o próprio Delgado explicaria a Barbosa du Bocage (1823-1907), em resposta a um pedido de oferta: É claro que não posso alargar-me em dadivas deste genero, porque é dificil encontrar na grande serie de objectos que possuimos, dois da mesma localidade que possam dizerse identicos, podendo portanto dispensar-se um deles5. 3
Então designado Musée des Antiquitées Nationales, contava com uma das primeiras coleções, a dos materiais reunidos por Jacques Boucher de Perthes (1788-1868), grande defensor da existência do homem antediluviano, no Vale do Somme. 4 Cfr. Ofício de remessa em 1/02/1889, AHGMCG13.02.63, fl. 341. 5
Carta a B. du Bocage, 25/02/1890. AHGMCG13.02.57, fl. 380-381, transcrita em Cardoso e Melo, 2001: 318-319.
67
ENTRE CORTESIA E PARTILHA CIENTÍFICA: AS MOLDAGENS ARQUEOLÓGICAS OFERECIDAS POR NERY DELGADO AO MUSEU MUNICIPAL DA FIGUEIRA DA FOZ (1894)
A
B
C
Figura 3 A e B - Moldes de gesso por tacelos para reprodução de pequeno vaso (A) e alabarda (B). Notar em A, as marcações incisas para garantir que na utilização seguinte a réplica seja rigorosamente igual e o jito alargado em forma de cone; C - Réplicas do machado de anfibolito de Porto de Mós. Coleção Museu Geológico do LNEG, fotografias do autor.
As réplicas oferecidas ao Museu da Figueira foram obtidas por moldagem por tacelos, processo moroso, mas ainda hoje aplicado em muitas situações. Consiste na obtenção de um negativo a partir da peça original, formado por tantos tacelos quanto o exija a sua complexidade, e no preenchimento do oco com gesso líquido vazado através de um orifício, o jito, colocado num ponto elevado do modelo, frequentemente encimado por um cone invertido escavado no negativo, que funciona como funil. Para que cada tacelo encaixe perfeitamente no outro, em regra procede-se à realização de pequenos orifícios, macho/fêmea (Fig. 3). Uma vez endurecido o gesso vazado, as partes do molde separam-se, podendo a réplica ser polida e patinada.
em bom estado de conservação, não deixavam de interessar “á historia do trabalho humano ou ao estudo dos costumes dos povos nas epochas anteriores á actual” (cfr. Regulamento do Museu, art.º 3.º) e, como tal, foram integradas na “exposição permanente”, representando a “Industria neolithica de varios logares de Portugal.” (Rocha, 1905: 23). Um olhar mesmo que menos atento sobre aquela lista, permite concluir que ela responde a uma escolha criteriosa por entre as mais notáveis peças dos espólios neolíticos até então recolhidos nos monumentos e grutas pré-históricas explorados por Ribeiro e Delgado (Fig. 4). Refiram-se a placa de xisto em forma de báculo da Anta da Estria, o betilo calcário decorado da gruta artificial da Folha de Barradas (Sintra), publicado A coleção de moldagens por Ribeiro em 1880, e a enxó (herminette) Pela sua importância enquanto materiais de encabada de calcário das grutas naturais de Cascais referência e comparação, estas réplicas, ainda hoje (Fig. 5 A a E). 68
ENTRE CORTESIA E PARTILHA CIENTÍFICA: AS MOLDAGENS ARQUEOLÓGICAS OFERECIDAS POR NERY DELGADO AO MUSEU MUNICIPAL DA FIGUEIRA DA FOZ (1894)
Figura 4 - Minuta da “Lista das moldagens de objectos de archeologia prehistorica offerecidas ao Museu Ethnographico Municipal da cidade da Figueira da Foz, pela Direcção dos Trabalhos geologicos e ali entregues pelo Director. Lisboa, 5 de maio de1894. Ass. Nery Delgado”. Cortesia LNEG/AHGM.
Somam-se-lhes as reproduções de algumas peças recolhidas por Delgado na gruta da Casa da Moura, nas campanhas de 1865 e 1880, com destaque para duas alabardas de sílex, uma delas de faces lisas e bordos finamente retocados – que deu origem a uma tipologia particular conhecida como “tipo Casa da Moura” –, e três placas de xisto decoradas, sendo uma antropomórfica (Fig. 6)6. A coleção incluía ainda as reproduções de duas placas de xisto decoradas da Anta do Cabeço, Castelo de Vide, presumivelmente incorporadas por Pereira da Costa7. 6
Esta gruta forneceu uma das maiores coleções de artefactos préhistóricos conhecidas em Portugal, a maioria dos quais foi incorporado no museu criado pela Comissão Geológica, tendo sido alvo da atenção de Émile Cartailhac (1845-1921). Apesar de sempre ter estado à disposição dos investigadores, este espólio permaneceu inédito até 2002, quando Júlio Carreira e João Luís Cardoso promoveram o seu estudo e publicação. 7 Na monografia sobre os monumentos megalíticos, P. da Costa (1868)
refere a existência de cinco antas na propriedade denominada Coutada
No seu conjunto, as réplicas das placas representam os quatro tipos morfológicos que, meia centena de anos mais tarde, Georg e Vera Leisner (1951)8 condensariam da seguinte forma: em báculo, de contorno recortado (antropomórfico), trapezoidal e retangular. O lote finaliza com a reprodução não patinada, do pequeno machado de Porto de Mós.
Discussão Identificadas as peças, importava averiguar se aquelas corresponderiam a uma escolha original, que fosse ao encontro das necessidades de Santos Rocha, ou se haveria, apenas, da parte de Delgado, do Alcogulo, 7 km a poente de C. Vide, e perto, no sítio de Milhares do Cabeço, a duas outras a pouca distância uma da outra (pp. 71-72). Uma destas corresponderá, certamente, à denominação “Anta do Cabeço”. 8 Georg e Vera Leisner, Antas do concelho de Reguengos de Monsaraz. Materiais para o estudo da cultura Megalítica em Portugal, 1951, Lisboa: Instituto de Alta Cultura.
69
ENTRE CORTESIA E PARTILHA CIENTÍFICA: AS MOLDAGENS ARQUEOLÓGICAS OFERECIDAS POR NERY DELGADO AO MUSEU MUNICIPAL DA FIGUEIRA DA FOZ (1894)
A
B
C
D
E
Figura 5 A - Molde e réplica patinada do báculo de xisto da anta da Estria; B e C - Molde e réplica do betilo do monumento de Folha de Barradas; D e E - Enxó encabada de Cascais e respetivo molde com 4 tacelos. A, B e E, coleção MG-LNEG: Fotografias do autor, por cortesia do Museu Geológico; C e D - Coleção e fotografias do Museu Municipal Santos Rocha.
70
ENTRE CORTESIA E PARTILHA CIENTÍFICA: AS MOLDAGENS ARQUEOLÓGICAS OFERECIDAS POR NERY DELGADO AO MUSEU MUNICIPAL DA FIGUEIRA DA FOZ (1894)
A
B
C
D
Figura 6 A e B - Réplicas em gesso das alabardas; C - Placa de xisto antropomórfica da gruta da Casa da Moura e decoração segundo Carreira e Cardoso, 2002; D - Placa de xisto da Anta do Cabeço e decoração segundo Rodrigues, 1986. Coleção e fotografias do Museu Municipal Santos Rocha.
a intenção de homenagear a obra do figueirense, fazendo representar no novo museu peças portuguesas importantes do ponto de vista cronológico-cultural. Noutro plano, importava também verificar se aquelas réplicas corresponderiam à pequena coleção de cerca de uma quinzena de negativos de gesso, cuja existência constatáramos aquando da realização do inventário expedito das coleções arqueológicas do Museu Geológico9, sobre a qual não havia, praticamente, informação. Embora a Comissão reunisse algumas valências entre o seu pessoal técnico e auxiliar (fotografia, preparação de coleções, “ajudante” de laboratório e coletores), a execução daquelas moldagens foi, 9 V. José Manuel Brandão (coord.), Sítios arqueológicos representados nas coleções do Museu Geológico. Edição integrada nas comemorações dos 150 anos da criação da 1.ª Comissão Geológica (1848-1998), 1998, Lisboa: Instituto Geológico e Mineiro.
seguramente, um serviço contratado externamente, já que a minúcia das formas, e o fim a que destinavam (ofertas institucionais), exigia um grau de perfeição superior a que aqueles dificilmente poderiam corresponder, por menor domínio da técnica. Carlos Ribeiro, já constatara o problema aquando da reprodução de algumas placas de xisto dos monumentos funerários de Belas, possivelmente executadas na Comissão, confidenciando: “As referidas copias não são tão perfeitas como as que V. Ex.ª me remeteu como specimens do processo, o que atribuo em parte a falta de pratica do empregado que fez este trabalho.”10. Como referiria Nichols (2006: 116), “(…) a sensibilidade da peça e do formador determinam a fiabilidade da cópia”. 10
Carta de C. Ribeiro a Estácio da Veiga, 10/08/1882, AHGM, transcrita em Cardoso e Melo, 2001: 338.
71
ENTRE CORTESIA E PARTILHA CIENTÍFICA: AS MOLDAGENS ARQUEOLÓGICAS OFERECIDAS POR NERY DELGADO AO MUSEU MUNICIPAL DA FIGUEIRA DA FOZ (1894)
Quadro I Moldagens oferecidas por Nery Delgado aos museus Britânico e Municipal da Figueira da Foz
* Certamente por lapso na preparação do texto original, o Catálogo do Museu indica que esta peça é proveniente do monumento (tholos) do Monge na Serra de Sintra, que Carlos Ribeiro descreveu em simultâneo.
Embora nessa altura algumas empresas de moldes e gessos decorativos como a conhecida António Moreira Rato & Filhos, tivessem o know-how para fazer as reproduções, não surpreende que Delgado, como já anteriormente o fizera Possidónio da Silva, recorresse à única instituição onde seguramente havia tradição de execução de modelos artísticos e industriais e se dominava a técnica das moldagens: a Academia Real de Belas-Artes de Lisboa, onde funcionava, desde 1863, uma oficina gerida por formadores italianos (Mendonça, 2014: 132-133). Uma nota manuscrita de Delgado, em boa hora arquivada junto dos moldes, nas carteiras da Sala de Arqueologia, por Veiga Ferreira e Georges Zbyzewski, a quem se deve a reorganização das coleções arqueológicas na década de 70, contém a seguinte informação: “Objectos enviados ao Lippi para moldar em 21 fev [?] de 1890”. Confirmava-se, assim, a hipótese aventada de uma aquisição externa de serviços, já que o nome indicado não corresponde a nenhum 72
dos elementos que prestavam serviço na Comissão, permitindo-nos assim avançar, com segurança, para a oficina nacional de moldagem constituída em 1863 no seio da Academia Real de Belas-Artes de Lisboa, onde desde 1881, trabalhava o formador italiano Guido Battista Lippi (?-1899) (Mendonça, 2014: 132) que, além das funções que lhe estavam cometidas pela instituição e pela Comissão dos Monumentos Nacionais, aceitava, também, outros trabalhos. Se bem que os negativos em gesso, quando bem executados, possam durar mais de uma centena de anos servindo a várias moldagens, aquela nota não permite afirmar, com segurança, que os quatro negativos do acervo do Museu Geológico, que correspondem às réplicas do Museu da Figueira, sejam os originais do século xix preparados pelo italiano. A existência, nesta coleção, de outros negativos e réplicas sem qualquer indicação de autoria ou data de produção, não exclui a possibilidade de, algures no tempo, a técnica ter sido retomada para replicar aqueles e outros itens
ENTRE CORTESIA E PARTILHA CIENTÍFICA: AS MOLDAGENS ARQUEOLÓGICAS OFERECIDAS POR NERY DELGADO AO MUSEU MUNICIPAL DA FIGUEIRA DA FOZ (1894)
para permutas, ou com propósitos experimentais ou didáticos. Aquela nota remete, porém, para outra questão: a que instituições, ou personalidades, poderiam ter sido enviadas as réplicas resultantes dessa encomenda? A consulta da correspondência expedida não tardou a revelar uma nota de finais de fevereiro de 1890, dirigida a Henry Hoyle Howorth (1842-1923)11, anunciando que a breve prazo lhe seria remetida uma coleção de peças arqueológicas e “algumas moldagens em gesso de uns poucos objectos que mais chamaram a atenção de V. Ex.ª” destinadas ao Museu Britânico, para retribuir a oferta recebida daquela instituição12. A encomenda seria expedida a 4 de abril, por intermédio do Barão de Howorth13, tio de Henry radicado em Lisboa, na qual, além de um lote de artefactos recolhidos em várias grutas e nos concheiros de Muge, seguiam as prometidas réplicas, em duplicado para que Henry Hoyle ficasse com uma coleção14. A comparação das listas de peças oferecidas ao Museu da Figueira (1894), com a das encomendas a Lippi (1890) e a das moldagens enviadas ao Museu Britânico (1890) (Quadro I), evidencia uma flagrante coincidência, residindo a única diferença no facto de não ter sido enviada a Howorth a réplica do machado de Porto de Mós15. 11 Filho de um comerciante inglês estabelecido em Lisboa, H. H. Howorth,
foi jurista e político e um apaixonado pela arqueologia e pela história, áreas em que publicou diversos trabalhos. Membro de várias sociedades científicas e da Royal Commission on Ancient Monuments e Fellow of the Royal Society, foi um dos trustees do Museu Britânico (Cfr. The Sir Henry Hoyle Howorth Collection, Chetam’s Library. htpps://archiveshub.jis.ac.ul/data/gb418howorth [Consultado em 10/07/2019]. 12 Carta de Delgado a Howorth, AHGMCG13.02.57, fls. 379 e 379v. 13
Comerciante e industrial britânico, John Stott Howorth (1829-1893), primeiro e único Barão de Howorth de Sacavém, envolveu-se em diversos empreendimentos entre os quais, a Fábrica de Loiça de Sacavém.
Considerações finais Se alguma espécie de “encantamento” havia no gesto simbólico do Diretor da Comissão Geológica para com o Amigo Santos Rocha, ele quebrou-se ao revelar que aquela seleção de peças, não foi afinal inédita e personalizada, antes sim a reedição de uma escolha pensada noutra ocasião, embora porventura com idênticos desígnios; todavia, é nossa convicção que tal não belisca o seu valor enquanto coleção didática e de comparação. Não será, por isso, despiciendo presumir que na justa homenagem ao arqueólogo figueirense, a cortesia pessoal e institucional e a necessidade de responder rapidamente ao convite para a inauguração, tenham falado mais alto do que a possibilidade de um novo olhar sobre as coleções da Comissão para preparar outra seleção, uma tarefa passível de partilhar com o condutor de minas Berkeley Cotter (1845-1919), a quem estava confiada, desde dezembro de 1892, a chefia da Secção de Arqueologia Pré-histórica. Talvez uma nova (desejável?) leitura das peças, não tivesse conduzido a resultados muito diferentes; pois nessa altura o acervo estava ainda longe do desenvolvimento que viria a atingir entre as décadas de 1940 e 1970. Destacavam-se então, sobretudo, os espólios dos trabalhos de Ribeiro em Leceia, nos concheiros do Vale do Tejo e nas grutas de Palmela, Oeiras, e Cascais, e os recolhidos por Delgado, na Cesareda e Furninha (Brandão, 1999: 114), um peso portanto bem vincado de artefactos dos horizontes Neolítico/Calcolítico (sobretudo Neolítico Final), compaginável com o que o arqueólogo figueirense vinha encontrando nas suas pesquisas. Na realidade, a escolha de Delgado em 1890 fora já uma espécie de crème de la crème do acervo, a que acrescia – no caso dos exemplares oferecidos ao museu da Figueira – a importância da sua representação em instituições estrangeiras.
14 Minuta da carta a J. Howorth, AHGMCG13.04.131, também transcrita
em Cardoso e Melo, 2001: 320-321. 15
As peças destinadas ao Museu Britânico foram listadas de A a K (Quadro I), tendo sido omitida a entrada correspondente à letra J. Cfr. AHGMCG13.02.57, fls. 387-387v.
73
ENTRE CORTESIA E PARTILHA CIENTÍFICA: AS MOLDAGENS ARQUEOLÓGICAS OFERECIDAS POR NERY DELGADO AO MUSEU MUNICIPAL DA FIGUEIRA DA FOZ (1894)
Agradecimentos
O autor agradece as facilidades de consulta concedidas pelo LNEG, Museu Geológico e Arquivo Histórico e pelo Museu Municipal Santos Rocha, bem como as preciosas sugestões de Ricardo Mendonça (FBAL) e André Afonso (MNAA). O autor agradece o apoio institucional do IHC, financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito dos projetos UIDB/04209/2020 e UIDP/04209/2020.
Referências bibliográficas BARBANERA, Marcello (2000). Les collections de moulages au XIXe siècle: étapes d’un parcours entre idéalisme, positivisme et esthétisme. In LAVAGNE, H. e QUEYREL, F. (eds.), Les moulages de sculptures antiques et l’histoire de l’archéologie, Actes du colloque international Paris, 24 octobre 1997, Genève: Lib.e Droz, pp. 57-73. BRANDÃO, José M. (1999). As colecções arqueológicas do Instituto Geológico e Mineiro. O Arqueólogo Português, s. IV, 17, pp. 111-122. BRANDÃO, José M. (2009a). Uma intervenção na “Sala de Arqueologia Pré-histórica” do Museu Geológico (Lisboa). Revista da Faculdade de Letras do Porto - Ciências e Técnicas do Património, 7-8, [ed. 2012], pp. 93-106. BRANDÃO, José M. (2009b). Museu Geológico: lugar de memórias históricas e científicas. In SEMEDO, A. e NASCIMENTO, E. (eds.), Actas do I Seminário de Investigação em Museologia dos Países de Língua Portuguesa e Espanhola, V. 1. Universidade do Porto, Faculdade de Letras, pp. 163-174. BRANDÃO, José M. et al. (2016). A Natureza duplicada: reflexões sobre réplicas paleontológicas e a colecção histórica do museu do I.S.E.P. In CHAMINÉ, H.; AFONSO, M. J. e GALIZA, A. C. (eds.), Eduardo Gomes: engenheiro, docente, empreendedor, Porto: Dep. de Engenharia Geotécnica do Museu do ISEP, pp. 433-477. BRANDÃO, José M. e CALLAPEZ, Pedro M. (2017). O abastecimento de água à Figueira da Foz em finais de oitocentos. Comodidade e modernidade. Figueira da Foz: Câmara Municipal.
74
CARDOSO, João L. (2012). António dos Santos Rocha (18531910) e a exploração arqueológica das grutas da Columbeira (Bombarral). In VILAÇA, R. e PINTO, S. (eds.), Santos Rocha a Arqueologia e a Sociedade do seu Tempo, Câmara Municipal da Figueira da Foz, pp. 53-61. CARDOSO, João L. e MELO, Ana Ávila (2001). Correspondência anotada de Carlos Ribeiro e de Nery Delgado: contribuição para a história da Arqueologia em Portugal. Comunicações do Instituto Geológico e Mineiro, 88, pp. 309-346. CARREIRA, Júlio R. e CARDOSO, João L. (2002). A gruta da Casa da Moura (Cesareda, Óbidos) e sua ocupação pós-paleolítica. Estudos Arqueológicos de Oeiras, 10, pp. 249-361. COSTA, Francisco P. (1868). Monumentos prehistoricos, Descripção de alguns dolmins ou antas de Portugal. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias. CRUZ, P. Belchior (1896). Museu Municipal da Figueira da Foz. O Archeologo Português, 2, pp. 234-236. DELGADO, J. F. Nery (1888-1892). Préface. Comunicações da Commissão Geologica, 2, pp. V-XXX. DELGADO, J. F. Nery (1899). Les Services Géologiques du Portugal de 1857 à 1899. Comunicações da Direção dos Trabalhos Geológicos, 4, pp. VII-XLVIII. FERREIRA, Ana Margarida (1994). Santos Rocha. O Museu Municipal e a Sociedade Arqueológica da Figueira da Foz: 18941910. In PEREIRA, I. e CARDOSO, A. P. (eds.), Museu Municipal Dr. Santos Rocha: centenário (1894-1994). Câmara Municipal da Figueira da Foz, pp. 73-94. LOUREIRO, Adolfo (1910). Dr. Antonio dos Santos Rocha. Boletim da Associação dos Archeologos Portugueses, 12 (2), pp. 73-86. MARTINS, A. Cristina (2012). António Augusto dos Santos Rocha (1853-1910) e a Arqueologia na viragem do novo século. In VILAÇA, R. e PINTO, S. (eds.), Santos Rocha e a Arqueologia do seu Tempo. Câmara Municipal da Figueira da Foz, pp. 13-39. MENDONÇA, Ricardo (2014). A recepção de escultura clássica na Academia de Belas-Artes de Lisboa. Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Tese de doutoramento. Acessível em http://hdl.handle.net/10451/15630
ENTRE CORTESIA E PARTILHA CIENTÍFICA: AS MOLDAGENS ARQUEOLÓGICAS OFERECIDAS POR NERY DELGADO AO MUSEU MUNICIPAL DA FIGUEIRA DA FOZ (1894)
NICHOLS, Marden F. (2006). Plaster cast sculpture: A history of touch. Archaeological Review from Cambridge, 21 (2), pp. 114-130. PEREIRA, Elisabete S. (2018). Colecionismo arqueológico e redes de conhecimento, atores, coleções e objetos (1850-1930). Casal de Cambra: Caleidoscópio. PEREIRA, Isabel (1986). Museu Municipal. Notícia histórica. Cadernos Municipais, 17. Câmara Municipal da Figueira da Foz. PEREIRA, Isabel e CARDOSO, Ana Paula (1994). Museu Municipal Dr. Santos Rocha: notícia histórica. In PEREIRA, I. e CARDOSO, A. P. (eds.), Museu Municipal Dr. Santos Rocha: centenário (1894-1994). Câmara Municipal da Figueira da Foz, pp. 73-68. ROCHA, A. Santos (1905). Museu Municipal da Figueira da Foz. Catálogo Geral. Figueira da Foz: Imprensa Lusitana. ROCHA, A. Santos (1949). Memórias e explorações arqueológicas. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigencis. RODRIGUES, M. Conceição (1986). Estudo ideológico-simbólico das placas de xisto gravadas. Alto Alentejo, vol. 2. Câmara Municipal de Castelo de Vide. SOUSA, A. J. Vale (1896). O Museu Municipal da Figueira da Foz. Branco e Negro, 29, pp. 43-47. VILHENA, Henrique (1937). O Dr. António dos Santos Rocha (elogio, notas bibliografia de S.R., notas de bibliografia sobre S.R.). Lisboa: ed. de autor.
Referências arquivísticas Manuscritos
Arquivo Histórico Geológico e Mineiro (AHGM) do LNEG. Livros de correspondência administrativa e científica, AHGM CG13.02.59; AHGMCG13.02.64. Minutas da correspondência expedida por Nery Delgado.
Periódicos
Gazeta da Figueira, n.º 377, 31/08/1895 e n.º 380, 11/09/1895. Diário de Notícias, 7/05/1894.
75
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Santos Rocha, arqueólogo de corpo inteiro e, portanto, também protector dos monumentos megalíticos da Figueira da Foz Santos Rocha, fully fledged archaeologist and therefore also protector of the megalithic monuments of Figueira da Foz Raquel Vilaça1 . Ana Margarida Ferreira2
1
Univ Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de Arqueologia, CEAACP | rvilaca@fl.uc.pt ana.ferreira@cm-figfoz.pt
2 Museu Municipal Santos Rocha, Divisão de Cultura, Município da Figueira da Foz |
76
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
Recorrendo a documentação inédita, discute-se a acção de António dos Santos Rocha como protector dos monumentos megalíticos da Figueira da Foz, acção duplamente relevante, pelo seu carácter inovador, à época, e pelas consequências, hoje, ainda sentidas. Este texto debruça-se sobre a recuperação de um dólmen e sua reconstituição em espaço museológico, sobre a salvaguarda in situ de um outro e sobre os contributos visando a classificação de uma necrópole.
The action of António dos Santos Rocha as protector of megalithic monuments at Figueira da Foz is discussed on the basis of unpublished documents. The matter is relevant since his action was innovative at the time and had long lasting consequences. This text focuses on the recovery of a dolmen and its reconstitution in a museum space, on the safeguarding in situ of another one and on the contributions to the classification of a necropolis.
Palavras-chave: Megalitismo; Musealização de sítios; Conservação de monumentos; Monumentos Nacionais.
Keywords: Megalithism; Archeological site musealization; Monument conservation; National monuments. 77
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
Introdução Este contributo pretende sistematizar e discutir a acção de António dos Santos Rocha (1853-1910) (adiante SR) como estudioso, protector e divulgador dos monumentos megalíticos da Figueira da Foz. Na verdade, a protecção dos monumentos megalíticos não podendo ser dissociada da acção de SR como investigador, gestor e divulgador, também não pode ser subalternizada na compreensão de todo um programa que traçou e executou, muito completo e coerente, cheio de projectos: escavações, publicações, museu, sociedade arqueológica, boletim, sem esquecer, justamente, a conservação e protecção de objectos e monumentos. É neste quadro global que devemos integrar essa acção menos conhecida do investigador figueirense (Fig. 1), acção que o levou, ousadamente, a transladar
um dólmen da serra para a cidade e a proceder à musealização in loco de um outro. A descoberta e investigação da necrópole que os agregava e que colocou a Figueira da Foz no mapa do megalitismo peninsular, conheceria, por sua vez, impacto do foro legal com a respectiva classificação dos monumentos.
As Antiguidades pré-históricas do concelho da Figueira Comecemos, então, pelo início desse percurso tão singular e visionário de SR. O primeiro documento importante para o efeito é o prefácio da sua obra Antiguidades pré-históricas do concelho da Figueira, publicada em quatro partes, em 1888, 1891, 1895 e 1900 (Fig. 2). Licenciado em direito, advogado, vereador e presidente da câmara municipal, aos 33 anos, SR inicia-se no mundo da arqueologia: Em princípios de Abril de 1886 constou-nos que para o lado de Brenha (...) existia um montículo de terra e pequenas pedras, conhecido pelo nome de mamoinha, que tinha uma certa celebridade entre os povos dos arredores. Disseram-nos alguns vizinhos, por tradição de seus maiores, que fora ali uma sepultura de mouros; (...) que era voz constante entre o povo acharem-se lá escondidos tesouros, e por isso alguns curiosos tinham ido em diversas noites escavar o montículo, com o fim de procurarem as cobiçadas riquezas; que até de lugares distantes ali haviam concorrido muitas pessoas acompanhadas de um padre, as quais, usando de cerimónias cabalísticas, procederam a diversas pesquisas... (Rocha, 1949: 1).
Figura 1 - António dos Santos Rocha com cerca de 30 anos. Fotografia datada de [1883?]. Fundo Arquivo Fotográfico Municipal da Figueira da Foz.
78
Velho de 133 anos, este relato parece conter a triste história – passada e presente – dos monumentos megalíticos da Figueira da Foz: as fogueiras, os pesquisadores de tesouros, o desaparecimento das pedras, o uso dos esteios de grés para fazer mós e até o nome de Cemitério dos Mouros, pelo qual ainda hoje se chama, localmente, o dólmen das Carniçosas. Retomemos, porém, o texto para evidenciar a consciência patrimonialista do nosso arqueólogo: “Guiados por estes fortes indícios, fomos visitar o sítio no intuito de obtermos provas
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
Figura 2 - Página de rosto das Antiguidades pré-históricas, 1888.
materiais e decisivas e ao mesmo tempo para vermos se poderíamos obstar à completa destruição do monumento”. Como já se referiu, os primeiros trabalhos arqueológicos terão ocorrido em Abril de 1886 com a exploração do monumento da Cumieira que os pesquisadores de tesouros haviam desfeito, na maior parte, informa. E prossegue: …fomos, pelas chapadas setentrionais da serra, descobrindo sucessivamente os megálitos do Cabeço dos Moinhos, da Serra de Brenha e das Carniçosas, servindonos de indicadores não só os montículos de terra ou mamoinhas, mas os topos das lajes e a circunstância de estas não serem da localidade. (Rocha, 1949: 3).
O episódio seguinte desta história é ainda relatado no prefácio que vimos citando e comentando. O nosso arqueólogo, em início de “carreira”, comunica a descoberta ao Instituto de Coimbra, agremiação académica, científica e literária (18521981) que, entre outras secções de estudo e debate, mantinha uma secção de arqueologia, a qual nomeia uma comissão para apoiar o sócio figueirense. Era, a comissão, composta por Adolfo Ferreira Loureiro, tenente coronel de Estado Maior e director das obras do Mondego e da barra da Figueira, por um professor de geologia da Universidade, outro professor de Antropologia também da Universidade e um professor de desenho no Liceu de Coimbra. A comissão partiu para a Figueira no comboio da tarde do dia 9 de Junho de 1886, em companhia do “ilustrado chefe da Secção Geológica, o Sr. Nery Delgado”. Demorou-se três dias e visitou todos os monumentos, presidindo à exploração de parte da galeria da anta das Carniçosas, da anta da Serra de Brenha e parte da Cumieira. Portanto, os primeiros trabalhos consistem na identificação dos monumentos, sua escavação, desenho, estudo e publicação. Os materiais são oferecidos ao Instituto de Coimbra, conjuntamente com sua “memória” escrita (Pinto, 1887: 206). A segunda parte das Antiguidades… (1891) é quase exclusivamente dedicada aos sítios de habitação, como a designada “estação humana da Várzea de Lírio”, contemplando apenas um megálito, o de Porto Saboroso. Um pormenor que não é de somenos importância encontra-se na advertência inicial: “A maior parte dos objectos referidos nesta memória, é oferecida ao Instituto. Apenas reservamos aqueles de que só possuímos um exemplar e alguns exemplares repetidos.” (Rocha, 1949: 60). Muito diplomaticamente, diz-se que a maior parte dos objectos é oferecida ao Instituto. Mas qual a parte reservada ao Museu? Seguramente a mais importante: os exemplares únicos! E alguns repetidos... Ora, à data da publicação da segunda parte das Antiguidades…, a ideia de fundar um museu 79
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
local estaria claríssima no espírito de SR. Aliás, a “Notícia histórica do Museu”, publicada no Catálogo Geral de 1905, confirma-o logo na primeira linha: Em princípios de Outubro de 1892 a colheita arqueológica nos dólmens da Serra do Cabo Mondego tornou-se tão abundante que o autor deste catálogo apresentou particularmente ao Presidente da câmara (…), a ideia de fundar-se um Museu Municipal, onde fossem arquivados todos esses despojos do passado, garantindo-se por este modo a sua conservação na Figueira, no interesse da ciência portuguesa e particularmente desta terra. (Rocha, 1905: 5).
A terceira parte (1895) revisita o Cabeço dos Moinhos, “o maior e mais rico monumento de toda a região” (Rocha, 1949: 139) e divulga os trabalhos realizados na parte da serra para oeste da Cumieira, parte essa a que, durante muito tempo, SR não prestara atenção, pensando mesmo que aí não havia monumentos, até que “notámos com surpresa, em diversos pontos, nas vizinhanças do Cabo, alguns relevos do solo, uns maiores do que outros, que nos fizeram suspeitar a presença de verdadeiros túmulos…” (Rocha, 1949: 184), descobrindo então a Mama do Furo, “o maior dos montículos” daquela zona e o megálito de Santo Amaro da Serra, que são dados à estampa nesta terceira parte. A quarta parte (1900) é uma espécie de colectânea que reúne 11 monumentos1. A maior parte tinha já sido noticiada na imprensa local2 e os materiais encontravam-se expostos no Museu. Esta quarta parte parece o remate de um assunto que, podemos aventar, estaria a passar para segundo plano, face ao entusiasmo que incutiria a SR o desafio poderoso dos trabalhos de Santa Olaia, já em curso. 1 Capela, Feital, Cabeço da Mamoinha, Covões das Cavadas, Corredoura,
Praso, Estrumeira, Casal da Serra das Alhadas, Cabecinha, Cabecinha Grande e Facho. 2 Gazeta da Figueira, n.º 385 de 28/9/1895 e n.º 419 de 29/1/1896,
sobre o megálito da Capela; Idem, n.º 734 de 25 /2/1899 sobre o Feital; Idem, n.º 703 de 9/11/1898 e n.º 747 de 12/4/1899 sobre o Praso; Idem, n.º 269 de 18/8/1894 e Branco e Negro, n.º 29, 1896, sobre a Cabecinha Grande; O Povo da Figueira, n.º 100 de 16 /2/1896 sobre o Facho.
80
Paulatinamente, a “grande necrópole da Serra do Cabo Mondego” tinha-se revelado e era agora constituída por 19 monumentos distribuídos ao longo de cerca de 12 Km pelas cumeadas setentrional e meridional da Serra. A terceira e a quarta partes desta memória continuam a ser oferecidas ao Instituto, mas não os materiais, que se esgotaram nas duas remessas correspondentes às duas primeiras partes. Nem de outra forma poderia ser pois a Figueira encontrava-se já dotada de um museu (Fig. 3).
A musealização do dólmen da Cabecinha na Casa do Paço Um dos dólmens publicado na quarta parte das Antiguidades… é o megálito da Cabecinha. Tratavase de um dólmen de câmara poligonal e corredor, este ainda intacto e conservando parte das lajes de cobertura. Câmara e corredor eram pavimentados com lajeado calcário, material que, juntamente com o grés, fora utilizado na construção (Rocha, 1949: 304). Após escavação, SR decidiu desmantelá-lo e reconstruí-lo no Museu, então em início de vida e instalado na Casa do Paço, operação de que deixou minucioso relato, bem assim das opções tomadas na sua musealização. Diz ele: Este monumento foi desfeito e restaurado no Museu Municipal da Figueira, segundo os desenhos e planta do nosso amigo Francisco Ferreira Loureiro; mas na restauração desprezou-se a grande inclinação dos suportes, devida em parte à pressão lateral dos entulhos, e colocou-se do lado de O uma laje no sítio do suporte que faltava, assim como se aplicaram em linha as duas lajes que formavam o suporte 5, para se diminuírem os interstícios dos suportes, fazendo-se ainda outras ligeiras alterações que nada influem na forma do megálito. (Rocha, 1949: 305-306).
Atente-se ao rigor da justificação relativa às alterações de pormenor decorridas aquando da reconstrução do monumento, endireitando os esteios ou colocando um falso onde faltava o original. No que
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
Figura 3 - Dólmen da Cabecinha Grande fotografado por Mesquita de Figueiredo em 1 de Outubro de 1895. Fundo Arquivo Fotográfico Municipal da Figueira da Foz. Legado Mesquita de Figueiredo.
oferecia ao público distinguia bem o que era genuíno e o que resultava da sua interpretação. Inaugurado o Museu a 6 de Maio de 1894, quatro meses depois decorriam ainda os trabalhos de reconstrução do dólmen na zona da entrada3 e foi aí que Leite de Vasconcelos o observou em 1896, conforme relata: “À entrada há um terreiro gradeado e arborizado: e aí vê-se armada uma anta, com a sua câmara (sem tampa), galeria ou corredor e parte da mamoa, tudo dentro de um ripado de madeira, protegido por árvores.” (Vasconcelos, 1918: 361). No ano seguinte é Mesquita de Figueiredo que visita o Museu, a 25 de Setembro de 1897. Nesse 3
A Gazeta da Figueira n.º 276 de 12/09/1894 noticiava o estudo de mais um monumento que “está sendo restaurado no pátio deste estabelecimento [o museu]...”
dia fez esquisso do que viu numa clara mimetização dos originais (planta e vista de perspectiva do monumento) de Francisco Ferreira Loureiro, que se encontravam expostos4. Esta anotação, conservada num dos seus cadernos manuscritos, reporta também a visita feita no dia anterior ao local de proveniência do dólmen: “Cabecinha, aqui já não há senão o sítio onde esteve o monumento que agora repousa no Páteo do Museu Municipal da Figueira, a sua mamoa porém é perfeitamente visível…” (Figueiredo, 1897: [4]). Este constitui o último rasto conhecido da musealização do dólmen (Fig. 4). 4 As Antiguidades…, 1900, apenas integram a planta do monumento
(Est. XXI, fig. 303), mantendo-se inédito o desenho em perspectiva durante cerca de sete décadas até que é publicado (Guerra e Ferreira, 1974, fig. 4).
81
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
A
B
Figura 4 A - Desenhos de F. F. Loureiro, publicado por Guerra e Ferreira, 1974: fig. 4; B e C - Desenhos de A. M. de Figueiredo, 1897: pp. 8 e 19.
82
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
C
Cerca de dois anos depois, quando o Museu é transferido para o edifício dos Paços do Concelho, onde abriu a 1 de Julho de 1899, o dólmen já não faz parte do acervo, nada constando também sobre ele no criterioso catálogo publicado com “grande sentido pedagógico e educativo” (Vilhena, 1937: 72) pelo fundador do Museu (Rocha, 1905). Surpreende o silêncio de SR, que não deixaria um dólmen, este dólmen, para trás. Independentemente do que possa ter acontecido – e algo parece ter corrido menos bem –, não podemos deixar de sublinhar que a iniciativa de levar um dólmen para um museu e proceder à sua remontagem com a finalidade de o preservar, cumprindo, ao mesmo tempo, funções didácticas que uma reconstrução à
escala real tão bem traduziria, além de proporcionar contacto directo com a “ruína” da parte do visitante, revela ousadia e largueza dos horizontes do seu responsável. SR actuava como investigador de corpo inteiro, preocupado com os seus leitores, sim e sempre, mas também com os visitantes que procuravam aceder à visualização dos testemunhos de um Passado remoto. Se esse enquadramento global é devedor, desde logo, da sua condição de leitor compulsivo, estudioso e conhecedor das grandes obras de referência, a idealização do programa museológico que traçou5, integrando a exposição de um dólmen – facto inédito em Portugal6 –, não terá sido alheia ao relacionamento científico que mantinha internacionalmente e da experiência resultante do périplo que o levaria durante cerca de dois meses a alguns dos mais importantes museus europeus (Rocha, Sociedade Arqueológica da Figueira. Relatório da Gerência de 1899-1900: 3)7. E, muito em especial para este particular, não pode ser descartada a hipótese de algum eco ter chegado do Museu de Saint-Germain-en-Laye, com o qual mantinha contacto epistolar através dos seus responsáveis – era então director, Alexandre Bertrand – desde, pelo menos, Julho de 1893. Tais contactos visaram a aquisição de seis moldagens (três crânios e três maxilas) de restos antropológicos de “Raças humanas primitivas”, que fez expor no Museu desde o primeiro dia (Rocha, 1905: 21) e que obteve por permuta com o envio de um exemplar 5 Sobre as suas concepções museológicas veja-se Ferreira, 1994, em especial pp. 79-82. 6
Em 1896, Leite de Vasconcelos ousou apenas levar para o “seu” museu, o pedaço do esteio com pinturas que descobriu no dólmen de Juncais, depois de o “ter feito cortar” (Vasconcelos, 1896: 276, 389, 430). 7
Os relatórios de gerência da Sociedade Arqueológica foram publicados em folhas avulsas dactilografadas, acessíveis no MMSR e reproduzidas fac-simile em Ferreira e Cardoso, 1999. Do terceiro período de gerência (1900-1901) em diante, encontram-se também publicados no Boletim da Sociedade Arqueológica.
83
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
das suas Antiguidades... (primeira e segunda partes)8 (Rocha [Carta], 1893). Efectivamente, possui o museu parisiense, num dos fossos do castelo onde está instalado, um monumento megalítico, mais precisamente uma “galeria coberta” proveniente de Conflans-SainteHonorin (Paris), aí reconstruída nos anos de 1870, na sequência de uma acção de salvaguarda (Guégan de Lisle, 1874: 386-392). Embora só tivesse visitado o museu em Junho de 1899, justamente no ano em que se perde referência ao megálito da Cabecinha, SR seria já conhecedor da solução adoptada para o monumento francês, aliás longe de ser caso único à época (v.g. jardim do Museu Arqueológico Nacional de Florença). É que, possuindo na sua biblioteca o clássico do Musée Préhistorique, aí encontraria referência explícita à situação que poderá ter sido inspiradora da sua ousadia: “Dolmen de Conflans-Sainte-Honorine qui est actuelement au musée de Saint-Germain” (Mortillet, 1881, n.º 554, planche LVII). Não importa tanto se criou ou se reinventou a ideia, mas sim que a colocou em prática, num contexto social e cultural tão diferente daquele quanto era a distância geográfica que os separava.
A conservação in loco do dólmen das Carniçosas É este, como se viu, um dos monumentos visitados pela comissão enviada pelo Instituto e que, nesse âmbito, deu início à sua escavação. Revelar-se-ia um grande dólmen de câmara e corredor, delimitado por um círculo de pequenas pedras de “consagração”, indicando que “o recinto era considerado como coisa sagrada” (Rocha, 1949: 50). 8 Um reconhecido agradecimento é devido a Soline Morinière, do “Service des ressources documentaires” do Musée d’Archéologie nationale et Domaine national de Saint-Germain-en-Laye, pelas informações e documentação que nos enviou sobre este assunto, bem assim pela indicação bibliográfica que o enquadra.
84
A minuciosa observação (recorde-se que a comissão integrava o geólogo Nery Delgado) permitiu identificar que os esteios do lado norte eram em grés vermelho e os do lado sul em calcários acinzentados, estes de origem local enquanto aqueles eram oriundos de pedreiras de maior distância (Rocha, 1949: 56). Neste jogo de distintas matérias-primas e expressões cromáticas não será de excluir algum propósito de cariz simbólico na sua construção (Vilaça e CunhaRibeiro, 2008: 28). Mereceu este dólmen tratamento especial. De facto, a iniciativa descrita no ponto anterior e, em concreto, o seu desfecho, é tanto mais intrigante porquanto, pela mesma altura, o investigador figueirense fazia o contrário com o dólmen das Carniçosas, i.e., cuidando dele no próprio local. Até que ponto essas duas estratégias tão distintas – transferir e manter –, se bem que servindo o mesmo fim – preservar –, não estarão ligadas? Como se viu, o êxito da primeira parece ter tido vida curta, cerca de cinco anos (1894-1899), e fim enigmático. A segunda permitiria conservar “o único dólmen que resta[va] da grande necrópole neolítica da Serra do Cabo Mondego” (Rocha, Sociedade Arqueológica da Figueira. Relatório da Gerência de 1899-1900, 3). Haveria então outras formas de proteger e conservar? Sim, comprando os monumentos e erguendo-lhes muros em volta. É a Sociedade Arqueológica da Figueira, fundada em 1898, que lidera o processo, desencadeando um conjunto de acções nesse sentido, com eco na imprensa local: “…o dólmen vai ser convenientemente vedado para obstar às depredações e vandalismos...” (Gazeta da Figueira de 21/12/1898). Com efeito, foi construído um muro de vedação e o “venerando monumento” passou a estar “debaixo de chave” e “guardado pelo nosso colector” (Rocha, Idem) (Fig. 5 e Fig. 6). Dava-se assim resposta cabal a um dos principais objectivos desta Sociedade, criada também com o intuito de comprar monumentos, para os proteger, como informa o art.º 2 dos seus Estatutos (1 de
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
Figura 5 - Folha de despesa relativa à construção do muro de protecção e respectivo portão do dólmen das Carniçosas. Arquivo do MMSR.
Janeiro de 1898): “Para a consecução do seu fim a sociedade (…) promoverá por seus delegados em todas as freguesias do concelho da Figueira a adquisição ou conservação dos monumentos da antiguidade que se descobrirem...”. A esta iniciativa não terá sido alheia a possibilidade da aquisição de edifícios e monumentos para os salvar da ruína, prática que seria legalmente consagrada em “Diário do Governo”, n.º 146 de 4/7/1889. Contava já então 16 anos a Sociedade fundada em Guimarães por Martins Sarmento, o grande impulsionador da lei, Sociedade à qual estava adscrito um significativo conjunto de monumentos e sítios arqueológicos, designadamente dólmens, comprados ou doados (Cardozo, 1950: 412-413; 1951).
Adquiridos o terreno e o dólmen a José Roque, a 18 de Dezembro de 1898, por 4$605 Reis (Pereira, 1983: 7 e nota 6), conforme se lê na respectiva “ordem de pagamento”, segue-se a construção de um muro, de planta poligonal de 16 lados, com portão de tábuas que o iria proteger. A obra, implantada a meio da mamoa, foi, é óbvio, muito invasiva, nomeadamente com as fundações, não admirando que fossem recolhidos então alguns materiais (machados, pontas de seta, lâminas) “no entulho” (Cruz, 1904: 10). Sob a alçada da recém-criada Sociedade, o muro não poderia dispensar marca visível do novo proprietário do monumento. O “selo de garantia” materializou-se na placa de calcário (alt. 39 cm; larg. 52 cm) aí colocada do lado nascente, muito simples e que dizia (quase) tudo: “SOCIEDADE ARCHEOLOGICA DA FIGUEIRA - 1900”. Era essa a novidade, não a designação do dólmen, que não se nomeia nem se diz o que é, porque demais conhecido entre os populares: era o “Cemitério dos Mouros” (Fig. 7A). Anunciava-se então um novo século dando-se mais um passo – o de Santos Rocha e da sua equipa – de grande dinamismo em iniciativas conducentes à protecção do património arqueológico megalítico. É certo que não foi a primeira iniciativa com esse objectivo no Portugal de então, porquanto, quatro anos antes, Leite de Vasconcelos havia procurado idêntica solução. Tendo escavado o dólmen dos Juncais em 1896 e nele descoberto as primeiras pinturas de “arte megalítica” da Beira Alta, o então Director do Museu Etnológico Português fez avançar proposta para que fosse considerado “Monumento de Estado”, solicitando também autorização junto do Ministro das Obras Públicas para “…em volta do dólmen de Juncais se fazer um muro de vedação” (Vasconcelos, 1896: 225)9. Dessa construção, caso tenha sido 9 A informação de que o assunto teria sido publicado em “Portaria de 5 de Outubro de 1896” não se confirmou, nada constando a propósito nos números do “Diário do Governo” relativos ao mês de Outubro daquele ano. Agradecemos a João Muralha e José d’Encarnação a ajuda nesta pesquisa.
85
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
A
Figura 6 A - Dólmen das Carniçosas 1950, com o seu muro protetor construído sobre a mamoa; B - Perspectiva a partir do interior. DPC/SIPA - Fotos 00100260 e 00100264. Coleção SIPA (Sistema de Informação para o Património Arquitetónico).
86
B
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
A
B
Figura 7 A - Placa de calcário identificando o proprietário do dólmen das Carniçosas: “Sociedade Archeologica da Figueira - 1900”; B - Placa de mármore comemorativa da visita realizada em 1930 aquando do “XV Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-histórica”. Fotografia da inauguração. Fundo Arquivo Fotográfico Municipal da Figueira da Foz.
87
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
concretizada, nada se conhece, mas sim de uma outra feita com ferros “chumbados” em bases de pedra, que contornavam o monumento e ainda existentes nos anos 80 do século passado10. O muro das Carniçosas protegeu, originando, todavia, constrangimentos futuros. O muro constituía uma barreira de forte impacto visual, transferindo para si o protagonismo que, por direito, cabia ao dólmen. Este, em segundo plano e oculto, só se revelando quando se transpunha a porta, fora, afinal, sacrificado. A construção do muro quase no topo da mamoa cortava a leitura e compreensão do monumento no seu todo, opção que, porém, se compreende atendendo à metodologia e enquadramento epistemológico do estudo do megalitismo de finais do séc. XIX e ainda durante décadas do séc. XX: era a estrutura pétrea, megalítica, o interior dos monumentos, que interessavam de sobremaneira. Tal como também se entende, embora discordandose por completo – e não é de hoje –, da opção que foi de o derrubar, o muro, 100 anos depois de ter sido erguido. Agora o foco colocava-se na óptica do visitante e já não na de proteger o monumento. A iniciativa coube à ArqueoHoje com a complacência superior de quem, à época (2001), superentendia a Arqueologia. A empresa, que desenvolveu criterioso e competente trabalho de escavação – interveio na mamoa e identificou o átrio fronteiro ao corredor até então completamente desconhecido – e restauro, optou também por deixar testemunho (para memória futura) dos alicerces do muro (Carvalho et al. 2002; Perpétuo e Carvalho, 2006). Ao contrário do dólmen da Cabecinha, o das Carniçosas permaneceu e é ele o visitado por quem procura o rasto do megalitismo da Figueira. Conhecidos investigadores tê-lo-ão feito ao longo dos anos, como Georg Leisner, em 1933, que aí se deixou fotografar na companhia do então 10
Agradecemos a Domingos Cruz esta informação.
88
conservador do Museu, José Salinas Calado, mas a sua glória como “objecto” de atracção conheceu-a em 1930 por ocasião do “XV Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-histórica”. A 24 de Setembro alguns dos congressistas visitam o monumento, sendo então colocada uma segunda lápide (alt. 50,5 cm; larg. 77 cm), esta em mármore, comemorativa da visita (Fig. 7B). Após a década de 30, altura em que ainda não seria manifesto, foi o próprio muro que entrou em ruína, pelo peso dos anos e descura dos humanos, como que solidarizando-se com o monumento. Em 2001 preconizou-se solução radical com a remoção do muro, conforme referimos. Perdeu-se interessante testemunho que dava corpo à memória de uma época particular na história da conservação e restauro de monumentos megalíticos. Restaurado o monumento e sujeito a regulares acções de manutenção, nunca se concretizou o sonho dos homens da Sociedade: a sua plena protecção e salvaguarda. Ou, por outras palavras, tendo-se protegido, tendo-se salvaguardado, tal foi feito à custa de perdas irreparáveis. O monumento não deixou também de se ir perdendo. A 16 de Maio de 2019 a ruína tinha leitura e enquadramento. A 28 do mesmo mês fogueira criminosa originou a fractura do grande esteio de grés vermelho do lado norte da câmara (Fig. 8 e Fig. 9).
A classificação dos monumentos da Serra de Brenha Na viragem de Oitocentos para Novecentos a preocupação com os vandalismos sobre as Antiguidades e Monumentos, designadamente dólmens e antas, era uma realidade consolidada. As páginas de O Arqueólogo Português dão conta, a espaços, dessa situação. Notícias várias e trabalho diverso enquadrado institucionalmente no seio de comissões e associações, como o efectuado pela Real Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portuguezes (criada em 1864), levavam já alguns anos.
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
Figura 8 (em cima) - Perspectiva do dólmen das Carniçosas a 16 de Maio de 2019, após acção de manutenção da responsabilidade da ArqueoHoje. Figura 9 (em baixo) - Perspectiva do dólmen das Carniçosas a 28 de Maio de 2019, depois de fogueira criminosa ter originado fractura do grande esteio de grés vermelho do lado norte da câmara.
89
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
Trabalhava esta afincadamente, fazendo a sua assembleia aprovar, a 30 de Dezembro de 1880, a “Relação dos Monumentos Nacionais”, que seria alvo de publicação só muito mais tarde (Subsídios para a Classificação… 1904). Naquela altura, nem existiam os monumentos megalíticos da Figueira, porque ainda não revelados – recorde-se que a identificação do primeiro ocorreria em 1886 –, nem SR era arqueólogo. Só em 1910 os “Monumentos da Serra da Brenha”, tal como são mencionados no respectivo Decreto (de 16 de Junho de 1910), são alvo de classificação, passados cerca de dois meses e meio do falecimento de SR. O insigne arqueólogo figueirense tivera, porém, tempo e engenho para atender também a essa outra forma de proteger os monumentos. Vogal delegado da Comissão dos Monumentos Nacionais (Vilhena, 1937: 11), terá sido nessa condição que trabalhou documento sobre os monumentos da 6.ª Classe (Monumentos pré-históricos), uma das classes constante dos Subsídios para a Classificação.... (1904: 20-22). Ao contrário destes, onde não se vai além da listagem de monumentos merecedores de classificação, SR elaborara documento original prestando-lhe um desenvolvimento no articulado jurídico, distinguindo o estatuto da propriedade – Estado, Corporações sujeitas à tutela pública, como Câmaras Municipais, Juntas de Paróquia [etc.] e Particulares – e, ao mesmo tempo, redigindo um documento perfeitamente “subordinado a um método rigorosamente científico”11. Assim, a 6.ª classe incluía, no seu parecer, os Monumentos pré-históricos e proto-históricos (estes não mencionados nos Subsídios para...) sistematizados em três secções – Idade da Pedra, Idade do Cobre e Idade do Ferro –, com a ressalva 11
Este documento manuscrito, de que se conhece rascunho inédito e incompleto sob a forma de missiva, não tem data nem destinatário identificado nem, tão-pouco, sabemos neste momento se foi enviado o original. Trata-se de resposta a circular datada de 15 de Novembro (ano desconhecido) na qual lhe teriam sido solicitadas considerações sobre os Subsídios para a Classificação…, publicados em 1904 (Arquivo do MMSR).
90
de que “não compreendendo neste quadro a idade do bronze, porque nenhuns monumentos, no sentido em que esta palavra é empregada nos ‘Subsídios‘, existem actualmente que possam seguramente atribuir-se a essa idade”. É de sublinhar esta percepção perfeitamente correcta à luz do que se conhecia nos finais do séc. XIX e inícios do de XX. Como foi já sublinhado por Isabel Pereira, a designação “Monumentos da Serra de Brenha”, que aparece no decreto de 1910 (p. 2163) é imprecisa (Pereira, 1983: 4). Imprecisa porque genérica. Todavia, lendo o decreto, esta ambiguidade não é menção exclusiva, pois outros casos classificados são também alvo de referência genérica, global, plural, i.e. as “Antas da Serra do Soajo” (Arcos de Valdevez) ou as “Antas da Serra do Alvão”. Também Leite de Vasconcelos, como membro do Conselho dos Monumentos Nacionais, quando elabora a lista dos grandes monumentos “que são susceptíveis de se considerarem nacionais, a fim de que se possa evitar-se que neles se comentam vandalismos” é bem expressivo no modo como se refere em I, ponto 5.º: “Todos os dólmens [sublinhado do próprio] do concelho do Sátão, situados em terrenos maninhos, sobretudo dois, de grandes dimensões, no sítio do Tanque e do Juncal, perto de Queiriga.” (Vasconcelos, 1905: 40). Consciente da riqueza megalítica da região, é ela que valoriza traduzindo-a em “todos os dólmens”, não importa quais, apesar de destacar dois – a “Orca Cimeira” e a “Orca Fundeira” –, que havia escavado. Portanto, numa altura em que a inventariação do património megalítico estava nos seus primórdios, não havendo ainda registo sistemático e controlado das evidências existentes, não admira o uso deste tipo de linguagem mais vaga, algo imprecisa, mas também mais prudente porque atingia todos os monumentos constituintes de grandes necrópoles. Quais serão então os “Monumentos da Serra da Brenha” ou o que entenderia o Decreto sob essa designação? Todos, naturalmente, os da Serra, esta e as outras envolventes, nem sempre de
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
individualização fácil. Todos, para além do dólmen das Carniçosas, ao qual se deu, indiscutivelmente, nas décadas seguintes especial atenção, como bem nota Isabel Pereira. Todavia, esta distinção não tem de encontrar motivo no facto de ser ele “e só ele” o abrangido pela classificação de 1910, como entende esta infatigável Directora do Museu Municipal (1974-1993). Esta mesma linha tinha sido já traçada por Vítor Guerra, em 1972, também ele Director, e diversos organismos, desde a Câmara Municipal ao Museu, passando pela DirecçãoGeral do Ensino Superior e das Belas-Artes, tiveram idêntico entendimento. Mas aquela distinção pode – e em nossa opinião deve – ser explicada pelo facto de o dólmen das Carniçosas ser o monumento que, desde sempre, se apresentou como o mais bem conservado. Por isso SR o elegeu e a Sociedade o adquiriu para “conservar o único dólmen que resta da grande necrópole neolítica da Serra do Cabo Mondego”. Por outro lado, parece-nos igualmente ser aquela uma visão minimalista, que contradiz em absoluto o plural da expressão “Monumentos da Serra da Brenha”. O que quer que tenha sido classificado não pode circunscrever-se ao dólmen das Carniçosas. Compreende-se, porém, que o histórico singular do dólmen, antes recordado de forma abreviada, tenha levado a esse entendimento que pretende individualizá-lo. Talvez o Decreto, não obstante a descoberta entretanto ocorrida de outros dólmens tivesse como referência principal a informação constante no título da Primeira Parte das Antiguidades, justamente a primeira, i.e., “Monumentos funerários das cercanias de Brenha”. Mas atenda-se que SR na citação suprarreferida refere-se à Serra do Cabo Mondego, não à de Brenha. Independentemente da argumentação que sustenta estas leituras divergentes, há um motivo muito poderoso para encarar do ponto de vista científico e patrimonial, consequentemente também em termos de protecção, o megalitismo da Serra da
Boa Viagem. Trata-se de um todo, traduzido numa grande necrópole, com monumentos e com o que resta deles, com os lugares e com os territórios que eles incorporam.
Notas finais Desta exposição, que procurou lançar alguma luz sobre uma das faces menos conhecida de SR, a de protector dos monumentos megalíticos da Figueira, parece ser possível destacar alguns aspectos. Desde logo, importa referir que as estratégias de protecção foram diversas: ergueu um muro, transportou um dólmen para o museu e reconstruiu-o, numa altura em que mais ninguém o fez. No que respeita ao dólmen das Carniçosas, não poderia ter sido mais óbvia e assertiva a preocupação com a sua protecção. Não só foi comprado pela Sociedade (1898), como foi construído um muro de vedação (1900). Dez anos depois seria alvo, juntamente com outros, de protecção legal. História distinta teve o dólmen da Cabecinha, que se perdeu. Todavia, terão sido empolgantes os anos, breves, em que esteve ali, à vista de todos. Mesmo perdido, a sua classificação não deixou de o atingir, a posteriori, pois na serra deixara seu “lugar” e mamoa, “perfeitamente visível”, como testemunhou Mesquita de Figueiredo. A classificação dos monumentos, de todos, não é assunto pacífico, mas é possível defendêla e, sobretudo, há motivos para a defender. Essa foi matéria que SR não teve possibilidade de agarrar em pleno, mas que não descurou. E, embora seja assunto ainda em aberto, o contributo manuscrito que deixou relativo à classificação dos monumentos, aliás bastante desenvolvido e mais completo do ponto de vista conceptual e do articulado jurídico em relação ao texto dos Subsídios para a Classificação…, é demonstrativo da sua clarividência. Por isso lhe solicitaram parecer, apelo expressivo do reconhecimento que alcançara. 91
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
Figura 10 - Sala das Sessões no edifício dos Paços do Concelho, exibindo os grandes vasos de Santa Olaia. Fundo Arquivo Fotográfico Municipal da Figueira da Foz.
92
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
Museu (1894) Catálogo (1905)
Trabalho de campo e de gabinete
SANTOS ROCHA (1853-1910)
Publicações
Sociedade Arqueológica da Figueira (1898)
Boletim da Sociedade Arqueológica (1904)
Excursões científicas (1894-1906)
Protecção de monumentos
Intervenção cívica e política
Figura 11 - Santos Rocha… de corpo inteiro.
Deve ser sublinhado também o lado em que SR se revela não só director mas ousado autor de um Museu, em que nem tudo se encontra encerrado em vitrines, havendo objectos expostos na Sala de Sessões do “Parlamento Municipal”, lugar por excelência de exercício de poder e cidadania, missões que cumpriu com igual desvelo (Fig. 10). Vendo-se como um “humilde operário da ciência” (Rocha, Sociedade Archeologica da Figueira. Relatório da Gerência de 1902-1903: 2), escrevia:
Longe de o tema se ter esgotado neste texto, estas, as facetas aqui abordadas, são também apenas algumas das que conformam a obra de um homem incansável de corpo inteiro (Fig. 11). Não admira que tenha sido definido como um “arqueólogo militante”, epíteto que Rocha Peixoto cunhou (Peixoto, 1905: 122), nem, tão-pouco, é surpreendente a sugestiva temática, embora também ela já arruinada, que lhe adorna o lugar onde encontrou o eterno descanso (Fig. 12A, B e C).
Os nossos trabalhos de campo, de gabinete e de propaganda são constantes, regulares, sistemáticos... Não se passa um dia que não consagremos alguns momentos às nossas colecções e à divulgação dos conhecimentos que lhes dizem respeito. (Rocha, Sociedade Archeologica da Figueira. Relatório da Gerência de 1902-1903: 2).
93
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
A
B
C
Figura 12 A - Túmulo de António dos Santos Rocha no cemitério oriental da Figueira da Foz; B - Pormenor: epitáfio; C - Pormenor: conjunto de réplicas de peças arqueológicas.
94
SANTOS ROCHA, ARQUEÓLOGO DE CORPO INTEIRO E, PORTANTO, TAMBÉM PROTECTOR DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA FIGUEIRA DA FOZ
Referências bibliográficas CARDOZO, Mário (1950). Monumentos Arqueológicos da Sociedade Martins Sarmento, Revista de Guimarães, n.º 60, pp. 405-486.
PERPÉTUO, João e CARVALHO, Pedro S. (2006). O Dólmen 2 das Carniçosas, Alhadas, Figueira da Foz. Escavação, restauro e valorização. Actas do IV Congresso de Arqueologia Peninsular, (Promontoria Monográfica 5), pp. 111-121.
CARVALHO, Pedro S. et al. (2002). O Dólmen II das Carniçosas. Figueira da Foz/Memórias de um Passado Longínquo. ArqueoHoje. Câmara Municipal da Figueira da Foz.
PINTO, Abílio Augusto da Fonseca (1887). Crónica. O Instituto. Vol. 34. Coimbra: Imprensa da Universidade, pp. 205-208.
CONSELHO DOS MONUMENTOS NACIONAIS (1904). Subsídios para a Classificação dos Monumentos Nacionais. Lisboa: Imprensa Nacional. CRUZ, Pedro Belchior da (1904). Materiaes para o estudo do Neolítico no concelho da Figueira. Boletim da Sociedade Archeologica Santos Rocha, n.º 1, pp. 10-12. FERREIRA, Ana Margarida (1994). Santos Rocha, o Museu Municipal e a Sociedade Arqueológica da Figueira da Foz 1894-1910. In PEREIRA, I. e CARDOSO, A. P. (coord.). Museu Municipal Dr. Santos Rocha. Centenário (1894-1994). Câmara Municipal da Figueira da Foz, pp. 73-94.
ROCHA, António dos Santos (1888, 1891, 1895 e 1900). Antiguidades pré-históricas do concelho da Figueira. Memória oferecida ao Instituto de Coimbra. Coimbra: Imprensa da Universidade. Em quatro partes. ROCHA, António dos Santos (1905). O Museu Municipal da Figueira da Foz. Catálogo Geral. Figueira: Imprensa Lusitana. ROCHA, António dos Santos (1949). Memórias e explorações arqueológicas. Vol.1. Antiguidades pré-históricas do concelho da Figueira da Foz. Coimbra: Por ordem da Universidade.
FERREIRA, Ana Margarida e CARDOSO, Ana Paula (coord.) (1999). Sociedade Arqueológica da Figueira 1898-1910. Centenário. Figueira da Foz: MMSR.
ROCHA, António dos Santos - [Carta] 1893 jul. 20, Figueira da Foz a Musée d’Archéologie Nationale] [Manuscrito]. 1893. 2 p. Autogr. Acessível no Musée d’Archeologie Nationale. Saint-Germainen-Laye: França.
FIGUEIREDO, António Mesquita de (1897). [Caderno manuscrito] IV: desde 6 de Junho de 1897 até 26 de Setembro de 1897. Lisboa, Figueira, Coimbra. Acessível no MMSR.
SOUSA, A. Júlio do Vale (1896). O Museu Municipal da Figueira da Foz. Branco e negro. n.º 29, pp. 43-47.
GUÉGAN DE LISLE, Paul (1874). Recherches géologiques et préhistoriques aux environs de Saint-Germain-en-Laye. Le dolmen de Conflans-Sainte-Honorine. In Mémoires de la Société des Sciences Morales des Lettres et des Arts de Seine-et-Oise. Tome dixième. Versailles. GUERRA, Victor e FERREIRA, Octávio da Veiga (1974). Inventário dos monumentos megalíticos dos arredores da Figueira da Foz. Arquivo de Beja, 1968-1970, 25-27, pp. 3-14. MORTILLET, Gabriel et Adrien (1881). Musée Préhistorique. Paris: C. Reinwald, Libraire - Éditeur. PEIXOTO, Augusto Rocha (1905). Excavações archeologicas, Portugalia, II, fasc. 1, pp. 122-123. PEREIRA, Isabel (1983). Os Imóveis Classificados do Concelho da Figueira da Foz. Cadernos Municipais 11. Câmara Municipal da Figueira da Foz.
VASCONCELOS, José Leite de (1896). Um monumento nacional.O Archeologo Português, II, p. 225. VASCONCELOS, José Leite de (1905). Lista de monumentos que pelo seu caracter historico, archeologico ou artistico são susceptiveis de se considerarem nacionaes. O Archeologo Português, X, pp. 38-41. VASCONCELOS, José Leite de (1918). Coisas Velhas. O Archeologo Português, XXIII, p. 361. VILAÇA, Raquel e CUNHA-RIBEIRO, João Pedro (2008). Das primeiras ocupações humanas à chegada dos Romanos à Beira Litoral. [Territórios da Pré-história em Portugal. vol. 4]. Tomar. Arkeos, 23. VILHENA, Henrique de (1937). O Dr. António dos Santos Rocha. Lisboa.
95
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
O Dólmen do Cabeço dos Moinhos (Serra da Boa Viagem, Figueira da Foz): contributo para o estudo das práticas funerárias pré-históricas do Centro de Portugal The Megalithic Monument of the Cabeço dos Moinhos (Serra da Boa Viagem, Figueira da Foz): contributions to the study of prehistoric funerary practices of the Centre of Portugal Ana M. S. Bettencourt1 . Ana Maria Silva2 . Cláudia Costa3 . Sofia Tereso2 . Carlos S. Cruz4
1 Landscapes, Heritage and Territory Laboratory (Lab2PT), Departamento de História, Universidade do Minho, Braga | anabett@uaum.uminho.pt 2 Laboratório de Pré-história, Centro de Investigação em Antropologia e Saúde (CIAS), Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra, Coimbra | amgsilva@antrop.uc.pt; sofiatereso@gmail.com 3 Interdisciplinary Centre for Archaeology and Evolution of Human Behaviour (ICArEHB), Universidade do Algarve, Faro | cmcosta@ualg.pt 4 Colaborador do Landscapes, Heritage and Territory Laboratory (Lab2PT) | simoes.cruz@gmail.com
96
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
O acervo do monumento megalítico do Cabeço dos Moinhos, escavado por Santos Rocha nos anos 80 do séc. XIX, foi originalmente publicado nos finais do séc. XIX. No âmbito do Projeto ENARDAS, desenvolvido entre 2011 e 2015, parte deste acervo, assim como a informação disponível sobre aspetos construtivos, foram alvo de revisão científica. Simultaneamente foram realizados estudos interdisciplinares sobre restos humanos e faunísticos, revistos alguns artefactos sobre osso de animal e efetuadas datas de C14. O texto que agora se publica dá a conhecer os resultados deste estudo com o objetivo de precisar as práticas funerárias efetuadas neste monumento megalítico. Na revisão dos artefactos sobre osso publicados identificou-se um botão perfurado e um fragmento de um eventual ídolo almeriense. Os restos faunísticos possibilitaram a identificação de cinco espécies de mamíferos, provavelmente resultantes de intrusões posteriores. Os restos humanos analisados pertencem a um mínimo de dez indivíduos, oito adultos (de ambos os sexos) e dois não adultos. Destes, um conjunto exibe diversas alterações relacionados com a exposição ao fogo. Este espólio revela, ainda, algumas das doenças que afetaram os indivíduos depositados. As datas de C14 efetuadas identificam uma ocupação neolítica, na primeira metade do 4.º milénio AC, associadas a inumações; uma reutilização na transição do 4.º para o 3.º milénio AC, durante os finais do Neolítico ou inícios do Calcolítico, associados a ossos cremados, e novas reutilizações na primeira metade do 3.º milénio AC, ou seja, no Calcolítico, associadas a artefactos sobre osso. Alguns artefactos cerâmicos indiciam reutilizações durante períodos posteriores. Foi ainda possível perceber que, pelo menos, a partir do Calcolítico Inicial, as populações que tumularam neste monumento se inserem numa cosmogonia similar às encontradas na Estremadura portuguesa e sudoeste Ibérico.
The collection of the megalithic monument of Cabeço dos Moinhos, excavated by Santos Rocha in the 80s of 19th century, was originally published in the late 19th century. As part of the ENARDAS Project, developed between 2011 and 2015, part of this collection, as well as the available information on constructive aspects, has been reviewed. At the same time, interdisciplinary studies on human and faunal remains were performed, some artefacts on animal bone were reviewed and radiocarbon dating was made. This paper discloses the results of this study in order to clarify the funerary practices performed in this megalithic monument. In the review of published bone artefacts, a perforated bud and a fragment of an eventual almerian idol were identified. Faunal remains made it possible to identify five species of mammals, probably resulting from later intrusions. The human remains analysed belong to a minimum of ten individuals, eight adults (of both sexes) and two non-adults. Of these, a set displays several changes related to fire exposure. This collection also reveals some of the diseases that affected the deposited individuals. The radiocarbon dating performed points to a Neolithic occupation in the first half of the 4th millennium BCE associated with inhumations; a reuse in the transition from the 4th to the 3rd millennia BCE, during the Late Neolithic or Early Chalcolithic, connected with cremated bones, and new reuses in the first half of the 3rd millennium BCE, i.e. in Chalcolithic, associated with bone artefacts. Some ceramic artefacts indicate reuse for later periods. It was also possible to realize that, at least, from the Early Chalcolithic, the populations that were buried in this monument are inserted in a cosmogony similar to those found in Portuguese Extremadura and South-western Iberian.
Palavras-chave: Neolítico; Calcolítico; Inumações; Cremações; Afinidades meridionais.
Keywords: Neolithic; Chalcolithic; Inhumations; Cremations; Southern cultural affinities. 97
O DÓLMEN DO CABEÇO DOS MOINHOS (SERRA DA BOA VIAGEM, FIGUEIRA DA FOZ): CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS PRÉ-HISTÓRICAS DO CENTRO DE PORTUGAL
Introdução O Cabeço dos Moinhos é um monumento megalítico funerário escavado por Santos Rocha na década de 80 do séc. XIX. Os resultados então obtidos foram, exaustivamente publicados, entre 1888 e 1900 na obra Antiguidades Pré-históricas do Concelho da Figueira [da Foz], reeditada em 1949, com o título Memórias e Explorações Arqueológicas. Com base nos estudos então efetuados o monumento foi caracterizado, segundo as palavras de Santos Rocha, como o “…maior e mais rico monumento de toda a região por nós explorada até ao presente”, com montículo artificial de grandes dimensões e composto por “terra amarelada sem mistura” (1895: 93; 1949: 139-140). A câmara teria 3 m de comprimento por 3,5 m de largura e adossava-se a um corredor diferenciado, ainda com 5 m de comprimento por 1 m de largura, apesar de incompleto.
Os esteios eram de diferentes tipos litológicos e de distintas colorações, desde o calcário branco, aos grés esbranquiçados, acinzentados, amarelados e avermelhados. O fundo da câmara teria sido coberto, pelo menos parcialmente, com “cascalho”. Este monumento, hoje destruído, encontravase na freguesia da Brenha, concelho da Figueira da Foz (Fig. 1). Segundo Santos Rocha (1949: 14 e 263) localizavase no Alto dos Moinhos, um “ponto assaz elevado”, a cerca de 200 m para sul da Brenha, “…quase no meio da região dolménica explorada desde as imediações do Cabo Mondego até à das Alhadas”, em um local pedregoso, agreste e batido pelo vento. Apesar destas informações a localização exata tornou-se difícil de identificar, pelo facto de, na toponímia local, o Alto ou Cabeço dos Moinhos corresponder a uma área relativamente extensa.
Figura 1 - Localizações prováveis para o Cabeço do Moinho em excerto da Carta Militar de Portugal, n.º 239, na escala 1: 25000, IGE, 2002 segundo diferentes autores: 1 - Carlos Cruz; 2 - Raquel Vilaça (1988); 3 - Isabel Pereira (informação oral); 4 - Victor Guerra e Octávio da Veiga Ferreira (1968-1970).
98
O DÓLMEN DO CABEÇO DOS MOINHOS (SERRA DA BOA VIAGEM, FIGUEIRA DA FOZ): CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS PRÉ-HISTÓRICAS DO CENTRO DE PORTUGAL
A localização proposta neste trabalho, que corresponde ao n.º 1 da Fig. 1, teve em conta as indicações da população local sobre os terrenos do proprietário referido por Santos Rocha. Durante as duas campanhas de escavações realizadas neste monumento foi encontrada grande quantidade de recipientes cerâmicos e de artefactos líticos e ósseos; algumas substâncias colorantes; fósseis; carvões e cinzas; restos de animais e de “esqueletos” humanos, alguns deles queimados. Santos Rocha descreve, detalhadamente, todos estes dados, além de tecer considerações sobre a importância de quem ali teria sido sepultado. Na década de 80 do séc. XX, Senna-Martinez (1982) estuda alguns materiais cerâmicos deste monumento identificando, então, duas taças de bordo espessado, de tipo Palmela, assim como um potinho de bordo esvasado, de perfil em S e de acabamento polido, que considera como sendo um vaso campaniforme liso. No âmbito do projeto Espaços Naturais, Arquitecturas, Arte Rupestre e Deposições da Préhistória Recente da Fachada Ocidental do Centro-norte Português: das Acções aos Significados (Enardas)1, da responsabilidade de um dos autores deste texto (AMSB), os dados documentais, o acervo artefactual e os restos animais e humanos, exumados por Santos Rocha foram revistos, tendo os resultados sido apresentados em diferentes comunicações e posters, entre 2013 e 2017, e parcialmente publicados em capítulo de livro, em 2014 (Cruz et al., 2014). Neste trabalho, os principais objetivos foram a identificação dos vários momentos genéricos de utilização do Cabeço dos Moinhos e o estudo das matérias-primas usadas na sua construção e na manufatura dos artefactos aí depositados. Deste modo foi possível confirmar a hipótese de reutilização do monumento durante o Calcolítico, defendido 1 Este projeto tinha como objetivo comparar a Pré-história Recente
de diferentes áreas-chave da fachada ocidental do Centro-norte e Norte de Portugal.
por Senna-Martinez (1982), através de um maior número de dados e, ainda, enquadrar nesta fase uma peça de marfim – um possível bracelete –, listado num estudo sobre artefactos desta matéria existentes em Portugal (Cardoso e Schumacher, 2012), além da identificação de reutilizações durante a Proto-história. Com base nas informações bibliográficas colocouse a hipótese de que os esteios de calcário branco seriam das imediações do monumento e de que os de grés esbranquiçados, acinzentados, amarelados e avermelhados, seriam originários de vertentes situadas a algumas centenas de metros para sul das áreas prováveis da sua localização. Já o montículo, pela descrição de Santos Rocha, foi considerado como tendo sido, maioritariamente, construído com sedimentos de natureza areno-argilosa, retirada de depósitos superficiais locais. Quanto às matérias-primas usadas na manufatura dos artefactos verificou-se que a tonalidade avermelhada de muitos recipientes cerâmicos neolíticos resultou da inclusão intencional de óxidos ou hidróxidos de ferro, na argila; que foi usada uma grande variedade de rochas e minerais para a manufatura dos artefactos líticos e que estes eram de proveniência local, regional (até um raio de 90 a 100 km), ou suprarregional. De proveniência regional foram considerados alguns tipos de sílex [como o sílex do Jurássico, proveniente da região de Cantanhede; o sílex paleogénico da região de Vagos e Mira (Formação de Queridas) e o sílex cretácico da região da Carpalhosa-Leiria ou da Nazaré]; o quartzito de grão muito fino, dos afloramentos com rochas ordovícicas da zona Centro-Ibérica (BuçacoPenacova) e o anfibolito e o quartzo hialino, das regiões graníticas da Beira Alta. De proveniência suprarregional consideraram-se as rochas verdes de diferentes composições mineralógicas, como as variedades de variscite e de talco. Com base na classificação litológica dos artefactos líticos identificaram-se os materiais mais significantes na sua produção, as redes de intercâmbio em que as comunidades neolíticas estavam implicadas para 99
O DÓLMEN DO CABEÇO DOS MOINHOS (SERRA DA BOA VIAGEM, FIGUEIRA DA FOZ): CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS PRÉ-HISTÓRICAS DO CENTRO DE PORTUGAL
os obter e a importância simbólica dos diferentes materiais no fabrico de determinados objetos usados durante as práticas funerárias. A ausência de traços de uso na maioria dos artefactos líticos (como nas pontas de seta, nas lâminas, nos micrólitos, nas enxós, entre outros) indiciou que foram fabricadas apenas para os ritos funerários. A identificação de fragmentos de lutito com óxido de ferro permitiu, também, colocar a hipótese de que poderiam ter servido como colorante para pinturas corporais ou nos esteios. Desta análise resultou a constatação da necessidade de se desenvolverem novos estudos que possibilitassem ampliar os conhecimentos sobre as práticas funerárias existentes no Cabeço dos Moinhos e a sua biografia na longa diacronia. Para tal efetuaram-se estudos de índole arqueológica, de arqueozoologia e de antropologia biológica, além de se terem efetuado cinco datas de radiocarbono por AMS, cujos resultados se dão a conhecer neste texto.
A reinterpretação de artefactos sobre osso Foram reanalisados dois artefactos sobre osso de fauna, tendo por base objetos similares, existentes noutros contextos da Ibéria. O primeiro que se publica foi considerado um pendente de colar devido às suas perfurações (Rocha, 1949: 162 e Est. XIX, Fig. 266a). Uma observação atenta possibilitou perceber que se trata de um objeto que, em termos de contorno, apresenta duas faces lisas e duas irregulares, com dupla perfuração circular disposta de forma assimétrica, sensivelmente a meio da peça. Tem acabamento polido, mede 23 mm no seu eixo maior, 21 mm no seu eixo menor e 0,25 mm de espessura e apresenta secção curva (Fig. 2). Quanto ao “suporte”, apesar de ter sido realizado sobre dente de animal foi impossível determinar se seria de dente de javali, tal como defendeu Santos Rocha (1949: 162). 100
Figura 2 - Desenho e fotografia do artefacto ósseo em estudo (desenho de Amélia Marques e fotografia de Manuel Santos).
Corresponde a um botão sobre dente de animal comum em contextos funerários da Extremadura e do sul da Península Ibérica. Os paralelos mais próximos para esta peça são um botão encontrado no hipogeu da Quinta do Anjo, em Palmela (Cardoso, 2004) e um outro da gruta da Cova da Moura, em Óbidos (Carreira e Cardoso, 2001-2002). O segundo objeto reanalisado foi considerado por Santos Rocha (1949: 159, Est. XVII, Fig. 208a) como correspondente à extremidade proximal de um possível furador. Trata-se de um artefacto de contorno trapezoidal, partido na extremidade menor e polido nas restantes, com 41 mm de comprimento por 26 mm de largura máxima e 4 mm de espessura, com secção sub-retangular (Fig. 3). Por paralelos com objetos similares da área meridional da Ibéria parece tratar-se do fragmento inferior ou da cabeça de um ídolo almeriense, um elemento ideotécnico existente, maioritariamente, em contextos funerários da Extremadura espanhola e da Andaluzia (Valera, 2012), mas com presença no Alentejo, como é o caso da Anta 1 do Olival da Pega, Reguengos de Monsaraz (Leisner e Leisner, 1985). Podem ocorrer, ainda, em menor número, em recintos de fossos do Sudoeste, como, por exemplo, nos Perdigões, em Reguengos de Monsaraz (Valera, 2012; Márquez-Romero et al., 2013). Datam do Neolítico Final/inícios do Calcolítico, ou seja, de entre os finais do 4.º e os inícios do 3.º milénios AC (Valera, 2012) (Fig. 4).
O DÓLMEN DO CABEÇO DOS MOINHOS (SERRA DA BOA VIAGEM, FIGUEIRA DA FOZ): CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS PRÉ-HISTÓRICAS DO CENTRO DE PORTUGAL
Figura 3 (em cima) - Desenho e fotografia da peça em estudo (desenho de Amélia Marques e fotografia de Manuel Santos). Figura 4 (em baixo) - Ídolos almerienses de meados do 4.º ao início do 3.º milénio AC dos Perdigões (Valera, 2012) e reconstituição de um ídolo almeriense a partir do fragmento ósseo do Cabeço dos Moinhos (Desenho de Amélia Marques).
101
O DÓLMEN DO CABEÇO DOS MOINHOS (SERRA DA BOA VIAGEM, FIGUEIRA DA FOZ): CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS PRÉ-HISTÓRICAS DO CENTRO DE PORTUGAL
Análise de restos ósseos animais Santos Rocha (1949: 183) refere um conjunto significativo de restos animais, provenientes deste monumento, como “um metacarpo de um boi, dentes e outros ossos de carneiro ou cabra, alguns ossos de cabrito, parte do maxilar inferior de porco, muitos ossos de coelho e alguns de lebre, um dente de javali, ossos de ave, e outros que não podemos classificar”, além de “– Um grande búzio (Triton nodiferus) com algumas fracturas, e fragmentos de outros” e de “– Fragmentos de conchas bivalves” que não foi possível estudar. Pelo contrário, a amostra analisada por uma das autoras (CC) e que se encontrava misturada com os restos humanos, é pequena, muito fragmentada, correspondendo apenas a 24 fragmentos (NTR). Estes foram identificados com recurso à coleção de referência do Laboratório de Arqueociências da Direção Geral do Património Cultural (LARC-DGPC). As espécies identificadas foram o coelho (Oryctolagus cuniculus); o gato (Felis sp./Cf. Felis sp.); o texugo europeu (Cf. Meles meles); o sapo (Bufo bufo), além de um elemento do género Sus sp. não tendo sido possível determinar se se trata de suíno doméstico ou selvagem. As espécies mais representadas são o coelho e o gato (Tabela I). Do porco foi encontrado, apenas, um fragmento de mandíbula. Quanto ao número mínimo de indivíduos (NMI) apenas o coelho correspondia a mais do que um animal, neste caso a três. Sendo o gato, o sapo e provavelmente o texugo, intrusões posteriores, colocaram-se problemas no momento de interpretar os restos de porco e de coelho, por serem animais comuns em contextos arqueológicos da Pré-história Recente do Sul da Ibéria, onde se encontram, frequentemente, em depósitos intencionais. Tal é o caso do porco que ocorre como a espécie bem representada em contextos do Neolítico Final e do Calcolítico (Valera e Costa, 2013). 102
O coelho é uma espécie muito frequente nos contextos arqueológicos desde o Paleolítico até à Pré-história Recente. A natureza antrópica da sua presença é muitas vezes colocada em causa devido ao comportamento fossorial da espécie (Hockett, 1991, 1999; Lloveras et al., 2008a, 2008b, 2009). No entanto, a existência, durante a Pré-história Recente, de inúmeras figuras de lagomorfos, em osso ou pedra, em contextos funerários da Estremadura e Alentejo, desde o Neolítico Final (Spindler, 1976) indicia a importância deste animal no decorrer das práticas funerárias (Bettencourt e Costa, 2017). Assim, optou-se por datar por radiocarbono um dente da mandíbula de porco e um fragmento de fémur de coelho para testar a eventual contemporaneidade destes animais com os outros materiais encontrados neste túmulo (Tabela II). Estas datações foram realizadas no International Chemical Analysis Lab, nos Estados Unidos da América. Como se pode observar pelas datações de radiocarbono, quer os restos de coelho quer de porco são de época histórica, sendo os de coelho da Alta Idade Média, entre os séculos VIII e X e os de porco de entre os séculos XV e XVII. De acordo com estes dados, é possível que toda a acumulação de fauna seja posterior à ocupação funerária e não possa ser relacionada com as cerimónias pré-históricas aqui praticadas. Relacionam-se, provavelmente, com intrusões no interior do monumento ou com ocupações ocasionais durante a Idade Média e Moderna.
Estudo dos restos ósseos humanos A coleção de restos ósseos estudada por duas autoras deste trabalho (AMS e ST) corresponde apenas a uma pequena parte dos restos humanos que aqui teriam sido depositados. A este propósito é de lembrar a informação veiculada a Santos Rocha, pelo proprietário do terreno onde se implantava
O DÓLMEN DO CABEÇO DOS MOINHOS (SERRA DA BOA VIAGEM, FIGUEIRA DA FOZ): CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS PRÉ-HISTÓRICAS DO CENTRO DE PORTUGAL
Tabela I Identificação dos restos faunísticos
Tabela II Datas de AMS de restos faunísticos Ref. do Lab.
Amostra
Data BP
Calibração - 2 Sigma
ICA 17B/0212
Fémur de O. cuniculus
1180±40 BP
720-741 AD (3,5%) 766-970 AD (91,9%)
ICA 14T/1113
Dente de mandíbula, Sus sp.
290±40 BP
1482-1666 AD (93.5%) 1784-1795 AD (1.9%)
o monumento, que afirma ter encontrado um número de ossos suficientes para encherem algumas cestas (Rocha, 1895: 96). Além disso este autor refere, quando descreve o espólio ósseo recuperado, a existência de “Muitos fragmentos de outros craneos. Um tem vestígios de dentes de pequenos animaes, sendo bem distintos os de um roedor. Outro apresenta cinco golpes, que parecem feitos com um machado de pedra de gume rectilíneo” (Rocha, 1895: 116). Estes fragmentos não fazem parte do espólio ósseo humano que chegou aos nossos dias. Atualmente, a coleção óssea humana depositada no Museu Municipal Santos Rocha é constituída
por aproximadamente 1 214 fragmentos ósseos (Fig. 5). Inclui fragmentos de todo o esqueleto, ainda que algumas regiões estejam pouco representadas e perto de metade da coleção apresente alterações devido à exposição ao fogo. Contudo, aquando da descoberta do monumento, este último conjunto seria em número muito menor que o de ossos sem sinais de fogo, de acordo com as descrições de Santos Rocha (1895: 116). Entre as alterações observadas sobressaem as cromáticas, predominando a cor preta, o que sugere a exposição a temperaturas baixas, entre os 200º e 300ºC. Contudo, perto de 10 fragmentos de ossos longos estão calcinados (temperaturas altas) (Fig. 6). 103
O DÓLMEN DO CABEÇO DOS MOINHOS (SERRA DA BOA VIAGEM, FIGUEIRA DA FOZ): CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS PRÉ-HISTÓRICAS DO CENTRO DE PORTUGAL
Figura 5 - Amostra óssea do Cabeço do Moinho depositada no Museu Municipal Santos Rocha. Note-se a presença de ossos de todas as regiões do esqueleto e das alterações cromáticas visíveis (predominantemente de cor preta) relacionadas com exposição ao fogo.
Fraturas provocadas por elevadas temperaturas – tipo thumbnail – foram registadas para dois fragmentos. Estas são geralmente associadas à queima com tecidos moles, ainda que, recentemente Gonçalves (2012) tenha demonstrado que este tipo de fratura também possa surgir em osso seco. Deste modo, a sua presença estaria mais relacionada com a preservação de
Figura 6 - Fragmento de osso longo com sinais claros de exposição a temperaturas elevadas, quer pela cor - calcinado - quer pela presença de fraturas transversais.
104
colagénio do que a condição pré-queima (Gonçalves et al., 2011). No presente caso, não é possível excluir que os corpos se encontrassem em diferentes estados quando foram sujeitos à ação do fogo. Neste conjunto estão representados, no mínimo, 10 indivíduos, dois não adultos (pelos talus – osso do pé) e 8 adultos (pelos restos mandibulares). Estes últimos incluem indivíduos de ambos os sexos, adultos jovens (20-30 anos), mas há evidências de indivíduos que terão falecido com mais de 40 anos de idade. No âmbito da análise morfológica, um fémur direito pertencente a um indivíduo do sexo feminino, permitiu estimar uma estatura de aproximadamente de 152±5,65 cm (recorrendo às fórmulas de Mendonça, 2000). Em três fragmentos de fémures (um esquerdo e dois direitos) foi possível estimar o índice de achatamento. A média obtida, de 75,5, traduz a presença de platimeria, ou seja, a existência de achatamento da diáfise proximal dos fémures. Esta, reflete um stress biomecânico diário sobre esta região do esqueleto. Ao nível dos caracteres não métricos do
O DÓLMEN DO CABEÇO DOS MOINHOS (SERRA DA BOA VIAGEM, FIGUEIRA DA FOZ): CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS PRÉ-HISTÓRICAS DO CENTRO DE PORTUGAL
esqueleto pós-craniano, 75% (3/4) dos fémures têm fossa hipotrocanteriana e 25% (1/4), o 3.º trocânter. Estes dois caracteres são usualmente observados em amostras coevas (Silva, 2003). Neste pequeno conjunto ósseo, foram identificados diversos tipos de patologias: oral, traumática, degenerativa articular e não articular, infecciosa e indicadores de stress fisiológico. No âmbito da patologia oral, destaca-se uma mandíbula pertencente a um indivíduo adulto, provavelmente do sexo feminino. Esta, apresenta perda antemortem do 2.º pré-molar e do 1.º molar esquerdos, um desgaste dentário médio (grau 4 na escala de Smith, 1984 modificada por Silva, 1996), uma pequena lesão cariogénica no 2.º molar esquerdo e pequenos depósitos de tártaro. Sinais de periostite (patologia infecciosa), remodelada, foi registada na região posterior e distal da diáfise de um fémur esquerdo. Evidências de uma fratura antiga, completamente remodelada foi detetada num metacarpiano (Fig. 7). Patologia degenerativa articular, artrose, está patente no corpo de uma vértebra lombar sob a forma de osteófitos (crescimentos ósseos) e na região articular distal de um fragmento de calcâneo direito. Lesões degenerativas não articulares, relacionadas com microtraumatismos em regiões musculares foram observadas na zona de inserção do bíceps de um
fragmento de rádio esquerdo (Fig. 8) e na região proximal de um fémur direito. Indicadores de stress fisiológico foram detetados em dois fragmentos cranianos: uma órbita direita revela porosidade devido à cribra orbitalia e um fragmento de osso parietal, apresenta alterações compatíveis com hiperostose porótica. Estas são geralmente associadas a anemias relacionadas com falta de ferro. Saliente-se que as lesões se encontram remodeladas. A análise antropológica dos restos ósseos humanos preservados do Cabeço dos Moinhos representa um contributo inquestionável para o conhecimento das populações do Neolítico. A presente abordagem permite inferências relevantes ao nível das práticas funerárias, mas ainda do perfil biológico e patológico destas comunidades humanas. De acordo com Santos Rocha (1895: 169, 173), os corpos teriam sido depositados em posição de cócoras e cobertos por terra. Um aspeto particular é a presença de ossos sujeitos a fogo. Santos Rocha (1895: 170-172) discute as possíveis motivações para os ossos terem sido sujeitos a fogo, destacando duas, com fins de desinfestação e de incineração, concluindo em favor da primeira, face às evidências observadas (Rocha, 1895: 173). Entre estas, destaca a ausência de sinais de fogo nas lajes do monumento, o número baixo de carvões recuperados e a predominância de fragmentos cranianos entre
Figura 7 (esquerda) - Sinais de uma linha de factura observada num metacarpiano (setas). Trata-se de um trauma antigo, completamente remodelado. Figura 8 (direita) - Região do bíceps de um fragmento de rádio esquerdo com lesões degenerativas não articulares.
105
O DÓLMEN DO CABEÇO DOS MOINHOS (SERRA DA BOA VIAGEM, FIGUEIRA DA FOZ): CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS PRÉ-HISTÓRICAS DO CENTRO DE PORTUGAL
os restos cremados. Este último aspeto, segundo Santos Rocha, poderia ser explicado pela posição de cócoras dos corpos, tornando-se o crânio a parte mais exposta a um fogo de superfície com fins de desinfestação (Rocha, 1895: 169). Apesar de não se poder excluir a hipótese de fogo não intencional, nos últimos anos, têm vindo a crescer as evidências da importância do fogo nas práticas funerárias das comunidades humanas a partir do Neolítico Final/ Calcolítico (Pereira et al., 2014; Silva et al. 2015). No presente caso, as datações por radiocarbono confirmaram uma cronologia distinta para os dois conjuntos (ver abaixo), implicando uma revisão da interpretação inicial dos dados. Os restos ósseos humanos correspondem a um mínimo de 10 indivíduos (não adultos e adultos de ambos os sexos), um número inferior à estimativa de 15 indivíduos realizada por Santos Rocha (1895: 116), ainda assim expectável face à conhecida perda de material ósseo. Através do perfil patológico foi possível aceder a algumas doenças e lesões que estes indivíduos sofreram em vida. É de ressaltar que as patologias observadas são remodeladas, representando eventos antigos, ocorridos antes da morte dos indivíduos.
Outras datações absolutas Foram realizadas três datações de radiocarbono por AMS, duas no laboratório Beta Analytic Inc., Miami, nos Estados Unidos e uma terceira no laboratório referido anteriormente, sendo duas de restos humanos e uma de um artefacto efetuado sobre osso de animal, inclassificável (Tabelas III e IV). As de restos humanos tinham como objetivos datar o momento das inumações efetuados no Cabeço dos Moinhos e se as cremações eram de cronologia pré-histórica. Com a terceira pretendia-se obter mais informação sobre o uso ou reutilização do monumento durante a Pré-história.
106
Os resultados mostram que, pelo menos, algumas inumações ocorreram durante o segundo quartel do 4.º milénio AC, no Neolítico; que as cremações são antigas e se inserem na transição do 4.º para o 3.º milénios AC, no Neolítico Final/Calcolítico e que o artefacto de osso analisado foi efetuado a partir de um animal que morreu na primeira metade do 3.º milénio AC, ou seja durante o Calcolítico.
Discussão dos dados e considerações finais Tendo em conta o conjunto de dados analisados (Cruz et al., 2014), os estudados no âmbito deste trabalho e as datas absolutas verifica-se, de imediato, uma utilização do monumento megalítico do Cabeço dos Moinhos durante mais de 4 000 anos, de forma, provavelmente, descontinuada no tempo. De uma forma geral pode considerar-se que, durante o segundo quartel do 4.º milénio AC, ou seja, no Neolítico Médio, este monumento estava construído e em atividade, tendo aí sido inumados indivíduos adultos de ambos os sexos e de diferentes idades, de cócoras, revelando sinais de diversas patologias, incluindo infecciosa, degenerativa, traumática e indicadores de stress fisiológico. Saliente-se que as lesões detetadas são remodeladas, traduzindo eventos antigos. Será deste período a maioria dos artefactos cerâmicos e líticos encontrados nas antigas escavações. A partir do resultado da datação absoluta por AMS da amostra Beta 383085 pode considerar-se que, na transição do 4.º para o 3.º milénios AC, ou seja, durante o Neolítico Final ou inícios do Calcolítico, consoante as regiões, e mais de 500 anos depois das inumações referidas, este monumento megalítico foi reutilizado para aí se depositarem corpos cremados, de indivíduos adultos e não adultos. Talvez a este período genérico se possa associar o possível ídolo almeriense atendendo às datações em que este tipo de objetos têm sido encontrados (Valera, 2012).
O DÓLMEN DO CABEÇO DOS MOINHOS (SERRA DA BOA VIAGEM, FIGUEIRA DA FOZ): CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS PRÉ-HISTÓRICAS DO CENTRO DE PORTUGAL
Tabela III Datações de AMS de restos humanos
Ref. do Lab.
Amostra
Data BP
Calibração - 2 Sigma 3793-3659 BC
Beta 383084
Osso humano – não cremado
4960±30 BP
Beta 383085
Osso humano – cremado
4360±30 BP
3085-3064 BC (5.6%) 3028-2904 BC (89.8%)
Tabela IV Datação de artefacto ósseo
Ref. do Lab. ICA 14B/1114
Amostra
Data BP
Calibração - 2 Sigma
Fragmento de artefacto ósseo, indeterminado
4220±40 BP
2908-2838 BC (37.1%) 2815-2674 BC (58.3%)
Esta alteração nas práticas funerárias é importante na medida em que demonstra a existência de cremações a partir de momentos muito antigos (finais do 4.º, inícios do 3.º milénios AC), no ocidente da Ibéria, fenómeno também conhecido no Alto Alentejo, nomeadamente na Anta da Bola de Cera, Marvão, onde restos ósseos cremados foram datados de 4360±50 (ICEN-66) segundo Oliveira (1997: 613). Esta prática irá manter-se durante a primeira metade do 3.º milénio AC, tal como se verifica numa fossa do interior do recinto dos Perdigões, Reguengos de Monsaraz (Valera et al., 2000; Pereira et al., 2015; Silva et al., 2015) e, pelo menos, até ao 3.º quartel do 3.º milénio AC, como se registou em Agro de Nogueiro, na Galiza (Bettencourt e Meijide, 2009). A abrangência geográfica deste fenómeno, pela fachada ocidental da Península Ibérica, assim como a sua amplitude cronológica, no contexto do 3.º milénio AC, pode contribuir para explicar uma certa invisibilidade ou “desinvestimento” nos contextos funerários deste período. O resultado da datação absoluta ICA 14B/1114 a partir de um fragmento de artefacto ósseo indica que,
durante a primeira metade do 3.º milénio AC, ou seja, em pleno Calcolítico, o monumento megalítico do Cabeço dos Moinhos continuou a ser reutilizado sem que se saiba se os ritos fúnebres correspondiam a inumações ou a cremações ou aos dois em simultâneo. Talvez já na segunda metade do 3.º milénio AC se tenha depositado o corpo de alguém de estatuto social importante, cujas vestes fúnebres implicaram a aplicação de um botão em osso – um objeto de exceção, muito comum nos hipogeus da Estremadura (Soares, 2003). A este mesmo período se poderá integrar duas taças de tipo Palmela, também comuns na Estremadura portuguesa (Soares, 2003), e um eventual bracelete, em marfim, demonstrando que durante todo o Calcolítico a foz do Mondego se insere num universo cosmogónico com afinidades na Estremadura Portuguesa e no Sudoeste da Ibéria. Se o monumento megalítico do Cabeço dos Moinhos parece ter sido reutilizado ao longo de todo o 3.º milénio AC, já durante a Proto-história, as reutilizações apresentam-se como muito pontuais e para fins que se desconhecem, dada a escassez de materiais inseríveis nesta etapa genérica. 107
O DÓLMEN DO CABEÇO DOS MOINHOS (SERRA DA BOA VIAGEM, FIGUEIRA DA FOZ): CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS PRÉ-HISTÓRICAS DO CENTRO DE PORTUGAL
Referências bibliográficas BETTENCOURT, Ana M. S. e MEIJIDE CAMESSELE, Gonzalo (2009). Agro de Nogueira, Melide, Lugo: novos dados e novas problemáticas. Gallaecia, 28, pp. 33-40. BETTENCOURT, Ana M. S. e COSTA, Cláudia (2017). Figurines of Lagomorphs versus rabbit remains in funerary contexts of Central and Southern Portugal. Data and problems, Poster apresentado no EZI2017- Iberian Zooarchaeology Meeting 2017, Faro: Portugal, 26-29 abril. Acessível em https://www.academia.edu/32615348/ CARDOSO, João Luís (2004). A Baixa Estremadura dos finais do IV milénio até à chegada dos Romanos: um ensaio de História regional, Oeiras. Estudos Arqueológicos de Oeiras, vol. temático, n.º 12. CARDOSO, João Luís e SCHUHMACHER, Thomas X. (2012). Marfiles Calcolíticos en Portugal. Estado de la quistión. In BANERJEE, A.; LÓPEZ PADILLA, A. e SCHUHMACHER, Thomas X. (eds.), Elfenbein-studien. Faszikel 1: Marfil y Elefantes en la Península Ibérica y el Mediterráneo Occidental. Actas del Coloquio Internacional en Alicante el 26 y 27 de noviembre 2008. Darmstadt/ Mainz: Deutsches Archäologisches Institut, Diputación de Alicante: Museo Arqueológico de Alicante, pp. 95-110. CARREIRA, Júlio R. e CARDOSO, João Luís (2001-2002). A gruta da Casa da Moura (Cesareda, Óbidos) e a sua ocupação pós-paleolítica. Estudos Arqueológicos de Oeiras, 10, pp. 249-362. CRUZ, Carlos et al. (2014). Materiais de construção e objetos líticos nas práticas funerárias neolíticas da Serra da Boa Viagem (Centro-Oeste de Portugal). O caso do monumento megalítico do Cabeço dos Moinhos, Figueira da Foz. In BETTENCOURT, Ana M. S. et al. (eds.), Corpos e Metais na Fachada Atlântica da Ibéria. Do Neolítico à Idade do Bronze. Braga: APEQ, CITCEM, pp. 5-28. GONÇALVES, David (2012). Cremains. The Value of Qantitative Analysis for the Bioanthropological Research of Burned Human Skeletal Remains. Coimbra: University of Coimbra. Doctoral Thesis. GONÇALVES, David; THOMPSON, Tim J. e CUNHA, Eugénia (2011). Implications of heat-induced changes in bone on the interpretation of funerary behaviour and practice. Journal of Archaeological Science, 38(6), pp. 1308-1313. GUERRA, Víctor e FERREIRA, Octávio da Veiga (1968-1970). Inventário dos monumentos megalíticos dos arredores da Figueira da Foz. Arquivo de Beja, 25-27, pp. 45-56.
108
HOCKETT, Brian S. (1991). Toward distinguishing human and raptor patterning on leporid bones. American Antiquity, 56(4), pp. 667-679. HOCKETT, Brian S. (1999). Taphonomy of a carnivore‐accumulated rabbit bone assemblage from Picareiro Cave, Central Portugal. Journal of Iberian Archaeology, 1, pp. 251‐256. LEISNER, Georg e LEISNER, Vera (1985). Antas do concelho de Reguengos de Monsaraz. Lisboa: Uniarch/INIC. LLOVERAS, Lluís; MORENO-GARCIA, Marta e NADAL, Jordi (2008a). Taphonomic study of leporid remains accumulated by Spanish Imperial Eagle (Aquila adalber 1). Geobios, 41(1), pp. 91‐100. LLOVERAS, Lluís; MORENO-GARCIA, Marta e NADAL, Jordi (2008b). Taphonom analysis of leporid remains obtained from modern Iberian lynx (Lynx pardinus) scats. Journal of Archaeological Science, 35(1), pp. 1‐13. LLOVERAS, Lluís; MORENO-GARCIA, Marta e NADAL, Jordi (2009). The Eagle Owl (Bubo bubo) as a Leporid Remains Accumulator: taphonomic analysis of modern rabbi remains recovered from nests of this predator. Internatinal Journal of Osteoarchaeology, 19(5), pp. 573-592. MÁRQUEZ-ROMERO, José Enrique et al. (2013). Dataciones absolutas para el Foso 1 de Perdigões (Reguengos de Monsaraz, Portugal). Reflexiones sobre su cronología y temporalidad. SPAL, 22, pp. 17-27. MENDONÇA, Maria Cristina (2000). Estimation of height from the length of long bones in a Portuguese adult population. American Journal of Physical Anthropology: the Official Publication of the American Association of Physical Anthropologists, 112(1), pp. 39-48. OLIVEIRA, Jorge M. F. (1997). Monumentos megalíticos da bacia hidrográfica do rio Sever, (Ibn Maruán, 7). PEREIRA, Daniela et al. (2014). Para lá das cinzas: Evidências de patologia nos remanescentes ósseos humanos cremados do Calcolítico final, exumados do ambiente 1 do recinto dos Perdigões. Poster apresentado nas IV Jornadas de Paleopatologia. Coimbra, 21 e 22 de novembro. Acessível em http://cias.uc.pt/about-us/publications/posters-presented/
O DÓLMEN DO CABEÇO DOS MOINHOS (SERRA DA BOA VIAGEM, FIGUEIRA DA FOZ): CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS PRÉ-HISTÓRICAS DO CENTRO DE PORTUGAL
REIMER, Paula J. et al. (2013). IntCall3 and Marine13 Radiocarbon Age Calibration Curves 0-50,000 Years cal. BP. Radiocarbon, 55 (4), pp. 1869-1887. ROCHA, António Santos (1888; 1891; 1895; 1900). Antiguidades Prehistoricas do Concelho da Figueira. Coimbra: Imprensa da Universidade. ROCHA, António Santos (1949). Memórias e Explorações Arqueológicas. Antiguidades Pré-históricas do Concelho da Figueira da Foz. Vol. 1. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis.
VALERA, António Carlos e COSTA, Cláudia (2013). Animal limbs in funerary contexts in southern Portugal and the question of segmentation. Anthropozoologica, 48 (2), pp. 263-275. Acessível em https://doi.org/10.5252/az2013n2a5 VALERA, António Carlos et al. (2000). Ambientes funerários no complexo arqueológico dos Perdigões: uma análise preliminar no contexto das práticas funerárias calcolíticas no Alentejo. Era Arqueologia, 2, pp. 84-105. VILAÇA, Raquel (1988). Subsídios para a Pré-história Recente do Baixo Mondego. (Trabalhos de Arqueologia 5). Lisboa: IPPC.
SENNA-MARTÍNEZ, João Carlos (1982). Materiais campaniformes do concelho de Oliveira do Hospital (distrito de Coimbra). Clio: Revista do Centro de História da Universidade de Lisboa, 4, pp. 19-34. SILVA, Ana Maria (1996). O Hipogeu de Monte Canelas I (IV-III milénios a.C.): Estudo paleobiológico da população humana exumada. Trabalho de síntese. Coimbra: Departamento de Antropologia, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica. SILVA, Ana Maria (2003). Portuguese Populations of the Late Neolithic and Chalcolithic Periods exhumed from Collective burials: an overview. Anthropologie, 41 (1-2), pp. 55-64. SILVA, Ana Maria et al. (2015). Collective secondary cremation in a Pit Grave: a unique funerary context in Portuguese Chalcolithic burial practices. Homo-Journal of Comparative Human Biology, 66 (1), pp. 1-14. SMITH, B. H. (1984). Patterns of molar wear in hunter-gatheres and agriculturalists. Am. J. Phys. Anthopol., 63, pp. 39-84. SOARES, Joaquina (2003). Os hipogeus pré-históricos da Quinta do Anjo (Palmela) e as economias do Simbólico. Setúbal: Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal. SPINDLER, Konrad (1976). Die Neolithische Parede gruppe in Mittelportugal. Madrider Mitteilungen, 17, pp. 21-75. VALERA, António Carlos (2012). Ídolos Almerienses provenientes de contextos neolíticos do complexo de recintos dos Perdigões. Apontamentos de Arqueologia e Património, 8, pp. 19-28.
109
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Os ocupantes dos monumentos megalíticos da região da Figueira da Foz escavados por Santos Rocha: o que os seus restos ósseos nos revelam The occupants of the megalithic monuments of the region of Figueira da Foz excavated by Santos Rocha: what their bones reveal us Ana Maria Silva1
1
Universidade de Coimbra, Centro de Investigação em Antropologia e Saúde, Departamento de Ciências da Vida, Laboratório de Pré-história; Universidade de Coimbra, CEF, Departamento de Ciências da Vida; UNIARQ - Universidade de Lisboa | amgsilva@antrop.uc.pt
110
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
Entre os finais do século XIX/princípios do século XX, António dos Santos Rocha escavou diversos monumentos megalíticos na região da Figueira da Foz. Alguns revelaram restos ósseos humanos, muito remexidos e fragmentados, que acabaram por ficar esquecidos nos acervos do Museu Municipal Santos Rocha (Figueira da Foz) e, deste modo, a biografia dos indivíduos a que pertenceram. No presente trabalho iremos revisitar este espólio ósseo humano para aceder aos dados demográficos, morfológicos, indicadores de stress fisiológico, patologias e lesões que estes indivíduos sofreram e, deste modo, conhecermos um pouco da vida dos que foram depositados nestes túmulos megalíticos.
Between the end of the 19th/beginning of the 20th centuries, António dos Santos Rocha excavated several prehistoric megalithic monuments in the region of Figueira da Foz. Some of them revealed human bone remains, very disturbed and fragmented, which ended up being forgotten in the Municipal Museum of Santos Rocha (Figueira da Foz) and, thus, the biography of the individuals to which they belonged. In the present work, we will revisit these human bone collections to access demographic, morphological data, physiological stress indicators, pathologies and injuries that these individuals suffered and, in this way, get insights about the lives of those who were deposited in these megalithic tombs.
Palavras-chave: Ossos humanos; Megalíticos; Perfil biológico e paleopatológico; Trepanação; Figueira da Foz.
Keywords: Human bones; Megalithic tombs; Biological and paleopathological profile; Trepanation; Figueira da Foz. 111
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
Introdução Entre os finais do século XIX/princípios do século XX, António dos Santos Rocha escavou diversos monumentos megalíticos da região da Figueira da Foz, alguns dos quais com ossos humanos. Os dados destes trabalhos foram descritos entre 1888 e 1900 nos quatro volumes de Antiguidades Prehistoricas do Concelho da Figueira (1888; 1895; 1897; 1900), reeditados em 1949, com o título Memórias e Explorações Arqueológicas. Posteriormente, em 1969, Vitor Guerra publica um conjunto de manuscritos de Santos Rocha, de comunicações preparadas por este para a “XV Sessão Plenária da Sociedade Arqueológica da Figueira da Foz”, agendada para Abril de 1910, que não veio a realizar-se devido ao seu falecimento. Entre estes, e com relevância antropológica, incluem-se o ensaio III, sobre práticas funerárias das comunidades neolíticas e o V, sobre o Megálito da Cumieira. A maioria dos túmulos, apesar de profanados, incluía ossos humanos, ainda que muito remexidos e fragmentados. Descrições bastante completas, tendo em conta a época, podem ser encontradas na obra acima referida, incluindo um inventário sumário e algumas considerações antropológicas. Este espólio acabou por ficar esquecido no acervo do Museu Municipal Santos Rocha (MMSR) da Figueira da Foz sem nunca ter sido estudado de forma exaustiva, com excepções pontuais, como a possível trepanação proveniente do Megálito da Capela (Silva, 2003). A este dado, junta-se a perda significativa deste espólio. No início dos 1.º e 2.º volumes da obra acima citada, Santos Rocha incluiu uma nota designada por Advertencias, onde alerta que, os números indicados junto a alguns objectos (incluindo ossos humanos), são os atribuídos aos oferecidos ao Instituto de Coimbra. Pela leitura da referida obra, trata-se de um conjunto significativo e cujo paradeiro se perdeu com o desaparecimento do referido Instituto, estendendo-se a perda às colecções descritas nos últimos dois volumes. No presente trabalho iremos revisitar este espólio ósseo humano para aceder aos dados demográficos, 112
morfológicos, patologias que estes indivíduos sofreram e, deste modo, conhecermos um pouco da vida dos que foram depositados nestes túmulos megalíticos. Os monumentos serão analisados na sequência apresentada por Santos Rocha. Refira-se que está a ser realizada a recuperação e interpretação de toda a documentação antiga do Museu, tais como, cadernos de campo, listagens de peças, assim como a inventariação exaustiva de todo o espólio, nomeadamente da reserva antiga, o que num futuro próximo poderá contribuir para esclarecer algumas das dúvidas existentes.
Os Monumentos Megalíticos No 1.º volume, Santos Rocha descreve quatro monumentos: os Megálitos da Cumieira, Cabeço dos Moinhos, Serra de Brenha e das Carniçosas, todos revelando ossos humanos, particularmente o último. Porém, hoje em dia não é conhecido o paradeiro das últimas duas colecções. Cabeço dos Moinhos foi descrito de forma mais aprofundada no 3.º volume, após a segunda intervenção no monumento, optando-se por apresentar os dados juntamente com as estações desse volume.
Megálito da Cumieira No prefácio da sua obra, o mesmo autor, refere que no princípio do mês de Abril de 1886 tomou conhecimento que perto da povoação de Brenha, existia um montículo de terra e pequenas pedras conhecidas pelo nome de “mammoinha”. Constava da tradição oral que, trinta anos antes, o então proprietário descobrira “mettidos entre grandes pedras, muitos ossos humanos e algumas lascas de pederneira, tão afiadas como navalhas de barba” (Rocha, 1888: V). A crença de eventuais tesouros incentivou escavações clandestinas que levaram à destruição do monumento, sendo várias pedras levadas para serem utilizadas como mós. Ainda
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
assim, Santos Rocha decide explorar o túmulo e reunir todos os dados possíveis. Este teria sido formado por quatro pedras de suporte (de grés, as duas do lado Norte; de calcário, as duas do Sul). Escavou perto de 1,8 m de profundidade em todo o espaço que pressupôs ter sido ocupado pelo megálito, encontrando tudo remexido, confirmando que este tinha sido várias vezes profanado. Entre os ossos humanos, incluíam-se “Pequenos fragmentos de esqueleto humano, uns pertencentes ao craneo, outros aos membros e ao tronco, e um dente incisivo, gasto obliquamente (n.os 114, 125 e 1341)”. Destaca ainda um fragmento do lado direito de mandíbula, cujos 1.º e 2.º molares apresentam um desgaste dentário severo, perda antemortem recente do 3.º molar, uma tíbia platicnémica e diversos ossos com marcas de roedores (Rocha, 1888; 13-14). Posteriormente, em Junho de 1909, a descoberta de Anselmo d’Oliveira Cardoso “d’umas pedras que nós não conhecíamos e dos fragmentos d’um vaso de barro e alguns ossos humanos encontrados entre ellas” levou Santos Rocha a explorar de novo a zona e descobrir as ruínas da câmara, já só com um único suporte, e da galeria com um comprimento de 3,30 m e 0,80 m de largura. Entre os achados, constam alguns fragmentos de ossos humanos e mobiliário funerário, incluindo uma ponta de seta, um machado de xisto, duas facas, uma taça de barro, dois fragmentos de outro vaso e duas conchas de Triton nodiferus, sem as primeiras voltas da espira, indicando, segundo Santos Rocha, terem servido de tuba (Guerra, 1969: 274-276). Presentemente, para além de um conjunto de ossos não humanos (n=7), preservaram-se quatro fragmentos ósseos de indivíduos adultos, correspondendo a um número mínimo de um adulto. A peça mais completa é a metade distal da diáfise de um úmero esquerdo, sem abertura septal e com uma lesão mínima degenerativa na crista supracondilar. Esta tem uma etiqueta antiga com o número 1499 (Fig. 1). De acordo com o
Catálogo Geral do Museu Municipal da Figueira esta, corresponde a “Ossos humanos provenientes dos dolmens da Cumieira, da Serra de Brenha e das Carniçosas” e estava exposta na 9.ª vitrine, no meio da sala, dedicada ao homem do Neolítico (Rocha, 1905: 55). Esta colecção inclui ainda três pequenos fragmentos ósseos embebidos em concreções calcárias: um craniano, um da parte posterior de uma vértebra e um da região do canal auditivo do osso temporal, podendo corresponder ao conjunto encontrado em 1909. Em 1895, Santos Rocha publica o 2.º volume das Antiguidades Prehistoricas, onde estão descritos os monumentos de Porto Saboroso e a sepultura da Asseiceira, sendo desconhecido, de momento, o paradeiro dos restos ósseos desta última.
Porto Saboroso Santos Rocha (1895: 48; 75) refere por duas ocasiões que não foram recuperados ossos humanos de Porto Saboroso. Contudo, actualmente, existem 18 fragmentos ósseos atribuídos a este dólmen, de várias regiões do esqueleto: crânio, mandíbula, ossos longos, vértebra e osso coxal. Alguns encontramse embebidos em concreções calcárias. Estes, pertencem, no mínimo, a um indivíduo adulto. Entre estes, um fragmento do lado direito de mandíbula preserva ainda os 2.º pré-molar e 1.º molar, com um desgaste dentário respectivamente de grau 3 (médio-baixo) e 5 (médio-alto2), sem lesões cariogénicas nem depósitos de tártaro (Fig. 2). O fragmento da sínfise púbica apresenta alterações compatíveis com um adulto não muito velho. No 3.º volume das Antiguidades Prehistoricas (1888), as estações com restos ósseos humanos abordadas são Cabeço dos Moinhos, Mama do Furo e o Megálito de Santo Amaro da Serra. Deste último, desconhece-se o paradeiro actual dos ossos. 2
1 Números atribuídos às peças oferecidas ao Instituto de Coimbra.
Numa escala de 8 graus de acordo com Smith, 1984 modificado por Silva, 1996.
113
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
Figura 1 (em cima) - Metade distal de diáfise de úmero esquerdo com uma etiqueta antiga que confirma a proveniência do Megálito da Cumieira de acordo com o Catálogo Geral do Museu Municipal da Figueira. Figura 2 (em baixo) - Fragmento do lado direito de uma mandíbula recuperada de Porto Saboroso com o 2.º pré-molar e 1.º molar.
114
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
Cabeço dos Moinhos
Mama do Furo
O espólio desta estação foi abordado de forma mais aprofundada no artigo de Bettencourt et al. neste volume, pelo que aqui serão destacados apenas os aspectos mais relevantes. Actualmente, os 1 214 fragmentos ósseos preservados, de todo o esqueleto, correspondem a um mínimo de 10 indivíduos, dois não adultos (talus) e oito adultos (restos mandibulares), de ambos os sexos, adultos jovens (20/30) e adultos com mais de 40 anos de idade. Os fémures revelam achatamento (n=2; média: 77,4), presença de fossa hipotrocanteriana (3/4) e 3.º trocânter (1/4) (Fig. 3). Neste conjunto ósseo foram identificadas diversas patologias: oral, traumática, degenerativa articular e não articular, infecciosa e indicadores de stress fisiológico. De referir que perto de metade da colecção óssea apresenta alterações devido à exposição a temperaturas baixas (200º-400ºC), excepto 10 fragmentos de ossos longos que estão calcinados (temperaturas altas).
Em 1889 Santos Rocha descobre o Monumento da Mama do Furo. Este situa-se num dos pontos mais altos da parte Ocidental da Serra da Boa Viagem (freguesia de Quiaios), a cerca de 70 m da estrada florestal que segue da povoação da Serra, passando junto à Capela de Santo Amaro (Vilaça, 1986). Após uma primeira exploração em Outubro de 1889 para confirmar os achados, a primeira intervenção é realizada em Setembro de 1890. Tal como os restantes túmulos, encontrava-se muito remexido, tendo sido localizada a câmara e parte da galeria, sem restos ósseos nem mobiliário funerário (Rocha 1895: 121). No ano seguinte, ao voltarem ao local constataram que tinha sido novamente e profundamente profanado, e que todas as lajes tinham desaparecido. Havia notícia de que ao arrancarem uma das lajes da câmara, se tinham encontrado ossos humanos junto à sua base (Rocha 1895: 122). Ao inspeccionarem o entulho revolvido conseguiram recuperar entre outros, três pontas de
Figura 3 - Fémur direito 1097 com fossa hipotrocanteriana e 3.º trocânter proveniente da amostra não queimada do Cabeço dos Moinhos.
115
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
setas partidas, uma lasca de sílex, fragmentos de cerâmica e ossos humanos. Estes, estavam cobertos e/ou penetrados por uma forte camada de tufo calcário e incluíam o corpo de uma mandíbula, região proximal de um fémur, fragmentos de crânio, ossos longos (incluindo mais dois fémures e uma tíbia com uma platicnemia muito atenuada), conjunto este, cujo paradeiro se desconhece. Presentemente esta amostra é constituída por 78 fragmentos ósseos, todos pertencentes ao crânio, com excepção de dois dentes, um fragmento de diáfise de fémur e um da parte posterior de uma vértebra lombar. Um fragmento de osso occipital tem uma etiqueta antiga com a designação 1500, que no Catálogo Geral (Rocha, 1905: 55) está atribuída a esta estação. Merecem ainda referência dois fragmentos cranianos, um occipital e um
parietal que apresentam coloração avermelhada compatível com pigmento (Fig. 4). Os dentes, um incisivo lateral e canino superiores esquerdos, apresentam um desgaste dentário médio/alto, sem lesões cariogénicas ou depósitos de tártaro. O último volume publicado das Antiguidades Prehistoricas (1900) inclui a descrição de 11 megálitos. Destes, para os Megálitos do Feital, do Cabeço da Mamoinha, dos Covões das Cavadas e da Estrumeira há referência de que não foram encontrados ossos humanos, acontecendo o contrário para os da Capela, Cabecinha, Cabecinha Grande, Facho, Corredoura e do Casal da Serra das Alhadas. Porém, para os últimos dois, não existem actualmente registos de restos ósseos no MMSR. O Megálito do Praso é descrito de forma resumida, uma vez que se encontrava completamente destruído, não havendo
Figura 4 - Coloração avermelhada nos fragmentos de ossos parietal e occipital provenientes do Megálito Mama do Furo compatíveis com pigmento.
116
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
referência à existência de ossos humanos. Porém, existe um pequeno conjunto de ossos atribuído a esta estação no acervo do Museu.
Megálito da Capela Em Julho de 1895, ao regressarem ao sítio da Capela de Santo Amaro, descobriram junto à fachada Norte, os vestígios de um megálito, constituído por uma câmara e galeria. Tal como os anteriores, apresentava extensos sinais de profanações antigas e recentes. Na câmara recolheram uma pasta de tufos com alguns restos ósseos humanos. De acordo com a descrição de Santos Rocha (1900: 187) estes incluíam “uma porção de crânio, fragmentos do fémur, dois fragmentos que pareciam de radio e cubito, e outros cuja fórma nos foi impossível determinar.” Ao limpar este conjunto em laboratório (n.º 2244 do Catálogo, Rocha, 1905: 22), confirmou que o crânio estava depositado sobre um dos parietais, esmagado pelos sedimentos, e descobriu 27 contas de xisto, muitas das quais de forma contígua sugerindo a presença de um fio. Refere ainda que seja provável a existência de mais contas no interior dos sedimentos. Confirmou ainda que a intervenção recente tinha sido realizada por um amigo, Augusto Goltz de Carvalho, que julgara que Santos Rocha tinha terminado as suas explorações no monumento. Aquele ofereceu ao Museu os seus achados, que incluíam fragmentos cranianos e de uma mandíbula. Restaurou parte do crânio formado por fragmentos de ossos frontal, parietal esquerdo e occipital (n.º 2245 do Catálogo, Rocha, 1905: 22), para além de outro, de parietal direito, que provavelmente pertence ao mesmo indivíduo (n.º 2246 do Catálogo, Rocha, 1905: 23), um adulto novo (suturas abertas). Esta última peça apresenta uma incisão compatível com uma trepanação incompleta. Mais tarde, Goltz de Carvalho entregou outro conjunto de ossos3 ao Museu, incluindo 3 Eventualmente os fragmentos 2246a do Catálogo (Rocha, 1905: 23).
crânio, ossos longos, parte de uma mandíbula, 59 dentes soltos, e um pedaço de argila alvadia contento restos ósseos humanos cobertos por areia grossa que parece ter sido arrancado do pavimento da câmara (Rocha, 1900: 188-189). Presentemente apenas o conjunto do crânio, pertencente a um adulto masculino, com evidências de trepanação está depositado no Museu. A sua re-análise confirmou que a incisão se localiza no parietal direito, na região junto à sutura escamosa, inferiormente ao sulco da artéria meníngea média4. Esta, com uma convexidade em direcção à sutura escamosa tem no mínimo 28 mm (termina numa fractura recente do osso). A largura máxima é de 4 mm, apresentando dois planos, um mais estreito e fundo e o outro formando uma espécie de ressalto. A profundidade máxima é de aproximadamente 2 mm (Fig. 5). Nalgumas regiões é possível observar que o diploi está coberto por tecido compacto, traduzindo sinais de remodelação óssea confirmando que o indivíduo sobreviveu à intervenção. Quanto ao instrumento usado, Santos Rocha, sugere uma forte ponta de sílex. Em vários ossos do crânio, ao nível exocraniano, é observável porosidade devido à hiperostose porótica. Uma análise mais cuidada do osso occipital revela outro trauma remodelado. Por baixo da linha nucal, na metade esquerda, é visível uma depressão em forma oval, cujo eixo maior corre sensivelmente de forma paralela à linha nucal. A largura máxima, junto à base é cerca de 22,5 mm e 41 mm de comprimento máximo (Fig. 6). A relação entre os dois traumas é difícil de estabelecer, incluindo se são contemporâneos ou não.
Megálito do Praso Este túmulo encontrava-se completamente destruído quando foi descoberto, restando apenas as pequenas lajes que tapavam a entrada da galeria (Rocha, 1900: 193). Ainda que não haja referência à 4
Santos Rocha considera a peça pertencente a um parietal direito, mas da região junto à sutura coronal.
117
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
Figura 5 (em cima) - Incisão observada num fragmento de parietal direito proveniente do Megálito da Capela atribuído a uma trepanação incompleta. Figura 6 (em baixo) - Trauma (depressão) no lado esquerdo do osso occipital da calote craniana masculina recuperada do Megálito da Capela.
118
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
existência de ossos humanos, presentemente existe um conjunto de 20 fragmentos ósseos atribuídos a este megálito (Fig. 7), incluindo cranianos, ossos longos, de osso ilíaco e uma falange da mão. Pertencem a um mínimo de dois adultos e dois não adultos. Entre estes, o fémur 1, de um adulto masculino, revela achatamento (índice platimérico de 75), presença de fossa hipotrocanteriana, ao contrário de 3.º trocânter. Na superfície deste osso foram observadas várias manchas alaranjadas, sugestivas do uso de pigmento. Um fragmento proximal de um úmero esquerdo tem uma etiqueta antiga com o número 89695. De acordo com o Catálogo, esta peça pertence ao Megálito da Cumieira. Neste momento, o trabalho de recuperação e interpretação da documentação antiga, já referido, poderá num futuro próximo esclarecer esta questão.
Megálito da Cabecinha A escavação revelou que a galeria estava intacta, ao contrário da câmara. Esta última, com a forma de um polígono irregular, com um eixo maior de cerca de 1,65 m, revelou de início um entulho muito incoerente, com sinais de exposição a fogo. Porém, a continuação da escavação mostrou que havia uma parte da câmara não remexida, onde começaram a ser encontrados restos ósseos humanos. Esta camada, de calcário branco, era distinta da superior, de terra argilosa avermelhada idêntica à que formava o tumulus do monumento. Santos Rocha deixou bem claro que nenhum osso apresentava vestígios de fogo, vestígios esses que deixaram de ser observados entre 0,5 m a 0,25 m acima dos ossos (Rocha, 1900: 198), tratando-se possivelmente de fogueiras posteriores aos enterramentos. Na planta do monumento, estão assinalados quatro locais onde foram encontrados aglomerados de ossos humanos. 5
Colocou-se a hipótese da leitura ao contrário do número – 6968 – contudo, este último corresponde a um conjunto de fragmentos de diversos vasos provenientes da estação do Crasto de acordo com o Catálogo (Rocha, 1905: 135).
Figura 7 - Conjunto ósseo humano actualmente atribuído ao Megálito do Praso depositado no Museu Municipal Santos Rocha.
Para três deles, entre as lajes 3 e 4 e junto às lajes 5 e 7, Santos Rocha refere a existência de um esqueleto adulto. Estes teriam sido depositados de cócoras com a face voltada para o meio da câmara. Um vaso foi recuperado do lado esquerdo do esqueleto depositado junto à laje 5 e recolhidos alguns artefactos de pedra (um machado, algumas serras, uma ponta de seta e dois núcleos; Rocha, 1900: 198). Junto ao último esqueleto (entre suportes 2, 7 e 8), também acompanhado de mobiliário funerário, destacam-se duas pontas de lança recuperadas de um nicho. Infelizmente, os restos ósseos humanos estavam muito mal preservados, predominantemente reduzidos a pequeníssimas esquírolas. Apenas foi possível recuperar: “uma pasta de terra contendo parte d’um crânio esmagado, alguns dentes e fragmentos do fémur e da tíbia. Dois pedaços de 119
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
fémur têem pilastro, isto é, a linha áspera muito desenvolvida, e um pedaço de tíbia parece indicar uma platycnemia bastante acentuada” (Rocha, 1900: 203-204). Actualmente é desconhecido o paradeiro deste conjunto. A amostra é constituída por 24 fragmentos ósseos e 1.º molar inferior esquerdo. Este revela um desgaste dentário médio, sem lesões cariogénicas ou depósitos de tártaro. Apresenta ainda manchas avermelhadas, sugestivas de pigmento. Alias, entre os achados do túmulo, inclui-se uma substância colorante (óxido de ferro). Os fragmentos ósseos incluem cranianos e ossos longos. Estes últimos incluem dois fragmentos de fémur esquerdos robustos que não parecem simétricos, do direito recuperado, permitindo uma estimativa de três adultos. Um fragmento de fémur de cada lateralidade possui fossa hipotrocanteriana e um 3.º trocânter foi registado para o direito. Não foram detectados sinais de patologias ou lesões.
Megálito da Cabecinha Grande
Quando este túmulo foi descoberto, só restavam três suportes duplos do lado Norte da câmara e, um suporte e um pedaço de laje tombado, no Sul. A galeria, já sem as lajes da porta, revelou um entulho fortemente empastado sem sinais de remeximento, com um pavimento formado por uma laje maior de grés cinzento muito delgada e uma mais pequena. A câmara mostrava remeximentos que se estendiam até ao solo natural, permitindo ainda assim recuperar mobiliário funerário (incluindo pontas de seta, machado de pedra, fragmentos de facas) para além de fragmentos de ossos humanos. Na galeria, na extremidade Ocidental do suporte Sul, onde uma pequena laje formava uma meia porta, jaziam ossos aglomerados de um esqueleto humano, muito mal conservado, não permitindo qualquer recolha, associado a “alguns produtos da primitiva industria” (Rocha, 1900: 205). Não foram detectados sinais de fogo na galeria. Poucas foram as peças osteológicas recuperadas: fragmentos
120
de crânio, de úmero, três fémures, alguns dentes e “parte d’um osso que pertencia a individuo de tenra idade” (Rocha, 1900: 208). Presentemente, a colecção é constituída por 180 fragmentos de todas as partes do esqueleto excepto ossos da mão e do pé. Apresentam sinais de várias alterações tafonómicas, incluindo raízes e concreções calcárias. Existem alguns pequenos fragmentos ósseos que suscitaram dúvidas se seriam humanos. Estes restos correspondem a um mínimo de dez adultos (úmeros direitos) e oito não adultos. Estes últimos, foram estimados com base nos úmeros direitos (n=6), cujo indivíduo mais novo teria entre 6 e 7 anos e pela presença de fragmentos de uma clavícula esquerda e de uma tíbia direita, com estimativas da idade à morte de, respectivamente 2/3 anos e 4/5 anos. Através da análise métrica da extremidade proximal de dois úmeros esquerdos, pelo dimorfismo de alguns fragmentos de ossos longos e de clavículas confirmou-se a presença de indivíduos dos dois sexos. A análise da extremidade esternal das clavículas permitiu identificar dois adultos que faleceram com menos de 30 anos e um, com mais. A presença de adultos jovens (entre os 20 e 30 anos) é ainda corroborada pela existência de um fragmento de sacro com a 1.ª vértebra a fundir e de duas vértebras lombares que não apresentam o anel ventral fundido (o que ocorre entre os 20 e 25 anos). Morfologicamente, alguns fragmentos de diáfise de fémur exibem uma camada cortical espessa, sugestiva de uma mobilidade acentuada. Os caracteres morfológicos não métricos registados incluem a abertura septal (1/2; Fig. 8), a fossa hipotrocanteriana (1/1), o 3.º trocânter nos fémures e a ausência de fossa rombóide nas clavículas (0/5). Neste espólio ósseo não foram detectadas patologias com excepção de sinais de infecção remodelada num fragmento de diáfise de tíbia direita de um não adulto que terá falecido entre os 4 e 5 anos.
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
Figura 8 - Abertura septal observada na extremidade distal de um úmero esquerdo preservado do Megálito da Cabecinha Grande.
Megálito do Facho Este túmulo descoberto sem as lajes de cobertura revelava sinais de perturbações antigas e recentes (face à presença de fracturas de enxadas observadas em alguns fragmentos ósseos), com o conteúdo remexido até ao fundo do monumento. De acordo com as descrições de Santos Rocha, carvões, ossos humanos e produtos de indústria foram recuperados misturados e espalhados por todo o entulho. Este túmulo era constituído por uma câmara e galeria, cujos eixos maiores mediam, respectivamente, 2,5 m e 1,1 m. Os restos ósseos foram recuperados da câmara, incluindo um conjunto de ossos humanos que, pelo seu perfeito estado de conservação, levou a que Santos Rocha pensasse que teriam pertencido “a indivíduos inhumados em epocha muito próximo de nós” (Rocha, 1900: 209). Foram ainda detectados dois depósitos mortuários junto à entrada da galeria,
provavelmente ainda intactos. Porém, os restos ósseos estavam em muito mau estado de preservação tendo apenas sido recolhidos alguns fragmentos pelo colector de Santos Rocha (1900: 209). Este atribuiu os restos ósseos a 11 esqueletos, incluindo alguns muito novos. Incorpora no seu trabalho um inventário exaustivo das várias peças ósseas recuperadas, que incluem fragmentos de crânio, maxilares, seis dentes soltos, vértebras, costelas, clavículas, úmeros, cúbitos, rádios, ossos da mão e pé, osso coxal, fémures, tíbias, perónios e rótulas (a descrição pormenorizada deste conjunto pode ser consultada em Rocha, 1900: 214-216). Entre os dados mais relevantes inclui-se a menção de muitos fragmentos pertencentes a não adultos e de uma metade distal de úmero direito que na face interna exibia sinais de um trauma remodelado, cujo paradeiro actual é desconhecido. A inventariação do conjunto actual identificou 361 fragmentos ósseos, de todas as partes do esqueleto. Destes, oito exibem alterações cromáticas compatíveis com a exposição a fogo, revelando uma cor azulada, incluindo restos de adultos e não adultos. Estes últimos incluem três fragmentos cranianos, a coroa de um 1.º molar inferior direito e um pequeno fragmento de diáfise de osso longo, sendo compatíveis com um não adulto de aproximadamente 3 anos de idade6, recorrendo ao esquema de calcificação dentária de AlQhatani et al. 2010. Os restos cranianos incluem uma órbita esquerda com sinais de cribra orbitalia, um indicador de stress fisiológico específico, geralmente associado a anemias, ainda que outras etiologias sugeridas incluem infecções oculares. Deste conjunto fazem ainda parte um pequeno fragmento de osso parietal e dois de ossos longos pertencentes a um adulto. Porém, na amostra actual, a maioria dos restos ósseos não exibe quaisquer alterações relacionadas com a exposição a temperatura. Exibem outras, 6
Ainda que não se possa excluir a hipótese de pertencerem a indivíduos distintos.
121
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
como a presença de concreções calcárias (Fig. 9), de pequenas fissuras relacionadas com exposição a água e presença de raízes, pequenas manchas pretas (Fig. 10) e alaranjadas. Enquanto as primeiras podem ser atribuídas à presença de manganês no solo, as últimas são compatíveis com pigmento. Os ossos estão muito fragmentados, mas bem preservados. Estão representadas todas as regiões do esqueleto, incluindo pequenas falanges da mão e do pé. Apesar do número considerável de peças ósseas, o cruzamento com as descrições publicadas por Santos Rocha, confirma a perda de muito material, incluindo as peças ósseas com patologias. Presentemente, estão representados no mínimo, 11 indivíduos, sete adultos (pelas tíbias) e quatro não adultos. Estes últimos foram identificados por várias peças ósseas, tendo em conta o seu estado de maturação, e incluem não adultos que faleceram com aproximadamente 2, 3, 6 e 9/10 anos. Alguns fragmentos de diáfise de ossos longos permitem sugerir a presença de adolescentes, mas a ausência das epífises impossibilita a confirmação. Entre os adultos, há pelo menos dois que faleceram entre os 20 e 25 anos (dois fragmentos de crista ilíaca a fundir de indivíduos distintos). A presença de adultos com mais de 30 anos é atestada pela observação de extremidades esternais de clavículas já fundidas e por um fragmento craniano em que as suturas estão praticamente obliteradas. A presença de indivíduos de ambos os sexos é confirmada pelos ossos coxais e pelo dimorfismo sexual observado para alguns fragmentos de ossos longos. A análise métrica das tíbias confirmou a presença de achatamento da região proximal da diáfise (índice platicnémico: 73,31; n=4). Este parâmetro apenas foi possível avaliar num fragmento de fémur direito, também com achatamento (71,43). Os restos ósseos são pequenos, mas robustos. Uma camada cortical espessa foi observada num pequeno fragmento de diáfise de fémur e num de perónio, o que juntamente com o registo de artrose na articulação coxo-femoral de um fragmento de osso coxal são fortemente 122
sugestivos de uma elevada mobilidade diária de alguns destes indivíduos, provavelmente agravada pelo terreno acidentado das serras próximas. Os caracteres não métricos observados incluem a abertura septal num úmero esquerdo (1/1), fossa hipotrocanteriana (2/3) e prega acetabular num fragmento de acetábulo esquerdo. Este último caracter é raramente documentado em populações pré-históricas e históricas. A patologia degenerativa articular foi ainda observada num fragmento da articulação temporomandibular direita e no corpo de uma vértebra torácica que exibe ainda achatamento. Um fragmento de diáfise distal de fémur esquerdo exibe sinais de infecção no canal medular. Nalguns fragmentos cranianos foi observado porosidade compatível com hiperostose porótica (Fig. 10), usualmente relacionado com anemia. De salientar que todas as lesões observadas são remodeladas. Para confirmar a cronologia deste espólio foram seleccionadas duas amostras para datação por AMS: uma costela do conjunto não queimado e um fragmento craniano do conjunto com sinais de exposição a fogo. Os resultados confirmam que as duas peças ósseas são contemporâneas e de cronologia Calcolítica (Silva, 2020).
As comunidades humanas depositadas nos monumentos funerários da Necrópole Megalítica escavada por Santos Rocha A Necrópole Megalítica escavada por Santos Rocha nos finais do século XIX/princípios do século XX deveria ser notável, quer pela arquitectura dos túmulos, quer pelo espólio ósseo humano e mobiliário funerário associado. Presentemente, preservam-se restos ósseos humanos de nove monumentos desta Necrópole. As descrições dos vestígios ósseos nas Antiguidades Prehistoricas do Concelho da Figueira por parte de Santos Rocha são bastante pormenorizadas para a época em questão,
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
Figura 9 (em cima) - Concreções calcárias em fragmentos de ossos longos provenientes do Megálito do Facho. Figura 10 (em baixo) - Fragmento parietal 151 proveniente do Megálito do Facho exibindo manchas pretas de origem tafonómica e porosidade atribuída a hiperostose porótica, um indicador específico de stress fisiológico.
123
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
assim como as suas considerações etnográficas. Apesar do seu cuidado em recuperar, descrever e proporcionar um acervo a estes espólios ósseos humanos, lamentavelmente, perdeu-se uma parte bastante substancial. Entre estes, merecem referência os vestígios ósseos oferecidos ao Instituto de Coimbra, cujo rasto se perdeu após a extinção deste. À perda pós-escavação podemos juntar a perda pré-escavação uma vez que todos os monumentos tinham sido profanados com inevitáveis perdas associadas. Apesar de todos estes constrangimentos, a análise antropológica exaustiva dos restos ósseos que chegaram até aos nossos dias, ainda que escassos e muito fragmentados, é o único meio de se obter informação biológica sobre os indivíduos depositados nestes túmulos. Este é o objectivo primordial deste estudo. A cronologia destes restos ósseos humanos está confirmada por meio de datações por radiocarbono para duas amostras, Cabeço dos Moinhos e Facho. Num futuro próximo seria essencial estender esta análise, a todas as amostras. As inferências sobre as práticas funerárias são escassas e baseiam-se sobretudo nas descrições de Santos Rocha. Para vários túmulos há fortes indícios da deposição de esqueletos, alguns dos quais em posição de cócoras. A presença de adultos e não adultos é documentada para vários túmulos e confirmada na presente análise. A presença de manchas alaranjadas em ossos de alguns túmulos, como Mama do Furo, Praso, Cabecinha e Facho, sugere a utilização de pigmento. Quando as amostras são constituídas por um número maior de fragmentos, estão presentes ossos de todas as regiões do esqueleto. A fragmentação óssea é muito elevada, sendo os restos ósseos predominantemente robustos. A superfície óssea de muitos fragmentos revela alterações provocadas por concreções calcárias, fendas devido à acção da água e de raízes de plantas. Ossos com sinais de exposição a fogo foram contabilizados para dois túmulos, Cabeço dos Moinhos e Facho. Como se tratam de conjuntos 124
pequenos e que revelam predominantemente alterações compatíveis com temperaturas não muito altas, a hipótese de fogo não intencional não pode ser excluída, particularmente para o Facho onde apenas se recuperaram ossos carbonizados (cor preta/castanha). Se para o Cabeço dos Moinhos as datações revelaram uma cronologia distinta para os dois conjuntos, para o Facho ambos revelaram a cronologia Calcolítico. As razões para esta prática foram discutidas pelo próprio Santos Rocha que face às evidências encontradas, favoreceu a hipótese de higienização7. É notável que Santos Rocha, para além de consulta bibliográfica sobre o tema, tenha realizado duas experiências para suportar as suas conclusões, a queima de um fémur humano seco e de um osso de vitela fresco (Rocha, 1899: 171). Esta hipótese, já foi defendida para outros túmulos, como Olival da Pega (Gonçalves, 2012). Os dados que presentemente possuímos, incluindo a ausência de qualquer informação de campo sobre estes contextos, não nos permitem realizar grandes inferências. Não há dúvida que a emergência da importância do fogo nas práticas funerárias tem vindo a ganhar relevância no contexto pré-histórico do actual território Português, nomeadamente em contextos funerários calcolíticos, como o dos Perdigões (Silva et al. 2015; 2017), ainda que estes sejam bastante distintos. O número mínimo de indivíduos estimado destes sepulcros varia entre um a 18 indivíduos (Fig. 11), incluindo não adultos e adultos, de ambos os sexos. Entre os não adultos, estão presentes crianças de várias faixas etárias, com o mais novo identificado, de 24 meses de idade. Todos os fragmentos proximais de fémur (n=5) revelaram achatamento, ao contrário das tíbias (n=4). Este último dado, não vem ao encontro das descrições de Santos Rocha, mas pode deverse ao reduzido número de observações. Entre as 7
Santos Rocha utiliza o termo desinfecção que no presente texto foi substituído por higienização, por constituir o termo actualmente usado.
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
Figura 11 - Proporção de adultos versus não adultos nos túmulos megalíticos escavados por Santos Rocha na região da Figueira da Foz.
125
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
características morfológicas não métricas, destacase a presença de fossa hipotrocanteriana (8/10). Outro caracter usualmente registado em amostras coevas, a abertura septal em úmeros, foi pouco observada, mas o número de observações possíveis foi muito baixo. Não há muitas evidências de patologias e lesões detectadas nestas colecções. Ainda assim, incluem desde oral, traumática, degenerativa articular e não articular, infecciosa e sinais de stress fisiológico. A maioria foi observada em restos ósseos pertencentes a adultos, excepto a infecciosa e os indicadores de stress fisiológico. Entre as patologias detectadas destacam-se os traumas observados na calote craniana do Megálito da Capela (trepanação incompleta no parietal direito e um trauma no lado esquerdo do occipital).
Síntese final Estudar espólios ósseos humanos esquecidos há muito, tal como os abordados no presente trabalho, constitui sempre um desafio: muito fragmentados, desarticulados, aliado à escassez de documentação, discrepâncias consideráveis entre o documentado e a colecção actual (por norma, grande perda) podem desencorajar o seu estudo. Contudo, apesar de todas estas limitações o presente trabalho confirma, tal como outros estudos prévios (Silva e Ferreira 2016/7), que a análise destes espólios nos revela sempre aspectos singulares destas comunidades pré-históricas que, de outra forma, ficariam esquecidos para sempre.
126
OS OCUPANTES DOS MONUMENTOS MEGALÍTICOS DA REGIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ ESCAVADOS POR SANTOS ROCHA: O QUE OS SEUS RESTOS ÓSSEOS NOS REVELAM
Agradecimentos A autora agradece à Conservadora do Museu Municipal Santos Rocha, Dr.ª Ana Margarida Ferreira e a toda a equipa envolvida na organização deste Colóquio; ao CIAS, o apoio financeiro para a participação no Colóquio e na realização das datações por radiocarbono (PEst-OE/SADG/ UI0283/2019).
SILVA, Ana Maria (2002). Antropologia Funerária e Paleobiologia das Populações Portuguesas (litorais) do Neolítico final/Calcolítico. Departamento de Antropologia. Coimbra: Universidade de Coimbra. Dissertação de Doutoramento em Antropologia Biológica. SILVA, Ana Maria (2003). Trepanation in the Portuguese Late Neolithic, Chalcolithic and Early Bronze Age periods. In ARNOTT, R.; FINGER, S. e SMITH, C. (ed.). Trepanation. History – Discovery – Theory. Lisse: Swets & Zeitlinger, pp. 117-129. SILVA, Ana Maria et al. (2017). Mortuary practices in Perdigões (Reguengos de Monsaraz, Portugal): Bio-anthropological approach to Tomb 2. Menga 8, pp. 71-86.
Referências bibliográficas ALQAHTANI, Sakher; HECTOR, Mark e LIVERSIDGE, Helen (2010). Brief communication: the London atlas of human tooth development and eruption. American Journal of Physical Anthropology, 142(3), pp. 481-490. GONÇALVES, David (2012). Cremains. The Value of Quantitative Analysis for the Bioanthropological Research of Burned Human Skeletal Remains. Departamento Ciências da Vida. Coimbra: Universidade de Coimbra. Dissertação de Doutoramento em Antropologia Biológica. GUERRA, António Vitor (1969). Novas pesquisas no megalitho da Cumieira. Manuscrito de António dos Santos Rocha. O Arqueólogo Português, 3.ª série, Volume 3, pp. 274-277. ROCHA, António dos Santos (1888; 1891; 1895; 1900). Antiguidades Prehistoricas do Concelho da Figueira. Coimbra: Imprensa da Universidade. ROCHA, António dos Santos (1905). O Museu Municipal da Figueira da Foz. Catálogo Geral. Figueira: Imprensa Lusitana.
SILVA, Ana Maria e FERREIRA, Maria Teresa (2016/2017). Perscrutando espólios antigos 5: Contributo da análise dos restos ósseos humanos. Estudos Arqueológicos de Oeiras 23, pp. 219-232. SILVA, Ana Maria et al. (2015). Collective secondary cremation in a Pit Grave: a unique funerary context in Portuguese Chalcolithic burial practices. Homo-Journal of Comparative Human Biology, 66(1), pp. 1-14. SILVA, Ana Maria (2020). The Megalithic builders: new data on old bones from Megalitho do Facho (Figueira da Foz, Portugal). Documenta Praehistorica XLVIII, pp. 390-403. DOI: 10.4312\dp.47.21 SMITH, Bennett Holly (1984). Patterns of molar wear in huntergatheres and agriculturalists. American Journal of Physical Anthropology 63, pp. 39-84. VILAÇA, Raquel (1986). A Mamoa da Mama do Furo (Figueira da Foz). Trabalhos de Antropologia e Etnologia da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, 26 (1-4), pp. 95-128.
ROCHA, António dos Santos (1949). Memórias e Explorações Arqueológicas. Antiguidades Pré-históricas do Concelho da Figueira da Foz. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis. SCHEUER, Louise e BLACK, Sue (2000). Developmental Juvenile Osteology. London: Academic Press. SILVA, Ana Maria (1996). O Hipogeu de Monte Canelas I (IV - III milénios a.C.): Estudo paleobiológico da população humana exumada. Departamento de Antropologia. Coimbra: Universidade de Coimbra. Trabalho de Síntese. Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica.
127
Contributo para o estudo da ocupação pré-histórica da Figueira da Foz: a “Estação Humana do Arneiro” Contribution to the study of the prehistoric occupation of Figueira da Foz: the “Estação Humana do Arneiro” Carlos E. F. Batista1 . Ana M. S. Bettencourt2
1
Museu Municipal Santos Rocha, Divisão de Cultura, Município da Figueira da Foz | carlosfbatista@gmail.com Heritage and Territory Laboratory (Lab2PT), Departamento de História, Universidade do Minho, Braga | anabett@uaum.uminho.pt
2 Landscapes,
RESUMO
ABSTRACT
O presente artigo pretende dar a conhecer alguns achados cerâmicos e líticos de superfície, recolhidos no sítio arqueológico do Arneiro, questionando possíveis interpretações sobre a ocupação do local e a sua importância na compreensão da Pré-história e Proto-história do Baixo Mondego. É apresentada uma datação por radiocarbono que precisa uma das ocupações do local.
This article intends to make known some ceramic and lithic surface findings, collected at the archaeological site of Arneiro, also questioning possible interpretations about the occupation of the site and its importance in understanding the prehistory and proto-history of Baixo Mondego. It is also presented an absolute radiocarbon dating that specifies one of the occupations of the place.
Palavras-chave: Neolítico Final/Calcolítico Inicial; Bronze Final; Povoamento; Baixo Mondego.
Keywords: Late Neolithic/Early Chalcolithic; Late Bronze Age; Settlement strategies; Lower Mondego river basin.
CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO PRÉ-HISTÓRICA DA FIGUEIRA DA FOZ: A “ESTAÇÃO HUMANA DO ARNEIRO”
Introdução A “Estação Humana do Arneiro”, designação que lhe foi dada por Santos Rocha (1900; 1949), é referida desde cedo na bibliografia arqueológica local, tendo sido considerada do Neolítico por Cruz (1904), a propósito de um inventário de materiais neolíticos recolhidos na Figueira. Este autor refere, como provenientes do Arneiro, artefactos líticos polidos (como machados inteiros e fragmentados) e artefactos lascados (como uma serra, uma ponta de seta pedunculada, entre eventuais raspadores). Também Santos Rocha (1905: 26 e segs.) no Catálogo Geral de indústrias neolíticas da região da Figueira, refere várias lascas e lâminas de sílex e de quartzo, retocadas ou não, alguns raspadores, serras, vários tipos de machados, instrumentos
similares a machados com o gume polido, a par de dentes de javali, provenientes deste local. Em 2012 surgem opiniões distintas sobre a inserção cronológica do sítio. Uma delas é a de Callapez e Carvalho (2012) que, com base em inúmeras recolhas de superfície, classificam o local como sendo do Calcolítico e, possivelmente, dos inícios da Idade do Bronze. Uma outra opinião é da responsabilidade de Isabel Pereira (2012: 116) que, juntamente com Areeiro, Fonte de Cabanas e Chões, na freguesia da Brenha, e de Pardinheiros, na freguesia de Quiaios, o considera como sendo um pequeno povoado de tipo “casal agrícola”, atribuível à Idade do Ferro. Já no século XXI, aquando da construção de uma casa no limite sudeste do lugar de Cabanas,
Figura 1 - Extrato da Carta Militar de Portugal Continental, n.º 239, na escala 1:25.000. Serviços Cartográficos do Exército, 1947.
130
CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO PRÉ-HISTÓRICA DA FIGUEIRA DA FOZ: A “ESTAÇÃO HUMANA DO ARNEIRO”
foi possível observar um grande valado, fosso ou fossa no perfil estratigráfico do terreno, cuja cronologia se desconhece porque não foram efetuadas recolhas nem observações arqueológicas durante o achado1. Por fim, em 2014 o local é visitado pela equipa técnica do Museu Municipal Santos Rocha, procedendo-se à prospeção de um lote de terreno revolvido para o plantio de eucaliptos (Ferreira e Pinto, 2017). Neste âmbito foram recolhidas à superfície grandes quantidades de fragmentos cerâmicos e de utensilagem lítica que se dão a conhecer neste trabalho, assim como aqueles recolhidos por Pedro Callapez e que foram genericamente estudados pela segunda autora deste texto (AMSB).
Localização administrativa e caracterização física e ambiental do sítio O Casal do Arneiro localiza-se a nor-nordeste da pirâmide geodésica da Cumieira, perto da aldeia de Cabanas, na freguesia da Brenha, concelho da Figueira da Foz, distrito de Coimbra, às seguintes coordenadas geográficas: 40°12’13.65”N; 8°50’6.43”W (Fig. 1). Corresponde a um extenso local de superfície, com uma área de dispersão de achados entre 8 a 10 hectares, que ocupa as plataformas da base da vertente norte da Serra da Boa Viagem, entre os 76 m e os 100 m de altitude. O local, apenas com boa visibilidade para os quadrantes norte e nordeste, é sobranceiro ao vale da freguesia de Brenha, caracterizado por várzeas húmidas e abrigadas, com boas potencialidades agrícolas e com acesso a recursos litorais bem como a recursos proporcionados por lagoas de água-doce ou salobra que teriam existido no passado (Almeida, 1995, 2006; Danielsen, 2008; Danielsen et al., 2008, 2011).
Caracterização de materiais arqueológicos de superfície recolhidos na “Estação Humana do Arneiro” Coleção recolhida por Pedro Callapez2 Cerâmica Trata-se de um conjunto cerâmico vasto e diversificado em termos formais, que apresenta na sua totalidade fabricos manuais, pastas arenosas com elementos não plásticos, compostos por quartzos e feldspatos de diferentes calibres, originando recipientes mais ou menos grosseiros. As cozeduras são maioritariamente redutoras, originando colorações acastanhadas ou beges. Em termos formais foi possível subdividir este acervo em dois grupos. Um deles caracteriza-se por formas globulares e hemisféricas, com inúmeros bordos reentrantes e lábios retos, arredondados ou boleados, que correspondem a recipientes pequenos, de acabamento alisado e, essencialmente, lisos. Um outro grupo caracteriza-se por formas de colo estrangulado, provavelmente de perfil em S; formas carenadas (de carena média ou baixa) e formas abertas com paredes oblíquas e pequenos bordos horizontais. Na sua maioria têm acabamento alisado, mas também existem recipientes polidos. A este grupo, associa-se, ainda, uma base de fundo plano simples.
Material lítico A utensilagem lítica é vasta e diversificada com materiais polidos e lascados. No primeiro grupo inserem-se três tipos de artefactos, a saber: uma enxó irregular; fragmentos de machados e de martelos em anfibolito; e polidores em arenito. No segundo grupo destacam-se várias pontas de seta de base triangular, uma ponta de seta de base côncava e lâminas em sílex, maioritariamente acinzentado ou esbranquiçado. 2 Professor universitário e investigador da Universidade de Coimbra,
1
Informação prestada por Pedro Callapez a quem se agradece.
Faculdade de Ciências e Tecnologia, CITEUC/Departamento de Ciências da Terra.
131
CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO PRÉ-HISTÓRICA DA FIGUEIRA DA FOZ: A “ESTAÇÃO HUMANA DO ARNEIRO”
A
B
C
Figura 2 - Perfis de diversos fragmentos cerâmicos encontrados no Arneiro, em 2014. A - Forma fechada; B - Forma carenada e forma com decoração plástica mamilar; C - Forma aberta de pança oblíqua, forma de pança semiesférica e fragmento de ídolo de cornos ou de suporte.
132
CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO PRÉ-HISTÓRICA DA FIGUEIRA DA FOZ: A “ESTAÇÃO HUMANA DO ARNEIRO”
A
B
Figura 3 - Materiais líticos em pedra lascada, de diferentes tipos de sílex, recolhidos no Arneiro em 2014. A - Ponta de seta de base triangular e lâmina retocada lateralmente (da esquerda para a direita); B - Denticulado e lasca (da esquerda para a direita).
Material de superfície recolhido pela equipa fragmentados que poderão ser o que se designa técnica do Museu Municipal Santos Rocha por ídolos de cornos ou suportes (Cardoso, 2003). Cerâmica
Material lítico
No que diz respeito à recolha de materiais realizada em 2014, foram analisados, nesta fase inicial dos trabalhos, apenas os bordos. Num universo de 376 fragmentos cerâmicos recolhidos foram reconhecidas várias tipologias cerâmicas, tendo as formas esféricas a maior expressão. De referir, também, a presença de formas carenadas, de formas fechadas e de formas abertas com panças oblíquas (Fig. 2A, B e C). As decorações, muito raras, expressam-se pelas técnicas de impressão penteada e de aplicação plástica, através de mamilos. A única decoração penteada é atípica, afasta-se das cerâmicas calcolíticas com esta técnica decorativa e insere-se no colo de uma forma fechada. Há ainda a registar a presença de utensílios muito
Dos utensílios de pedra lascada destacam-se: uma ponta de seta pedunculada; uma lâmina retocada lateralmente; denticulados e raspadores sobre núcleo (Fig. 3A e B). As matérias-primas de maior expressão, utilizadas na produção laminar e microlaminar, são o sílex (esbranquiçado/ acinzentado e acastanhado) e o quartzo (leitoso e levemente hialino), característica comum aos sítios arqueológicos análogos da Pré-história da região (Callapez e Carvalho, 2012). Contudo, no que diz respeito à indústria de pedra polida, esta destacase dos demais locais pré-históricos, referenciados por diversos autores (Vilaça, 1988; Callapez e Carvalho, 2012; entre outros), pela abundância de anfibolito (Fig. 4). 133
CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO PRÉ-HISTÓRICA DA FIGUEIRA DA FOZ: A “ESTAÇÃO HUMANA DO ARNEIRO”
adossado a um fragmento cerâmico de pança informe. Esta foi realizada no Arizona Accelerator Mass Spectrometry Laboratory, Estados Unidos da América (Tabela I). A data obtida permite considerar que houve uma ocupação do sítio entre os meados do século XI e os fins do século IX AC, a 93,8% de probabilidade, isto é, durante uma etapa recente do Bronze Final.
Considerações finais
Figura 4 - Materiais líticos, em anfibolito, recolhidos no Arneiro em 2014.
Data de radiocarbono No decurso do projeto Espaços Naturais, Arquitecturas, Arte Rupestre e Deposições da Pré-história Recente da Fachada Ocidental do Centro-norte Português: das Acções aos Significados (Enardas 3), da responsabilidade de segunda subscritora deste texto, foi realizada uma análise de radiocarbono por AMS, a material orgânico 3 Este projeto tinha como objetivo comparar a Pré-história Recente
de diferentes áreas-chave da fachada ocidental do Centro-norte de Portugal.
134
A análise dos materiais, conjugada com a datação de radiocarbono, evidencia que o local teve várias ocupações. À mais antiga, caracterizada por formas cerâmicas de pequena dimensão, com perfis globulares ou hemisféricos e bases convexas, maioritariamente lisas, talvez se possa associar os diversos machados, martelos, lâminas, pontas de seta de base triangular, pedunculada e côncava, assim como a maioria dos artefactos sobre lascas e lâminas de sílex e quartzo. Trata-se de um conjunto cerâmico que encontra alguns paralelos no acervo proveniente dos monumentos megalíticos neolíticos escavados na Serra da Boa Viagem. A presença de uma ponta de seta de base côncava e de um ídolo de cornos ou suporte, com paralelos no sítio fortificado de Vila Nova de São Pedro, na Azambuja, nos inícios do 3.º milénio AC (Costeira, 2017) permite colocar a hipótese de que, pelo menos, parte desta ocupação, seria dos fins do 4.º, inícios do 3.º milénios AC, no que se poderá designar por Neolítico Final/Calcolítico Inicial. Assim sendo, o Arneiro seria um povoado genericamente contemporâneo do momento de ocupação de alguns monumentos megalíticos da serra (Fig. 5), como é o caso do Cabeço dos Moinhos (Bettencourt et al., 2021). Os acervos calcolíticos que se conhecem na região, como é o caso de Chãs 1 a 4, ou do nível mais antigo de Pedrulhais, em Sepins, Cantanhede,
CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO PRÉ-HISTÓRICA DA FIGUEIRA DA FOZ: A “ESTAÇÃO HUMANA DO ARNEIRO”
Tabela 1 Data de radiocarbono a matéria orgânica aderente a recipiente cerâmico do Arneiro
1 Curva de calibração segundo Reimer et al. (2013) e calibração através do programa OxCal 4.3.
Figura 5 - Mapa da relação entre o povoado do Arneiro e os monumentos megalíticos da Serra da Boa Viagem. Reconstituição da linha de costa a partir dos trabalhos de Danielsen (2008) e Danielsen et al. (2008). Base cartográfica do Museu Municipal Santos Rocha. Câmara Municipal da Figueira da Foz/SIG.
135
CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO PRÉ-HISTÓRICA DA FIGUEIRA DA FOZ: A “ESTAÇÃO HUMANA DO ARNEIRO”
comportam um conjunto de recipientes onde ocorrem, com frequência, organizações decorativas impressas penteadas, impressas/incisas de tipo Penha, espinhadas, entre outros motivos incisos e impressos que deverão ser de fundo local (Cruz, 2005; Bettencourt, 2005). Também o acervo cerâmico de superfície do sítio calcolítico da Tapada do Espinheiro, em Cantanhede, associado a um punhal de cobre de chanfradura (Cruz et al., 2005), se assemelha ao descrito para as Chãs. Tais conjuntos, inseríveis genericamente, no 3.º milénio AC, são bem distintos dos que se encontram no Arneiro, o que parece reforçar a hipótese de que a ocupação mais antiga deste local seria, assim, anterior, pelo menos, ao segundo quartel do 3.º milénio AC. A análise preliminar aos materiais líticos recolhidos e a reinterpretação dos trabalhos de Santos Rocha (1905) revela-nos que o Arneiro, a par de outras atividades, poderia ter sido um local de produção de utensílios de pedra polida e lascada, devido à grande presença de anfibolitos pré-afeiçoados, como se de “lingotes” se tratassem, e de grande quantidade de núcleos de quartzo. Trata-se, ainda, de um local inserido numa rede de intercâmbios regionais, quer na obtenção do sílex acinzentado e castanho, quer do anfibolito originário, provavelmente, das regiões graníticas da Beira Alta ou da Beira Litoral. A uma ocupação do Bronze Final, relacionada com a data de radiocarbono obtida para o local, poderiam corresponder algumas formas fechadas de colo estrangulado, algumas formas carenadas e as formas baixas, abertas e de panças oblíquas (malgas/ tigela), assim como as bases de fundos planos. De notar que no esporão onde se desenvolveu a cidade romana de Conímbriga, em Condeixa, foram encontradas taças carenadas datadas do Bronze Final (Correia, 1993), assim como em Santa Olaia, na Figueira da Foz, evidenciando que esta forma é bem conhecida na região do Mondego,
136
durante as últimas etapas do 2.º, inícios do 1.º milénios AC. Ainda em Santa Olaia, há paralelos para a forma aqui considerada como “malga/tigela” (Osório, 2013). A estação do Arneiro pela sua extensão, amplitude cronológica, qualidade dos materiais e problemáticas que levanta, merece ser alvo de um projeto de investigação que possibilite salvaguardá-la evitando assim a sua degradação.
CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO PRÉ-HISTÓRICA DA FIGUEIRA DA FOZ: A “ESTAÇÃO HUMANA DO ARNEIRO”
Referências bibliográficas ALMEIDA, António Campar de (1995). Dunas de Quiaios, Gândara e Serra da Boa Viagem. Uma abordagem ecológica da paisagem. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Tese de Doutoramento. ALMEIDA, António Campar de (2006). Morfologia da Serra da Boa Viagem e das Dunas de Quiaios. In LOPES, F. C. e CALLAPEZ, Pedro M. (eds.), As Ciências da Terra ao Serviço do Ensino e do Desenvolvimento: O exemplo da Figueira da Foz. Figueira da Foz: Kiwanis Clube da Figueira da Foz, pp. 85-94. BETTENCOURT, Ana M. S. (2005). O povoamento pré-histórico e proto-histórico da região de Cantanhede. In CRUZ, C., Carta arqueológica do concelho de Cantanhede. Cantanhede: Câmara Municipal, pp. 245-248. BETTENCOURT, Ana M. S. et al. (2021). O Dólmen do Cabeço dos Moinhos (Serra da Boa Viagem, Figueira da Foz): contributo para o estudo das práticas funerárias pré-históricas do Centro de Portugal. In VILAÇA, R. e FERREIRA, A. (coords.), Santos Rocha, Arqueologia e Territórios da Figueira da Foz. Figueira da Foz: Município da Figueira da Foz, pp. 96-109 deste livro. CALLAPEZ, Pedro M. e CARVALHO, Miguel (2012). Contributos da envolvente geológica para o povoamento da Serra da Boa Viagem durante a Pré-história Recente. In VILAÇA, R. e PINTO, S. (coords.), Santos Rocha, a Arqueologia e a Sociedade do seu Tempo. Figueira da Foz: Casino da Figueira, pp. 41-51. CARDOSO, João Luís (2003). Ainda sobre os impropriamente chamados “Ídolos de Cornos” do Neolítico Final e do Calcolítico da Estremadura e do Sudoeste. Al-madan, IIa série, 12, pp. 77-79. CORREIA, Virgílio H. (1993). Os materiais pré-romanos de Conimbriga e a presença fenícia no Baixo-Vale do Mondego. In TAVARES, A. A. (ed.), Os fenícios no território português. Lisboa: Instituto Oriental da UNL, pp. 229-284. COSTEIRA, Catarina Isabel dos Reis (2017). No 3º milénio a.n.e., o sítio de São Pedro e as dinâmicas de povoamento no Alentejo Médio. Lisboa: Faculdade de Letras. CRUZ, Carlos M. S. (2005). Carta arqueológica do concelho de Cantanhede. Cantanhede: Câmara Municipal. CRUZ, Carlos M. S. et al. (2005). Achados metálicos de cobre no baixo Vouga (Centro-oeste de Portugal). In MARTINS, Carla B. et al. (eds.), Povoamento e exploração dos recursos mineiros na Europa atlântica. Braga: Citcem, pp. 359-375.
CRUZ, Pedro B. (1904). Materiaes para o estudo do Neolithico no concelho da Figueira. Boletim da Sociedade Archeologica Santos Rocha, 1, pp. 10-12. DANIELSEN, Randi (2008). Palaeoecological development of the Quiaios-Mira dunes, northern-central littoral Portugal. Review of Palaeobotany and Palynology, 152 (1-2), pp. 74-99. DANIELSEN, Randi et al. (2008). Evolução da paisagem a norte do Cabo Mondego durante os últimos milhares de anos. In LOPES, F. C. e CALLAPEZ, P. M. (eds.), Por terras da Figueira. Figueira da Foz: Kiwanis Clube da Figueira da Foz, pp. 45-53. DANIELSEN, Randi et al. (2011). Holocene interplay between a dune field and coastal lakes in the Quiaios-Tocha region, central littoral Portugal. The Holocene, 22 (4), pp. 383-395. FERREIRA, Ana Margarida e PINTO, Sónia (2017). Análise e Diagnóstico. Património Classificado e Referenciado - Documento final. Secção 2 Carta Municipal de Arqueologia. Divisão de Urbanismo subunidade de planeamento. Câmara Municipal da Figueira da Foz. Acessível na Biblioteca do Museu Municipal Santos Rocha. OSÓRIO, Ana Bica (2013). Gestos e Materiais: uma abordagem interdisciplinar sobre cerâmicas com decorações brunidas do Bronze Final/I Idade do Ferro. Coimbra: Universidade de Coimbra. Tese de doutoramento. PEREIRA, Isabel (2012). Santos Rocha e o estudo da Idade do Ferro em Portugal. In VILAÇA, Raquel e PINTO, Sónia (coords.), Santos Rocha. A Arqueologia e a Sociedade do seu Tempo. Figueira da Foz: Casino da Figueira, pp. 115-131. REIMER, Paula J. et al. (2013). IntCall3 and Marine13 Radiocarbon Age Calibration Curves 0-50,000 Years cal. BP. Radiocarbon, 55 (4), pp. 1869-1887. ROCHA, António dos Santos (1900). Antiguidades pré-históricas do Concelho da Figueira: Memória oferecida ao Instituto de Coimbra. 4.ª parte. Coimbra: Imprensa da Universidade. ROCHA, António dos Santos (1905). O Museu Municipal da Figueira da Foz. Catálogo Geral. Figueira: Imprensa Lusitana. ROCHA, António dos Santos (1949). Memórias e Explorações Arqueológicas. Antiguidades pré-históricas do concelho da Figueira da Foz, Vol. I. Coimbra: Imprensa da Universidade. VILAÇA, Raquel (1988). Subsídios para a Pré-história Recente do Baixo Mondego. (Trabalhos de Arqueologia 5). Lisboa: IPPC.
137
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Um punhal de cobre esquecido, um sítio (re)encontrado: Loriga (Alhadas de Baixo, Figueira da Foz) A forgotten copper dagger, a (re)discovered site: Loriga (Alhadas de Baixo, Figueira da Foz) Ana Rita Pereira1 . Carlo Bottaini2 . Raquel Vilaça3
1
Mestranda em Arqueologia e Território, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra | anaritapereira61@gmail.com Laboratório HERCULES & CityUMacau Chair in Sustainable Heritage, Universidade de Évora | carlo@uevora.pt 3 Univ Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de Arqueologia, CEAACP | rvilaca@fl.uc.pt 2
138
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
Este trabalho centra-se no estudo de um punhal de lingueta, em cobre e arsénio, encontrado ocasionalmente em 1908 no sítio de Loriga (Alhadas de Baixo, Figueira da Foz, Portugal Central). A peça faz parte do acervo do Museu Municipal Santos Rocha (Figueira da Foz) juntamente com outros materiais do mesmo sítio. Partindo dos dados da publicação inicial e de informações prestadas pela população local, foi possível identificar a área aproximada do local de achado. O estudo deste punhal comporta um conjunto de diferentes aspetos, como a tipologia, a composição química e o contexto de descoberta, elementos que, pela primeira vez, se valorizam de modo articulado. Considera-se ainda que este tipo de abordagem abrangente permitirá fornecer novas pistas sobre a cultura material das comunidades que povoaram o Baixo Mondego durante a segunda metade do III milénio a.C., contribuindo igualmente para a construção dos modelos de ocupação do território.
This paper is about a tanged dagger, composed of copper and arsenic, unexpectedly found in 1908 at Loriga (Alhadas de Baixo, Figueira da Foz, Central Portugal). Nowadays, it is part of the archaeological collection of the Museu Municipal Santos Rocha (Figueira da Foz) along with other materials from the same site. Based on the data from the original publication and information provided by local population, it was possible to identify the approximate area of the finding. The study of this dagger is carried out by jointly considering different aspects, such as typology, chemical composition, and context of finding, which are appreciated in an articulated manner for the first time. This comprehensive approach will provide new insights on the material culture of the communities that inhabited the Baixo Mondego region during the second half of the 3rd millennium BC, also contributing to the reconstruction of the territory’s occupation patterns.
Palavras-chave: Punhal de lingueta; Cobre arsenical; Calcolítico; Baixo Mondego; Loriga.
Keywords: Tanged dagger; Arsenical copper; Chalcolithic; Baixo Mondego; Loriga. 139
UM PUNHAL DE COBRE ESQUECIDO, UM SÍTIO (RE)ENCONTRADO: LORIGA (ALHADAS DE BAIXO, FIGUEIRA DA FOZ)
Introdução O presente trabalho pretende contribuir para um conhecimento mais consistente sobre as dinâmicas do povoamento calcolítico do Baixo Mondego e área de influência, através do estudo de um punhal proveniente da freguesia de Alhadas, concelho da Figueira da Foz. Este punhal encontra-se atualmente no Museu Municipal Santos Rocha, catalogado com o número antigo 8690 (Rocha, 1909a: 10). Publicado em inícios do século passado num breve, mas sugestivo, trabalho sobre as suas circunstâncias de achado (Carrisso e Rocha, 1909), o punhal voltará a ser alvo de atenção décadas mais tarde, porém de modo pontual. Na sequência desses estudos, o interesse deste trabalho decorre não só da apresentação de novos dados obtidos a partir do estudo morfo-tipológico e de análise química por Fluorescência de Raios-X, como também da identificação, ou relocalização, do sítio de proveniência. Por outro lado, e ao contrário daqueles estudos, valoriza-se pela primeira vez o seu contexto de achado, que integrava também outros materiais, designadamente fragmentos cerâmicos e artefactos de pedra polida e lascada. Todos estes aspetos são fundamentais para o entendimento do sítio em si, bem como na compreensão das dinâmicas culturais das comunidades que viveram na região na segunda metade do III milénio a.C. 1
A “Estação cupro-lithica da Loriga” É esta a designação que Luiz Wittnich Carrisso e António dos Santos Rocha utilizam para identificar o lugar onde, casualmente, em outubro de 1908, foi encontrado um conjunto de objetos no decurso de ações de extração de entulho. Segundo a indicação dos autores, o achado era composto por “uma lâmina de punhal ou ponta de lança metálica; cinco machados de pedra inteiros; uma parte inferior de 1
Originalmente apresentado como póster no Colóquio “Santos Rocha, Arqueologia e Territórios da Figueira da Foz”.
140
um instrumento de pedra estreito e com o gume em bisel; e dois fragmentos longitudinais de machados, contendo parte do gume perfeitamente afiado.”2 (Carrisso e Rocha, 1909: 238). Desconhecendo-se o nome do achador, sabe-se que ainda no mesmo ano estes dados suscitaram grande interesse aos investigadores figueirenses, o que os levou ao campo no dia 30 de dezembro e à realização de uma “pequena exploração” (Idem, ibidem: 240). O corte permitiu observar uma estratigrafia clara e distinta, com a existência de quatro camadas, tendo-se recolhido novos materiais: “alguns fragmentos de cerâmica com feição primitiva, um pedaço de telhão romano e alguns de uma louça trabalhada à roda, (…) dois fragmentos de telha curva, feita de barro branco, (…) e ainda uma lasca de sílex” (Idem, ibidem: 240). Deste modo, o sítio de Loriga totaliza 26 registos arqueológicos3: 1 punhal de cobre; 15 peças líticas (2 de pedra lascada e 13 de pedra polida) e 10 fragmentos cerâmicos (2 bordos e 8 bojos). Dentro do conjunto merece particular destaque o punhal, objeto de estudo específico deste texto, visto que foi o principal elemento que ditou a classificação do sítio como a “Estação cupro-lithica da Loriga”. Após estes trabalhos pioneiros, o punhal só volta a ser “lembrado” em 1959, ano em que são realizadas análises a diversos artefactos metálicos conservados no MMSR, incluindo esta peça (Bittel et al., 1968: 36-37). Mais recentemente, o punhal é enquadrado em estudo que versou uma análise tipológica de punhais, espadas e alabardas do Calcolítico e Bronze Médio na Península Ibérica (Brandherm, 2003: 458). Em 2012, no quadro da elaboração da Carta Arqueológica do concelho da Figueira da Foz 2 3
A grafia original foi atualizada.
Todos conservados no MMSR, exceto a telha romana e os fragmentos de cerâmica feita a torno referidos na publicação (Carrisso e Rocha, 1909: 240) e que não estão catalogados em nenhum registo antigo; também 3 das 13 peças de pedra polida estão em falta (ou mal identificadas) no MMSR, mas encontramse catalogadas (Rocha, 1909a: 10).
UM PUNHAL DE COBRE ESQUECIDO, UM SÍTIO (RE)ENCONTRADO: LORIGA (ALHADAS DE BAIXO, FIGUEIRA DA FOZ)
Figura 1 - Circunscrição da área aproximada do sítio da Loriga. Carta Militar de Portugal, n.º 239, esc. 1:25 000, 1947.
realizaram-se prospeções de campo conduzidas por Ana Ferreira e José Silva (Ferreira e Pinto, 2017; n.º imóvel 0075). Embora sem grandes resultados concretos4, esta abordagem revelou-se importante nos trabalhos que desenvolvemos.
O sítio (re)encontrado O sítio da Loriga demora a uns 600 metros aproximadamente para NO da povoação das Alhadas de Baixo, concelho da Figueira, na encosta de um monte. Aí possuem os srs. Condes de Monsaraz uma quinta, bastante extensa, que desce até ao vale das Alhadas. Nesta quinta, pelo oeste das casas, há uma depressão no solo, pequeno vale plantado de vinha, que baixa suavemente de SO para NE. A encosta do NO deste vale, que fica fronteira às casas, está povoada de pinhal. É na base desta encosta, na 4 Informação retirada das fichas de catálogo do MMSR (n.º imóvel 0075).
própria orla do pinhal (…), que em outubro último foi assinalada uma estação pré-histórica. (Carrisso e Rocha, 1909: 238).
Partindo dos dados acima descritos pelos investigadores figueirenses e em estreita colaboração com a equipa do MMSR, visitámos o sítio no passado dia 20 de maio de 2019. No terreno, foi possível identificar o vale e, por conseguinte, delimitar de forma mais precisa o sítio, que se localiza numa área circunscrita entre a povoação de Alhadas de Baixo e a zona da Amoreira, na freguesia de Alhadas, concelho da Figueira da Foz (Fig. 1). Como ponto de mera referência dessa mesma área apresentamos as seguintes coordenadas geográficas: 40º11’42.252’’N; 8º47’54.204’’W (DMS). Em termos geomorfológicos, o sítio de Loriga insere-se num vale de contornos pouco profundos e estreitos, que baixa ligeiramente de sudoeste para nordeste (tal como os autores referem), sendo as 141
UM PUNHAL DE COBRE ESQUECIDO, UM SÍTIO (RE)ENCONTRADO: LORIGA (ALHADAS DE BAIXO, FIGUEIRA DA FOZ)
A
B
Figura 2 A - Enquadramento da encosta do vale, vista aproximada de NE para SO; B - Paisagem visível a partir do outeiro aplanado, vista aproximada de O para E. Fotografia de Ana R. Pereira.
encostas ligeiramente íngremes. Sobranceiro a esse vale ergue-se um pequeno outeiro aplanado com cerca de 100 m de altitude, e com ampla visibilidade para nordeste/este, encontrando-se hoje ocupado com algumas construções para habitação (Fig. 2). A área, concretamente o fundo do vale, é constituída por sedimentos aluvionares, areias e grés, com predominância de rochas calcárias. Tomando como ponto de partida esta área circunscrita, é de referir que da povoação de Alhadas de Baixo até esta, a indicação da distância de 600 metros, que os autores referem, foge pouco à realidade, o que confirma o rigor das descrições. A nível paisagístico, a zona encontra-se atualmente transformada, apresentando também testemunhos de explorações agrícolas e de pecuária, o que dificulta a caracterização do sítio enquanto possível local de ocupação pré-histórica.
O punhal
Como já foi referido, na comunicação publicada no “Boletim da Sociedade Archeologica Santos Rocha” dá-se a conhecer este artefacto. Para além do seu contexto de achado (camada arenosa), os autores apresentam uma breve descrição morfológica da peça acompanhada de fotografia, indicam alguns paralelos existentes no território português e informam sobre a sua composição química (Carrisso e Rocha, 1909). 142
Além dessa fotografia (Idem, ibidem: 239) dispomos de dois desenhos entretanto realizados (Fig. 3) (Bittel et al., 1968: Tafel 53; Brandherm, 2003: Tafel 22), imagens que, no seu conjunto, revelam que a peça não sofreu grandes transformações, como bem testemunha fotografia recente (Fig. 4). Em termos morfológicos, é um punhal de lâmina subtrapezoidal, com arestas regulares e de secção biselada. É provido de uma nervura longitudinal central em ambas as faces, bastante pronunciada e irregular (com ligeiro espessamento resultado de restauro antigo), que se prolonga até à lingueta, zona onde era feito o encabamento. Dois “ombros” demarcam a lâmina da lingueta, de morfologia subtrapezoidal, encontrando-se deformada, com ligeira curvatura. A peça conserva-se quase completa, com exceção da ponta, que está quebrada e é romba, sendo decerto originalmente mais pontiaguda. Apresenta coloração esverdeada, com tonalidades acastanhadas, resultante de corrosão e patina. O punhal mede 15 cm de comprimento, sendo de 3,5 cm a lingueta; tem de largura máxima 3 cm e de espessura média 0,4 cm; peso: 50 g. Do ponto de vista tipológico, a peça enquadrase no tipo de punhais de lingueta, que podemos definir do seguinte modo: ferramenta ou arma, normalmente com lâmina ou lingueta em forma trapezoidal, retangular ou pseudotrapezoidal; as arestas podem apresentar, ou não, um martelado
UM PUNHAL DE COBRE ESQUECIDO, UM SÍTIO (RE)ENCONTRADO: LORIGA (ALHADAS DE BAIXO, FIGUEIRA DA FOZ)
Figura 3 (esquerda) - Desenhos do punhal: 1 - Brandherm, 2003: Tafel 22; 2 - Bittel et al., 1968: Tafel 53 (adaptado), com indicação dos três pontos de análise: ponto 1: extremidade da lingueta; ponto 2: extremidade da ponta da lâmina (2019); ponto A: centro da nervura da lâmina (1959). Figura 4 (direita) - Fotografias do punhal. Fotografias de Ana R. Pereira.
lateral e uma secção em bisel ou em duplo bisel; na parte central da lâmina pode assinalar-se, ou não, uma nervura decorativa em ambas as faces ou apenas numa; o comprimento varia entre 9,4 cm e 31 cm, sendo a maioria entre os 14,3 cm e 20 cm (Comendador Rey, 1998: 174-175).
Metodologia analítica e resultados Até ao presente estudo, o punhal de Loriga foi alvo de análises químicas realizadas em dois momentos distintos e com metodologias igualmente diversas, embora ambas visassem o conhecimento da sua composição química. Publicado em inícios do século
passado, como referimos, foi submetido, logo então, a análises da responsabilidade do farmacêutico amigo de Santos Rocha, o Sr. Sotero Simões de Oliveira, que revelou tratar-se de um cobre puro sem “vestígios alguns de estanho, chumbo, zinco ou antimónio.” (Carrisso e Rocha, 1909: 238). Em finais da década de cinquenta foi alvo de novas análises realizadas por Manfred Schröder que indicaram tratar-se de uma liga de cobre (95,15%) com a presença de outros elementos secundários (4,8%As; <0,01Ag; 0,023Ni) (Bittel et al., 1968: 36-37). No contexto do presente estudo tivemos oportunidade de aceder à peça e decidimos proceder a uma nova análise, desta vez realizada por um 143
UM PUNHAL DE COBRE ESQUECIDO, UM SÍTIO (RE)ENCONTRADO: LORIGA (ALHADAS DE BAIXO, FIGUEIRA DA FOZ)
espectrómetro portátil de fluorescência de raios-X (XRF) Bruker Tracer III SD equipado com um gerador de raios X com ánodo em Ródio e um detetor modelo X-Flash SDD. Foram utilizadas as seguintes condições de trabalho: 40 kV, 11 μA, tempo de aquisição de 60 segundos, filtro Ti+Al (304.8 μm alumínio e 25.4 μm titânio). Os espectros foram adquiridos com o software Bruker S1PXRF v. 3.8.30 e tratados com o software Bruker ARTAX v. 5.3.0.0. A análise foi realizada em 2 pontos distintos (Fig. 3), concretamente na extremidade da lingueta (ponto 1) e na extremidade da ponta da lâmina (ponto 2). Com o propósito de se obterem dados do metal, procedeu-se à remoção prévia da camada superficial de corrosão em ambos os pontos analisados. Os resultados obtidos revelaram uma composição de cobre (Cu) com teores de arsénio (As) que variam entre 3,34% do ponto 2 e 4,13% do ponto 1 (Tabela I). Foram ainda detetados outros elementos, nomeadamente chumbo (Pb), bismuto (Bi), prata (Ag), estanho (Sn) e antimónio (Sb), embora a sua presença, em termos quantitativos, resulte bastante residual e insignificante. Apesar das técnicas e das metodologias analíticas serem diferentes e das análises terem incidido em zonas distintas do punhal (nas duas extremidades no presente caso e no corpo no caso de Bittel et al., 1968) (Fig. 3), os dados agora apresentados confirmam estarmos perante um cobre com teores tendencialmente elevados de arsénio, conforme detetado no trabalho anteriormente referido (4,8% As) e de acordo com o que é expectável numa arma de época calcolítica (Soares et al., 2017: 357). Importa ainda realçar que a presença de quantidades significativas de arsénio em objetos de cobre é geralmente associada ao fenómeno campaniforme (Valério et al., 2018), mesmo que também ocorra pontualmente em comunidades não inseridas nesse âmbito cultural. Embora quantidades de 3-4% de As já tenham efeitos sobre as propriedades de um metal, na medida em que a adição desse elemento aumenta a dureza 144
e a tenacidade do metal em relação a um cobre puro (Rovira, 2004: 16), alguns autores têm vindo a defender que a presença de quantidades mais elevadas de arsénio seria explicável por motivos de natureza estética e não propriamente funcional (Pereira et al., 2013). Nesta ótica, foi evidenciado como a adição de arsénio, para além de incidir sobre as propriedades mecânicas de uma peça, também confere ao metal um aspeto mais brilhante e de tons prateados, o que poderá eventualmente representar um indicador de prestígio.
O punhal de Loriga no seu quadro regional A tipologia e a composição química do punhal de Loriga permitem atribuí-lo ao Calcolítico Pleno/ Final, período correspondente à segunda metade do III milénio a.C. Este período é ainda bastante mal conhecido no Baixo Mondego, designadamente no que respeita às produções metálicas. Quanto a punhais, conhecem-se mais dois exemplares, um deles procedente do Crasto de Tavarede5 (Figueira da Foz) (Rocha, 1971: Est. XXVIII; Neves, 2013: Est. IX e XVI, s/n 5), e o outro da Tapada do Espinheiro (Cantanhede). Este último, embora apresente morfologia distinta, nomeadamente pela presença de “duas chanfraduras de cada lado”, é em cobre arsenical (Cruz et al., 2011: 3-4), tal como o exemplar de Loriga (Fig. 5). Ao alargarmos o horizonte geográfico a outras regiões do território português, encontramos muitos outros punhais com formas semelhantes e com o mesmo tipo de composição química do de Loriga em sítios e contextos arqueológicos de diversa natureza. A título de exemplo, nas regiões mais meridionais, poderemos referir os punhais integrantes do depósito de S. Brás (Serpa) (Soares, 2013: 406, fig. 263, n.º 1 e 2), do recinto dos Perdigões (Reguengos de 5
O punhal encontra-se atualmente em fase de estudo.
UM PUNHAL DE COBRE ESQUECIDO, UM SÍTIO (RE)ENCONTRADO: LORIGA (ALHADAS DE BAIXO, FIGUEIRA DA FOZ)
Tabela I Resultados das análises por RFX
n.d. - não detetado.
Monsaraz) (Bottaini et al., 2018: 18), do povoado de Vila Nova de São Pedro (Azambuja) (Arnaud e Fernandes, 2005: 199, n.º 359) e, ainda, na região centro, o do monumento megalítico da Orca dos Fiais da Telha (Carregal do Sal), também em cobre arsenical (Senna-Martinez e Pedro, 2000: 104). Mais a norte, recordem-se ainda dois punhais provenientes do povoado de São Lourenço (Chaves), com teores de arsénio de 1,9% e 3,2% (Araújo e Cabral, 1986: 1091-1093; Comendador Rey, 1998: 52; 150; 197; Jorge, 1986: 373). Voltando ao Calcolítico do Baixo Mondego, importa ainda sublinhar que são conhecidos outros dados dispersos de distinta natureza os quais, futuramente, importará sistematizar e valorizar. Sem ser este o momento de o fazer e circunscrevendo-nos apenas à metalurgia, assinale-se a existência de três pontas de tipo Palmela, ou similares, provenientes dos sítios de Forno da Cal (Rocha, 1907: 125-126), do Crasto de Tavarede (Rocha, 1971: 145-150) e do monumento megalítico da Cumieira (Rocha, 1899-1903: 341), e ainda duas outras pontas de seta dos sítios de Brenha (Rocha, 1907: 157) e de Santa Olaia (Rocha, 1971: 175-176). Testemunhando também outro tipo de artefactos recorrentes naquele período são os dois machados planos atribuídos a uma das grutas de Eira Pedrinha (Condeixa-a-Nova) e a Condeixa-a-Velha, este, muito provavelmente, oriundo e evocando a ocupação pré-histórica
Figura 5 - 1 - Punhal do Crasto de Tavarede. Fotografia do MMSR. 2 - Punhal da Tapada do Espinheiro (Cruz et al., 2011: 4).
145
UM PUNHAL DE COBRE ESQUECIDO, UM SÍTIO (RE)ENCONTRADO: LORIGA (ALHADAS DE BAIXO, FIGUEIRA DA FOZ)
de Conímbriga (Vilaça, 2017: 51, fig. 1, com bibliografia anterior). A associação desta categoria de artefactos metálicos ao fenómeno campaniforme verificada em grande parte do território português, como vários autores têm recorrentemente sublinhado, é uma realidade também observada nesta região. Diversos dos sítios supra referidos, além de outros, forneceram fragmentos de cerâmica campaniforme de tipo diverso: Internacional, Palmela, Pontilhado e, inclusive, campaniformes lisos. Esta diversidade, cujo significado carece ainda de cabal entendimento, não pode, porém, ser dissociada de evidentes afinidades com o campaniforme da Estremadura, região considerada estruturante na sua difusão, irradiando influências para norte, e que terão alcançado, justamente, a região da Figueira da Foz (Cardoso, 2014: 323). Considerando todos estes dados, não podemos deixar de sublinhar que a adoção dos primeiros metais – pontas de Palmela e punhais de lingueta, consideradas peças caracteristicamente campaniformes (Idem, ibidem: 311) – na região do Baixo Mondego não deve ser dissociada da afirmação do fenómeno campaniforme em si e dos contextos em que se manifesta durante a segunda metade do III milénio a.C. (podendo prolongar-se aos inícios do II milénio a.C.), período em que se observa uma crescente complexificação social e um aumento da interação regional. É justamente a procura, a caracterização e a identificação das especificidades desses contextos, de modo sistemático e global, que está ainda por fazer nesta região. No caso de Loriga importará também fazê-lo, resgatando os dados que a bibliografia deixou no esquecimento, em concreto os materiais provenientes do local e que importa estudar. Entre os mais significativos de pedra polida contam-se, como produtos finais e alguns possuindo exímio polimento, outros em fase de fabrico: machados, enxós e uma goiva, na maioria em xisto-anfibólito (Fig. 6). Mas também está presente a pedra lascada e cerâmica. Dois 146
Figura 6 - Materiais de pedra polida: machados n.º 1, 2, 6, 7, 8, 9 e 10; enxós n.º 4 e 5; goiva n.º 3.
dos bordos aparentam corresponder a formas fechadas e globulares, sem decoração, possuindo pastas bege/ castanho claro, sendo o primeiro (n.º 8700) um bordo convexo e o segundo (n.º 8701) um bordo plano (Fig. 7). Em suma, os achados de Loriga6 permitem afastar a possibilidade de o punhal corresponder a um achado isolado, evocando antes, com toda a probabilidade, testemunho de um lugar de habitação, muito possivelmente de cariz agrícola, atendendo à localização em suave colina, com boa exposição solar e dominando um amplo vale.
6
Para além dos 26 registos arqueológicos já conhecidos, importa mencionar que em contexto de prospeção, no ãmbito de um trabalho académico de um dos autores (A. R. P.), foram encontrados novos materiais, designadamente, um fragmento de lâmina em sílex e alguns fragmentos cerâmicos de fabrico manual, os quais foram entregues ao MMSR.
UM PUNHAL DE COBRE ESQUECIDO, UM SÍTIO (RE)ENCONTRADO: LORIGA (ALHADAS DE BAIXO, FIGUEIRA DA FOZ)
Figura 7 - Bordos cerâmicos: 1 - n.º 8700; 2 - n.º 8701.
Breves considerações finais Dentro dos recursos reunidos, procurou-se desenvolver o estudo integral do punhal de Loriga, atendendo a diferentes abordagens. Por um lado, procedeu-se à combinação de diferentes análises – morfo-tipológica, composição química, contextual – e ainda a comparação com outras peças congéneres. Por outro lado, a associação com os restantes materiais permitiu formular algumas reflexões em termos interpretativos de âmbito social e cultural acerca
do punhal e seu sítio de proveniência, aspetos que deverão ser aprofundados numa outra ocasião. No estudo das dinâmicas do povoamento calcolítico da região do Baixo Mondego o sítio de Loriga deverá ser igualmente reavaliado enquanto lugar de potencial carácter habitacional. Com efeito, quer o contexto de achado dos testemunhos preservados, quer a geomorfologia do sítio, que aparenta ter boas condições para a instalação de um povoado, são aspetos a valorizar e que implicarão também a revisão articulada de outros registos conhecidos mais próximos, i.e., circunscritos ao concelho da Figueira da Foz (Fig. 8). Povoados, contextos funerários ou achados isolados reportáveis ao III milénio a.C. são conhecidos na região, mas aguardam um estudo integrado à luz de problemáticas atuais; a confirmação e caracterização de alguns encontra-se em curso, enquanto outros, perfeitamente identificados, exigem revisitação no âmbito de um projeto estruturado.
Figura 8 - Sítios com ocupação calcolítica no concelho da Figueira da Foz (base cartográfica adaptada a partir de Alarcão, 2004).
147
UM PUNHAL DE COBRE ESQUECIDO, UM SÍTIO (RE)ENCONTRADO: LORIGA (ALHADAS DE BAIXO, FIGUEIRA DA FOZ)
Agradecimentos Ao Museu Municipal Santos Rocha, na pessoa da sua responsável Dr.ª Ana Margarida Ferreira, por todo o apoio e auxílio dispensados e pela autorização concedida no estudo do punhal e demais artefactos. Ao Dr. Pedro Callapez (Departamento de Ciências da Terra e Centro de Geofísica da Universidade de Coimbra), pelo auxílio na identificação da matériaprima dos materiais líticos. O estudo analítico foi realizado com o apoio financeiro da FCT no âmbito do projeto UIDB/04449/2020 (Laboratório HERCULES, Universidade de Évora).
Referências bibliográficas ALARCÃO, Jorge de (2004). Territorio Colimbrie: lugares velhos (e alguns deles, deslembrados) do Mondego. (Trabalhos de Arqueologia 38). Lisboa: IPPC. ARAÚJO, Maria de Fátima e CABRAL, João Peixoto (1986). Análise química de alguns objectos metálicos da estação de S. Lourenço, In JORGE, S. O., Povoados da Pré-história Recente (IIIº inícios do IIº Milénios A.C.) da Região de Chaves-Vila Pouca de Aguiar (Trás-osMontes Ocidental). Porto: Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras, pp. 1091-1093. ARNAUD, José Morais e FERNANDES, Carla (eds.) (2005). Construindo a Memória: As Colecções do Museu Arqueológico do Carmo. Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses. BITTEL, Kurt et al. (1968). Studien zu den Anfängen der Metallurgie. Band 2, Teil 3. Berlim: Mann. BOTTAINI, Carlo et al. (2018). Use of Monte Carlo Simulation as a Tool for the Nondestructive Energy Dispersive X-ray Fluorescence (ED-XRF) Spectroscopy Analysis of Archaeological Copper-Based Artifacts from the Chalcolithic Site of Perdigões, Southern Portugal. Applied Spectroscopy, Vol. 72(I), pp. 17-27. BRANDHERM, Dirk (2003). Die Dolche und Stabdolche der Steinkupfer-und der älteren bronzezeit auf der Iberischen Halbinsel. In Prähistorische Bronzefunde. Abteilung VI, Band 2. Stuttgart: Franz Steiner Verlag.
148
CARDOSO, João Luís (2014). A presença campaniforme no território português. Estudos Arqueológicos de Oeiras, 21, pp. 295-348. CARRISSO, Luiz Wittnich e ROCHA, António dos Santos (1909). Estação cupro-lithica da Loriga. Boletim da Sociedade Archeologica Santos Rocha, I (9), pp. 238-240. COMENDADOR REY, Beatriz (1998). Los inícios de la metalurgia en el Noroeste de la Península Ibérica. Brigantium, vol. 11. Museu Arqueolóxico e Histórico da Coruña. CRUZ, Carlos et al. (2011). Achados metálicos de cobre no baixo Vouga (Centro-Norte de Portugal). In MARTINS, C. et al. (coord.), Povoamento e Exploração de Recursos Mineiros na Europa Atlântica Ocidental. Braga: CITCEM/APEQ, pp. 359-375. FERREIRA, Ana e PINTO, Sónia (2017). Análise e Diagnóstico. Património Classificado e Referenciado - Documento final. Secção 2 Carta municipal de arqueologia. Divisão de Urbanismo - subunidade de planeamento. Figueira da Foz: Divisão de Cultura da Câmara Municipal da Figueira da Foz. JORGE, Susana O. (1986). Povoados da Pré-história Recente (IIIº inícios do IIº Milénios A.C.) da Região de Chaves-Vila Pouca de Aguiar (Trás-os-Montes Ocidental). Porto: Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras. NEVES, Sílvia G. (2013). O Crasto de Tavarede (Figueira da Foz) no quadro das problemáticas da I Idade do Ferro no Baixo Mondego. Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra. Dissertação de Mestrado. PEREIRA, Filipa et al. (2013). The role of arsenic in Chalcolithic copper artefacts–insights from Vila Nova de São Pedro (Portugal). Journal of Archaeological Science, 40(4), pp. 2045-2056. ROCHA, António dos Santos (1899-1903). Novo vestígio da época do cobre nas vizinhanças da Figueira. Portugália, I, p. 341. ROCHA, António dos Santos (1907). Material para o estudo da idade do cobre em Portugal. Boletim da Sociedade Archeologica Santos Rocha, I (1), pp. 125-126; 157. ROCHA, António dos Santos (1909a). O Museu Municipal da Figueira da Foz. Catálogo Geral. Aditamento n.º 2. Figueira da Foz: Imprensa Lusitana.
UM PUNHAL DE COBRE ESQUECIDO, UM SÍTIO (RE)ENCONTRADO: LORIGA (ALHADAS DE BAIXO, FIGUEIRA DA FOZ)
ROCHA, António dos Santos (1909b). Sessão plenária de 2 de Agosto de 1908. Boletim da Sociedade Archeologica Santos Rocha, I (9), pp. 235-237. ROCHA, António dos Santos (1910). O Museu Municipal da Figueira da Foz. Catálogo Geral, Aditamento n.º 3 [Manuscrito]. Acessível na Biblioteca do Museu Municipal Santos Rocha. ROCHA, António dos Santos (1911). Materiaes para o estudo da Idade do Cobre em Portugal. Figueira da Foz: Imprensa Lusitana. ROCHA, António dos Santos (1971). Memórias e Explorações Arqueológicas, vol. II. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis. ROVIRA, Salvador (2004). Tecnología metalúrgica y cambio cultural en la Prehistoria de la Península Ibérica. Norba. Revista de Historia, 17, pp. 9-40. SENNA-MARTINEZ, João e PEDRO, Ivone (2000). Por terras de Viriato. Arqueologia da região de Viseu. Viseu: Governo Civil do Distrito de Viseu e Museu Nacional de Arqueologia. SOARES, Joaquina (2013). Transformações sociais durante o III milénio a.C. no Sul de Portugal. O povoado do Porto das Carretas. Lisboa: EDIA/DRCALEN. SOARES, António Monge et al. (2017). A Metalurgia Campaniforme no Sul de Portugal. In GONÇALVES, V. S. (ed.), Sinos e Taças. Junto ao Oceano e mais longe. Aspetos da presença campaniforme na Península Ibérica. (Estudos e memórias 10). Lisboa: UNIARQ/ FLUL, pp. 354-363. VALÉRIO, Pedro et al. (2018). The Composition of the São Brás Copper Hoard in Relation to the Bell Beaker Metallurgy in the South western Iberian Peninsula. Archaeometry, 61(2), pp. 392-405. VILAÇA, Raquel (1988). Subsídios para a Pré-história Recente do Baixo Mondego. (Trabalhos de Arqueologia 5). Lisboa: IPPC. VILAÇA, Raquel (2017). Um Passado Remoto para um Presente em Perspectiva. Actas das III Jornadas de Valorização do Património Cultural Material, Imaterial e Natural de Eira Pedrinha. Condeixa-a-Velha / Condeixa-a-Nova, pp. 49-55.
149
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Contributos para o estudo do depósito metálico de Espite (Ourém) Contributions to the study of the Espite metallic hoard (Ourém) Pietro Musso Mack1 . Xosé-Lois Armada2 . Raquel Vilaça3
1
Mestrando em Arqueologia e Território, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra | pietromack1@gmail.com de Ciencias del Patrimonio (Incipit), Consejo Superior de Investigaciones Científicas (CSIC) | xose-lois.armada@incipit.csic.es 3 Univ Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de Arqueologia, CEAACP | rvilaca@fl.uc.pt 2 Instituto
150
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
Este trabalho constitui uma primeira etapa do estudo monográfico do depósito metálico de Espite (Ourém), parcialmente publicado por Estácio da Veiga em 1891. Trata-se de um conjunto insuficientemente valorizado pela investigação, com características peculiares, seja pela sua composição (originalmente constituído por 32 peças, machados planos na sua maioria, em cobre), seja pela cronologia recuada (Calcolítico Final/Bronze Antigo). Pouco depois do achado, o conjunto é adquirido por Sande e Castro, que distribuiu muitas das peças tal como era costume na época. Até ao momento, foi possível identificar o paradeiro de 25 peças: quatro estão no Museu Municipal Santos Rocha (Figueira da Foz), as quais foram alvo de estudo arqueometalúrgico; no Museu Nacional de Arqueologia (Lisboa) encontram-se mais 21, em curso de estudo. Como componentes fundamentais do presente trabalho destacam-se: a recolha e sistematização das informações referentes às peças; a caracterização da composição química das que se encontram naquela primeira instituição; a aproximação possível ao enquadramento espacial do seu contexto de deposição.
This paper presents the first stage of the monographic study of the metallic hoard found in Espite (Ourém), partially published by Estácio da Veiga in 1891. This is a hoard that was insufficiently valued by research, presenting peculiar characteristics, not only for its composition (originally formed by 32 artifacts, mostly flat axes, in copper), but also for its considerable antiquity (Late Chalcolithic/Early Bronze Age). A little after the find, the set was acquired by Sande e Castro, who distributed many of the items as it was common at the time. To this day, we have been able to identify the whereabouts of 25 of them: four are at the Museu Municipal Santos Rocha (Figueira da Foz), which were subjected to an archeometallurgical study; other 21 are located at the Museu Nacional de Arqueologia (Lisboa), these being still under study. Three of the fundamental components of the present study are: the compilation and systematization of all the information regarding the hoard and its artifacts; the characterization of the chemical composition of the axes located in the first institution; the attempt to better situate its place of deposition.
Palavras-chave: Depósitos metálicos; Machados planos; Calcolítico Final/Bronze Antigo; Espite; História da investigação.
Keywords: Metallic hoards; Flat axes; Late Chalcolithic/ Early Bronze Age; Espite; History of research.
151
CONTRIBUTOS PARA O ESTUDO DO DEPÓSITO METÁLICO DE ESPITE (OURÉM)
Introdução Este trabalho pretende contribuir para o estudo de conjunto do depósito metálico de Espite (Ourém), que os autores têm em curso com Carlo Bottaini e Ana Rita Pereira. Trata-se de um achado excecional, não só na região envolvente, como em todo o território português, pela sua cronologia recuada (Calcolítico Final/Bronze Antigo), mas igualmente por reunir, no seu momento de achado, 32 artefactos metálicos de tipos, dimensões, formas e estados de conservação muito variados. Sendo este um estudo que se encontra em desenvolvimento, a presente oportunidade servirá para divulgarmos alguns dos resultados obtidos nesta primeira etapa, de cariz mais historiográfico, pautada pela recolha e sistematização da informação dispersa na bibliografia e nos dados existentes nas instituições museológicas onde se encontram as peças deste conjunto. Com o intuito de obter um enquadramento espacial do local de deposição efetuou-se ainda uma saída de campo, onde se verificou uma paisagem marcada por vales de encostas suaves (Fig. 1). Para além disso, foram já realizadas análises à composição química dos quatro machados conservados no Museu Municipal Santos Rocha, cujos resultados são aqui apresentados. Deste modo, pretendemos reconstituir o verdadeiro puzzle que é a trajetória dessas peças desde o momento do seu achado até aos dias de hoje, tendo sempre em vista a produção de dados úteis para o estudo completo do conjunto. 1
Breve historiografia de um depósito O conjunto é referido pela primeira vez por Estácio da Veiga, em 1891, quando publica 14 das peças que compunham originalmente o depósito, cuja existência lhe chegou através do Eng.º João 1
Trata-se de um texto breve decorrente de póster apresentado no Colóquio “Santos Rocha, Arqueologia e Territórios da Figueira da Foz” e, nesse sentido, com limitação de espaço.
152
Anastácio de Carvalho. Tratando-se de informação em segunda mão, o autor só poderia apresentar uma descrição pouco detalhada do local de achado, referindo apenas que as peças terão sido encontradas “na margem de uma pequena ribeira, na ocasião de ser derribado um velhíssimo carvalho”. Deixa ainda uma nota sugestiva, que remete para o contexto de achado, informando que junto das peças foram também identificados carvões, cinzas e fragmentos cerâmicos, elementos que o levaram a interpretar o conjunto como sendo um “esconderijo de fundidor destinado à refundição” (Veiga, 1891: 152-153). Pouco tempo depois do achado, o conjunto é adquirido – talvez não na sua totalidade – pelo “amador de antiguidades” Sande e Castro, que fez chegar algumas das peças a Santos Rocha, Leite de Vasconcelos e Tavares Proença, prática esta bastante comum por toda a Europa na época. Outras peças passaram a constituir coleções particulares, como é o caso das quatro peças que estiveram na posse de José Calado. Em 1897, Santos Rocha publica três machados pertencentes a este depósito, referindo-se-lhes como não tendo sido adquiridos por Sande e Castro (Rocha, 1975: 119). No museu que criou encontram-se hoje, além desses três machados, um quarto, também atribuído a Espite, todos eles devidamente identificados no respetivo Catálogo (Rocha, 1905: 64). Na década seguinte, outro machado, cujo paradeiro é hoje desconhecido, é desenhado por Tavares Proença em um dos seus manuscritos (Vilaça, 2016b: 63 e fig. 1). A partir daí, e durante praticamente um século, as peças de Espite receberam escassa atenção dentro do meio científico, até que em finais da década de 70 do séc. XX o conjunto é integrado, praticamente na sua totalidade, na compilação dos machados da Península Ibérica (Monteagudo, 1977). Hoje, passados quase 130 anos do seu achado, este depósito permanece inexplorado, no sentido de nunca ter sido alvo de estudo de conjunto, detalhado e aprofundado; é com o objetivo de ultrapassar essa situação que se visa
CONTRIBUTOS PARA O ESTUDO DO DEPÓSITO METÁLICO DE ESPITE (OURÉM)
Figura 1 - A paisagem envolvente à Ribeira de Espite, vista aproximadamente de norte para sul.
uma abordagem integral, reunindo todas as peças possíveis do conjunto original e perspetivando-a numa aproximação mais rigorosa do significado deste no contexto da temática das deposições de objetos metálicos, mais concretamente sobre a génese desse fenómeno cultural.
Os artefactos O depósito é constituído por: dois possíveis lingotes, um sub-retangular e outro disforme (Fig. 2: n.º 1 e 2); um punhal com dois chanfros laterais, opostos e assimétricos (Fig. 2: n.º 3); 26 machados planos, que variam em formato, dimensão e, provavelmente, funcionalidade, com exemplares inteiros, outros fraturados ou deformados (Fig. 2: n.º 4 a 29); e mais três peças cujo destino e morfologia desconhecemos. Até ao momento foi possível determinar o paradeiro de 25 das 32 peças
que compunham originalmente o depósito: quatro delas encontram-se no Museu Municipal Santos Rocha (Fig. 2: n.º 15 a 18), enquanto outras 21 estão no Museu Nacional de Arqueologia (Fig. 2: n.º 1, 3 a 7, 9 a 13, 19 a 28). Ainda que já tenham sido feitas análises de caracterização química a algumas das peças em três ocasiões distintas, nomeadamente por C. von Bonhorst (Veiga, 1891: 153), S. Simões de Oliveira (Rocha, 1897: 119-124) e S. Junghans (Bittel et al., 1968: 24-25, 26-27, 38-39), consideramos pertinente analisar as que ainda não foram submetidas a tal e, no caso de algumas das peças já analisadas, refazêlas. Portanto, uma segunda vertente do nosso estudo ocupa-se com a caracterização arqueometalúrgica dessas peças, com base em análises de caracterização química que recorrem a técnicas e instrumentos de última geração, para que os dados produzidos sejam confrontados com os resultados das análises anteriores. 153
CONTRIBUTOS PARA O ESTUDO DO DEPÓSITO METÁLICO DE ESPITE (OURÉM)
Figura 2 - As 29 peças do depósito de Espite de que temos registo. N.º 1, 3 a 7, 9 a 11, 13, 19, 20 a 28 - fotografias retiradas da Matriz Net; n.º 2, 8, 12 e 14 - desenhos retirados de Veiga, 1891: Est. XIX; n.º 15 a 18 - fotografias de Ana Pernas; n.º 29 - esquisso de Tavares Proença.
154
CONTRIBUTOS PARA O ESTUDO DO DEPÓSITO METÁLICO DE ESPITE (OURÉM)
Figura 3 - Os quatro machados de Espite conservados no MMSR (15: MMSR - 2511; 16: MMSR - 2686; 17: MMSR - 2512; 18: MMSR - 1636).
Análises das peças do Museu Municipal artefactos calcolíticos do sul de Portugal analisados Santos Rocha mediante XRF que, em muitos casos, contêm teores As análises realizadas em 2015 mediante Fluorescência de Raios X2 no âmbito do projeto ALBIMEH (Armada e Martinón-Torres, 2016) mostram que as quatro peças conservadas no MMSR (Fig. 3) foram elaboradas em cobre, sendo o arsénio a principal impureza (Quadro I). Três das peças foram analisadas sobre a pátina, mas no exemplar 1636 (Fig. 2: n.º 18) foi possível analisar também o núcleo metálico na área circular que foi objeto de análise antiga, confirmando a composição indicada. Esta última análise mostra, de maneira sintomática, que os elementos traça presentes em baixas quantidades (Fe, Ni, Sn, Sb, Pb e Bi) na análise das pátinas não se detetam no núcleo metálico. Estes elementos traça (em particular Pb e Sb) tão-pouco se detetam noutros 2
As características do equipamento utilizado estão descritas em Cruz et al. (2018: 72-73).
de arsénio mais elevados que os machados de Espite (Vidigal et al., 2016). O estudo arqueométrico deverá ser complementado no futuro. A comparação com as análises realizadas no projeto SAM (Bittel et al., 1968) revela tendências concordantes. A única peça que nós analisámos sem pátina proporciona um valor de arsénio (0,82) coincidente com o obtido no citado projeto alemão (análise n.º 1877). Ao mesmo tempo, o machado 2512 é o único dos quatro conservados no MMSR que contém valores de arsénio superiores a 1%, tanto na análise do SAM (n.º 1878) como nas aqui apresentadas. As outras 14 peças do MNA analisadas no SAM dão também como resultado composições de cobre com percentagens variáveis de arsénio (em nenhum caso superiores a 3,5%, e inferiores a 1% na metade dos casos) e quantidades geralmente muito baixas de níquel, bismuto e ocasionalmente antimónio. 155
CONTRIBUTOS PARA O ESTUDO DO DEPÓSITO METÁLICO DE ESPITE (OURÉM)
Quadro I Resultados das análises químicas realizadas em 2015 aos machados conservados no MMSR
O depósito, o local de achado e a região Conforme mencionado anteriormente, o depósito de Espite insere-se no grupo dos mais antigos conjuntos de depósitos metálicos conhecidos no atual território português, sendo atribuível aos finais do Calcolítico (2.ª metade do III milénio a.C.), podendo alcançar a viragem para o Bronze Antigo (inícios do II milénio a.C.). O estudo tipológico e comparativo de cada uma das categorias das peças, que se encontra em curso conforme referido, poderá permitir maior precisão que, em texto futuro, desenvolveremos. Para além da sua notável antiguidade, este conjunto também representa um caso muito peculiar – não só na região envolvente, como em todo o território português – uma vez que reúne um número bastante significativo de objetos de morfologias e funcionalidades muito variadas, atribuíveis a pelo menos três diferentes categorias: machados, punhal, lingotes/restos de fundição. Tais características fogem bastante ao modelo 156
de deposição de objetos metálicos que se verifica por toda a Península Ibérica nesta altura (Fig. 4). O assunto mereceu recentemente atenção em trabalho de síntese que sublinha o predomínio dos depósitos de machados planos, na esmagadora maioria dos casos, compostos por exemplares completos e geralmente com destaque de um tipo morfológico específico (Ruiz-Taboada et al., 2019: 58). Os casos elencados referem, justamente, o depósito de Espite, o único apontado para Portugal, o que terá de ser completado com uma pesquisa mais sistemática, alargada a todo o território e incluindo, desde já, também os dois casos vizinhos (vd. infra). Por outro lado, o conhecimento deste conjunto deveu-se a um achado fortuito e incomum, dada a particularidade de haver um contexto associado representado por cinzas, carvões e fragmentos cerâmicos que, segundo Estácio da Veiga (1891: 152-153), foram encontrados próximos e no mesmo nível da deposição.
CONTRIBUTOS PARA O ESTUDO DO DEPÓSITO METÁLICO DE ESPITE (OURÉM)
Figura 4 - Distribuição pela Península Ibérica dos depósitos com machados planos datáveis de inícios da Idade do Bronze: 1 - Espite; 2 - Caldelas; 3 - Rio Lis; 4 - Torreorgaz; 5 - Cerro del Judío; 6 - Estepa; 7 - Cañada de las Cañas; 8 - Santa Catalina; 9 - Yunclillos; 10 - Cerrocuquillo; 11 - Mieres; 12 - Gamonedo; 13 - Asiego; 14 - Valchica. Mapa adaptado de Ruiz-Taboada et al., 2019 e completado pelos autores.
157
CONTRIBUTOS PARA O ESTUDO DO DEPÓSITO METÁLICO DE ESPITE (OURÉM)
No entanto, por se tratar de um achado antigo – à semelhança de grande parte dos depósitos conhecidos em território português – não contamos com os devidos registos arqueológicos metódicos desses vestígios, que poderiam dar luz a valiosas informações para a interpretação deste conjunto. A informação disponível sobre o achado não é suficientemente clara quanto ao local exato da deposição, dificultando o enquadramento espacial do conjunto. Sabemos apenas que foi encontrado na margem esquerda de uma pequena ribeira, sendo impossível estimar a que distância, mesmo aproximada. Apesar de todas as incertezas, não deveremos afastar a interpretação originalmente advogada por Estácio da Veiga, de resto espelhando a visão da sua época, i.e. a de poder corresponder a um depósito utilitário de fundidor, ou seja, um agrupamento de peças destinadas à refundição, visto que há possíveis lingotes e um pedaço disforme de metal fundido, além do facto de grande parte das peças se encontrarem fragmentadas e incompletas. Nesta perspetiva, os carvões, cinzas e fragmentos cerâmicos associados às peças poderiam estar ligados ao trabalho do metal por parte do “fundidor depositante” ou, dito de outro modo, poderia o sítio de achado corresponder a um espaço de trabalho. Em alternativa, não deveremos descartar a hipótese de esses mesmos vestígios resultarem de um contexto ritualizado, onde a manipulação do fogo poderia ter assumido um papel simbólico para os agentes da deposição (Vilaça, 2006: 71). Embora este contributo não tenha como objetivo uma análise do quadro do povoamento do Calcolítico e Bronze Antigo da região de Espite, não podemos deixar de registar alguns outros achados metálicos, designadamente os que têm cronologia compatível com a atribuída ao conjunto em estudo. Efetivamente, a região abrangida pela bacia do Lis e afluentes – que engloba os concelhos de Leiria, Batalha, Porto de Mós e noroeste do de Ourém – revela uma notável concentração de depósitos 158
metálicos com cronologias, tipologias e contextos de achado muito variados, do Calcolítico ao Bronze Final (Vilaça, 2016a). Importa referir os que poderão corresponder em termos cronológicos ao de Espite, i.e. os de Caldelas (Leiria) e Rio Lis (Fig. 5). Quanto a este, é parca a informação, embora a identificação tipológica das peças seja bastante concreta. Leite de Vasconcelos refere-se a “quatro instrumentos de cobre, análogos aos de Espite (Vila Nova de Ourém), mas aparecidos nas margens do rio Lis”, sem indicação mais precisa, que observou na coleção de José Calado, quando o visitou no Juncal (Estremadura), em finais de 1897 e inícios de 1898 (Vasconcelos, 1956: 207). Quanto àquele, é também Estácio da Veiga que pela primeira vez o refere, informando terem sido vários os objetos encontrados, dos quais publica dois machados e um fragmento de lâmina de punhal, tendo sido os restantes vendidos a um fundidor (Veiga, 1891: 154-155). Um terceiro achado que merece referência é o da ponta de lança do Casal da Quinta (Milagres, Leiria), embora seja impossível, face à informação disponível, precisar a sua cronologia (Brandão, 1970). Se tomarmos como corretas as fontes supracitadas, conclui-se que se pode observar um padrão nas deposições metálicas desta região durante o Calcolítico Final/Bronze Antigo, visto que os machados planos são comuns aos três conjuntos, à semelhança daquilo que se verifica por toda a Península Ibérica na altura. A propósito da existência de um provável modelo de deposição de artefactos metálicos na região que nos ocupa, é de referir que as coincidências vão ainda além da morfologia e funcionalidade dos objetos depositados, assumindo também um significado espacial, possivelmente simbólico, dado que aqueles três conjuntos terão sido encontrados próximo a linhas de água, sendo todavia impossível estimar essa proximidade. De todo o modo, é interessante equacionar esses dados sob o ângulo da problemática dos “depósitos de margem”, com
CONTRIBUTOS PARA O ESTUDO DO DEPÓSITO METÁLICO DE ESPITE (OURÉM)
Figura 5 - Espite - Localização aproximada do achado e de outros, globalmente contemporâneos, na região envolvente: 1- Espite; 2 - Caldelas; 3 - Rio Lis.
159
CONTRIBUTOS PARA O ESTUDO DO DEPÓSITO METÁLICO DE ESPITE (OURÉM)
toda a sua ambiguidade situacional, em zonas de fronteira, entre a terra e a água, transmutáveis em função dos ritmos da natureza, do movimento das águas, da dinâmica dos lugares (Vilaça, 2006: 52-56; 2016a: 129). Observe-se ainda que a vinculação destes depósitos, onde os machados são exclusivos ou predominantes, a áreas de vale com terrenos privilegiados para práticas agrícolas não poderá ser casual, traduzindo antes uma escolha deliberada por parte dos depositantes, da comunidade, para quem aquelas práticas constituiriam o lastro do seu modo de vida. Essa tão harmoniosa associação entre o instrumento de trabalho – o machado – e o objeto de trabalho – a terra –, i.e. dos meios de produção inerentes a uma “agrarian life ” (Fontijn, 2003: 82), adquire especial significado simbólico nos casos referidos e em tantos outros (Vilaça, 2006: 80, 87).
Conclusões preliminares e perspetivas de futuro
Demonstrada a necessidade de um estudo de conjunto acerca deste interessantíssimo, e de certa forma negligenciado depósito, avançamos com algumas linhas de investigação futura. Independentemente das limitações inerentes ao estudo deste conjunto, os objetivos a atingir serão problematizados numa perspetiva holística, tendo sempre presente a tentativa de compreensão das ações associadas à deposição e do porquê da escolha de um lugar específico para se depositar. Quanto a este, no quadro da visita realizada, das informações existentes e de outras recentemente recolhidas, sujeitas a confirmação, é a vasta área da Arrochela e envolvente, na margem esquerda da Ribeira do Vale da Fontinha, afluente da Ribeira de Espite, entre as povoações da Freiria e da Cumieira, que se afigura como a mais aproximada ao local de achado, área que teve também ocupação de Época Romana 160
e talvez Neolítica (Sabreira, 1929; Pereira, 2006: 143-145; Gonçalves, 2011: 22-23). No fundo, o que pretendemos com este estudo é dar a devida importância ao depósito de Espite, que merece ser encarado como um dos mais importantes conjuntos metálicos atribuíveis à transição entre o III e o II milénio a.C. a nível peninsular. Tornase, portanto, imprescindível que este depósito seja analisado e interpretado no sentido atual do conceito, à luz dos novos dados e conhecimentos sobre esta velha, mas renovada, problemática.
CONTRIBUTOS PARA O ESTUDO DO DEPÓSITO METÁLICO DE ESPITE (OURÉM)
Agradecimentos Ao Museu Municipal Santos Rocha, pela autorização concedida no estudo das peças. Ao Dr. José Luís Madeira (DHEEAA-FLUC), pela ajuda na confeção dos mapas.
RUIZ-TABOADA, Arturo et al. (2019). El depósito de Yunclillos (Toledo) y los depósitos de hachas planas en la península ibérica: una propuesta cronológica. Spal, 28 (1), pp. 57-77. SABREIRA, José (1929). Coisas Tradicionais de Espite. Leiria: Imprensa Comercial (à Sé). VASCONCELOS, José Leite de (1915). História do Museu Etnológico Português (1893-1914). Lisboa: Imprensa Nacional.
Referências bibliográficas ARMADA, Xosé-Lois e MARTINÓN-TORRES, Marcos (2016). The ALBIMEH project – Atlantic Late Bronze Age metal hoards compared. Archaeology International, 19, pp. 49-53. BITTEL, Kurt et al. (1968). Studien zu den Anfängen der Metallurgie. Band 2, Teil 3. Berlin: Mann. BRANDÃO, Domingos P. (1970). Achados de cobre e de bronze na região de Leiria. O Arqueólogo Português, Notícias, Série 3, IV, p. 324. CRUZ, Domingos J. et al. (2018). Considerações sobre a Pré e a Proto-história da serra do Montemuro e seu aro (centro-norte de Portugal): artefactos metálicos e seu contexto. Cuadernos de Prehistoria y Arqueología de la UAM, 44, pp. 59-80. FONTIJN, David R. (2003). Sacrificial Landscapes. Cultural biographies of persons, objects and natural places in the Bronze Age of the southern Netherlands, c. 2300-600 BC. Leiden: Universiteit Leiden. GONÇALVES, Jacinto (2011). Monografia de Espite. Ourém: Freguesia de Espite. MONTEAGUDO, Luis (1977). Die Beile auf der Iberischen Halbinsel. Prähistorische Bronzefunde IX, Band 6. München: C.H.Beck’sche Verlagsbuchhandlung.
VASCONCELOS, José Leite de (1956). Coisas Velhas. O Archeologo Português, XXX, pp. 205-209. VEIGA, S. Estácio da (1891). Antiguidades Monumentaes do Algarve. Tempos Pré-históricos. Vol. IV, Lisboa: Imprensa Nacional. VIDIGAL, Rosa O. et al. (2016). Micro-EDXRF study of Chalcolithic copper-based artefacts from Southern Portugal. X-Ray Spectrometry, 45, pp. 63-68. VILAÇA, Raquel (2006). Depósitos de bronze do território português. Um debate em aberto. O Arqueólogo Português, Série IV, 24, pp. 9-150. VILAÇA, Raquel (2016a). A Idade do Bronze na Alta Estremadura: depósitos metálicos e a sua conexão com o espaço. I Congresso de História e Património na Alta Estremadura, Ourém, pp. 113-137. VILAÇA, Raquel (2016b). Reler Tavares Proença, revisitar os territórios, reavaliar os dados: da Pré à Proto-história. II Congresso Internacional de Arqueologia da Região de Castelo Branco. Castelo Branco: Sociedade dos Amigos do Museu de Francisco Tavares Proença Júnior, pp. 61-77.
PEREIRA, Jaqueline (coord.) (2006). Carta Arqueológica do Concelho de Ourém. Ourém. ROCHA, António dos Santos (1905). O Museu Municipal da Figueira da Foz. Catálogo Geral. Figueira: Imprensa Lusitana. ROCHA, António dos Santos (1975). Memórias e Explorações Arqueológicas. Vol. III - Memórias sobre a Antiguidade. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis.
161
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Os Cacos. Sempre os Cacos... Notas sobre a produção de cerâmica em Santa Olaia na Idade do Ferro Revisiting Potsherds, time after time... Remarks about pottery production at Santa Olaia during the Iron Age Sara Oliveira Almeida1 . Maria Isabel Prudêncio2 . Rosa Marques3 . Maria Isabel Dias4 . Dulce Russo5
1
Bolseira da FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BD/129227/2017). CEAACP - Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património | sara_almeida11@hotmail.com 2 Centro de Ciências e Tecnologias Nucleares (C2TN), Departamento de Engenharia e Ciências Nucleares (DECN), Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa | iprudenc@ctn.tecnico.ulisboa.pt 3 Centro de Ciências e Tecnologias Nucleares (C2TN), Departamento de Engenharia e Ciências Nucleares (DECN), Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa | rmarques@ctn.tecnico.ulisboa.pt 4 Centro de Ciências e Tecnologias Nucleares (C2TN), Departamento de Engenharia e Ciências Nucleares (DECN), Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa | isadias@ctn.tecnico.ulisboa.pt 5 Centro de Ciências e Tecnologias Nucleares (C2TN), Departamento de Engenharia e Ciências Nucleares (DECN), Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa | dulcef@ctn.tecnico.ulisboa.pt
162
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
O estabelecimento fenício de Santa Olaia (Figueira da Foz) impõe-se como uma referência incontornável no estudo dos ambientes orientalizantes da fachada atlântica na Idade do Ferro. Particularmente associado à mediação no escoamento de metais da Beira Alta e incluindo valências de processamento e redução metalúrgica, o sítio terá acolhido outras actividades produtivas, das quais se salienta a produção oleira. Note-se que, pelo carácter exótico e de excepção, a cerâmica mereceu sempre destaque no âmbito do estudo do sítio. Inclusive, alguns estudos posicionamse na vanguarda da investigação desenvolvida à época. Contudo, em termos teóricos, esta temática conheceu um recente redireccionamento de perspectivas face a determinados fenómenos de espectro colonialista, com implicação no estudo da colecção em questão. Neste quadro e no âmbito do desenvolvimento de um projecto doutoral em curso, a reinterpretação do registo arqueológico e a realização de estudos arqueométricos, pelo método de análise por activação neutrónica (AAN), impulsionam uma nova postura conjectural face à cultura artefactual de Santa Olaia. Esta abordagem combinada coloca, assim, em evidência o protagonismo do sector oleiro no quadro da economia produtiva do sítio e denuncia o relevo da cerâmica de produção local e regional no seio do espólio ceramológico da estação.
The Phoenician establishment of Santa Olaia (Figueira da Foz) is a reference in the study of Iron Age orientalising environments in the Atlantic façade. Usually connected to the metallurgical production and trade, the site would have welcomed other manufacturing activities, including pottery production. Indeed, due to the pottery’s exotic and exceptional character the ceramics studies have always stud up in the whole study of the site. Moreover, some studies stood at the forefront of research at the time. However, in general terms, this subject experienced a new conceptual development concerning the interpretation of certain colonialist phenomena, with implications for the study of the collection in question. In this regard and in the context of an ongoing doctoral project, the work of decoding and reinterpreting the archaeological records and the implementation of archaeometric research, using neutron activation analysis (NAA), propel a new theoretical stance towards the study of Santa Olaia’s material culture. This combined approach thus highlights the pottery sector’s role in the context of the productive economy of the establishment and denounces the significance of the pottery produced locally and regionally in the entire ceramic set.
Palavras-chave: Cerâmica fenícia; Produção oleira; Arqueometria; Análise por activação neutrónica (AAN); Idade do Ferro.
Keywords: Phoenician pottery; Pottery production; Archeometry; Neutron activation analysis (NAA); Iron Age. 163
OS CACOS. SEMPRE OS CACOS… NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DE CERÂMICA EM SANTA OLAIA NA IDADE DO FERRO
Introdução Este texto decorre da comunicação homónima, apresentada no Colóquio “Santos Rocha, Arqueologia e Territórios da Figueira da Foz”, versando alguns aspectos da investigação desenvolvida no âmbito do projecto doutoral “Dinâmicas culturais na área de influência do Mondego no I milénio a.C.”1, no que concerne ao estudo da cerâmica de Santa Olaia. A pertinência do tema radica, antes de mais, na ligação à mais destacada estação sidérica do Baixo Mondego – Santa Olaia – à qual Santos Rocha se dedica num afã arqueológico de superior alcance. Para mais, ao ilustre investigador não eram alheias as virtualidades e virtuosidades do material cerâmico – os ditos Cacos em jargão arqueológico. Atestamno o empenho na reconstrução e restauro de um volume apreciável de peças (certamente já com fito no apetrechamento da colecção museológica original), bem como na ilustração de uma generosa colecção de recipientes e fragmentos. E, sendo certo que esta ilustração, no dealbar do séc. XX, não se pautava ainda pelas normas técnicas de registo de espólio, desta liberdade de representação resultava uma graça e expressividade de volumes extinta na produção científica actual. Por motivos vários, os estudos consagrados à cerâmica gozam de especial relevo e tradição no seio da investigação arqueológica. O facto de esta corresponder, por norma, à categoria artefactual mais numerosa entre o espólio exumado será naturalmente um factor decisivo. Antes de mais, as características físicas da cerâmica concorrem para esta acumulação – tratando-se de produto não perecível e extremamente estável. Ou seja, este material encontra-se sujeito a fragmentação (que actua como um factor multiplicador) mas não a degradação exagerada. Desta feita, o índice de representação do espólio ceramológico tende a amplificar-se no decorrer do tempo de deposição e por acção de factores pós-deposicionais. 1
Projecto académico assumido por uma das autoras (S.O.A).
164
No plano funcional este suporte encontra-se ligado a diversas áreas de actividade, particularmente a uma rotina essencial à sobrevivência humana – a alimentação i.e., por via desta conexão, o uso de objectos cerâmicos, nas comunidades históricas e proto-históricas, é ordinário e quotidiano. Por esta razão, a maioria das peças utlizadas corresponde a recipientes com um ciclo de vida curto, dada a fragilidade, necessitando amiúde de reparação ou substituição. Resumidamente, são estas as circunstâncias que concorrem para a profusão de cacos nas escavações arqueológicas. Depreende-se, pois, facilmente como estes restos materiais se convertem numa preciosa fonte de informação, passível de fornecer elementos acerca de diversos aspectos da vida das sociedades antigas como os hábitos de consumo, modos de produção, redes comerciais, sistemas económicos, esferas culturais de referência, entre outros. Nessa lógica, as motivações teóricas subjacentes aos estudos cerâmicos ligados à arqueologia fenícia no Ocidente têm-se centrado sobretudo nas potencialidades crono-tipológicas de certas produções e no ensejo de assinalar as rotas de circulação destes mesmos produtos. Daí resulta uma produção científica pautada, sobretudo, por estudos morfológicos de determinados fabricos (pouco representativa da globalidade do universo artefactual). É, pois, neste enquadramento geral que se dá nota de mais um trabalho votado ao estudo da cerâmica de Santa Olaia, que não será certamente o derradeiro, mas que se pretende venha a contribuir para um melhor conhecimento deste sítio e das comunidades que o habitaram.
Santa Olaia – enquadramento temático O estudo dos sítios arqueológicos é, habitualmente, um processo continuado, progressivo e gradual que dificilmente se encerra ou esgota. Santa Olaia não é excepção. Assim, embora corresponda a uma das estações peninsulares conotada há mais tempo com a
OS CACOS. SEMPRE OS CACOS… NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DE CERÂMICA EM SANTA OLAIA NA IDADE DO FERRO
presença fenícia e se afirme como um estabelecimento de referência no quadro dos ambientes orientalizantes da fachada atlântica na Idade do Ferro, há que reconhecer que se trata de uma estação ainda pouco e mal conhecida e nesta medida controversa (Arruda, 1999-2000; Aubet, 2001: 297; Mederos Martín e Ruiz Cabrero, 2004-2005: 360; Neville, 2007: 41-2). O outeiro de Santa Olaia localiza-se no estuário do Mondego, na extremidade de uma discreta cumeada que avança sobre terrenos de formação quaternária – os Campos do Mondego. Esta é uma paisagem extremamente dinâmica (Martins, 1940) cujo actual aspecto difere do paleo-estuário do I milénio a.C. Pois então, tal como percebera Santos Rocha (1971: 21), o relevo correspondia a uma pequena ilha, na margem do amplo mar interior, correspondente ao sector terminal do rio, conforme apontam os estudos mais recentes (Wachsmann et al., 2009). A história da investigação do arqueossítio remonta aos finais do séc. XIX, fruto da acção pioneira do referido estudioso e conta com uma longa práxis arqueológica que se arrasta até aos dias de hoje. Para o trabalho de pesquisa desenvolvido no Museu Municipal Santos Rocha2, no âmbito do referido projecto académico, interessam particularmente as campanhas desenvolvidas nas últimas décadas por Isabel Pereira3, antiga directora da instituição. Destas, destaca-se a intervenção de salvamento realizada em 1992 e 93, no sopé Norte de colina, decorrente da construção da A14 (antigo IP3). Esta escavação arqueológica de carácter preventivo colocou a descoberto uma extensa malha construída que integrava estruturas de combustão, na altura associadas fundamentalmente à actividade metalúrgica (Pereira, 2009). Desta feita e numa 2
Endereçamos o nosso agradecimento à equipa técnica do Museu, particularmente à Dr.ª Ana Margarida Ferreira por ter proporcionado as imprescindíveis condições de acolhimento e disponibilizado o acesso ao fundo museológico no âmbito da investigação desenvolvida por uma das autoras (S.O.A). 3 Aproveitamos para expressar o nosso reconhecimento e gratidão à Dr.ª Isabel Pereira pelo caloroso acompanhamento e úteis esclarecimentos prestados.
linha naturalmente colada ao discurso veiculado nas fontes literárias clássicas, o sítio surge na bibliografia preponderantemente associado à exploração de metais. Sem depreciar o sector económico ligado aos metais e à metalurgia, note-se, porém, que assentamentos desta natureza agregariam, forçosamente, um amplo leque de actividades produtivas que, de forma complementar, contribuiriam para sustentar as necessidades internas do grupo de residentes e alimentar as respectivas redes de troca. Este artigo aflora justamente, uma destas áreas de actividade – a produção oleira. Entroncando na temática do colonialismo, a narrativa científica ligada aos centros fenícios ocidentais tende a privilegiar na sua leitura dos dados o prisma económico. Nesta óptica, a actividade oleira é tida como uma área vital nestes estabelecimentos. Aí, desde cedo se assiste à instalação de centros oleiros vocacionados para a produção massiva de contentores de produtos alvo de comercialização, mas também de baixela de serviço e consumo. E dada a elevada demanda interna e externa, esta produção assume um papel de relevo no quadro das estratégias comerciais fenícias no Ocidente, encontrando-se na base da rápida expansão das suas redes de intercâmbio (Delgado Hervás, 2011: 10). Como já se referiu, o repertório artefactual de Santa Olaia mereceu sempre uma atenção suplementar, no plano do estudo e divulgação do sítio, em virtude do seu carácter exótico e de excepção (Rocha, 1971; Frankenstein, 1997; Pereira, 1994 e 1997). A este respeito importa ainda frisar que algumas iniciativas (referentes à cerâmica cinzenta fina) se posicionaram na vanguarda da investigação desenvolvida à época, na área dos estudos arqueométricos (Cabral et al., 1983 e 1986; Prudêncio, 1987; Prudêncio et al., 1989; Alarcão e Correia, 1994). Nos últimos anos, porém, o estudo da cerâmica fenícia da Península Ibéria, incluindo da área ocidental acusa uma significativa alteração de perspectivas na apreciação de determinados fenómenos de espectro
165
OS CACOS. SEMPRE OS CACOS… NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DE CERÂMICA EM SANTA OLAIA NA IDADE DO FERRO
colonialista (González-Ruibal, 2006; Ramon Torres, 2010; Sousa, 2014; Gomes, 2016) que justifica o revisitar desta temática.
Se há fornos, há produção oleira… Reiterando o que já foi exposto, a investigação dedicada à cerâmica tem-se centrado na análise dos artefactos e nesse sentido o interesse nas oficinas e áreas industriais onde se processava esta actividade, nos processos de fabrico, nas tecnologias utilizadas, na sua organização espacial e convivência com outras actividades produtivas só recentemente tem merecido atenção (Delgado Hervás, 2011: 11). Esta circunstância ajuda a explicar porque não foram, no nosso entender, devidamente identificados e valorizados alguns elementos estruturais e móveis que remetem para a existência de ambientes artesanais de produção de cerâmica em Santa Olaia, reconhecidos no âmbito da investigação académica em curso. Com efeito, foi possível identificar evidências de estruturas de produção de cerâmica em diferentes áreas da estação (topo e encosta Norte). Na chamada área ribeirinha, a descoberta resultou da revisão de toda a informação estratigráfica, determinada pela necessidade de contextualizar o espólio estudado. Por este meio, foi possível substituir a anterior percepção estática e monofásica das escavações, por uma visão dinâmica e sequencial, na qual o faseamento estratigráfico foi ancorado na identificação de sobreposições de contextos estruturais e sedimentares. O resultado final foi expresso em esquemas matriciais que facilitam a compreensão da escavação e dos fenómenos estratigráficos, conferindo novos contornos e espessura temporal a esta área (Almeida, 2019: 67). O exercício de análise estratigráfica contemplou o ensaio de planos de faseamento construtivo e da evolução do desenho urbanístico desta zona, que permitiu tecer novas interpretações funcionais dos espaços (Almeida e Vilaça, 2020). E a este respeito refira-se que sob os níveis relacionados com a actividade metalúrgica assinala-se uma fase ligada à 166
produção de cerâmica. Esta interpretação radica, pois, no reconhecimento de três estruturas de combustão que classificamos como fornos cerâmicos (Fig. 1). É curioso observar que as referidas estruturas se concentram junto à entrada da muralha, enquadradas na malha urbana, prefigurando o que parece corresponder a um bairro oleiro cuja localização periférica se compagina com o que se conhece noutros locais de natureza orientalizante (Delgado Hervás, 2011: 22). Apesar de pouco numerosas, as estruturas4 apresentam acentuada variação, em termos de dimensão, tipologia e técnica construtiva, correspondendo a exemplares de dupla câmara, em que apenas se conservava a câmara de combustão subterrânea (escavada no sedimento) já sem grelha. O avançado estado de degradação em que se encontravam dificulta a atribuição de paralelos formais. Contudo, está presente um exemplar (G) tipo B5 da tipologia fornos proto-históricos de Broncano e Coll (1988), com aspecto e dimensões semelhantes às do forno 3 da escola de hotelaria de Mérida datado do séc. VI a.C. (Jiménez Ávila et al., 2013). Já a unidade E, com planta em forma de útero parece, do ponto de vista formal, aproximar-se do forno de planta bilobada ou com forma de ómega da Malhada dos Gagos do séc. V/IV a.C. (Calado et al., 2007: 162) (Fig. 2). No topo do outeiro, Santos Rocha teve oportunidade de registar um pequeno forno de dupla câmara, de planta circular, ainda com grelha (Rocha, 1971: 41) enquadrável na tipologia 7B de Broncano e Coll (1988) (Fig. 3). Embora o trabalho de pesquisa ainda se encontre numa fase preliminar, é já possível confirmar a existência de pelo menos quatro fornos de produção de cerâmica, de tipologia mediterrânica de dupla câmara (modelo introduzido na península por intermédio de grupos fenícios). Estes elementos sugerem que a actividade oleira assumiria um papel proeminente na esfera económica do sítio, pelo menos a partir de 4
Os dados desta ocupação encontram-se ainda a ser processados, prevendo-se para breve trecho a sua publicação detalhada.
OS CACOS. SEMPRE OS CACOS... NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DE CERÂMICA EM SANTA OLAIA NA IDADE DO FERRO
Figura 1 (em cima) - Planta das escavações de 1993 (Pereira, 2012) com indicação dos fornos de cerâmica (G, E e F). Figura 2 (em baixo à esquerda) - Fotografia das escavações de 1993 com forno G em primeiro plano (cfr. Pereira, 1994: vol. III, foto 62). Figura 3 (em baixo à direita) - Forno cerâmico do topo do outeiro. Adaptado de Rocha, 1971: est. I e II.
167
OS CACOS. SEMPRE OS CACOS… NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DE CERÂMICA EM SANTA OLAIA NA IDADE DO FERRO
uma fase intermédia do povoado. Levanta-se agora a questão de identificar, em termos tecnológicos e formais, o mobiliário cerâmico aqui produzido. A este respeito, embora se assinalem algumas peças com defeitos de fabrico, não se descobriram nas escavações as entulheiras geradas pela laboração dos ateliers oleiros, onde a acumulação de rejeitados poderia fornecer uma imagem representativa do repertório artefactual de origem local. Efectivamente, tendo em consideração a localização das unidades de produção, junto à entrada da muralha, será de admitir que o descarte de material rejeitado fosse efectuado para o exterior do perímetro muralhado.
O estudo arqueométrico O estabelecimento de um quadro mais preciso da cerâmica manufacturada em Santa Olaia implicou a realização de estudos arqueométricos. A estratégia passou por capitalizar e dar continuidade ao lastro de produção científica de trabalhos anteriores, onde se colocava em confronto os resultados da análise química e mineralógica de amostras de cerâmica cinzenta fina (provenientes de Conimbriga, Santa Olaia e Tavarede), com recolhas de argila de jazidas da região (Prudêncio, 1987). No intuito de contribuir para a identificação das argilas usadas na cerâmica de Santa Olaia, foi definida a realização de análises químicas, por método de análise por activação neutrónica e espectrometria de massa por plasma acoplado indutivamente, financiadas pela Câmara Municipal da Figueira da Foz5. Atendendo à contingência da dimensão da amostra (29 indivíduos) e por forma a potenciar a abrangência de resultados, optou-se por seleccionar um grupo (dentro da colecção de 1993) com atribuição formal e garantias de integração estratigráfica, dentro das fases ocupacionais estabelecidas para a zona ribeirinha. A selecção incorporou diversas formas e fabricos, designadamente peças de modelação manual, 5 Realça-se a importância do apoio do Município, decisivo para se alcançar os resultados apresentados.
168
cerâmica comum, incluindo grés cinzento, calcítica, “tipo pele de galinha” ou aluvionar, na nomenclatura de Conimbriga (Alarcão, 1975), fina, cinzenta fina, de superfícies negras, pintada, anfórica e de engobe vermelho (cfr. Fig. 4 a Fig. 6)6. Embora de natureza destrutiva, o processo revelouse de reduzida incidência, implicando apenas a extracção de um pequeno fragmento (de escassos mm) com instrumento revestido a carboneto de tungsténio. O protocolo laboratorial adoptado7 passou pela limpeza, secagem e pulverização desta amostragem em moinhos de ágata. Posteriormente, realizou-se a pesagem dos pós (da pasta cerâmica) com balança de elevada precisão, em recipientes de polietileno, adequados à análise química por activação neutrónica e a preparação das amostras para irradiação com neutrões e medição por espectrometria gama – técnica que permite a determinação simultânea da concentração de diversos elementos químicos na amostra irradiada. Procedeu-se então ao tratamento dos espectros gama, com identificação dos picos característicos de cada elemento químico e determinação das respectivas concentrações. Quanto aos resultados preliminares obtidos, os métodos de análise estatística multivariada, nomeadamente a análise grupal pelo método de K-médias permitiram determinar a existência de 3 grupos composicionais: Grupo A – constituído por duas amostras, que se destacam por teores mais elevados de manganês, berílio, cobalto, ítrio e terras raras, excepto o cério. Grupo B – constituído por cinco amostras, das quais duas possuem pasta calcítica. Este grupo distingue-se essencialmente por teores mais elevados de cálcio, estrôncio e vanádio que poderão estar relacionados com quantidades maiores de calcite do que as restantes amostras estudadas. Destaca-se ainda 6
Abreviaturas no quadro desdobrado nas figuras 4 a 6: C. (cerâmica); C. C. (cerâmica comum); C. Pint. (cerâmica pintada); Aband. (abandono); F. fecha. (forma fechada); C. A. (cerâmica anfórica); C.E.V. (cerâmica de engobe vermelho); Sup. (superfícies).
7
Esta etapa laboratorial foi executada pela equipa do C2TN.
OS CACOS. SEMPRE OS CACOS... NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DE CERÂMICA EM SANTA OLAIA NA IDADE DO FERRO
Nº
Prov. fase Grupo
1
SI 29 4 II B
C. Manual calcítica; Taça
2
SI 24 1 Aband. B
C. Manual; Taça
3
SI 11 2 Pós Aband. C
C. Manual; Taça carenada
4
SI 22 4 III C
C. Cinzenta; Pote
5
SI 24 5 I C
C. C.; Taça
6
SI 213/2 II B
C. C. Calcítica; Pote
7
SI 27 6 III A
C. C. "Pele de galinha"; Panela
SO 35 4 II C
C. C. Fina; Vaso carenado
SI 214 III C
C. Pint.; Pote
8
9
Fabrico Forma
Foto
Desenho s/escala
Figura 4 - Quadro síntese da cerâmica seleccionada para análise.
169
OS CACOS. SEMPRE OS CACOS... NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DE CERÂMICA EM SANTA OLAIA NA IDADE DO FERRO
Nº
Prov. fase Grupo
Fabrico Forma
10
SO 20 1 Aband. C
C. Pint.; F. fecha.
11
SI 29 3 III C
C. Pint.; F. fecha.
12
13
14
SI 28 5 II C
SO 33 3 II C
SI 28 5 II C
C. Pint.; Pote
C. Pint.; Pithoi
C. Pint.; Pote
15
SI 26 3 III C
C. A.; Ânfora
16
SI 16 1 Aband.
C. A.; Ânfora
17
SI 16 5 I B
18
SI 28 3 IV B
Foto
C. A.; Ânfora
C. A.; Ânfora
Figura 5 - Quadro síntese da cerâmica seleccionada para análise.
170
Desenho s/escala
OS CACOS. SEMPRE OS CACOS... NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DE CERÂMICA EM SANTA OLAIA NA IDADE DO FERRO
Nº
Prov. fase Grupo
Fabrico Forma
19
SO 29 4 II C
C. E. V.; Prato
20
SO 29 2 III C
C. E. V.; Prato
SI 29 3 III C
C. E. V.; Prato
SI 11 limp C
C. C.; Taça
SI 21 3 II C
C. Cinza Fina; Potinho
SI 19 2 III C
C. Sup. Negras; F. Aberta
SI 23 2 H C
C. Sup. Negras; Taça
26
SO 30 1 II C
C. Sup. Negras; Pote
27
SI 19 C
C. Sup. Negras; fundo
28
SI 17 6 II C
C. Sup. Negras; Vaso tulipiforme
SI 31 7 II A
C. Cinza Fina; Taça
21
22
23
24
25
29
Foto
Desenho s/escala
Figura 6 - Quadro síntese da cerâmica seleccionada para análise.
171
OS CACOS. SEMPRE OS CACOS… NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DE CERÂMICA EM SANTA OLAIA NA IDADE DO FERRO
os teores mais baixos de Terras Raras Leves e Terras Raras Intermédias. Grupo C – constituído pelas restantes amostras. Note-se que os grupos A e B também se destacam recorrendo à análise grupal hierárquica usando como coeficientes de semelhança a distância euclidiana média. Mantendo-se o mesmo padrão ao usar o coeficiente de correlação de Pearson (Fig. 7). Comparando com resultados obtidos anteriormente para cerâmicas e argilas e atendendo aos teores de urânio e de samário, o grupo B destacase por uma tendência de teores mais baixos o que pode ser explicado por uma diluição destes elementos químicos nestas amostras devido a uma maior concentração de carbonato de cálcio. Esta leitura pode resultar da origem da matéria-prima, bem como de factores ligados à tecnologia de produção (adição de têmpera). Neste caso, atendendo às características dos fabricos analisados (cerâmica manual e cerâmica comum calcítica) a segunda hipótese surge como a mais provável. Já as amostras do grupo A apresentam curvas de distribuição de Terras Raras semelhantes às encontradas anteriormente em duas amostras de cerâmica do sítio arqueológico de Tavarede (Prudêncio, 1987: 68). A anomalia negativa de cério encontrada é indicadora da utilização de argila de meio marinho, tal como se tinha já encontrado na argila colhida numa gruta em calcários do Jurássico. Estes resultados parecem apontar para uma possível produção de cerâmicas na Idade do Ferro recorrendo a materiais argilosos que ocorrem em grutas ou cavidades de zonas calcárias. Finalmente, saliente-se que para o grupo C, onde se inclui a maioria das amostras analisadas, existe uma correspondência com vários depósitos de argilas, incluindo o de Gatões, próximo de Santa Olaia. Ou seja, será de admitir na maioria dos casos que pertençam a recipientes de produção local e regional (Fig. 8). Este dado é revolucionário, no contexto da cerâmica deste sítio, uma vez que, até agora parte destes fabricos (ânforas, cerâmica pintada, cerâmica 172
de engobe vermelho…) eram, automaticamente, classificados como bens de importação. E este estudo vem revelar que uma parte desta cerâmica e certamente, a partir de determinado momento, uma grande porção da mesma seria, na realidade, aqui manufacturada. São diversas as questões que nos suscita a discussão destes dados: a partir de quando há indicação da fabricação local para cada fabrico? Qual a evolução do rácio entre a cerâmica local e a proveniente doutros locais do mundo fenício, nas diferentes fases de ocupação do sítio? Qual o raio de dispersão dos artefactos de Santa Olaia no território envolvente ao longo da Idade do Ferro? Contudo, a resposta a estas questões só poderá ser aventada com a continuidade do trabalho de investigação em curso e com o alargamento da amostragem de cerâmica e matérias-primas para análise.
Nota final
Para rematar e em termos gerais os dados agora apresentados favorecem uma nova maneira de perspectivar a produção de cerâmica em Santa Olaia, tanto ao nível da sua escala de produção como da sua matriz. A identificação de diversas unidades de produção de cerâmica arrola a estação à restrita lista de locais com fornos de produção de cerâmica em momentos antigos da Idade do Ferro e revela que a actividade oleira terá atingido um papel de relevo ao nível da economia produtiva e da gestão urbana do sítio. Ao nível da abordagem arqueométrica, apesar do número reduzido de amostras processadas, esta primeira selecção permitiu obter resultados muito promissores para a caracterização e proveniência de produções cerâmicas em Santa Olaia na Idade do Ferro, salientando-se que a maioria das amostras é compatível com a matéria-prima de origem local e regional.
OS CACOS. SEMPRE OS CACOS... NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DE CERÂMICA EM SANTA OLAIA NA IDADE DO FERRO
Figura 7 (em cima)- Representação da análise grupal pelo método de K-means para K=3 (análise grupal não-hierárquica). Figura 8 (em baixo) - Gráfico binário da concentração de urânio vs. samário, com representação de cerâmicas de Santa Olaia e argilas locais e regionais (valores de Prudêncio, 1987).
173
OS CACOS. SEMPRE OS CACOS… NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DE CERÂMICA EM SANTA OLAIA NA IDADE DO FERRO
Referências bibliográficas ALARCÃO, Adília e CORREIA, Virgílio H. (1994). Cerâmicas comuns da Idade do Ferro de Conimbriga. In Idade do Ferro. Figueira da Foz: Museu Municipal, pp. 99-102. ALARCÃO, Jorge (1975). Fouilles de Conimbriga V. Lá céramique commune locale et régionale. Paris: Editions de Boccard. ALMEIDA, Sara (2019). Dinâmicas culturais na área de influência do Mondego no I milénio a.C. - Prelúdio. In III Encontro de Jovens Investigadores|CEAACP - Pré-Actas. Coimbra: CEAACP - UC, pp. 65-69. ALMEIDA, Sara e VILAÇA, Raquel (2020). Santa Olaia. A centre of phoenician influence in river Mondego (Portugal). Assessment and expectation. Mytra. Actas do IX Congreso Internacional de Estudios Fenicios y Púnicos (Mérida, 2018). Vol IV. Mérida: CSIC, pp. 1495-1504. ARRUDA, Ana Margarida (1999-2000). Los Fenicios en Portugal. Fenicios y mundo indígena en el centro y sur de Portugal (siglos VIII-VI a.C.). Barcelona: Universidad Pompeu Fabra. AUBET, Maria Eugenia (2001). The Phoenicians and the West: Politics, Colonies and Trade (2nd ed.). Cambridge: Cambridge University Press. Trad. Mary Turton. BRONCANO RODRÍGUEZ, Santiago e COLL CONESA, Jaume (1988). Horno de cerámica ibérico de la Casa Grande, Alcalá del Júcar (Albacete). Noticiario Arqueológico Hispánico, 30. Madrid, pp. 189-228. CABRAL, João M. P. et al. (1983). Neutron activiation analysis of fine grey pottery from Conimbriga, Santa Olaia and Tavarede, Portugal. Journal of Archaeological Science 10-1, pp. 61-70. CABRAL, João M. P. et al. (1986). Contribuição para o estudo da cerâmica cinzenta fina de Santa Olaia por espectometria Mössbauer e difracção de raios X. Conimbriga, 25. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, pp. 5-21. CALADO, Manuel; MATALOTO, Rui e ROCHA, Artur (2007). Povoamento proto-histórico na margem direita do regolfo de Alqueva (Alentejo, Portugal). Arqueología de la tierra. Paisajes rurales de la protohistoria peninsular. Cáceres, pp. 129-179.
174
DELGADO HERVÁS, Ana (2011). La produccion de cerâmica fenicia en el extremo occidente: hornos de alfar, talleres e industrias domésticas en los enclaves coloniales de la andalucía mediterrânea (siglos VIII-VI a.C.). In Yõserim: La producción alfarera fenicio-púnica en occidente. Eivissa, pp. 9-48. FRANKENSTEIN, Susan (1997). Arqueología del colonialismo. El impacto fenicio y griego en el sur de la Península Ibérica y el suroeste de Alemania. Barcelona: Crítica. GOMES, Francisco (2016). Contactos culturais e discursos identitários na I Idade do Ferro do Sul de Portugal (séculos VIII-V a.n.e.): leituras a partir do registo funerário. [Policopiado]. Dissertação de doutoramento apresentada à FLUL. GONZÁLEZ-RUIBAL, Alfredo (2006). Past the last outpost: Punic merchants in the Atlantic Ocean (5th-1st c. BC). Journal of Mediterranean Archaeology, 19 (1), pp. 121-150. JIMÉNEZ ÁVILA, J. et al. (2013). Producción de cerámica orientalizante en Extremadura. Estudio preliminar de los hornos de la Escuela de Hostelería de Mérida (Badajoz). In Hornos, talleres y focos de producción alfarera en Hispania. Cádis: UCA, pp. 199-224. MARTINS, Alfredo F. (1940). O esforço do homem na bacia do Mondego: ensaio geográfico. Coimbra: Tip. Bizarro IV. Tese de licenciatura apresentada à FLUC. MEDEROS MARTÍN, Alfredo e RUIZ CABRERO, Luis A. (20042005). Un Atlántico mediterráneo. Fenicios en el litoral portugués y galego. BRYSA 1- 4, pp. 351-409. NEVILLE, Ann (2007). Mountains of Silver and Rivers of Gold: The Phoenicians in Iberia. Oxford: Oxbow books. PEREIRA, Isabel (1994). Intervenção Arqueológica de Emergência em Santa Olaia Ferrestelo Figueira da Foz. [Relatório técnico policopiado]. Acessível na Biblioteca do Museu Municipal Santos Rocha. PEREIRA, Isabel (1997). Santa Olaia et le commerce atlantique. In ÉTIENNE, R. e MAYET, F. (eds.). Itineraires Lusitaniens. Paris: De Boccard, pp. 209-254.
OS CACOS. SEMPRE OS CACOS… NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DE CERÂMICA EM SANTA OLAIA NA IDADE DO FERRO
PEREIRA, Isabel (2009). As actividades metalúrgicas na I e II Idade do Ferro em Santa Olaia - Figueira da Foz. Conimbriga, 48. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, pp. 61-79. PEREIRA, Isabel (2012). Santos Rocha e o estudo da Idade do Ferro em Portugal. In Santos Rocha, a arqueologia e a sociedade do seu tempo. Figueira da Foz: Casino Figueira, pp. 115-121. PRUDÊNCIO, Maria Isabel (1987). Contribuição para o estudo da proveniência das argilas usadas no fabrico da cerâmica cinzenta fina local e regional de Conímbriga. [Policopiado]. Dissertação, provas de acesso a Inv. Auxiliar, INETI. PRUDÊNCIO, Maria Isabel; CABRAL, João M. P. e TAVARES, António (1989). Identification of clay sources used for Conimbriga and Santa Olaia pottery making. In Archaeometry: Proceedings of the 25th International Symposium, pp. 503-514. RAMON TORRES, Joan (2010). La cerámica fenicia del Mediterráneo extremo-occidental y del Atlántico (s. VIII - 1r. 1/3 del VI a.C.) problemas y prespectivas actuals. In NIGRO, L. (coord.), MOTYA and the phoenician ceramic repertoire between the Levant and the west 9th-6th century BC. Roma, pp. 211-250. ROCHA, António S. (1971). Memórias e Explorações Arqueológicas: Volume II - Estações Pré-romanas da Idade do Ferro nas vizinhanças da Figueira (2ª ed.). Coimbra: por ordem da Universidade. SOUSA, Elisa de (2014). A Ocupação Pré-Romana da Foz do Estuário do Tejo. Lisboa: UNIARQ. WACHSMANN, Shelley et al. (2009). Paleo-environmental contexts of phoenician anchorages, Portugal. The International Jornal of Nautical Archaeology, n.º 38, 2, pp. 221-253.
175
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Sobre as mais antigas mós circulares rotativas no ocidente da Península Ibérica: os trabalhos de Santos Rocha nos povoados da Idade do Ferro do baixo Mondego (Santa Olaia e Crasto de Tavarede) On the most ancient rotary querns in the westernmost area of the Iberian Peninsula: the evidence from Santos Rocha excavations at the lower Mondego River valley Iron Age settlements (Santa Olaia and Crasto de Tavarede) Carlos Fabião1
1
Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa (UNIARQ) | cfabiao@campus.ul.pt
176
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
Nos trabalhos que realizou nos povoados da Idade do Ferro do baixo Mondego, Santos Rocha recolheu as que serão no estado atual dos conhecimentos as mais antigas mós circulares manuais do ocidente da Península Ibérica. Consciente da relevância destes dados, publicou nos inícios do século XX dois trabalhos sobre o tema. Contudo, por se tratar de publicações em língua portuguesa e em periódicos de limitada circulação, estas relevantes informações passaram despercebidas, não se inscrevendo nos debates posteriores sobre a origem e difusão desta tecnologia. Nem os trabalhos de Curwen nem o de Childe incorporam a informação do baixo Mondego, nem tampouco os mais recentes estudos e debates sobre o tema o fizeram. Mesmo na produção portuguesa dedicada à história dos sistemas de moagem a informação do baixo Mondego não foi particularmente valorizada. Os moinhos de Santa Olaia, pelas suas dimensões e mecanismo rotativo, são distintos dos mais antigos moinhos circulares manuais da área Ibérica do NE peninsular, supostamente a área nuclear de criação/ difusão. Assim, reabilitando a obra de Santos Rocha, relança-se o debate sobre os focos de origem e difusão desta nova tecnologia na Península Ibérica.
In the excavations done in the Iron Age archaeological settlements from the lower Mondego River, Santos Rocha found what seems to be the most ancient rotary querns at the Iberian Peninsula’s westernmost area. Understanding the relevance of his finds, Santos Rocha published two papers on the subject in the early years of the Twentieth Century. However, both for being published in Portuguese and small-circulation journals that information remain unaware by the scientific community and was ignored by all the subsequent debates on the origin and spread of that new technology. Neither the papers from Curwen nor did the Gordon Childe’s seminal paper mention the querns from the Lower Mondego River valley Iron Age sites. The same happened in more recent debates on the subject. Even in Portugal, the data from the lower Mondego River sites was ignored. By their dimensions and also by its mechanical system, with a horizontal hole for the handle, the rotary querns from Santa Olaia are different from those found at the Northeast of the Iberian Peninsula, the supposed area of origin of this type of querns. So revisiting the evidence provided by Santos Rocha’s excavations, I hope to reopen the debate on the origin and spread of the manual rotary querns in the Iberian Peninsula.
Palavras-chave: Moinhos manuais rotativos; Idade do Ferro; Baixo Mondego; Santos Rocha.
Keywords: Rotary querns; Iron Age; Lower Mondego river valley; Santos Rocha. 177
SOBRE AS MAIS ANTIGAS MÓS CIRCULARES ROTATIVAS NO OCIDENTE DA PENÍNSULA IBÉRICA: OS TRABALHOS DE SANTOS ROCHA NOS POVOADOS DA IDADE DO FERRO DO BAIXO MONDEGO (SANTA OLAIA E CRASTO DE TAVAREDE)
Sem duvida um grande numero de mós d’este typo, que chegaram ao nosso conhecimento, são provenientes de estações que apresentam caracteres de romanização. Mas concluir d’ahi que o uso de semelhantes maquinas foi introduzido pelos romanos no nosso território, seria ir mais longe do que os factos permitem. (Rocha, 1907: 127).
As razões deste texto O tema da difusão dos sistemas de moagem com mós circulares rotativas tem concitado nos últimos anos uma crescente atenção, com relevantes debates sobre as origens dos distintos modelos, sua cronologia e difusão – veja-se a título de exemplo o recente Colóquio publicado na Revista d’Arqueologia de Ponent (Alonso Martínez, 2014). Creio que terá sido na sequência desse Colóquio e no âmbito dos seus interesses de investigação que o meu Amigo Andres Adroher me convidou a participar num debate aberto na plataforma on line Academia.edu, onde tive a oportunidade de comentar os relevantes dados recolhidos por António dos Santos Rocha nos povoados da Idade do Ferro do baixo Mondego, apresentando as respetivas referências bibliográficas. Nada mais tinha a dizer, visto não ter encontrado até à data nos diferentes sítios em que tenho trabalhado qualquer prova de uma presença pré-romana de moinhos circulares rotativos. A informação que transmiti não é nova. Está de há longa data publicada e devidamente valorizada pelo arqueólogo figueirense e foi constituindo para mim uma relevante referência sobre a temática da difusão a ocidente dos moinhos circulares rotativos manuais, como referi em obra de síntese, o primeiro volume de uma História de Portugal destinada a um público generalista (Fabião, 1993: 146). Naturalmente, pela natureza da obra, não se apresentava o tradicional aparato crítico próprio de artigos científicos, o que não significa, naturalmente, que não existisse subjacente o adequado tratamento da informação. Foi essa referência que Ana Sofia Antunes colheu em 178
recente texto onde tratou extensa e criteriosamente a informação sobre antigos moinhos circulares rotativos manuais do sítio arqueológico da Azougada, Moura (Antunes, 2018). No seu texto, escreveu: “Em Portugal, conviria precisar as evidências de Santa Olaia (Montemor-o-Velho) [sic], sítio com uma cronologia de ocupação entre os séculos VII e IV-III a.C., onde se refere a presença de mós de vaivém (Rocha, 1908, pp. 253-254, apud Arruda, 1999-2000, p. 240) e de mós giratórias manuais (Fabião, 1993: 146), de modo a analisar de modo fundamentado a introdução da nova tecnologia de moagem no litoral atlântico, na foz do Mondego” (Antunes, 2018: 88), afirmação que inteiramente subscrevo, respondendo nestas linhas ao desafio lançado. Constitui uma boa oportunidade para resgatar do esquecimento relevantes informações dando-lhes um destaque e (espero) uma perenidade que em boa parte se perde na participação no debate de Academia.edu, fornecendo também o competente aparato crítico que não cabia nas páginas da obra generalista. Penso ser também um bom ensejo para homenagear a memória de António dos Santos Rocha (1853-1910), referência fundamental dos primórdios da arqueologia portuguesa, criterioso arqueólogo de inúmeros sítios e atento estudioso dos mais antigos moinhos circulares rotativos manuais (Rocha, 1907; 1908). Ao contrário do que é usual nos textos sobre moinhos circulares manuais, não recorro às usuais designações latinas, uma vez que se trata de materiais pré-romanos, prefiro utilizar as denominações tradicionais portuguesas, como se encontram recolhidas no excelente estudo sobre sistemas tradicionais de moagem, elaborado pela equipa do Museu Etnológico (Oliveira; Galhano e Pereira, 1983). Assim, o pouso designa o elemento inferior fixo (meta, na denominação latina) ou dormente e andadeira (catillus, na designação latina) o elemento superior movente.
SOBRE AS MAIS ANTIGAS MÓS CIRCULARES ROTATIVAS NO OCIDENTE DA PENÍNSULA IBÉRICA: OS TRABALHOS DE SANTOS ROCHA NOS POVOADOS DA IDADE DO FERRO DO BAIXO MONDEGO (SANTA OLAIA E CRASTO DE TAVAREDE)
O tema dos mais antigos moinhos circulares rotativos manuais no ocidente da Península Ibérica como Santos Rocha o apresentou António dos Santos Rocha percebeu claramente a relevância do que descobrira, quando identificou nos povoados de Santa Olaia (CNS 118) e no Crasto de Tavarede (CNS 120), ambos no concelho da Figueira da Foz (Figs. 1, 2 e 3), elementos de moinhos circulares rotativos manuais em contextos inequivocamente pré-romanos. Ocupou-se especificamente do tema em comunicação apresentada à Sociedade Arqueológica Santos Rocha, depois publicada no respetivo Boletim, ilustrada com as fotografias dos diferentes exemplares recolhidos em ambos os sítios (Rocha, 1907) e voltou a referir-se ao tema nos estudos monográficos incluídos em Estações pré-romanas da Idade do Ferro nas vizinhanças da Figueira, onde as peças aparecem ilustradas em Litogravuras elaboradas a partir das fotografias que utilizou na comunicação publicada (Rocha, 1908 [1971]: Est. XXV e XXXVI). Santos Rocha refere que os moinhos circulares rotativos manuais têm aparecido nos sítios arqueológicos portugueses sobretudo em ambientes de Época Romana, sendo usualmente designados como molae manuariae, para seguidamente concluir com a afirmação que usei como epígrafe neste texto: “Mas concluir d’ahi que o uso de semelhantes maquinas foi introduzido pelos romanos no nosso território, seria ir mais longe do que os factos permitem” (Rocha, 1907: 127). Para fundamentar a sua conclusão apresentou o pequeno conjunto de elementos de moinhos circulares recolhido em dois sítios arqueológicos que escavara no baixo Mondego em inequívoco contexto pré-romano, respetivamente, Santa Olaia (Fig. 2) e Crasto de Tavarede (Fig. 3), associados ao que chama mós de tipo primitivo, entenda-se mós planas de vaivém, o que acentuaria a grande antiguidade dos exemplares circulares (Rocha, 1907: 128 e Rocha, 1908 [1971]:
89-91; Est. XXV, n.º 282-285 e 129-30; Est. XXVI, n.º 453, 454) – v. Figs. 4 e 5. Em Santa Olaia, a presença da base de um gral ou pilão indica a ampla variedade de instrumentos de trituração usados no local (Rocha, 1908 [1971]: Est. XXIV, n.º 279). Os exemplares encontrados são, em Santa Olaia, dois elementos de pousos, com diâmetros de 28 e 38 cm e a espessura de 8 e 10 cm (Rocha, 1907: 128 e Figs. 7 e 8) e um fragmento de andadeira com um diâmetro de 35 cm e a espessura de 13 cm (Idem: Fig. 9); no Crasto de Tavarede, identificou dois fragmentos de andadeiras, com largos orifícios com 35 e 32 cm de diâmetro, e uma espessura de 13 e 15 cm, um dos quais com orifício lateral para a manivela (Idem: Figs. 5 e 6) – v., respetivamente, Figs. 4, 5 e 6. Rocha não deixa de sublinhar que em nenhum dos casos documentou a existência de orifícios atravessando a totalidade da andadeira, como existem em outros moinhos circulares giratórios conhecidos em contextos pré-romanos (Rocha, 1908 [1971]: 91), o que permite supor que os exemplares do baixo Mondego deveriam ter duas manivelas simétricas, que não deveriam permitir um movimento giratório integral, mas antes uma ação não muito distinta da realizada com as mós de vaivém. A matéria-prima dos exemplares de Santa Olaia é, no dizer de Santos Rocha, um grés grosseiro, mas bastante duro (Idem: 128), e os de Tavarede um grés escuro muito brando (Ibidem), não sendo despicienda esta diversidade de materiais usados na produção dos moinhos. Os contextos de recolha destes materiais foram explicitamente registados no estudo de Santos Rocha: sem qualquer dúvida, trata-se de níveis préromanos, no caso de Santa Olaia, com a conhecida sequência estratigráfica de três povoados da Idade do Ferro sobrepostos (Rocha, 1908 [1971]: 19-41 e Est. I), Santos Rocha refere que os moinhos foram encontrados nos dois povoados inferiores, juntamente com as mós de vaivém, ditas “primitivas” (Rocha, 1907: 128; 1908: 89-91 e Est. XXV); no caso do 179
SOBRE AS MAIS ANTIGAS MÓS CIRCULARES ROTATIVAS NO OCIDENTE DA PENÍNSULA IBÉRICA: OS TRABALHOS DE SANTOS ROCHA NOS POVOADOS DA IDADE DO FERRO DO BAIXO MONDEGO (SANTA OLAIA E CRASTO DE TAVAREDE)
Figura 1 - Reconstituição do paleoestuário do Mondego, com localização dos povoados de Santa Olaia (CNS 118) e Crasto de Tavarede (CNS 120). Reconstituição da linha de costa a partir dos trabalhos de Danielsen (2008) e Danielsen et al. (2008). Base cartográfica do Museu Municipal Santos Rocha. Câmara Municipal da Figueira da Foz/SIG.
180
SOBRE AS MAIS ANTIGAS MÓS CIRCULARES ROTATIVAS NO OCIDENTE DA PENÍNSULA IBÉRICA: OS TRABALHOS DE SANTOS ROCHA NOS POVOADOS DA IDADE DO FERRO DO BAIXO MONDEGO (SANTA OLAIA E CRASTO DE TAVAREDE)
Figura 2 (esquerda) - Planta da sequência de povoados do sítio arqueológico de Santa Olaia, Figueira da Foz, segundo Rocha (1907 [1971]). Figura 3 (direita) - Crasto de Tavarede, Figueira da Foz, segundo Rocha (1907 [1971]).
Crasto de Tavarede, onde somente reconheceu um nível de povoado da Idade do Ferro (Rocha, 1908 [1971]: 99-103), afirma que estariam os dois moinhos acompanhados de novo por mós de vaivém (Rocha, 1907: 128; 1908 [1971]: 129 e Est. XXXVI). O arqueólogo figueirense não deixou de sublinhar uma característica “tipológica”, por assim dizer, para distinguir as suas mós como elementos da Idade do Ferro: “Ellas diferençam-se bem das mós usadas na epocha romana pela sua grosseria.” (Rocha, 1907: 128). Assim, estabelecia Santos Rocha de um modo categórico o contexto pré-romano dos moinhos circulares rotativos dos povoados da Idade do Ferro do baixo Mondego. Contudo, não reconhecia o
facto como algo extraordinário, uma vez que Émile Cartailhac identificara já um suposto moinho deste tipo entre os materiais do castro de Sabroso, Guimarães, na sua síntese sobre as antiguidades da Península Ibérica: (…) quelques disques ouvragés d’une façon spéciale, rappelent les moulins portatifs gallo-romains qui abondent dans notre France méridionale. (…) Ce rapprochment ne doit pas être exagéré. Sabroso possède un certain nombre de choses que nous ne retrouverons pas dans les stations moins antiques; elle n’a subi en rien l’influence romaine et cette meule à main, quelque perfectionée qu’elle soit, peut-être vraiement archaïque. Nous la retrovons chez les peuples barbares. C’est celle que possèdent encore les Kabyles de l’Algérie. (Cartailhac, 1886 : 276-277).
181
SOBRE AS MAIS ANTIGAS MÓS CIRCULARES ROTATIVAS NO OCIDENTE DA PENÍNSULA IBÉRICA: OS TRABALHOS DE SANTOS ROCHA NOS POVOADOS DA IDADE DO FERRO DO BAIXO MONDEGO (SANTA OLAIA E CRASTO DE TAVAREDE)
Figura 4 (em cima à esquerda) - Moinhos de Santa Olaia, Figueira da Foz, segundo Rocha (1907 [1971]). Figura 5 (em cima à direita) - Fotografia do moinho circular manual de Santa Olaia, Figueira da Foz, que serviu de base para a elaboração da litogravura que se apresenta na Fig. 4. Créditos: Museu Municipal Santos Rocha, Figueira da Foz. Figura 6 (em baixo) - Fragmento de moinho do Crasto de Tavarede, segundo Rocha (1907 [1971]).
182
SOBRE AS MAIS ANTIGAS MÓS CIRCULARES ROTATIVAS NO OCIDENTE DA PENÍNSULA IBÉRICA: OS TRABALHOS DE SANTOS ROCHA NOS POVOADOS DA IDADE DO FERRO DO BAIXO MONDEGO (SANTA OLAIA E CRASTO DE TAVAREDE)
Santos Rocha conhecia esta referência e usou-a no seu estudo sobre os moinhos dos povoados do baixo Mondego (Rocha, 1907: 127), sem resvalar para as ingenuidades etnográficas do pré-historiador francês. O apontamento de Cartailhac, que não foi acompanhado de qualquer ilustração, cedo caiu no esquecimento e nunca mais foi mencionado nos debates posteriores sobre a difusão dos moinhos circulares rotativos no noroeste da Península Ibérica. Não o refere Mário Cardoso, no interessante estudo etnográfico que realizou sobre sistemas de moagem e produção de alimentos de base cereal, onde apresenta, por exemplo, sobrevivências etnográficas contemporâneas do uso de moinhos de vaivém (Cardoso, 1959). Carlos Alberto Ferreira de Almeida defendeu que a generalização destes moinhos no mundo castrejo se fez já sob a égide de Roma (Almeida, 1983: 189), enquanto Armando Coelho Ferreira da Silva atribuiu cronologia pré-romana a um exemplar procedente da Cividade de Terroso, embora reconhecendo que a generalização das práticas de moagem com estes artefactos, a par de outros sistemas, teria decorrido já em Época Romana (Silva, 2007: 173). Por seu turno, os investigadores galegos que de há muito vêm listando alguns exemplos de moinhos circulares rotativos em contextos pré-romanos, invocando por vezes o exemplo de Terroso, nunca se referem ao suposto exemplar de Sabroso, mencionado por Cartailhac (Carballo Arceo; Concheiro Coello e Rey Castiñeira, 2003. Teira Brión e Amado, 2014). Em suma, um curioso exemplo de como se perde informação ao longo das diferentes gerações de investigadores, uma situação análoga à verificada com os moinhos da Idade do Ferro do baixo Mondego, caídos em total esquecimento. Santos Rocha assumiu a interpretação do Sabroso proposta por Martins Sarmento: um povoado exclusivamente pré-romano, sem qualquer influência romana, por oposição à Citânia de
Briteiros, ou seja, um lugar “que passa, como é sabido, por não ter recebido influencia romana” (Rocha, 1907: 127). À época, o arqueólogo figueirense não dispunha de qualquer meio para aferir a distância ou proximidade cronológica entre o povoado do noroeste e os sítios do baixo Mondego, razão pela qual se limitou a registar os seus moinhos tal como o de Sabroso, em Época Préromana. Hoje sabemos que o povoado de Sabroso não será tão antigo quanto os do baixo Mondego e sabemos também que ali há materiais de Época Romana, graças às sondagens de Hawkes e de Ferreira da Silva (Silva, 2007: 29-30). Contudo, permanece por esclarecer qual possa ser a cronologia da peça que Cartailhac ali terá visto, recolhida pelas escavações de Martins Sarmento. Embora fosse pertinente, também nunca foram convocados os moinhos circulares rotativos dos povoados do baixo Mondego para o debate sobre a disseminação pré-romana destes sistemas de moagem ao longo da fachada atlântica peninsular até ao noroeste.
A valorização dos povoados da Idade do Ferro do baixo Mondego e a sua correta datação António dos Santos Rocha percebeu bem que os povoados da Idade do Ferro do baixo Mondego apresentavam um padrão característico muito próximo do mundo orientalizante, na sua expressão peninsular, embora ao estilo da época oscilasse entre registar-lhes influências gregas, micénicas ou do mundo púnico (Rocha, 1908 [1971]). Mas o estabelecimento dos paralelos com o mundo do baixo Guadalquivir, através dos trabalhos de Bonsor, constituiu tema dominante. Contudo, tardou a estruturar-se uma adequada narrativa para os sítios do baixo Mondego, particularmente para Santa Olaia.
183
SOBRE AS MAIS ANTIGAS MÓS CIRCULARES ROTATIVAS NO OCIDENTE DA PENÍNSULA IBÉRICA: OS TRABALHOS DE SANTOS ROCHA NOS POVOADOS DA IDADE DO FERRO DO BAIXO MONDEGO (SANTA OLAIA E CRASTO DE TAVAREDE)
Pelo seu carácter excêntrico, dir-se-ia que a investigação arqueológica do século XX não sabia como situar Santa Olaia e, pode dizer-se, o lugar foi ficando esquecido, bem como as suas mós. Como referi, no estudo dedicado ao tema por Mário Cardoso, não há qualquer referência aos sítios do baixo Mondego e, seguindo uma outra tradição entretanto sedimentada, atribuiu as origens dos moinhos circulares rotativos ao mundo celta, a partir dos exemplares documentados em França e seguindo a tradicional associação entre celtas e horizontes de La Tène (Cardoso, 1959: 205). Os trabalhos de Gordon Childe, quer nas páginas da revista Antiquity, quer na obra Man makes himself não foram considerados, apesar de já se encontrar, este último, traduzido em português (Childe, 1943; 1947), um claro indicador de como a Arqueologia portuguesa de então recorria preferencialmente às referências francesas. A título de curiosidade, diga-se que foi na década de 40 do século XX que a investigação inglesa se interessou particularmente pelo tema dos moinhos circulares rotativos, a partir dos criteriosos trabalhos de Cecil Curwen. Em um primeiro momento, supôs-se que os mais antigos moinhos rotativos teriam sido os de tração animal e só mais tarde se reconheceu a anterioridade dos moinhos manuais. Este processo encontra-se cristalizado na tradução portuguesa da obra de Gordon Childe intitulada O Homem faz-se a si próprio (Childe, 1947). O livro constitui uma fusão de três obras distintas daquele investigador, respetivamente, Man makes himself (de 1940), What Happened in History (de 1942) e Progress and Archaeology (de 1944), esclarecendo os tradutores que tinham procedido “a uma nova arrumação dos capítulos de obras diferentes que versavam o mesmo tema, (…) [para] formar um todo homogéneo e oferecer um texto o mais actualizado possível” (Idem: 6). Escapou todavia uma notória discrepância, uma vez que se escreve que “A indústria da moagem transformou-se revolucionariamente, nos tempos 184
helenísticos, (…) moinhos de roda [em itálico no original], movidos por jumentos ou, depois de 100 a.C., algumas vezes, pela força das águas” (Idem: 370), para, mais adiante se afirmar, “Até cerca de 600 a.C. os grãos eram moídos num almofariz ou num moinho de braços. O trabalho necessário foi (…) enormemente reduzido pela substituição do movimento de vai-vem (…) pelo movimento de rotação de uma mó circular presa à mó de baixo por um grampo de ferro no centro de ambas as mós (…) é o chamado moinho de roda (…). Um exemplar de Siracusa é considerado anterior a 500 a.C.; um outro exemplar proveniente de Olinto (…) deve ter um século menos. Depois de 300 a.C., os moinhos de roda aparecem com frequência nas cidades civilizadas da Grécia, Itália e Norte de África e entre os bárbaros Iberos na Espanha, se bem que ainda em concorrência com os moinhos de braços” (Idem: 438-9). Percebe-se que a primeira afirmação constaria de uma das obras anteriores ao texto que Childe publicou na revista Antiquity (1943), sendo a última o natural reflexo do pensamento do autor na obra de 1944. A contradição escapou aos tradutores portugueses da obra e, diga-se, nada foi considerado nas investigações dos arqueólogos portugueses que se ocuparam do tema dos sistemas de moagem antigos. Nelson Correia Borges, nas páginas introdutórias do estudo dedicado às mós de Conimbriga volta a mencionar as possíveis origens celtas dos moinhos circulares rotativos (Borges, 1978: 116), sem qualquer referência aos sítios do baixo Mondego e aos seus moinhos, de há longa data conhecidos e em evidente proximidade geográfica. Gordon Childe não se encontra entre as suas referências. No estudo dos sistemas tradicionais de moagem realizado pela equipa do Museu de Etnologia, os moinhos circulares rotativos são identificados como artefactos típicos da bacia do Mediterrâneo e as mós pré-romanas de Santa Olaia foram devidamente assinaladas, embora os autores acabem por considerá-las, paradoxalmente, “mós de tipo
SOBRE AS MAIS ANTIGAS MÓS CIRCULARES ROTATIVAS NO OCIDENTE DA PENÍNSULA IBÉRICA: OS TRABALHOS DE SANTOS ROCHA NOS POVOADOS DA IDADE DO FERRO DO BAIXO MONDEGO (SANTA OLAIA E CRASTO DE TAVAREDE)
romano” (Oliveira; Galhano e Pereira, 1983: 28). Compreensivelmente, os antropólogos não sabiam onde situar cronologicamente os materiais do baixo Mondego, nem identificar corretamente o seu contexto cultural. A valorização dos dados dos povoados da Idade do Ferro do baixo Mondego, literalmente a sua reabilitação, deveu-se, por um lado, a Susan Frankenstein, cuja tese datada de 1977, mas só mais tarde publicada, lhes concedeu especial atenção (Frankenstein, 1997) e, por outro, aos novos trabalhos realizados em Santa Olaia/Ferrestelo por Isabel Pereira (Pereira, 1993; 1994; 1997). A autora sul-africana realizou uma abordagem interessante de valorização das dinâmicas coloniais e das interações entre indígenas e fenícios, conferindo especial destaque aos dados de Santa Olaia, que jaziam adormecidos no Museu da Figueira da Foz, esperando a devida valorização: o seu tratamento sistemático ocupa todo o apêndice 1 da obra (Frankenstein, 1997: 279-320). Contudo, não se terá apercebido ou não achou pertinente valorizar os moinhos circulares rotativos de Santa Olaia, uma vez que se refere somente a moinhos manuais do segundo povoado, não sendo claro se está a falar das mós de vaivém ou se dos moinhos circulares rotativos (Frankenstein, 1997: 203). No tocante às novas escavações arqueológicas, que permitiram ampliar significativamente a informação sobre o sítio, haverá a registar, em primeiro lugar, a plena confirmação dos três povoados da Idade do Ferro identificados por Santos Rocha aquando das primeiras escavações (Pereira, 1993: 296-7; 1997; 2012: 117-8) e, na esteira das observações de Frankenstein, postular a presença de populações exógenas no local, classificando o povoado como instalação fenícia (Pereira, 1993; 1997: 228230). A cronologia da sequência dos povoados foi estabelecida com base nos materiais recolhidos e seus paralelos documentados em outras paragens, uma vez que as datações de 14C realizadas apresentam intervalos demasiado dilatados, nada conclusivos
(Pereira, 2012: 118). Isabel Pereira propôs um ciclo de construção/ocupação/abandono para a sequência antiga de Santa Olaia, entre os finais do século VIII/inícios do VII a.C., com um período dito de apogeu ao longo dos séculos VII/VI a.C., subsequente declínio e abandono nos V/ IV a.C. (Pereira, 1993: 300-1; 1997: 228-230; 2012: 120-1). Sublinhe-se, porém, a existência de materiais mais tardios no local, designadamente cerâmicas de tipo campaniense, recolhidas pelas escavações de Santos Rocha (Frankenstein, 1997: 285 e Lam. 17), ao contrário do que Isabel Pereira afirma (Pereira, 1997: 230). Os recentes trabalhos conferiram especial atenção às estruturas defensivas do povoado, bem como aos fornos metalúrgicos postos a descoberto. Novos elementos de moinhos circulares rotativos terão sido recolhidos (Pereira, 2009: 73 e Figs. 27 e 28), embora sem um contexto claro (Fig. 7). Uma vez mais, o tema não suscitou particular atenção. Finalmente, na grande síntese sobre as presenças fenícias no ocidente da Península Ibérica, Ana Margarida Arruda, retomou as propostas de Frankenstein, associando-lhes os novos dados das escavações de Isabel Pereira, descrevendo o povoamento da primeira metade do I Milénio a.C. no baixo Mondego como um complexo processo onde Santa Olaia constituiu uma instalação de populações designadas como “fenícios ocidentais”, em interação com as comunidades locais, cujo principal centro seria o Crasto de Tavarede (Arruda, 1999-2000: 252-6). No essencial, Arruda concorda com as cronologias avançadas por Frankenstein e Pereira, mas também não valoriza a presença dos moinhos circulares rotativos, limitando-se a mencionar moinhos manuais (não se percebendo se os circulares rotativos ou somente os de vaivém), seguindo Frankenstein, sem atribuir particular valor ao potencial de eficácia que resultaria da adoção desta nova tecnologia de moagem cerealífera, no detalhado estudo que ensaiou sobre a exploração de recursos do povoado (Arruda, 1999-2000: 240). 185
SOBRE AS MAIS ANTIGAS MÓS CIRCULARES ROTATIVAS NO OCIDENTE DA PENÍNSULA IBÉRICA: OS TRABALHOS DE SANTOS ROCHA NOS POVOADOS DA IDADE DO FERRO DO BAIXO MONDEGO (SANTA OLAIA E CRASTO DE TAVAREDE)
Figura 7 - Pouso de moinho circular manual, identificado nas recentes escavações de Santa Olaia/Ferrestelo (Pereira, 2009: 73 e Fig. 27). Fonte: Arquivo do Museu Municipal Santos Rocha, Figueira da Foz.
Os mais antigos moinhos circulares circulares rotativos, com dimensões rondando os rotativos do ocidente peninsular em 45 cm de diâmetro, com encaixes verticais para manivela, os exemplares de Alorda Park e Els contexto colonial? Ao longo dos últimos anos, foi-se consolidando um discurso fundamentado sobre um foco de criação do moinho circular rotativo manual na Península Ibérica, desde as propostas de Gordon Childe – pode ver-se uma documentada discussão historiográfica do tema em Berrocal-Rangel, 2007. O foco de criação estaria no nordeste da Península Ibérica/sudoeste de França, em contexto do chamado Ibérico Inicial, na viragem do século VI para o V a.C. (Alonso Martínez e Pérez Jordá, 2014). Nesta etapa mais antiga, estão documentados moinhos 186
Villars, tendência que parece manter-se nas etapas subsequentes (Idem: 245). Supostamente partindo deste foco criador, os moinhos foram disseminados para outras regiões, designadamente para Ocidente, onde o exemplar mais antigo se encontra registado no sítio murciano de El Mortal, Alhama, em um discutido contexto datado dos séculos VII/VI a.C. de notável antiguidade, supostamente anterior ao dos mais antigos exemplares conhecidos na putativa área de criação da nova tecnologia de moenda (Adroher Aurox e Molina Piernas, 2014: 233).
SOBRE AS MAIS ANTIGAS MÓS CIRCULARES ROTATIVAS NO OCIDENTE DA PENÍNSULA IBÉRICA: OS TRABALHOS DE SANTOS ROCHA NOS POVOADOS DA IDADE DO FERRO DO BAIXO MONDEGO (SANTA OLAIA E CRASTO DE TAVAREDE)
A difusão dos moinhos circulares rotativos manuais pelas restantes áreas da Península Ibérica parece ter sido lenta e desigual, com muitas sobrevivências dos sistemas de moagem mais antigos (Alonso Martínez, 2014). Os moinhos circulares rotativos manuais de Santa Olaia constituem assim os mais antigos exemplares deste instrumento de moagem conhecidos no ocidente da Península Ibérica. Naturalmente, resulta complicado determinar com rigor o seu contexto, embora Santos Rocha fosse absolutamente taxativo na afirmação de se encontrarem nos dois povoados mais profundos da Idade do Ferro que identificou no local, em ambientes onde continuavam em uso as mós planas de vaivém, as “mós de tipo primitivo”, nas suas palavras (Rocha, 1908 [1971]: 89-90 e Est. XXV). Atendendo a que é geralmente reconhecida a qualidade da observação estratigráfica do arqueólogo figueirense, não parece haver razão para duvidar do seu registo neste caso concreto. Admitindo as cronologias propostas com base nos artefactos (uma vez que as datações radiométricas se afiguram ineficazes para o efeito, como acima referi), o povoado inferior da Idade do Ferro de Santa Olaia seria uma fundação dos finais do século VIII/inícios do VII a.C., na proposta de Isabel Pereira (Pereira, 1997: 228-30), dos séculos VII/VI a.C., segundo Susan Frankenstein (Frankenstein, 1997: 201), ou da primeira metade do I Milénio a.C., nas palavras mais cautas de Ana Margarida Arruda (Arruda, 1999-2000: 252-256). De qualquer forma, todas aceitam a ideia de um declínio no século VI a.C., até ao posterior abandono ocorrido pelos séculos V/IV a.C. (Pereira, 1997: 228-30; Arruda, 1999-2000: 255). Este abandono estaria associado ao mais recente povoado da Idade do Ferro de Santa Olaia, o chamado povoado superior da descrição de Santos Rocha (Rocha, 1908 [1971]: 33-44) e, para este efeito, creio ser irrelevante a presença de materiais mais recentes no acervo de artefactos recolhido por Santos Rocha.
Assim sendo, os mais antigos moinhos circulares rotativos de Santa Olaia poderão datar de um momento compreendido entre o século VII e os inícios do VI a.C., uma observação da maior importância, uma vez que os mais antigos moinhos congéneres conhecidos na área levantina peninsular e associados ao Ibérico Inicial terão cronologias mais recentes ou, no mínimo, coevas. Sublinhese, uma vez mais, que novas pedras de moinho circular rotativo foram recolhidas nas escavações recentes de Isabel Pereira, embora não saibamos em que contexto preciso se encontrava o exemplar documentado em fotografia (Pereira, 2009: 73 e Figs. 27 e 28), reproduzida no Portal do Arqueólogo, da DGPC (Fig. 7). Os moinhos de Santa Olaia chegam ao local no contexto das interações entre as comunidades locais do Bronze Final e os fenícios, na perspetiva de Frankenstein (Frankenstein, 1997: 201) ou, com maior probabilidade, pela instalação de uma população exógena, designada como “fenícia ocidental”, como defenderam Isabel Pereira e Ana Margarida Arruda (Pereira, 1997: 228-230; Arruda, 1999-2000: 254), em ambiente onde a cultura material não apresenta qualquer indício de contacto ou influência da área Ibérica (Frankenstein, 1997: 202). Os moinhos circulares rotativos de Santa Olaia, de pequenas dimensões, sempre abaixo dos 40 cm de diâmetro e, no único caso em que foi possível observar o orifício para a manivela, esta situa-se em posição lateral, para uma movimentação horizontal, sem perfurar totalmente a andadeira, ou seja, apresentam os moinhos do povoado figueirense dimensões e dispositivos para animar o movimento rotativo distintos dos conhecidos nos mais antigos moinhos congéneres da área Ibérica, o que parece indicar uma não relação entre uns e outros. A portabilidade destes artefactos e a inexistência de um estudo sobre as matérias-primas utilizadas no seu fabrico inibe qualquer conclusão sobre as suas origens, se trazidos de longe, se confecionados no local. 187
SOBRE AS MAIS ANTIGAS MÓS CIRCULARES ROTATIVAS NO OCIDENTE DA PENÍNSULA IBÉRICA: OS TRABALHOS DE SANTOS ROCHA NOS POVOADOS DA IDADE DO FERRO DO BAIXO MONDEGO (SANTA OLAIA E CRASTO DE TAVAREDE)
Por contactos com as comunidades locais ou pela instalação de uma população exógena, a nova tecnologia de moagem foi introduzida no ocidente da Península Ibérica pelos “fenícios ocidentais”, juntamente com outras novas tecnologias, como a redução do ferro ou o fabrico cerâmico pelo recurso ao torno rápido, sendo esta uma inovação estreitamente associada às noções dinâmicas do movimento giratório subjacente à tecnologia dos moinhos rotativos. Aparentemente, o modelo de moinho resulta de uma tradição distinta da documentada no nordeste da Península Ibérica, colocando novas e interessantes questões sobre focos de criação e difusão destes artefactos. Mais interessante ainda é a recolha de dois fragmentos de moinhos circulares rotativos manuais no Crasto de Tavarede, um povoado indígena que teria mantido estreitos contactos com Santa Olaia (Rocha, 1907: 128). No Crasto de Tavarede, Santos Rocha não identificou uma sequência de ocupações análoga à de Santa Olaia, diz mesmo que haveria um único nível de utilização, o “depósito negro” (Rocha, 1908 [1971]: 106-111), observação desmentida pela ampla diversidade cronológica dos materiais ali recolhidos (Arruda, 1999-2000: 242). Por isso, não sabemos em que âmbito concreto e em que circunstâncias a nova tecnologia de moagem foi adotada pelas comunidades locais. Interessante é registar a diferença de matériasprimas assinalada nas mós de Santa Olaia e do Crasto de Tavarede, “grés grosseiro, mas bastante duro”, para as primeiras, um “grés escuro, muito brando”, para as outras (Rocha, 1907: 128). Por se ter perdido de todo o conhecimento da informação publicada por Santos Rocha nos inícios do século XX, nunca o baixo Mondego foi incluído nas cartografias de distribuição dos moinhos circulares rotativos manuais, não sendo também considerado como potencial foco da sua disseminação nas sínteses sobre regiões ocidentais da Península Ibérica, quer interiores (Rodríguez Díaz; et al., 2014), quer litorais (Carballo Arceo; Concheiro Coello e Rey Castiñeira, 2003; Teira Brión e Amado, 2014). 188
A simples presença dos moinhos no baixo Mondego parece confirmar o postulado de Childe de que a via marítima teria sido responsável pela disseminação da nova tecnologia de moagem (Childe, 1943: 25) – embora de cronologia mais tardia, a presença de moinhos no naufrágio de El Sec (Palma de Maiorca) comprova a difusão marítima destes artefactos e, neste caso, em quantidade superior ao que seria preciso para as necessidades da tripulação (Parker, 1992: 392-394). As pequenas dimensões dos moinhos de Santa Olaia e Tavarede conferem-lhes elevada portabilidade, por um lado, a tardia difusão da nova tecnologia para o interior da Península Ibérica, por outro, dão consistência a esta proposta: os pequenos moinhos difundidos por mar chegariam mais precocemente aos sítios do litoral e mais lentamente ao interior peninsular. A associação da nova tecnologia de moagem a ambientes “fenícios ocidentais” traz de volta uma ideia anteriormente expressa por Michel Py de poder ter ocorrido em âmbito púnico esta inovação técnica (Py, 1992: 195). Em face do que hoje conhecemos sobre os contactos entre o oriente do Mediterrâneo, direto ou diferido, e o ocidente peninsular, é expectável que outros moinhos circulares rotativos manuais venham a documentar-se nas áreas litorais meridionais, como as costas do Algarve ou os estuários do Sado e Tejo. Mas, do panorama atualmente conhecido, continuam a ser os exemplares dos povoados da Idade do Ferro do baixo Mondego os mais antigos exemplares documentados. Em suma, observações com mais de um século realizadas por Santos Rocha nos povoados da zona da Figueira da Foz, que caíram no esquecimento, podem trazer uma nova dinâmica ao debate sobre a invenção da nova tecnologia de moenda, com os moinhos circulares manuais baixos. Possa o presente texto recuperar para o conhecimento científico esta relevante informação que, no seu tempo, António dos Santos Rocha soube valorizar.
SOBRE AS MAIS ANTIGAS MÓS CIRCULARES ROTATIVAS NO OCIDENTE DA PENÍNSULA IBÉRICA: OS TRABALHOS DE SANTOS ROCHA NOS POVOADOS DA IDADE DO FERRO DO BAIXO MONDEGO (SANTA OLAIA E CRASTO DE TAVAREDE)
Nota final Infelizmente, não foi possível identificar no Museu da Figueira da Foz os moinhos recolhidos por Santos Rocha, que poderão ter-se perdido no decurso das várias transferências físicas que o Museu conheceu desde os inícios do século XX. CNS, seguido de um número, corresponde a Código Nacional de Sítio, aplicado aos sítios arqueológicos do espaço hoje português e mantido pela Direcção-Geral do Património Cultural: http://arqueologia.patrimoniocultural.pt/index. php?sid=sitios&p=2 Os trabalhos de António dos Santos Rocha estão hoje em dia acessíveis, on line em formato pdf. Veja-se: Memórias e explorações arqueológicas II https://books.google.pt/books?id=P558PXV0JRcC&p rintsec=frontcover&hl=pt-PT#v=onepage&q&f=false Boletim da Sociedade Arqueológica Santos Rocha https://archive.org/details/boletimdasocieda01soci/ page/n6
189
SOBRE AS MAIS ANTIGAS MÓS CIRCULARES ROTATIVAS NO OCIDENTE DA PENÍNSULA IBÉRICA: OS TRABALHOS DE SANTOS ROCHA NOS POVOADOS DA IDADE DO FERRO DO BAIXO MONDEGO (SANTA OLAIA E CRASTO DE TAVAREDE)
Agradecimentos Este trabalho foi financiado por fundos nacionais através da FCT-Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Projecto UIDB/00698/2020.
Referências bibliográficas ADROHER AUROUX, Andrés M. e MOLINA PIERNAS, Eduardo (2014). La molienda en la Protohistoria del mediodía peninsular ibérico. Revista d’Arqueologia de Ponent, 24, pp. 215-237. ALMEIDA, Carlos A. F. (1983). O castrejo sob o domínio romano: a sua transformação. In PEREIRA MENAUT, G. (ed.), Estudos de Cultura Castrexa e de Historia Antiga de Galicia. Compostela: Universidad de Santiago de Compostela/Instituto de Estudos Galegos Padre Sarmiento, pp. 187-198. ALONSO MARTÍNEZ, Natàlia (ed.) (2014). Reunió Molins i mòlta al Mediterrani ocidental durant l’edat del ferro. Revista d’Arqueologia de Ponent, 24, pp. 99-362. ALONSO MARTÍNEZ, Natàlia e PÉREZ JORDÁ, Guillem (2014). Molins rotatius de petit format, de gran format i espais de producció en la cultura ibèrica de l’est peninsular. Revista d’Arqueologia de Ponent, 24, pp. 239-255. ANTUNES, Ana Sofia (2018). Moinhos de vaivém e giratórios da Azougada (Moura, Portugal). Um contributo para o estudo da moagem no Alentejo interior em meados do I milénio a.C.. CIRA-Arqueologia, VI, pp. 70-99. ARRUDA, Ana Margarida (1999-2000). Los Fenicios en Portugal. Fenicios y mundo indígena en el centro y sur de Portugal (siglos VIII-VI a.C.). Cuadernos de Arqueología Mediterránea, 5-6. Barcelona: Publicaciones del Laboratorio de Aqueología, Universidad Pompeu Fabra, Carrera Edició. BERROCAL-RANGEL, Luis (2007). De la mecánica a la molienda: un ensayo sobre los molinos giratorios de la España antigua. In BLÁNQUEZ PÉREZ, Juan; ROLDÁN GÓMEZ, Lourdes e JIMÉNEZ VILLALAR, Helena (eds.), Augusto Fernández de Avilés. En Homenaje. Serie Varia, 6. Madrid: Universidad Autónoma de Madrid, pp. 275-297.
190
BORGES, Nelson C. (1978). Mós manuais de Conimbriga. Conimbriga, XVII, pp. 113-132. CARBALLO ARCEO, Xulio; CONCHEIRO COELLO, Angel e REY CASTIÑEIRA, Josefa (2003). A Introducción dos muiños circulares nos castros galegos. Brigantium, 14, pp. 97-108. CARDOSO, Mário (1959). A mó e a farinha, o forno e o pão (nota etnográfica). Trabalhos de Antropologia e Etnologia, XVII (1-4), pp. 235-248. CARTAILHAC, Émile (1886). Les Ages Préhistoriques de l’Espagne et du Portugal. Paris: Ch. Reinwald Librairie. CHILDE, Vere Gordon (1943). Rotary Querns on the Continent and in the Mediterranean Basin. Antiquity, XVII, pp. 19-26. CHILDE, Vere Gordon (1947). O Homem faz-se a si próprio (O progresso da humanidade desde as suas origens até o fim do Império Romano). Lisboa: Cosmos. Tradução de Vitorino Magalhães Godinho e Jorge Borges de Macedo. DANIELSEN, Randi (2008). Palaeoecological development of the Quiaios-Mira dunes, northern-central littoral Portugal. Review of Palaeobotany and Palynology, 152 (1-2), pp. 74-99. DANIELSEN, Randi et al. (2008). Evolução da paisagem a norte do Cabo Mondego durante os últimos milhares de anos. In LOPES, F. C. e CALLAPEZ, P. M. (eds.), Por terras da Figueira. Figueira da Foz, Kiwanis Clube da Figueira da Foz, pp. 45-53. FABIÃO, Carlos (1993). O Passado Proto-histórico e a Romanização. In MATTOSO, J. (dir.) História de Portugal, vol. 1, Lisboa: Círculo de Leitores, pp. 76-299. FRANKENSTEIN, Susan (1997). Arqueología del Colonialismo. El impacto fenicio y griego en el sur de la Península Ibérica y el Suroeste de Alemania. Barcelona: Crítica. Tradução de Mª Eugenia Aubet. OLIVEIRA, Ernesto V.; GALHANO, Fernando e PEREIRA, Benjamim (1983). Tecnologia Tradicional Portuguesa Sistemas de Moagem. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica/ Centro de Estudos de Etnologia. PARKER, Anthony J. (1992). Ancient Shipwrecks of the Mediterranean & the Roman Provinces. Oxford: Tempvs Reparatvm, BAR. International Series 580.
SOBRE AS MAIS ANTIGAS MÓS CIRCULARES ROTATIVAS NO OCIDENTE DA PENÍNSULA IBÉRICA: OS TRABALHOS DE SANTOS ROCHA NOS POVOADOS DA IDADE DO FERRO DO BAIXO MONDEGO (SANTA OLAIA E CRASTO DE TAVAREDE)
PEREIRA, Isabel (1993). Figueira de Foz. Santa Olaia. Estudos Orientais IV. Os Fenícios no território português. Lisboa: Instituto Oriental, Universidade Nova de Lisboa, pp. 285-304. PEREIRA, Isabel (1994). A Idade do Ferro na foz do Mondego. In Idade do Ferro Catálogo. Figueira da Foz: Câmara Municipal da Figueira da Foz/Serviços Culturais Museu, pp. 17-60. PEREIRA, Isabel (1997). Santa Olaia et le commerce atlantique. In AA.VV. Itinéraires Lusitaniens. Trente années de collaboration archéologique luso-française (Actes de la réunion tenue à Bordeaux les 7 et 8 avril 1995). Paris: Diff. E. de Boccard, pp. 209-253. PEREIRA, Isabel (2009). As actividades metalúrgicas na Iª e IIª Idade do Ferro em Santa Olaia - Figueira da Foz, Conimbriga XLVIII, pp. 61-79. PEREIRA, Isabel (2012). Santos Rocha e o estudo de Idade do Ferro em Portugal. In VILAÇA, R. e PINTO, S. (eds.) Santos Rocha, a arqueologia e a sociedade do seu tempo. Figueira da Foz: Casino Figueira, pp. 115-131. PY, Michel (1992). Meules d’époque protohistorique et romaine provenant de Lattes. Lattara, 5, pp. 183-232. ROCHA, António S. (1907). Os pequenos moinhos circulares de pedra das estações pre-romanas do valle do Mondego. Boletim da Sociedade Archeologica Santos Rocha. I, n.º 4, pp. 127-129. ROCHA, António S. (1908) [1971]. Estações pré-romanas da Idade do Ferro nas vizinhanças da Figueira, primeiramente publicano da revista Portvgalia. Materiaes para o estudo do povo portuguez, reproduzido em Memórias e explorações arqueológicas II. Coimbra: Imprensa da Universidade, pp. 1-137. RODRÍGUEZ DÍAZ, Alonso et al. (2014). Molinos y molienda en el mundo tartésico: el Guadiana y Tajo Medios. Revista d’Arqueologia de Ponent, 24, pp. 189-214. SILVA, Armando C. F. (2007). A Cultura Castreja no Noroeste de Portugal (2.ª ed.), Paços de Ferreira: Câmara Municipal de Paços de Ferreira. TEIRA BRIÓN, Andrés e AMADO, Estevo (2014). Molinos fuera de lugar. Fronteras y contextos de la molienda en la arqueología de la Edad del Hierro del noroeste ibérico. Revista d’Arqueologia de Ponent, 24, pp. 271-287.
191
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
A fauna de Santa Olaia: estudo do material osteológico recolhido na intervenção arqueológica de emergência de 1993-1994 Santa Olaia’s fauna: study of the osteological material collected in the emergency archaeological intervention of 1993-1994 Rodrigo Pinto1
1
Museu Municipal Santos Rocha, Divisão de Cultura, Município da Figueira da Foz | rhodespinto@outlook.pt
192
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO O monte de Santa Olaia e o do Ferrestelo são locais de grande importância para a Arqueologia e História da Figueira da Foz. Escavado por Santos Rocha no início do século XX, o povoado de Santa Olaia forneceu um vasto espólio arqueológico. No seguimento do projecto de construção do troço do IP3 (Santa Eulália-Figueira da Foz; hoje A14), na última década do século XX, realizouse uma intervenção de emergência, que revelou uma grande área arqueológica datada da Idade do Ferro. No vasto espólio recolhido encontrava-se um significativo número de peças ósseas de fauna. O presente trabalho de investigação pretende caracterizar uma amostra do referido espólio osteológico faunístico, a fim de possibilitar maior conhecimento e compreensão da economia de subsistência dos habitantes do povoado de Santa Olaia.
ABSTRACT The Santa Olaia hill, together with the one of Ferrestelo, are sites of great importance to the archaeology and history of Figueira da Foz. Excavated by Santos Rocha in the beginning of the 20th century, the settlement of Santa Olaia provided a large archaeological collection. Following the construction project for the IP3 section (Santa Eulália-Figueira da Foz, today A14), in the last decade of the 20th century, an emergency intervention was carried out, which revealed a large archaeological area dating from the Iron Age. In the vast remains collected there were a significant number of fauna bone pieces. This research project aims to characterize a sample of the mentioned osteological faunal remains in order to provide a better knowledge and understanding of the subsistence economy of the inhabitants of the Santa Olaia settlement.
Palavras-chave: Arqueozoologia; Fauna; Santa Keywords: Zooarchaeology; Fauna; Santa Olaia; Paleoecologia. Olaia; Paleoecology. 193
A FAUNA DE SANTA OLAIA: ESTUDO DO MATERIAL OSTEOLÓGICO RECOLHIDO NA INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA DE EMERGÊNCIA DE 1993-1994
Introdução Um dos aspectos importantes do ser humano é a vasta interacção que tem com outros animais. Este aspecto, dos muitos das populações do passado que a arqueologia pode investigar, é um dos poucos que consegue ser realizado em várias culturas, através da Pré-história e História da Humanidade. A Arqueozoologia é a disciplina que se dedica ao estudo dos restos faunísticos recuperados pela actividade arqueológica, encontrando-se o arqueozoólogo diante do que restou da fauna do passado. A sua análise e interpretação permitem ampliar o conhecimento das relações do ser humano com o mundo animal e dos sucessivos ambientes que partilharam. Assim, a Arqueozoologia é o estudo dos restos das refeições das populações do passado (Davis, 1987).
O outeiro de Santa Olaia, conjuntamente com o outeiro do Ferrestelo, forma uma unidade geomorfológica e paisagística única, que se destaca na margem direita do rio Mondego, na confluência com o rio Foja, seu afluente. Com o objectivo do estudo e protecção do património arqueológico existente na área classificada de Santa Olaia e Ferrestelo, e na sequência do projecto de construção do troço do IP3 (Santa Eulália-Figueira da Foz; hoje A14), foram realizadas em 1992, sondagens arqueológicas a Norte do sítio classificado, junto à E.N. 111 (Pereira, 2009). O resultado destas sondagens preliminares consubstanciou a ideia de implementar um conjunto de acções de escavação de maior amplitude (Fig. 1). A grande quantidade de material arqueológico, de grande incidência ceramológica, em contextos estratigráficos específicos e associado a estruturas
Figura 1 - Vista aérea da área da intervenção arqueológica 1993-1994, adaptado de Intervenção Arqueológica de Emergência em Santa Olaia e Ferrestelo, Figueira da Foz (Pereira, 1994).
194
A FAUNA DE SANTA OLAIA: ESTUDO DO MATERIAL OSTEOLÓGICO RECOLHIDO NA INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA DE EMERGÊNCIA DE 1993-1994
arqueológicas, indicava um importante espaço de ocupação urbanística (Pereira, 1994; 2009). Os principais aspectos investigados foram a caracterização morfo-osteométrica de espécies semelhantes, a observação de carácter tafonómico, assim como a interpretação paleoecológica e inferências sócio-culturais.
a área escavada. Estes restos osteológicos foram recolhidos durante a intervenção arqueológica de emergência que decorreu entre 8 de Março de 1993 e 20 de Junho de 1994, na sequência do projecto de construção do troço da IP3, Santa Olaia-Figueira da Foz. Após a exumação, o material ósseo deu entrada no Museu Municipal Santos Rocha, onde se encontra disponível para estudos subsequentes, como o de Filipe Martins (2020).
Caracterização e material O povoado de Santa Olaia situa-se na freguesia de Ferreira-a-Nova, concelho da Figueira da Foz, distrito de Coimbra. Implantado na margem direita do antigo estuário do Mondego, situa-se numa colina de baixa altitude (cota média 20 m), rodeada a Norte, Sul e Oeste por terrenos de aluvião, hoje ocupados por arrozais. Geologicamente, estes dois outeiros são a parte proeminente da costeira setentrional da formação calcária denominada por “Calcários apinhoados da Costa de Arnes” que designa uma sucessão de natureza carbonatada, composta na sua base por alternâncias de grés calcários, margas gresosas e calcários margo-gresosos. Sobre estes assentam calcários e calcários margosos com estrutura interna apinhoada, muito fossilíferos (Rocha et al., 1981). Os trabalhos arqueológicos realizados a partir de 1983 e, especialmente, em 1993 e 1994, revelaram uma grande área de fundição de longo uso, com uma cronologia da Idade do Ferro, situada entre os séculos VII a IV/III a.C., tendo sido identificados três momentos distintos de ocupação fenícia (Pereira, 2012). O sítio apresenta igualmente uma longa diacronia. O material alvo deste estudo é um conjunto de 1 891 peças ósseas (1 659 ossos e 232 dentes soltos) de fauna recuperadas, sem qualquer conexão anatómica. Representa, no seu todo, uma amostragem zooarqueológica de grandes dimensões, representativa da longa ocupação humana do povoado de Santa Olaia e distribuída por toda
Resultados A amostra do presente estudo é maioritariamente constituída por ossos longos. Estes, apresentam um elevado estado de fragmentação, ao qual se alia o alto grau de alterações tafonómicas fortemente marcada pelos agentes de índole biológica. A maioria das peças ósseas apresenta, na sua superfície, marcas ou impressões realizadas por raízes de plantas, assim como marcas de dentes e garras de animais. O gráfico da figura 2 expõe a percentagem de peças osteológicas, num total de 222, onde foram observados os agentes tafonómicos. É fácil verificar que a acção do Homem é a maior, 34,7% (77/222), seguido pela acção da flora, 29,3% (65/222). É de referir que o fogo é na maioria dos casos, uma acção provocada pelo ser humano, mas decidiu-se quantificar este agente tafonómico separadamente, para uma melhor compreensão. Cerca de 19,4% (43/222) das peças ósseas observadas apresentavam uma coloração própria de terem estado sujeitas a temperaturas elevadas (Fig. 3). Destas que sofreram acção do fogo e do calor, 65,1% (28/43) tinham uma coloração entre o castanho e o negro, indicando que estiveram sujeitas a temperaturas entre os 250º e os 300ºC e entre os 300º e 400ºC, respectivamente. Os fragmentos de osso, com várias tonalidades de cinzento, expostos a temperaturas entre os 400º e os 600ºC, são 28% (12/43). As peças ósseas sujeitas a temperaturas muito elevadas, acima dos 600ºC, contabilizam apenas 7% (3/43). O gráfico da 195
A FAUNA DE SANTA OLAIA: ESTUDO DO MATERIAL OSTEOLÓGICO RECOLHIDO NA INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA DE EMERGÊNCIA DE 1993-1994
Figura 2 (em cima) - Distribuição da alteração tafonómica no material osteológico faunístico de Santa Olaia, de um total de 222 peças ósseas. Figura 3 (em baixo) - Amostra do conjunto de peças carbonizadas do material exumado em Santa Olaia.
196
A FAUNA DE SANTA OLAIA: ESTUDO DO MATERIAL OSTEOLÓGICO RECOLHIDO NA INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA DE EMERGÊNCIA DE 1993-1994
figura 4 ilustra a representatividade por espécie, do material osteológico exumado, num total de 1 255 peças. Das peças ósseas observadas, a espécie mais representada é Capra hircus/Ovis aries (caprinos/ ovinos), com 38,6% (484/1 255) seguida da espécie Bos taurus (bovinos) com 37,9% (476/1 255) e da espécie Sus domesticus (porco doméstico), com a possível existência de ossos de Sus scrofa (javali) – suínos, com 20,6% (259/1 255). Por outro lado, apenas se registou um osso pertencente a uma ave, possível galináceo, o que perfaz uma percentagem muito reduzida, 0,1% (1/1 255). Este valor não é representativo, pois os ossos de algumas espécies de aves comensais, e mesmo de caça, são frágeis em comparação
com os mamíferos, tornando-os mais facilmente destrutíveis quando carbonizados, ou sob a acção dos agentes tafonómicos. Deve também ser referido que a representação dos cervídeos, 0,8% (10/1 255), foi determinada através das hastes; e assinalar a presença de canídeos e roedores, 2% (25/1 255). A estimativa da idade de abate, da fauna, é da maior importância na zooarqueologia pois permite deduzir o tipo de exploração e/ou aproveitamento pecuário. Uma comunidade que deu prioridade à produção e ao consumo de carne procederia ao abate de indivíduos não adultos uma vez atingido o máximo do seu crescimento, mantendo apenas um baixo número de animais reprodutores. Pelo contrário,
Figura 4 - Ilustra a representatividade por espécie, do material osteológico exumado de Santa Olaia, num total de 1 255 peças.
197
A FAUNA DE SANTA OLAIA: ESTUDO DO MATERIAL OSTEOLÓGICO RECOLHIDO NA INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA DE EMERGÊNCIA DE 1993-1994
uma comunidade virada para o aproveitamento dos chamados produtos secundários (lã, lacticínios, estrume, etc.) e força de tracção manteria os animais adultos até ao esgotamento da sua vida produtiva (Davis, 1987; Moreno-García et al., 2003). O material osteológico demonstra que os intervalos etários com mais peças se situam entre o primeiro e o segundo ano de vida do animal. Igual número de material osteológico está compreendido no intervalo tardio, de aproximadamente 4 anos (Fig. 5). As patologias observadas e registadas foram do foro articular degenerativo nomeadamente a artrose, e do foro circulatório, as osteocondroses. No material ósseo do presente estudo, os casos detectados de artrose foram muito poucos e de sua maioria ligeiros – grau 1. Apenas um fragmento de um côndilo mandibular de bovino apresenta sinais de maior severidade – grau 2 (Fig. 6). Dos seis casos de osteocondrite dissecante detectados no material analisado, três localizam-se no rádio de bovinos, dois na articulação proximal (com o úmero) e uma na articulação distal. Observou-se também a ocorrência desta patologia
num fragmento de fémur de bovino, na área da articulação do joelho, assim como num metacarpo esquerdo de bovino (Fig. 7), e num fragmento distal de rádio de caprino/ovino.
Discussão O estado do material ósseo da amostra evidencia que a maioria das fracturas demonstra um carácter post-mortem, uma vez que a coloração da superfície fracturada e o seu aspecto grosseiro sugerem que se trata de fracturas provocadas por acção humana. Algo provável, dado que estamos perante um local de deposição colectiva, de ocupação com um longo período de utilização, em que as espécies identificadas seriam parte importante da dieta alimentar local. A isto, alia-se o peso do material que compôs este depósito ao longo dos tempos. Dos agentes tafonómicos biológicos encontrados, destacam-se as alterações provocadas pela acção humana e por plantas. A acção antrópica é, dos agentes tafonómicos observados, a que mais incide no material ósseo, que sendo de cariz faunístico, remete para uma estreita relação com o Homem.
Figura 5 - Distribuição por intervalo etário da amostra de peças ósseas de não adultos presentes no ossário de Santa Olaia.
198
A FAUNA DE SANTA OLAIA: ESTUDO DO MATERIAL OSTEOLÓGICO RECOLHIDO NA INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA DE EMERGÊNCIA DE 1993-1994
Figura 6 (esquerda) - Côndilo mandibular de bovino, n.º A1SI23_1 F996, artrose de grau 2. Figura 7 (direita) - Caso observado de osteocondrite dissecante, no metacarpo de bovino, n.º A1SI20_2 F1546.
O ser humano usa outros animais como fonte de alimento, o que implica o desmembramento e corte do animal para ser processado em alimento. Ora, estas acções deixam marcas de corte nos ossos, que se distinguem facilmente da destruição post-mortem, sendo consideradas como peri-mortem, isto é, na altura da morte. O material osteológico que esteve sob a acção do fogo, consiste em cerca de 19,4% (43/222). Duas hipóteses surgem como possíveis explicações: estamos perante restos de práticas culinárias e/ou de eliminação de restos. No que respeita à primeira hipótese, parecem estar representados restos de confecção e de combustão de alimentos, dado que várias peças ósseas se apresentam carbonizadas, com tonalidades escuras. Contudo, esta situação pode ser em parte devida à prática, então corrente, de arremesso dos restos para o lume depois de consumida a carne, de forma a alimentarem a combustão (Cardoso e Silva, 2013), o que remete para a segunda hipótese referida. O osso seco é um material bastante carburante, alimentando assim o fogo durante um longo período de tempo (Tylecote, 1982 apud Karageorghis e
Kassianidou, 1999: 181). O complexo arqueológico de Santa Olaia contém várias estruturas de fornos de fundição que serviriam para a produção de diverso material (Pereira, 2009), por isso não se descarta que as carcaças de animais fossem também utilizadas para a alimentação da combustão destes fornos. Os resultados obtidos permitem inferir que a maioria das espécies, presentes no ossário, corresponde a animais domésticos, de cariz de subsistência (carne, leite, pele, lãs, etc.), bem como do uso destes para tracção e transporte. Todavia, há também a presença de mamíferos de cariz cinegético assim como de companhia. A discrepância entre a percentagem dos indivíduos adultos e não adultos poderá indicar uma criação mais orientada para o aproveitamento dos produtos de origem animal assim como para a mobilidade e aproveitamento da sua força motriz. O caso com maior grau de severidade encontrado localiza-se num local do esqueleto que está sujeito a um forte e ritmado movimento físico. Os indivíduos da espécie bovina são ruminantes, realizando durante um grande período de tempo os movimentos de mastigação. 199
A FAUNA DE SANTA OLAIA: ESTUDO DO MATERIAL OSTEOLÓGICO RECOLHIDO NA INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA DE EMERGÊNCIA DE 1993-1994
A osteocondrite dissecante é uma patologia que está associada ao esforço físico vigoroso, tendo como consequência o surgimento precoce/prematuro da patologia degenerativa articular (Waldron, 2009). Embora haja poucos casos registados da patologia, a maioria está em peças osteológicas de indivíduos da espécie bovina, mais e durante mais tempo sujeita a violentos e contínuos esforços. Coadjuvando este registo com os resultados obtidos na observação da artrose, deduz-se que os animais bovinos da amostra teriam tido como objectivo principal o transporte e/ou de força motriz, não excluindo o seu uso como recurso alimentar.
Considerações finais O espólio faunístico exumado do povoado proto-histórico de Santa Olaia revelou-se bastante rico para uma interpretação paleoecológica e conhecimento dos hábitos agro-pecuários praticados durante a Iª e IIª Idade do Ferro, na região do Baixo Mondego, por populações autóctones com influência orientalizante. As alterações tafonómicas presentes são facilmente observáveis e de cariz bastante marcante. Algo esperado, no facto de estarmos a laborar com material que é o resultado de práticas alimentares, económicas e/ou rituais. O elevado estado de fragmentação prende-se com a natureza secundária da deposição dos restos osteológicos, aliada ao seu longo período de permanência no depósito, assim como o longo período desta, aliadas às diversas pressões a que o material esteve sujeito, para além da forte incidência por parte de agentes tafonómicos. A acção do fogo, será possivelmente o resultado de práticas culinárias e da eliminação dos restos que daí resultam. Este acto permitia que as fogueiras se mantivessem acesas por um maior período de tempo, dado que o fogo seria alimentado pelos ossos, material bastante carburante. 200
As patologias detectadas no decorrer do presente estudo são de índole degenerativa e crónica. Ao serem criados para fins alimentares e consequente aproveitamento dos seus produtos derivados, os animais eram abatidos em idade jovem, o que não permite que haja evidências de doenças que afectassem o tecido ósseo. Qualquer investigação, ao responder a determinadas questões, permite delinear novos projectos de pesquisa. Os resultados obtidos no decurso deste trabalho têm implicações em futuros estudos do material recolhido de Santa Olaia, do mesmo modo que na Arqueozoologia portuguesa, e que pretendemos continuar a investigar.
A FAUNA DE SANTA OLAIA: ESTUDO DO MATERIAL OSTEOLÓGICO RECOLHIDO NA INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA DE EMERGÊNCIA DE 1993-1994
Referências bibliográficas CARDOSO, João L. e SILVA, Carlos T. (2013). O casal agrícola da Idade do Ferro de Gamelas 3 (Oeiras). O Arqueólogo Português. Série V (2), pp. 353-398. DAVIS, Simon J. M. (1987). The Archaeology of Animals. Yale: University Press Yale. KARAGEORGHIS, Vassos e KASSIANIDOU, Vasiliki (1999). Metal working and recycling in late Bronze Age Cyprus – the evidence from Kition. Oxford Journal of Archaeology 18 (2). Blackwell Publishers Lda. MARTINS, Filipe (2020). Restos faunísticos de Santa Olaia (Figueira da Foz). Contribuição do património arqueofaunístico para o conhecimento da alimentação na 1.ª e 2.ª Idade do Ferro. Dissertação de Mestrado. Acessível em https://repositorioaberto. uab.pt/handle/10400.2/9994?mode=full MORENO-GARCÍA, M.; DAVIS, S. e PIMENTA, C. M. (2003). Arqueozoologia: Estudo da Fauna do Passado. In MATEUS, J. M. e MORENO-GARCÍA, M. (eds), Paleoecologia Humana e Arqueociências. Um Programa Multidisciplinar para a Arqueologia sob a Tutela da Cultura, (Trabalhos de Arqueologia 29). Lisboa: Instituto Português de Arqueologia. PEREIRA, Isabel (1994). Intervenção Arqueológica de Emergência em Santa Olaia e Ferrestelo (Figueira da Foz). Vol. I. Acessível na Biblioteca do Museu Municipal Santos Rocha. PEREIRA, Isabel (2009). As Actividades Metalúrgicas na I.ª e II.ª Idade do Ferro em Santa Olaia - Figueira da Foz. Conímbriga XLVIII, pp. 61-79. PINTO, Rodrigo (2014). A Fauna de Santa Olaia. Estudo do material osteológico recolhido na intervenção arqueológica de emergência de St.ª Olaia em 1993-1994. Acessível na Biblioteca do Museu Municipal Santos Rocha. ROCHA, Rogério Bordalo da et al. (1981). Carta Geológica de Portugal na escala de 1: 50 000. Notícia Explicativa da folha 19-C Figueira da Foz. Serviços Geológicos de Portugal, Lisboa. WALDRON, Tony (2009). Palaeopathology. Cambridge University Press, Cambridge.
201
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Elementos para o estudo da ocupação romana na foz do Mondego Elements for the study of roman occupation at the mouth of Mondego Marco Penajoia1
1
Museu Municipal Santos Rocha, Divisão de Cultura, Município da Figueira da Foz | arqueologia.museu@cm-figfoz.pt Univ Coimbra, Centro de História da Sociedade e da Cultura, FLUC | penajoia@fl.uc.pt
202
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
No intuito de melhorar o conhecimento inerente à ocupação romana do território da Figueira da Foz, apresenta-se uma breve revisão de alguns fragmentos cerâmicos depositados no Museu Municipal Santos Rocha. São colocados à discussão materiais identificados por Santos Rocha, bem como outros, provenientes de prospeções arqueológicas mais recentes. Estes são oriundos de sítios geoestratégicos, apresentando-se num quadro de dinâmica flúviomarítima, onde se enquadra o interface marítimo com o rio Mondego/Pranto e os seus paleoleitos associados. Nesse âmbito chamamos a atenção para os achados dos fornos da Pedrulha (Brenha) e Vale do Gonçalo (Alhadas), do Monte da Amoreira (Maiorca) e da Igreja Velha no Negrote (Alqueidão), a sul do território da Figueira da Foz.
In order to improve the knowledge inherent to the Roman occupation of the Figueira da Foz territory, is presented a brief review of some ceramic fragments deposited in the Santos Rocha Municipal Museum. Materials identified by Santos Rocha, as well as others, from more recent archaeological prospecting, are brought up to discussion. These materials come from geostrategic sites, and part of them are in a framework of seariver dynamics, which fits the maritime interface with the Mondego/Pranto river and its former associated watercourses. In this context we draw attention to the findings of the ovens of Pedrulha (Brenha) and Vale do Gonçalo (Alhadas), Monte da Amoreira (Maiorca) and the Igreja Velha do Negrote (Alqueidão), in the south of Figueira da Foz territory.
Palavras-chave: Foz do Mondego; Museu Santos Rocha; Ocupação Romana; Fornos; Almofariz; Dramont D2.
Keywords: Mouth of Mondego; Santos Rocha Museum; Roman Occupation; Ovens; Mortarium; Dramont D2. 203
ELEMENTOS PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO ROMANA NA FOZ DO MONDEGO
ALTITUDE
Figura 1 - Carta de localização dos sítios abordados com valor arqueológico. Modelo tridimensional de terreno, com base na sobreposição da rede hidrográfica atual, das áreas de máxima inundação e do cordão dunar, combinado com o conhecimento arqueológico atual. Reconstituição da linha de costa a partir dos trabalhos de Danielsen (2008) e Danielsen et al. (2008). Base cartográfica do Museu Municipal Santos Rocha. Câmara Municipal da Figueira da Foz/SIG.
Fornos romanos Santos Rocha identificou, mesmo em frente à estação arqueológica do Arneiro, num sítio denominado Pedrulha/Brenha (VA17), três fornos romanos, dois para cerâmica e um para cal, cortados pelas obras de alargamento da estrada ou de outras infraestruturas (Fig. 1). No Vale do Gonçalo/Alhadas, microtopónimo Terras da Fonte (VA18), apareceu outro forno para fabrico cerâmico (Rocha, 1897). 204
Parte do espólio que chegou aos nossos dias, referente aos fornos, não indicava a sua proveniência ou a que forno específico pertencia, levando a uma forte possibilidade de vários materiais estarem trocados. Assim, num primeiro momento, procedemos a uma análise criteriosa e respetiva comparação das descrições de Santos Rocha com as peças do acervo do Museu (Fig. 2 e Fig. 3).
ELEMENTOS PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO ROMANA NA FOZ DO MONDEGO
A
B
Figura 2 - Croquis de Santos Rocha relativos aos fornos, desenhados num caderno de notas com 14,3x10 cm (Rocha, 1896-1906). A e B - Forno 1: Pedrulha, Brenha; de morfologia circular com Ø de 3 m; destinado, à partida, para produção de tégulas.
205
ELEMENTOS PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO ROMANA NA FOZ DO MONDEGO
A
B
C
D
Figura 3 - Croquis de Santos Rocha relativos aos fornos, desenhados num caderno de notas com 14,3x10 cm (Rocha, 1896-1906). A e B - Forno 2: Pedrulha, Brenha; de morfologia circular com Ø de 3 m; para produção de cal. C - Forno 3: Pedrulha, Brenha; indicia uma morfologia quadrangular; para produção de imbrices. D - Forno de Vale do Gonçalo: Terras da Fonte, Alhadas; para produção de tégulas e imbrices.
206
ELEMENTOS PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO ROMANA NA FOZ DO MONDEGO
O segundo momento passou por analisar e tratar alguns materiais, verificar possibilidades de colagem, características funcionais e outras marcas que não foram registadas por Santos Rocha. Constatamos assim que: Se evidenciam fragmentos de tégulas com erros de produção (Forno 1? da Pedrulha); fragmento de adobe com marcas de cal (Fig. 4A) e madeira carbonizada (Fig. 4B). O fragmento de lar com agulheiro, que pela nossa análise corresponde a dois fragmentos, levantanos uma problemática ao nível da sua proveniência (Fig. 5). A observação efetuada leva-nos a propor a sua atribuição ao Forno de Vale do Gonçalo e não ao da Pedrulha, como estava estabelecido. Esta observação sai reforçada quando confirmamos as dimensões que
.
.
A
o arqueólogo figueirense fornece para o artefacto de Vale do Gonçalo: espessura 21 cm; Ø entre 3 cm e 4,5 cm, bem como a presença de um agulheiro (Rocha, 1897: 259-264). Outra situação pertinente diz respeito às marcas de agulheiros transversais que Santos Rocha refere. Apesar das medidas se aproximarem, não estamos certos de que estas marcas estejam ligadas aos agulheiros, podendo ser negativos de materiais perecíveis relacionados com a construção do forno, como aconteceu no forno de Santa Olaia (Rocha, 1971: 40-41). Este agulheiro apresenta parte da base estrutural. Assim, este fragmento poderia estar associado ao pavimento do forno que faz a transição do lar com o “laboratório” – zona de cozedura das peças.
B
Figura 4 (em cima) - Forno 2 da Pedrulha, fragmento de adobe com marcas de cal (A) e madeira carbonizada (B). Figura 5 (em baixo) - Forno de Vale do Gonçalo, fragmento de lar com agulheiro e possíveis marcas de agulheiros transversais.
207
ELEMENTOS PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO ROMANA NA FOZ DO MONDEGO
Figura 6 - Agulheiro pertencente ao Forno 3 da Pedrulha, apresenta possíveis marcas de material perecível e manchas de carbonização.
. O artefacto respeitante ao Forno 3 da Pedrulha
(Fig. 6), depois de analisado, observa-se que existe outro fragmento que o complementa evidenciando assim uma boa parte do agulheiro. Apresenta um aspeto totalmente carbonizado e possíveis marcas de incrustações de material perecível resultante da construção da parede do forno. Associado ao espólio dos fornos está também uma peça pseudo-quadrangular, atravessada longitudinalmente por um orifício cilíndrico (Ø 2 cm). Apresenta uma largura de 12 cm, altura de 11 cm e uma espessura máxima conservada de 10 cm. Fica em aberto o estudo desta peça (Fig. 7A). Os imbrices resultantes do Forno 3 denotam ser erros de produção, já que aparentam um excesso de cozedura. Revelam decoração digitada, que pode estar relacionada com a Antiguidade Tardia. A telha curva proveniente do Forno de Vale do Gonçalo, também parece evidenciar uma peça com erro de produção – excesso de cozedura e com uma fratura na face posterior. A amostra de opus signinum e os fragmentos cerâmicos de construção (canalização?) (Fig. 7B e C) que estão associados ao espólio dos fornos da Pedrulha levanta-nos alguns problemas: 1. A sua proveniência está atribuída (cota na reserva do Museu) como provinda da estação
.
. . .
208
da Pedrulha de Brenha. Efetuando uma revisão bibliográfica aos estudos de Santos Rocha e respetiva análise verificamos uma forte possibilidade de estes materiais serem antes originários da estação da Pedrulha/Alhadas. Esta hipótese ganha força, sobretudo pela descrição de Santos Rocha para este sítio na revista Portugalia, em que dá conta de “fragmentos de grandes telhões curvos” (Rocha, 1900: 593-595). O Catálogo Geral não é objetivo relativamente à proveniência, somente referindo “Pedrulha” (Rocha, 1905: 152). 2. Confirmando-se uma proveniência em contexto de fornos, teríamos aqui uma problemática relativa à sua aplicabilidade e funcionalidade. Santos Rocha define-os como “fragmentos de telhões romanos de cobrir canos” (idem). Que escala teria uma produção deste tipo de materiais? Uma produção local para uma necessidade pontual? Sabemos que as canalizações romanas utilizam materiais cerâmicos e de diversas tipologias para conceber estruturas em canal, sobretudo nas cidades (Triães et al., 2002 e Teixeira, 2012: 61). Estes materiais estão associados a hipocaustos ou a canalizações e saneamentos, nesse sentido temos alguns paralelos existentes em Conimbriga (análise às espessuras e diâmetros) relacionados com fragmentos de pavimento da suspensura das termas
ELEMENTOS PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO ROMANA NA FOZ DO MONDEGO
A
B
C
Figura 7 A - Peça pseudo-quadrangular, atravessada longitudinalmente por um orifício cilíndrico; B - Fragmento de opus signinum; C - Fragmento cerâmico de construção: canalização?
da casa de Cantaber, bem como das latrinas das termas sul (Alarcão e Étienne, 1977: 152). 3. A sua funcionalidade pode advir da própria conceção e arquitetura de um forno, visto que os elementos de canalização podem ser aqui utilizados para extrair gases evitando a respetiva entrada na câmara de cozedura (Santos, 2012). 4. O fragmento de opus signinum que está classificado como proveniente do Vale do Gonçalo levanta-nos muitas dúvidas, visto que é bastante problemática a sua relação com o espólio dos fornos. Não estará antes relacionado com a villa romana da Pedrulha/Alhadas? Mencione-se ainda, que as leis municipais romanas obrigam à construção de fornos cerâmicos fora dos perímetros urbanos. Normalmente estão perto das villae, nas zonas de estaleiro de construção. Quanto à tipologia destes fornos, segundo Alarcão (2004), pode enquadrar-se nos fornos de grelha, que teriam um pavimento em barro, o lar perfurado por crivos ou agulheiros, de modo que o forno consta de um andar inferior, a câmara de combustão ou caldeira, e de um superior, a câmara de cozedura. Fornos de tiragem vertical, nos quais o ar quente subia da câmara de combustão à cozedura, através de agulheiros, e saía por um orifício praticado no topo da cúpula, eram os mais comuns.
Os fornos podiam ser circulares ou retangulares, os primeiros mais adequados à cozedura de louça doméstica e os segundos, à de cerâmica de construção, situação em que se enquadra o terceiro forno da Pedrulha, provavelmente quadrangular e para produção de imbrices. Em Brenha, a continuidade da utilização de fornos de cozer telha foi evidente até há pouco tempo. Podemos verificar essa longa diacronia através do Catálogo Geral de 1905 (n.º 5505 – telha curva datada de 1767) e também pela sua marcação no registo cartográfico (Fig. 8). Não muito longe da zona destes fornos verifica-se, nas vertentes sul, solos propícios para matérias-primas e várias linhas de água essenciais nesta “indústria” poluente. É o caso das que abastecem o Vale de Sampaio e o Vale de Alfarelos, este último detentor de um microtopónimo relacionado com olarias. Analisando também os cadernos de campo de Mesquita de Figueiredo identificámos uma referência à estação arqueológica do Crasto/Tavarede que descreve o seguinte: “no corte da trincheira estão metidos vários troncos carbonizados, de que eu trouce alguns carvões, assim como um bocado de um agulheiro de um forno romano como os que já tenho da Pedrulha” (Figueiredo, 1898).
209
ELEMENTOS PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO ROMANA NA FOZ DO MONDEGO
Em Santa Olaia também temos a indicação de um forno cerâmico com o lar e uma fila circular de agulheiros, bem como as marcas da estrutura construída em vimes e revestida em argila (Rocha, 1971: 40-41). Outra referência a um forno de telha localizavase na Quinta do Ferrestelo, descoberto durante a abertura de uma passagem superior do IP3 (Pereira, 1998: 55-59). No que respeita a fornos de cal, existiram outros casos, ainda que sem uma cronologia definida. É o caso dos fornos adaptados a partir de dois dólmens existentes junto à capela de Santo Amaro na serra da Boa Viagem (Rocha, 1949: 194) onde recentemente surgiram mais vestígios.
Sítio arqueológico do Monte da Amoreira (Maiorca) Muito próximo de Maiorca, na margem direita do Mondego, está definida uma zona arqueológica que inclui três pequenos outeiros onde aparecem materiais romanos; de nascente para poente: Outeiro de Mosquitos, Monte do Cavalo e Monte da Amoreira (VA33). Neste último sítio foram recolhidos, em 1992 (prospeções do MMSR), materiais de construção, cerâmica comum e fragmentos de terra sigillata (Hispânica tipo Dragendorff 27 e 15/17). Estes três outeiros ficam junto ao Porto de Sanfins, lugar imemorial de atravessamento do rio, decalcado nos nossos dias pela ponte da A14. Estamos diante de uma posição natural, pautada por um claro estreitamento do estuário, que projeta uma zona de afunilamento do rio (tipo portagem). Este facto pode remeter-nos para uma realidade relacionada com características portuárias. Estas são bem evidentes junto às suas zonas baixas, já que apresentam reentrâncias propícias ao abrigo náutico. Na margem oposta fica a capela da N.ª Sr.ª da Saúde de Reveles, com uma localização geoestratégica muito sugestiva (Penajoia, 2012). 210
Sítio arqueológico da Igreja Velha do Negrote (Alqueidão) Deste sítio são provenientes os fragmentos de uma ânfora de tipologia Haltern 70, datável dos meados do século I a.C. a meados/finais do I d.C. (Fig. 9 A) e de um almofariz (mortarium) que se conservam na reserva de arqueologia do Museu. Analisando o almofariz verificamos que a entrada desta peça no acervo do Museu está registada no Catálogo Geral com o n.º 4374 e com a designação de “fragmento de um vaso” (Rocha, 1905: 140). Trata-se de um almofariz de tipologia Dramont D2, de fabrico centro-itálico e sem marca de oleiro conservada (Fig. 9B). Esta tipologia está relacionada com a abundante representatividade destes almofarizes provenientes do naufrágio, com o mesmo nome, sucedido na costa francesa. Este exemplar deverá enquadrar-se na época Flaviana conforme análise do bordo tipo 3 de Aguarod Otal (1991: 141) e nas semelhanças de um exemplar de Caeseraugusta (Idem, Ibidem: fig. 34-3). Descrição morfológica – Fragmento de bordo largo desenvolvido externamente e, espessado de secção amendoada. Paredes espessas de tendência hemisférica. Amplo vertedor, com canal de drenagem de forma troncopiramidal e flanqueado por dois sulcos oblíquos. Apresenta um Ø de 44 cm aproximadamente. Análise petrográfica – Executada no Laboratório de Petrologia (DCT-UC). Pasta globalmente de granulometria fina com coloração interior e exterior tendencialmente bege/rosada 5YR 8/4. Ao nível dos ENPS verificam-se minerais geralmente não angulosos e de calibre pequeno: micas; biotites; moscovite; quartzos; piroxenas alongadas e chamota. A zona de superfície aparenta um acabamento de engobe. Apresenta nas zonas laterais do vertedor e no reverso uma pasta bastante granulosa com matriz de quartzo com alguns nódulos de cal. Trata-se possivelmente de argamassa. Esta observação levanta a problemática em torno do segundo momento funcional desta peça. Estaria adaptada e consolidada
ELEMENTOS PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO ROMANA NA FOZ DO MONDEGO
3 cm
A
10 cm
B
Figura 8 (em cima) - Localização e permanência de um forno de telha, junto à área onde Santos Rocha interveio. Adaptado da Carta Militar de Portugal, Escala 1: 25.000, Folha 249, 1947. Figura 9 (em baixo) A - Ânfora Haltern 70 proveniente do sítio da Igreja Velha do Negrote; B - Almofariz (mortarium) tipo Dramont D2 proveniente do sítio da Igreja Velha do Negrote.
211
ELEMENTOS PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO ROMANA NA FOZ DO MONDEGO
numa estrutura ou, simplesmente, reaproveitada num qualquer aparelho construtivo local? Atualmente o estudo de almofarizes romanos começa a integrar uma especialidade dentro da ceramologia romana. Para além da cozinha poderia estar relacionado com “outras funções como as ligadas à obtenção de produtos medicinais ou de beleza (como por exemplo, a preparação de cremes e pinturas com fins de aplicação cosmética), ou à maceração de vísceras de peixes destinada à preparação de molhos do tipo garum ou de liquamen” (Sepúlveda et al., 2007: 256). O estudo destes almofarizes permite analisar a dimensão económica romana, apoiar a sua definição cronológica, bem como avaliar a dinâmica de aquisição de hábitos culturais itálicos (Silva, 2015: 1).
Considerações finais 1. O presente trabalho enquadra-se na organização e estudo de espólio museológico em reserva e proveniente de três sítios arqueológicos pouco explorados e com características de ocupação romana. 2. Procedemos ao levantamento de 19 artefactos cerâmicos respeitantes aos fornos da Pedrulha (Brenha) e Vale do Gonçalo/Terras da Fonte (Alhadas); 12 relativos à estação do Monte da Amoreira e 2 provenientes da estação da Igreja Velha do Negrote (Alqueidão). 3. Para além das características funcionais e produtivas que, por exemplo os fornos teriam, falta cruzar a organização espacial do povoamento romano na foz do Mondego e perceber onde estariam os recursos marinhos (Fabião, 2004). Nesse sentido, encetámos um ensaio de localizações e distâncias em linha reta entre algumas estações romanas neste território, onde a média ronda os 6 km. Analisando a geomorfologia do território fica evidente que a dinâmica flúvio-marítima, integrando o sistema hídrico Mondego/Pranto/ Arunca e os seus paleoleitos associados foram 212
cruciais, não só para o estabelecimento geoestratégico desta malha de povoamento, mas também para as vias de comunicação que seriam sobretudo de pendor náutico. 4. O almofariz de fabrico centro-itálico proveniente da Igreja Velha do Negrote é de facto uma peça ímpar, já que não se conhecem muitos em território nacional (Penajoia, 2020). Tratava-se de “uma peça indispensável dentro da cozinha romana e o seu uso é um bom indício do grau de romanização dos povos que o utilizam” (Aguarod Otal, 2017: 55). A análise petrográfica evidenciou uma possível adaptação estrutural desta peça visível através de vestígios de argamassa.
ELEMENTOS PARA O ESTUDO DA OCUPAÇÃO ROMANA NA FOZ DO MONDEGO
Agradecimentos
Aos Doutores Carlos Fabião, Carmen Aguarod Otal, Helena Catarino, Lídia Catarino, Virgílio Correia e José Ruivo. À equipa técnica do Museu Municipal Santos Rocha, ao Eduardo Oliveira e José Franco.
Referências bibliográficas AGUAROD OTAL, Carmen (1991). Cerámica común romana de cocina en la Tarraconense. Saragoça: Institución “Fernando el Católico”. AGUAROD OTAL, Carmen (2017). Cerámica común de mesa y de cocina en el valle del Ebro y producciones periféricas. In OCHOA, Carmen F.; MORILLO, Ángel y ZARZALEJOS, Mar (eds.), Manual de cerámica romana II: cerámicas romanas de época altoimperial en Hispania: importación y producción. Alcalá de Henares: Museo Arqueológico Regional, pp. 15-95. ALARCÃO, Jorge de e ÉTIENNE, Robert (1977). Fouilles de Conimbriga I, L’architecture. Paris: De Boccard. ALARCÃO, Jorge de (2004). Introdução ao estudo da tecnologia romana. Design de José Luís Madeira. Coimbra: Instituto de Arqueologia, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. DANIELSEN, Randi (2008). Palaeoecological development of the Quiaios-Mira dunes, northern-central littoral Portugal. Review of Palaeobotany and Palynology, 152 (1-2), pp. 74-99. DANIELSEN, Randi et al. (2008). Evolução da paisagem a norte do Cabo Mondego durante os últimos milhares de anos. In LOPES, F. C. e CALLAPEZ, P. M. (eds.), Por terras da Figueira. Figueira da Foz: Kiwanis Clube da Figueira da Foz, pp. 45-53. FABIÃO, Carlos (2004). Centros oleiros da Lusitania: Balanço dos conhecimentos e prespectivas de investigação. Actas del Congreso Internacional FIGLINAE BAETICAE. Talleres alfareros y producciones cerámicas en la Bética romana (ss. II a.C. - VII d.C.). Universidad de Cádiz, Noviembre 2003, B.A.R., int. ser., 1266, Oxford, pp. 379-410. FERREIRA, Ana e PINTO, Sónia (2017). Análise e Diagnóstico Património Classificado e Referenciado - Doc. final. Secção 2 Carta municipal de arqueologia. Divisão de Urbanismo, Subunidade de Planeamento, Divisão de Cultura, Município da Figueira da Foz. FIGUEIREDO, António M. de (1898). Caderno de campo n.º VII - 3 de Junho a 12 de Outubro [Manuscrito]. Acessível na Biblioteca do Museu Municipal Santos Rocha. PENAJOIA, Marco (2012). A Questão portuária em torno de Montemor-o-Velho: Estudo de Arqueologia. Colecção Memória e Identidade. Montemor-o-Velho: Câmara Municipal.
PENAJOIA, Marco (2020). Um almofariz centro-itálico na Foz do Mondego. In ARNAUD, José M.; NEVES, César e MARTINS, Andrea (coords.), Arqueologia em Portugal 2020. Estado da Questão. Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, pp. 1323-1333. PEREIRA, Isabel (1998). Intervenção arqueológica de emergência em Santa Olaia e Ferrestelo. Relatório Vols. 1, 2 e 3. Figueira da Foz: IPPAR. ROCHA, António S. (1897). Fornos Luso-Romanos da Freguezia de Brenha. Memórias sobre a Antiguidade. Figueira: Imprensa Lusitana, pp. 259-264. ROCHA, António S. (1896-1906). Apontamentos archeologicos [Manuscrito]. Acessível na Biblioteca do Museu Municipal Santos Rocha. ROCHA, António S. (1900). Estação luso-romana da Pedrulha. Portugalia, I (3), Porto, pp. 593-595. ROCHA, António S. (1904). Estação luso-romana da Pedrulha, Boletim da Sociedade Arqueológica Santos Rocha, n.º 1, Sessão plenária de 28 de Outubro de 1900. Figueira: SSASR, pp. 15 e 16. ROCHA, António S. (1905). O Museu Municipal da Figueira da Foz. Catálogo Geral. Figueira da Foz: Imprensa Lusitana. ROCHA, António S. (1949). Memórias e Explorações Arqueológicas, Vol. I: Antiguidades Pré-Históricas do Concelho da Figueira da Foz. Coimbra: Imprensa da Universidade. ROCHA, António S. (1971). Memórias e Explorações Arqueológicas, Vol. II: Estações Pré-romanas da Idade do Ferro nas vizinhanças da Figueira. Coimbra: Imprensa da Universidade. ROCHA, Artur (2016). Peça do mês: almofariz. Museu do dinheiro, 01/24. Lisboa: Banco de Portugal. SANTOS, Cézar R. dos (2012). As cerâmicas de produção local do centro oleiro romano da Quinta do Rouxinol. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras. Dissertação de Mestrado em Arqueologia. SILVA, Rodrigo B. (2015). Um almofariz itálico com “marca de oleiro” de M. COMINIVS SATVRNINVS, de Lisboa. Estudos e relatórios de Arqueologia Tagana, n.º 4. Lisboa: ed. de Autor. SEPÚLDEVA, Eurico et al. (2007). Cerâmicas romanas do lado ocidental do castelo de Alcácer do Sal, 5: almofarizes de produção bética, pesos e cossoiros. Revista Portuguesa de Arqueologia, vol. 10, n.º 2. Lisboa, pp. 255-284. TEIXEIRA, Hélder (2012). Sistemas de abastecimento e drenagem de água a Bracara Augusta: aquedutos, canalizações e cloacas. Univ. do Minho, Inst. de Ciências Sociais. Relatório de Estágio - Arqueologia. TRIÃES, Ricardo; CORREIA, Virgílio e COROADO, João (2002). A utilização dos materiais cerâmicos de construção. Conimbriga, XLI, pp. 153-164.
213
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Um farol romano na foz do rio Mondego? A roman lighthouse at the mouth of the river Mondego? Vasco Gil Mantas1
1 Universidade
214
de Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos | vsmantas@gmail.com
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
O estudo da navegação romana no Atlântico ganhou nos últimos anos a importância devida. Trabalhos arqueológicos no forte de Santa Catarina detectaram restos de época romana, cuja localização sugere a existência no local de um pequeno farol. A possibilidade de se tratar de um farol é apoiada pelo seu enquadramento natural, pouco propício para outro tipo de edificações, e pela necessidade de sinalizar a embocadura de um rio de antiquíssima e importante utilização náutica.
The study of Roman navigation in the Atlantic has gained significant importance in recent years. Archaeological works at the Santa Catarina Fort have detected remains of Roman Period, the location of which suggests the existence of a small lighthouse. The possibility of being a lighthouse is supported by its natural setting, not suitable for other types of buildings, and the need to signal the mouth of a river of ancient and important nautical use.
Palavras-chave: Forte de Santa Catarina; Faróis romanos; Lusitânia; Atlântico.
Keywords: Santa Catarina Fort; Roman Lighthouses; Lusitania; Atlantic. 215
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
O reconhecimento de tráfego marítimo significativo no litoral português na Época Romana só muito lentamente se impôs, em parte contrariado por velhos preconceitos em relação à capacidade romana em desenvolver actividades marítimas, desde logo um evidente absurdo (Parker, 1990: 35-346), em parte devido às dificuldades próprias da exploração em águas atlânticas, tudo complicado pela debilidade longamente revelada pela arqueologia portuguesa nesta área particular do conhecimento. É verdade que os testemunhos visíveis da navegação romana nas nossas águas também eram escassos, facto que afastava o interesse dos investigadores de um tema aparentemente pouco promissor. Provável consequência infeliz desta situação pode ser o alheamento dos especialistas estrangeiros a propósito do que se tem escrito em Portugal, mesmo quando publicado fora do país. Apesar de permanecerem limitados os testemunhos directos da navegação romana no litoral português, destroços de naufrágios e instalações portuárias, a continuidade das pesquisas não deixará de conduzir a novos achados, como a recente descoberta de um porto romano no sítio do grande estabelecimento de Boca do Rio, no Algarve1, demonstrou exemplarmente. A prospecção recorrendo a ROV ao largo da costa, meios hoje disponíveis com alguma facilidade, não deixará de permitir detectar naufrágios em águas profundas, os quais, mais bem conservados, contribuirão decisivamente para alargar o que se vai sabendo sobre a navegação comercial romana no litoral lusitano, onde a foz do Mondego seguramente constituiu um ponto importante, já então com um historial marítimo muito anterior, evidenciado pelo sítio orientalizante de Santa Olaia (Pereira, 1996: 60-65; Arruda e Vilaça, 2006: 31-58).
1
Os vestígios incluem um cais com cerca de 40 m de extensão, dotado de anéis de amarração e de uma rampa. A escavação decorre com coordenação das universidades do Algarve e de Marburgo.
216
Os recentes trabalhos de requalificação do forte de Santa Catarina, na Figueira da Foz (AA.VV., 2019), permitem retomar a questão da navegação romana neste sector da costa em resultado da identificação de estruturas que, na nossa opinião, podem representar o que subsiste de um farol antigo. Como hipótese, e assim apresentamos o resultado da nossa reflexão, a existência de um pequeno farol na embocadura do Mondego parece-nos perfeitamente aceitável. Que na região existia gente com capacidade para construir um edifício desse tipo pode deduzir-se do facto de G. Sevius Lupus (Fig. 1), construtor do célebre farol da Corunha (Brigantium), ser natural de Coimbra (Aeminium), o que é aceite pela generalidade dos investigadores (Le Roux, 1990: 33-45; Hutter e Hauschild, 1991). Com isto não estamos, naturalmente, a sugerir qualquer intervenção do arquitecto numa obra que apresentamos como hipotética, pois apenas desejamos sublinhar os contactos do porto flúviomarítimo eminiense com o mundo da navegação e a inerente capacidade local para edificar um farol. A tipologia dos faróis romanos era relativamente variada, embora obedecesse a princípios simples. Normalmente consistiam numa torre, escalonada ou não, de planta quadrangular, poligonal ou, mais raramente, circular, caracterizando-se a construção da maior parte deles pela austeridade própria das estruturas utilitárias. Conhecem-se várias dezenas de faróis, através de referências escritas, iconográficas ou de ruínas mais ou menos conservadas, a maior parte deles na área mediterrânica e quase todos de cronologia imperial ou com renovação nesse período (Mantas, 2005: 177-222). Alguns investigadores adoptaram uma posição hipercrítica quanto aos faróis, defendendo que inicialmente eram apenas torres servindo como balizas diurnas à navegação, só começando a sustentar fogos de sinalização por meados do século I a.C., o que não parece credível. Não devemos esquecer que, na falta de testemunhos arqueológicos, a maior parte das referências, de qualquer tipo, apenas alude aos
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
Figura 1 - A inscrição consagrada por G. Sevius Lupus, construtor do farol da Corunha (CIL II 2559).
grandes portos, como Alexandria ou Óstia, ou a locais por alguma razão merecedores de distinção na Época Romana, como Esmirna, cujo farol se conhece apenas através de dois epigramas, nada ou praticamente nada existindo sobre uma multidão de sítios portuários, que só na área mediterrânea ultrapassam quatro centenas com alguma importância (Lehmann-Hartleben, 1923: 240-287; Oleson e Hohlfelder, 2011: 809-810). A finalidade dos faróis romanos diferia um pouco da que determina a construção dos faróis
modernos, ainda que exercessem a mesma função de identificação de pontos de interesse para os navegantes. Podemos repartir a totalidade dos faróis romanos por dois grandes grupos no que toca às suas funções essenciais: um primeiro grupo constituído por faróis portuários e um segundo, bastante menos numeroso, destinado a sinalizar acidentes geográficos particularmente importantes para a navegação, como cabos, estreitos ou embocaduras de rios. Assim, podemos considerar que a maioria dos faróis construídos na Época Romana eram estruturas destinadas a indicar a posição de pontos que os navios deviam demandar, e não, como sucede com frequência na actualidade, sinais de perigo a evitar, ainda que este aspecto não fosse ignorado. Plínio-o-Velho destacou a dupla função da farolagem, relacionando-a, todavia, com o acesso aos portos em segurança, quando escreveu a propósito do farol de Alexandria: “Serve para dar a direcção durante a noite aos navios, para entrarem no porto e evitarem bancos de areia e recifes. À semelhança deste há muitos fanais acesos com a mesma finalidade, nomeadamente em Puteoli e em Ravena” (Plínio, NH. 5.62). Embora se levantem dúvidas quanto aos sistemas de iluminação e aos combustíveis utilizados (Mantas, 2005: 42-44), o que dependia em parte da monumentalidade do edifício e da região onde foi levantado, a simples existência destes continuadores do seu grande arquétipo de Alexandria (Adam, 1995: 26-31; Leão e Mantas, 2009: 109-125), revela um aspecto da maior importância na prática náutica romana que é o da navegação nocturna regular, que não foi desconhecida no Atlântico. São ainda poucos os faróis seguramente identificados ou sugeridos no litoral hispânico entre Cádis e a Corunha, o último dos quais continua a funcionar, com o aspecto que ganhou no final do século XVIII. Dos faróis romanos mais antigos conhecidos, ainda que um deles sugira alguma prudência na identificação, dois foram construídos na Península Ibérica, não em portos, mas sim junto à embocadura 217
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
Figura 2 - Chipiona, na Andaluzia, onde foi construída a desaparecida Turris Caepionis. Fotografia: Objctivo Aéreo.
de rios importantes para a navegação, o Baetis (Guadalquivir) e o Callipo (Sado), circunstância relevante no que se refere à nossa proposta para a foz do Mondego. Referidos por Estrabão (Estrabão, 3.1.9; 3.3.1), ambos pertencerão à Época Republicana, ainda que só no caso do primeiro possamos afirmá-lo com segurança. A sua localização não suscita problemas de interpretação, atendendo ao significado económico das regiões em que foram construídos e à importância dos centros portuários que existiam no curso inferior dos referidos rios, caso de Hispalis (Sevilha) e de Salacia (Alcácer do Sal). O farol na antiga foz do Guadalquivir foi construído por Cepião, cerca do ano 100 a.C., 218
o que se reflecte no topónimo actual do local, Chipiona (Fig. 2). Na costa portuguesa o geógrafo assinala, ainda que num passo um tanto estropiado, uma torre (υργοσ – turris) junto à barra do Sado, possivelmente no Outão, frente ao Mar de Ancão, abundante em cepos de âncora de Época Romana (Alves, 1988-1989: 109-185; Gomes e De Man, 2013: 168-171). Outro local onde parece possível reconhecer os restos de um pequeno farol de Época Romana é na Berlenga Grande, local perigoso mas que simultaneamente oferece um ancoradouro seguro ao abrigo da nortada. Não cabe no âmbito deste texto pormenorizar a arqueologia dos faróis nem alargar a análise
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
Figura 3 - Relação distância/custo da rota atlântica e através do Mediterrâneo e rios continentais (apud Grenne).
a outros possíveis testemunhos existentes no litoral português, cuja frequência, de cabotagem ou oceânica, exigia tais apoios. O inegável valor económico do território como exportador de matérias-primas processadas ou não, em grande parte só deslocáveis por via aquática, não permite questionar a existência de uma estrutura de suporte a actividades marítimas em larga escala, que se vislumbra na estrutura social de determinados centros portuários. Aceite definitivamente como uma realidade a navegação atlântica romana, podemos tentar compreender as suas grandes linhas, apesar das dúvidas que ainda persistem sobre a forma como funcionava, cabendo ou não a Olisipo (Lisboa) a função de grande porto de ruptura de cargas, como último porto mediterrânico (Cunliffe, 2001: 562). Antes de mais há que ter em conta o custo muito menor do recurso à via atlântica para os transportes
logísticos destinados aos efectivos romanos na Britânia e na Germânia Inferior (Grenne, 1986: 40-41), logo evidenciado em relação a trajectos mistos Mediterrâneo-Continente (Fig. 3), isto apesar de se tratar de uma via potencialmente mais difícil quanto às condições gerais e ao regime de ventos no período de navegação fora do mare clausum tal como as fontes o estabeleceram (Apuleio, Met. 9.15-17; Vegécio, Epit. 4.39). Os vestígios de naufrágios, ainda que parcos, distribuídos entre a República e o Baixo-Império, vão confortando a regularidade dessa navegação, fosse ela de grande cabotagem ou de longo curso, como parece ter acontecido em grande parte, as duas necessitando de estruturas de apoio em terra, entre as quais os faróis, mesmo sem a dimensão do que se levantou na Corunha, se revelavam da maior importância.
219
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
As fontes antigas sobre a costa entre o Cabo da Roca (Promontorium Lunae vel Magnum vel Olisiponensis) e a foz do Mondego (Ostia flumen Mundae) não são particularmente elucidativas. Se o complexo de portos lagunares da Extremadura e o fundeadouro da Berlenga Grande (Londobris) permitiam abrigo seguro quando necessário ou simplesmente como escala habitual, daí para Norte a costa é desprovida de acidentes favoráveis à navegação, caracterizandose pela existência de praias batidas pelos ventos dominantes, como a nortada dos meses estivais. Era uma faixa sem povoações importantes e em grande parte à margem de caminhos relevantes, com excepção da estrada Olisipo-Eburobrittium-CollipoConimbriga, que depois de Alfeizerão (Araducta?) recolhia o seu traçado, afastando-se do litoral (Mantas, 2012: 253-258). As informações dos geógrafos antigos são parcas, limitando-se praticamente a indicar os dois pontos extremos do sector. É de sublinhar que Ptolomeu e o seu seguidor Marciano de Heracleia atribuem ao referido litoral uma extensão limitadíssima (Ptolomeu, 2.5.3; Marciano, 2.13), que o segundo destes autores, seguindo o sistema de Protágoras, indica como sendo entre 150 e 120 estádios, exactamente o mesmo valor considerado para o espaço que separa a Cabo da Roca da foz do Tejo. Como é evidente um erro por defeito desta magnitude não é fácil de explicar, embora a acentuada inflexão sofrida pelo eixo viário em que Ptolomeu situa Aeminium e Talabriga, muito a oriente no interior da província, possa explicar esta discrepância, ao levar a encurtar drasticamente o espaço costeiro (Fig. 4). Todavia, o que nos interessa é que esta faixa litoral é um vazio, se exceptuarmos a referência de Mela aos Túrdulos, de pouco valor para o que importa apesar de sugerir velhos contactos marítimos, e de indicar, o que é mais interessante, que a foz do Mondego se situa mais ou menos equidistante do Cabo da Roca e do rio Douro (Mela, 3.8), informação que contraria convenientemente os dados dos geógrafos 220
que referimos antes e que se aproxima da realidade, sugerindo a identificação do referido cabo com o Promontorium Magnum. Ainda que outros rios sejam indicados nas fontes geográficas antigas, a inclusão da foz do Mondego entre os pontos importantes da costa, sublinhada por Mela, explicase por se tratar de um rio permitindo o acesso directo a Aeminium, sem esquecer que o tornava mais fácil também para Conimbriga. Desta forma, a presença de um farol na embocadura do Mondego entende-se como normal. Que tipo de navegação frequentava esta costa e o curso inferior do Mondego? Justificar-se-ia a edificação de um farol na foz do rio? Esta última pergunta encontra facilmente resposta no que dissemos sobre as características pouco acolhedoras da costa, exigindo balizas para a navegação nocturna, sobretudo tratando-se de sinalizar a barra de um rio conduzindo a uma cidade que constituía um fulcro de comunicações terrestres e aquáticas, entre o interior e o litoral e entre o Sul e o Norte do território, centro de actividades económicas relevantes. O desenvolvimento de Aeminium remonta ao início do Principado e afirma-se ao longo do século I, como demonstra inequivocamente o seu fórum (Mantas, 1992: 487-513; Alarcão et al., 2017: 131-146). A riqueza em minérios do hinterland eminiense, nomeadamente da zona de Arganil, onde são impressionantes os vestígios de explorações mineiras antigas, em grande parte de Época Romana, explica a fortuna da cidade, devendo o produto das explorações ser escoado pelo rio Alva e depois pelo Mondego até Aeminium, e daí para o mar. Apesar de ainda pouco numerosos os sítios com ocupação romana junto ao curso do Mondego, a jusante de Coimbra (Alarcão, 1988: 93-97, folha 3c), o que reflectirá as características do rio e do seu caprichoso regime, temos provas de actividades marítimas ainda na Época Republicana, como demonstra o achado de ânforas Dressel 1A e cerâmicas Campanienses A, talvez sinalizando um
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
Figura 4 - Reconstituição do litoral setentrional da Lusitânia segundo as coordenadas ptolomaicas.
naufrágio na zona de Maiorca, grosso modo entre 140 e 130 a.C., período correspondente à campanha de Décimo Júnio Bruto (Imperial, 2017: 15-31). Ainda que posterior, a presença militar romana na zona de Arganil, no século I a.C., comprova a antiguidade e continuidade do valor do eixo Mondego-Alva como via de penetração privilegiada numa área de significativo valor económico (Fabião, 1989; 1993, 190-192). Muito ao largo da Figueira da Foz temos notícia de um naufrágio, com recuperação de dolia e ânforas, estas de tipo não registado (Cortez, 1957: 120-121), impossibilitando a datação do mesmo. Identificado a cerca de 130 m de profundidade, o navio encontrar-se-ia a uns 30 Km da costa, sugerindo tratar-se de um caso de navegação de longo curso em alto-mar.
Os trabalhos de beneficiação da zona envolvente do forte de Santa Catarina, iniciados pela Câmara Municipal da Figueira da Foz em 2013, levaram, naturalmente, a desenvolver um programa de requalificação e restauro do próprio forte, executado pela empresa In Situ sob projecto do arquitecto Ricardo Vieira de Melo (Melo, 2019: 60-90). O referido programa incluiu sondagens arqueológicas no interior da fortaleza, em 2015, dirigidas por Pedro Roquinho (Roquinho, 2019: 42-47). Foi durante esta acção que se descobriram, apesar da limitada área onde foram abertas as sondagens, no pátio do forte, os materiais e restos de construções que suscitaram a hipótese que apresentamos. Pena foi que as sondagens tenham sido necessariamente limitadas pela cota estabelecida para a obra, problema usual neste tipo de trabalhos arqueológicos. 221
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
Figura 5 - A torre em Santa Catarina no Atlas de Pedro Teixeira Albernaz (Österreichische Nationalbibliothek).
222
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
Figura 6 - Fotografia dos anos 40 do século passado, destacando a implantação quase peninsular do forte. Coleção Casa Havanesa. Fundo Arquivo Fotográfico Municipal da Figueira da Foz.
Embora o forte de Santa Catarina remonte a uma data posterior a 1599, como sugere a documentação de 1598 respeitante à construção de uma nova ermida, que o ignora, e a imagem do local no Atlas de Pedro Teixeira Albernaz, cartógrafo que o não representa nem refere (Pereda e Marías, 2003: [64] 337), terminado em 1634 mas cujo levantamento de dados é alguns anos anterior. O Atlas mostra claramente uma torre (Fig. 5), identificada pelo hagiotopónimo, impossível de corresponder à capela atribuída a Mateus Rodrigues, alvo de renovação em 1639, de acordo com a inscrição que se conserva sobre a porta. Seja como for, parece segura a existência de uma ermida levantada sobre os rochedos da barra do Mondego, talvez desde o século XIV, segundo tudo leva a crer construída sobre estruturas arruinadas muito
anteriores, em parte romanas, como provam os materiais encontrados nas sondagens, em especial a significativa presença de tegulae e imbrices, de fragmentos de cerâmica comum e de um prato em sigillata hispânica, bem como de um colo de ânfora Lusitana 3, tudo com uma cronologia que aponta para um horizonte temporal dos séculos I e II. Até aqui poderíamos aceitar que o sítio, ainda que pouco propício para habitar (Fig. 6), teria conhecido um qualquer edifício de pequenas dimensões e ignota finalidade, preferencialmente marítima. Todavia, as sondagens permitiram determinar outro aspecto particularmente importante da ocupação antiga do sítio do forte de Santa Catarina. Com efeito, rebaixando o terreno em torno da capela, foi possível verificar que o embasamento do edifício sacro é constituído pelo que restou de um muro romano, 223
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
formando um ângulo recto a Sul e sugerindo uma estrutura de planta quadrangular, com cerca de sete metros de lado, sobre a qual se terá levantado a capela original (Roquinho, 2019: 43-46). Que aspecto teria esta? Se tivermos em consideração a figura delineada por Pedro Teixeira Albernaz, que no local do forte mostra indiscutivelmente uma torre (Mantas, 2019: 17-18), podemos sugerir que a capela mais antiga teria reutilizado uma estrutura preexistente, turriforme. Se é certo que os desenhos do cosmógrafo mostram algum convencionalismo, como é habitual na matéria, podemos aceitar que a representação de uma torre corresponde a uma realidade, sem que possamos atribuir-lhe dimensões exactas ou esperar uma representação realista. Também a imagem de Buarcos transmitida por Daniel Meisner, falecido em 1624, embora algo fantasista, mostra no sítio do forte uma construção alongada encostada a uma torre (Fig. 7), corroborando o que foi representado pelo cosmógrafo português (Meisner, 1638: D95).
A sondagem efectuada entre a capela e o baluarte Norte pôs a descoberto um conjunto de muros desenhando um U. Destes, o muro situado a Sul ultrapassava a muralha e mostra uma estrutura e orientação diferentes, ambas coincidentes com o embasamento da capela. Junto ao referido muro foram encontrados alguns silhares, provenientes de derrubes, de acordo com Pedro Roquinho (Roquinho, 2019: 45). Apesar do sector se encontrar muito perturbado por construções e reutilizações posteriores, podemos, de acordo com o responsável dos trabalhos, admitir a existência de uma estrutura associada à que terá existido no local da capela (Fig. 8). Porém, como este muro não liga de forma evidente com o que segue para Norte, não excluímos uma outra hipótese. Com efeito, se fosse possível determinar que o muro em questão se prolongava para Nordeste seria admissível considerar que a estrutura quadrangular que precedeu a capela constituísse o núcleo interior do edifício, a exemplo de outros faróis romanos,
Figura 7 - Pormenor da gravura de Daniel Meisner, com várias estruturas no local do forte.
224
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
Figura 8 - Planta dos muros romanos identificados na escavação efectuada no forte (apud Roquinho).
como o da Corunha (González-Moro e Caballero Zoreda, 2009: 193-227). Desta forma a planta da torre corresponderia a um quadrado de cerca de 18 m de lado, ou seja, 60 pés, o que autoriza uma altura sobre o mar não inferior a 50 m, uma vez que a plataforma de base se situa 8 m acima do nível das águas. Contra esta hipótese levantase, porém, o problema da espessura dos muros, aparentemente insuficiente para um tal edifício (Roquinho, 2019: 46). É evidente que, a existir um muro perimetral, o possível farol seria uma estrutura de alguma imponência, não contrariando a imagem da torre transmitida pelo Atlas do cosmógrafo português, cuja representação do farol da Corunha, tal como se encontrava no século XVII, é correcta (Pereda e Marías, 2003: [45] 328). Assim, concordamos com Pedro Roquinho ao considerar a presença de duas construções independentes (Roquinho, 2019: 45-46).
Desenvolvendo a nossa hipótese, vemos na estrutura representada pelo muro paralelo à capela os vestígios de um edifício secundário, de apoio ao possível farol, sobretudo se este fosse uma estrutura de construção relativamente simples. O desenho quadrangular da planta do edifício sobre o qual se levantou a capela, embora a tipologia dos faróis conte com diversas soluções, sugere uma datação que se coaduna com os materiais provenientes das sondagens. Com efeito, os faróis de planta poligonal parecem mais vulgares no período anterior aos finais do século I, sobretudo na área atlântica, enquanto depois se vulgarizam edifícios de planta quadrangular (Mantas, 2005: 44-46), como seria este do Mondego. Todavia, há que ter em conta a maior ou menor complexidade da construção, aconselhando para estruturas menores uma planta mais simples. Ainda em 225
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
relação ao embasamento da capela é de notar a espessura das paredes que se levantaram sobre os muros romanos, exagerada para um edifício de tão reduzidas dimensões, pois orça pelos quatro pés romanos (1,20 m), reflectindo a existência de uma construção anterior de maiores dimensões. Gostaríamos de ter mais e melhores dados para firmar a hipótese que aqui apresentamos. Porém, como escreveu John Bradford e gostamos de recordar, a imaginação controlada é a base da investigação arqueológica (Bradford, 1957: VIII). A área urbana da Figueira da Foz é parca em testemunhos da Época Romana, o que pode ser invocado contra a possibilidade da existência de um farol, que deveria ter deixado, pelo menos na sua proximidade, outros vestígios. Não esqueçamos que, neste caso, o que interessava era indicar à navegação nocturna a presença da embocadura do estuário do Mondego, seguramente diferente da sua configuração actual, independentemente da existência de alguma povoação nas cercanias do farol. Passada a barra, o estuário conduzia a montante à chamada Goleta, quase a verdadeira barra, pelo que o farol indicaria não um acidente a evitar mas sim o local para entrar no rio depois da aterragem, rio cujo porto mais importante antes de Aeminium se situava junto a Montemoro-Velho, onde os vestígios romanos não faltam (Penajoia, 2011), dando continuidade ao surgidouro de Santa Olaia. A implantação do edifício, sobre um espigão rochoso onde o espaço disponível era limitado e que constituía uma pequena península rodeada pelo mar recorda a de outros faróis, como o de Chipiona, na foz do Guadalquivir, construído sobre uma plataforma rochosa quase ao nível do mar, submersa na actualidade, do qual hoje não subsistem quaisquer restos. Também neste caso não existia ali povoação e o objectivo do farol consistia em indicar a embocadura, sem esquecer a presença de rochas submersas aconselhando cautela a qualquer manobra nocturna para ingressar no rio. 226
Esta situação é muito parecida com o que poderá ter acontecido na foz do Mondego, com a diferença, essencial, que no caso de Chipiona temos um testemunho escrito antigo: Ali também se encontra a Torre de Cepião, construída sobre uma rocha que o mar banha por todos os lados. Esta obra admirável foi construída à semelhança do farol de Alexandria para evitar a perdição dos navegantes; porque para além dos bancos formados pelos aluviões do rio, há nestas paragens rochas submersas, de forma que é necessário um sinal visível de longe. (Estrabão, 3.1.9).
Fizemos já algumas referências ao que poderia ser o aspecto do farol (Fig. 9), baseando-nos nos dados disponíveis no terreno. Posta de lado a possibilidade de se tratar de um edifício de grandes dimensões, que eventualmente teria deixado mais vestígios, podemos considerar uma torre de planta quadrada, com as medidas da capela de Santa Catarina, cerca de 6,75 x 6,75 m, que bem pode ser o que Pedro Teixeira Albernaz representou. Atendendo a que o farol se destinava a indicar a entrada no estuário do Mondego não poderia ter sido construído noutro local, não havendo vantagem em situá-lo num ponto mais alto, afastando-o da posição ideal para sinalizar a barra. Esta circunstância ficou sublinhada no relatório sobre o forte redigido em 1893, referindo que o farolim aí existente: […] “se presta optimamente pela sua situação sobre a barra, ao fim que desempenha” (Silva, 2019: 34). Tudo o mais que possamos adiantar carece de fundamento seguro, caso da altura da torre e do sistema de iluminação, provavelmente uma bacia em pedra ou metálica, talvez protegida, onde se queimaria o combustível para fornecer uma chama visível a algumas milhas de distância. Recordamos que mesmo nos faróis que melhor se conservaram pouco ou nada se sabe sobre o sistema de iluminação, que nalguns raros casos podia ser sofisticado, uma vez que todos eles perderam a estrutura correspondente, no topo do edifício. Mesmo assim, considerando as dimensões da base, a torre poderia atingir 20 m de elevação até à plataforma superior, o que colocava o foco luminoso
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
Figura 9 - Proposta de reconstituição como farol dos restos de estruturas romanas identificadas no forte.
227
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
Figura 10 - Planta dos restos do farol romano da Berlenga Grande (apud Bugalhão e Lourenço).
a uns 28 m acima do nível do mar, garantindo-lhe razoável visibilidade ao largo. Admitindo que o farol fosse de construção simples podemos, talvez, invocar os restos identificados e escavados na ilha Berlenga por Jacinta Bugalhão e Sandra Lourenço, que sugeriram tratar-se de vestígios de um pequeno farol, como também cremos. Levantado num ponto dominante da ilha, 50 m acima do nível do mar, no sítio denominado Moinho (Bugalhão e Lourenço, 2011: 210-214), assentava numa plataforma em parte natural, suportando um edifício de planta quadrada, com 9,50 m lado rodeando um corpo menor, também quadrangular, com 4,50 m de lado. A espessura dos muros conservados é de 0,60 m, ou seja, 2 pés romanos, revelando uma construção de alguma robustez (Fig. 10). Considerando a tipologia e a 228
implantação da estrutura, cuja escavação facultou exclusivamente cerâmica romana da transição da Era, não podemos deixar de apoiar a proposta das responsáveis pela escavação. Perante a cronologia dos materiais julgamos que o farol possa ter sido levantado por altura das campanhas de Augusto no Noroeste peninsular, com a finalidade principal de auxiliar a navegação de longo curso com carregamentos logísticos destinados às tropas aí empenhadas. Os naufrágios identificados em Peniche e, eventualmente, em Esposende (Bombico, 2008; Morais, 2013: 309-331), concordam perfeitamente com esta proposta. A existência de faróis ao longo da costa era muito conveniente e outros acabarão por ser identificados, não necessariamente idênticos ao da Corunha, também relacionado com necessidades logísticas, mas de outra frente (Fig. 11).
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
Figura 11 - Mapa da localização dos faróis romanos no litoral atlântico da Península Ibérica.
229
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
Aceite como normal a presença de torres e fachos medievais na nossa costa, ainda que maioritariamente destinados a controlar navegação hostil, realidade presente até ao século XIX, não se compreendem as reticências colocadas por numerosos investigadores à existência de faróis mais numerosos que aqueles que podemos conhecer por vestígios directos ou indirectos. Cremos que o famigerado efeito de finisterra, exagerado e deturpado por várias razões, mas infelizmente muito presente na investigação peninsular, tem pesado bastante nessa posição. Cabe aqui perguntar, porque não há respostas sem perguntas preliminares, se os perigos da navegação atlântica, que em grande parte era navegação servindo interesses estatais, estratégicos ou económicos, não justificariam, pelo contrário, a elevação de faróis regularmente espaçados e, sem dúvida, nos pontos sensíveis para essa navegação. Em termos de pragmatismo romano e de lógica marinheira parece-nos perfeitamente possível. Talvez a pesquisa nos locais onde se levantaram os faróis portugueses permita surpresas interessantes (Alarcão, 2009: 109-114), sobretudo quando esses faróis se posicionam em locais de pertinente interesse para a navegação antiga. Como os estudos sobre ânforas conduziram a uma imagem renovada da navegação romana na Lusitânia, graças à descoberta de centros produtores de enorme dimensão, à escala da economia imperial do mundo antigo, assim a conclusão obrigatória a extrair desta realidade, que pressupõe exportação massiva, é a de que a rota atlântica foi potencializada (Fabião, 2009: 53-68), ainda que, em grande parte, por razões de ordem logística, redobrando a necessidade de apoios à navegação. O facto de, na Idade Média, as laranjas de Setúbal atingirem os portos ingleses a tempo das feiras de Natal, portanto nos finais de Outono, devia sugerir a muitos investigadores reflexão mais profunda sobre o que poderia ter existido na Época Romana (Cunliffe, 2001: 104-105, 538-541). Afinal, uma reflexão menos condicionada pela obsessão do conceito de finisterra, que muitos hispano-romanos, 230
como Lúcio Séneca, minimizavam (Séneca, Med. 375-379). A proposta que aqui apresentamos2, embora careça de mais argumentos materiais, que a própria localização do sítio poderá ter feito desaparecer definitivamente, por reutilização e natural erosão, não contraria o que se vai conhecendo sobre a rota atlântica e suas características. Não cremos poder interpretar o que um dia existiu no local do forte de Santa Catarina como um estabelecimento de tipo artesanal, menos ainda como restos de um edifício de uso doméstico ou templete. Resta a hipótese de uma torre, nesse caso facilmente interpretada como um farol, a funcionar apenas durante o período normal de navegação no Atlântico, outro assunto a necessitar também de alguma revisão, mesmo para a área mediterrânica (Soares e Dias, 2006: 45-60; Beresford, 2013: 9-52). O edifício escavado na Berlenga Grande, por muito degradado que se ache, chama a atenção para a verosimilhança de outras identificações no litoral português, como esta da Figueira da Foz. Recordamos, porque as suas características construtivas e provável datação augustana lembram o que foi possível conhecer do farol da Berlenga, o que existiu em Campa Torres (Fernández Ochoa e Morillo, 2009: 128-132), perto de Gijón, nas Astúrias (Fig. 12), como admitem Bugalhão e Lourenço e nós subscrevemos. Recentemente Rodríguez Colmenero sugeriu também o mesmo período para a edificação do farol da Corunha (Rodríguez Colmenero, 2019), proposta a analisar, pois levanta algumas questões. Edifícios relativamente simples, com dois corpos e escadas no interior, poderiam, eventualmente, integrar um programa de construção de faróis decidido pela administração romana no dealbar da época imperial, fundamentalmente por razões de logística militar 2
Agradecemos cordialmente ao Dr. Luís Madeira a reconstituição do sítio romano do forte de Santa Catarina, assim como o tratamento das restantes figuras.
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
Figura 12 - Planta das ruínas romanas de Campa Torres, em 1783 (apud Fernández e Morillo).
mas que serviam igualmente à navegação civil, aliás largamente envolvida nesse tipo de tráfico. A datação atribuída por Pedro Roquinho aos vestígios no forte de Santa Catarina não impede a mesma cronologia inicial, pois o farol continuaria em funcionamento no século II, sem que por ora possamos adiantar mais do que dissemos. Nesta, como noutras questões hispânicas, talvez Plínio-o-Velho nos esclareça quanto ao essencial de tudo isto: “A Gadibus columnisque Herculis Hispaniae et Galliarum circuitu totus hodie navigatur occidens” (Plínio, NH. 2.67).
Nota
Artigo escrito no âmbito do projecto Rome our Home: (Auto)biographical Tradition and the Shaping of Identity(ies) (PTDC/LLT-OUT/28431/2017)
231
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
Referências bibliográficas AA.VV. (2019). Forte de Santa Catarina. Imagem de um território. Figueira da Foz: Caleidoscópio. ADAM, J.-P. (1995). Le phare d´Alexandrie. Les Dossiers d´Archéologie, 201, pp. 26-31. ALARCÃO, Jorge de (1988). Roman Portugal, 2 (2). Warminster: Aris & Phillips. ALARCÃO, Jorge de (2009). Portos e faróis romanos no Atlântico português. Brigantium, 20, pp. 109-114. ALARCÃO, Jorge de; CARVALHO, Pedro C. e SILVA, Ricardo C. (2017). The Forums of Conimbriga and Aeminium: comparison and summary of the state of the art. Zephyrus, 80, pp. 131-146. ALVES, Francisco et al. (1988-1989). Os cepos de âncora em chumbo descobertos em águas portuguesas. O Arqueólogo Português, série 4, 6-7, pp. 109-185. ARRUDA, A. Margarida e VILAÇA, Raquel (2006). O mar greco-romano antes de gregos e romanos: perspectivas a partir do Ocidente peninsular. In Mar Greco-Latino. Coimbra: Imprensa da Universidade, pp. 31-58. BERESFORD, James (2013). The Ancient Sailing Season. Leida: Brill. BOMBICO, Sónia (2008). Cortiçais (Peniche): um naufrágio romano alto imperial na costa atlântica lusitana. Barcelona: Universidade de Barcelona. BRADFORD, John (1957). Ancient Landscapes. Studies in Field Archaeology. Londres: G. Bell and Sons. BUGALHÃO, Jacinta e LOURENÇO, Sandra (2011). A ocupação romana da ilha da Berlenga. Revista Portuguesa de Arqueologia, 14, pp. 203-215.
FABIÃO, Carlos (2009). A dimensão atlântica da Lusitânia: periferia ou charneira no Império Romano? In Lusitânia romana entre o mito e a realidade. Cascais: Câmara Municipal de Cascais, pp. 53-68. FERNÁNDEZ OCHOA, Carmen e MORILLO, Ángel (2009). Faros y navegación en el Cantábrico y el Atlántico Norte. Brigantium, 20, pp. 128-132. GOMES, Alexandra e DE MAN, Adriaan (2013). Um conjunto de cepos de âncoras romanas do estuário do Sado. Al-madan, 2ª série, 18, pp. 168-171. GONZÁLEZ-MORO, Pablo. e CABALLERO ZOREDA, Luis (2009). Metodología e investigación del faro romano en la restauración de la Torre de Hércules de A Coruña (1990-1992). Brigantium, 20, pp. 193-227. GREENE, Kevin (1986). The Economy of the Roman Archaeology. Londres: B. T. Badsford Ltd. HUTTER, Siegfried e HAUSCHILD, Theodor (1991). El faro romano de La Coruña. Corunha: Ediciós do Castro. IMPERIAL, Flávio (2017). O sítio arqueológico de Maiorca no contexto da conquista do ocidente peninsular. Lisboa: Universidade de Lisboa. LE ROUX, Patrick (1990). Le phare, l´architecte et le soldat: l´inscription rupestre de La Corogne (CIL II 2559). Miscellanea Greca e Romana, 15, pp. 133-145. LEÃO, Delfim e MANTAS, Vasco (2009). O Farol de Alexandria. In As Sete Maravilhas do Mundo Antigo. Lisboa: Edições 70, pp. 109-125. LEHMANN-HARTLEBEN, Karl (1923). Die Antiken Hafenlagen des Mittelmeeres. Beiträge zur Geschichte des Städtbaus im Altertum. Berlim-Lípsia: Dieterich. MANTAS, Vasco (1992). Notas sobre a estrutura urbana de Aeminium. Biblos, 68, pp. 487-513.
CORTEZ, Fernando R. (1957). Pesquizas arqueológicas submarinas, no Atlântico. Viriatis, 1 (2), pp. 120-121.
MANTAS, Vasco (2005). Faróis e balizagem portuária no mundo romano. Memórias da Academia de Marinha, 35, pp. 177-222.
CUNLIFFE, Barry (2001). Facing the Ocean. The Atlantic and its Peoples. Oxford: Oxford University Press.
MANTAS, Vasco (2012). As vias romanas da Lusitânia. Mérida: Museu Nacional de Arte Romana.
FABIÃO, Carlos (1989). Sobre as ânforas do acampamento romano da Lomba do Canho. Arganil. Lisboa: UNIARQ.
MANTAS, Vasco (2019). Notas em torno da representação da foz do Mondego no Atlas de Pedro Teixeira Albernaz. In O forte de Santa Catarina. Imagem de um território. Figueira da Foz: Caleidoscópio, pp.10-19.
FABIÃO, Carlos (1993). Lomba do Canho (Arganil). In História de Portugal, 2. Lisboa: Ediclube, pp. 190-192.
232
UM FAROL ROMANO NA FOZ DO RIO MONDEGO?
MEISNER, Daniel (1638). Sciographia Cosmica. Nuremberga: Paul Fürst. MELO, Ricardo Vieira de (2019). Projeto de Arquitetura. Memória descritiva. In Forte de Santa Catarina. Imagem de um Território. Figueira da Foz: Caleidoscópio, pp. 60-80. MORAIS, Rui (2013). Um naufrágio bético datado da época de Augusto em Rio de Moinhos (Esposende, Norte de Portugal). In O Irado Mar Atlântico. Braga: Museu D. Diogo de Sousa, pp. 309-331. OLESON, John e HOHLFELDER, Robert (2011). Ancient harbors in the Mediterranean. In The Oxford Handbook of Maritime Archaeology. Oxford: Oxford University Press, pp. 809-833. PARKER, Andrew. J. (1990). Classical Antiquity: The Maritime Dimension. Antiquity, 64, pp. 335-346. PENAJOIA, Marco (2011). A questão portuária em torno de Montemoro-Velho. Estudo de arqueologia. Montemor-o-Velho: Câmara Municipal de Montemor-o-Velho. PEREDA, Felipe e MARÍAS, Fernando (eds.) (2003). El Atlas del Rey Planeta. La “Descripción de España y las cuestas y puertos de sus reinos” de Pedro Texeira (1634). Hondarribia: Nerea Editorial. PEREIRA, Isabel (1996). Santa Olaia. In De Ulisses a Viriato. O primeiro milénio a.C. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, pp. 60-65. RODRÍGUEZ COLMENERO, Antonio (2019). El faro romano de Brigantium Flavium, Torre de Hércules de A Coruña. Corunha: Autoridad Portuaria de A Coruña. ROQUINHO, Pedro (2019). Intervenção arqueológica decorrente da obra de requalificação do monumento. In Forte de Santa Catarina. Imagem de um Território. Figueira da Foz: Caleidoscópio, pp.42-47. SILVA, Manuela (2019). Santa Catarina. Capela, forte e farol. In Forte de Santa Catarina. Imagem de um território. Figueira da Foz: Caleidoscópio, pp. 20-41. SOARES, António Monge e DIAS, João Alveirinho (2006). Coastal Upwelling and Radiocarbon. Evidence for Temporal Fluctuations in Ocean Reservoir Effect off Portugal During the Holocene. Radiocarbon, 48 (1), pp. 45-60.
233
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
O contributo da fotogrametria na arqueologia: o caso de estudo da muralha nascente do forte de Santa Catarina (Figueira da Foz, Portugal) The contribution of photogrammetry in archaeology: the case study of the east wall of Santa Catarina fort (Figueira da Foz, Portugal) Bruno Freitas1 . Marco Penajoia2
1 2
Arqueólogo | bruno_arch@hotmail.com Museu Municipal Santos Rocha, Divisão de Cultura, Município da Figueira da Foz | arqueologia.museu@cm-figfoz.pt Centro de História da Sociedade e da Cultura, FLUC | penajoia@fl.uc.pt
234
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
Neste artigo apresentamos os resultados obtidos durante o acompanhamento arqueológico da empreitada “Limpeza e conservação das muralhas do Forte de Santa Catarina”, entre maio e outubro de 2018, com vista a consolidação da muralha nascente – conhecida como bateria baixa sobre a barra – desta fortificação. Sem qualquer afetação ao nível do solo, desenvolvemos esforços no sentido de realizar um levantamento fotogramétrico bem-sucedido. A partir desta técnica de registo, conseguimos identificar diferentes realidades construtivas e os entaipamentos das antigas canhoeiras (ou canhoneiras) pertencentes à bateria mandada construir no século XVII.
In this article we present the results obtained during the archaeological monitoring of the project “Limpeza e conservação das muralhas do Forte de Santa Catarina”, between May and October 2018, in order to repair the east wall – knew as bateria baixa sobre a barra – of this fortress. Without any ground disturb, we developed a well-succeed photogrammetry survey and from there we were capable of identify different constructive realities and the crenels which belong to the battery built in 17th century.
Palavras-chave: Forte de Santa Catarina; Arquitetura Militar Moderna; Arqueologia da arquitetura; Fotogrametria; Canhoeiras.
Keywords: Santa Catarina fort; Modern Military Architecture; Archaeology of architecture; Photogrammetry; Crenels. 235
O CONTRIBUTO DA FOTOGRAMETRIA NA ARQUEOLOGIA: O CASO DE ESTUDO DA MURALHA NASCENTE DO FORTE DE SANTA CATARINA (FIGUEIRA DA FOZ, PORTUGAL)
Enquadramento histórico-arqueológico Pela análise geomorfológica da barra da Figueira da Foz e o seu afloramento adjacente, temos vindo a registar a importância que estas cotas topográficas teriam para um povoamento recuado e um controlo náutico em vários níveis: controlo náutico comercial e militar. O alerta de Carlos Fabião para que nesta zona de interface se deva procurar os recursos marinhos da Lusitânia Romana para o Mondego faz todo o sentido (Fabião, 2004: 379-410). As informações e achados arqueológicos romanos que, paulatinamente, nos vão chegando reforçam esta perceção (Roquinho, 2019: 42-47). Edificada na Época Moderna, num quadro de forte assédio de pirataria e do corso às povoações costeiras, esta fortaleza abaluartada foi um importante elemento do sistema defensivo na foz do Mondego, juntamente com o Forte de Buarcos, o Fortim de Palheiros, a Atalaia da Vela e outras estruturas de vigia ou defesa que pontuavam a costa atlântica. Reconhecida a importância estratégica deste lugar, a sua fortificação não foi indiferente à situação de fragilidade defensiva desta região. Com efeito, sabemos que na primeira metade do século XVII a povoação de Buarcos foi atacada por corsários ingleses e holandeses. Esta situação de enorme fragilidade ter-se-á mantido, já que em 1630 o juiz de Montemor-o-Velho, Diogo Martins, escreveu uma carta ao rei onde se debruçou sobre a incapacidade defensiva desta região perante uma invasão de 77 lanchas mouriscas na vila de Buarcos (Penajoia, 2012). Terá sido por esta altura, no início do século XVII, que o forte de Santa Catarina foi construído (ou reconstruído), embora a origem desta fortificação seja ainda incerta. No levantamento das fortalezas costeiras, feito por Pedro Teixeira Albernaz, neste lugar apenas está indicado o topónimo de Santa Catarina (Pereda Espeso e Marías, 2002). Já António dos Santos Rocha colocou a possibilidade de o forte ter sido construído no século XVI, uma 236
vez que figura no ataque inglês ocorrido em 1602 (Rocha, 2010: 125). Certo é que este local já se encontrava fortificado no tempo de D. João IV. No quadro da Guerra da Restauração, este monarca e os engenheiros militares do Reino delinearam um plano de reforço da costa portuguesa onde estava determinada a construção de novas fortalezas e reconstrução das antigas (entenda-se obsoletas) ou arruinadas. Como resultado, tiveram início em 1643 os trabalhos de construção de uma nova cortina para a instalação de 15 peças de fogo no forte de Santa Catarina1. O forte também terá beneficiado destes ou doutros trabalhos, embora não saibamos a amplitude destas transformações. Recentemente um dos autores deste artigo publicou os resultados de uma análise parietal ao forte de Santa Catarina, com destaque para grafitos de um monograma e uma inscrição com o milésimo de 1668; foi também detetado nesta estrutura, um vão em arco de volta perfeita entaipado, identificado no paramento exterior da cortina voltada a sul. Reunidas estas informações, a combinação do monograma com a data poderá indicar a oficialização de uma edificação ou reabilitação, algo que ganha força atendendo ao contexto acima referido (Penajoia e Furtado, 2019: 48-59). Já o entaipamento deve ser visto como um testemunho das transformações, talvez muito significativas, que esta fortificação conheceu. Seja como for, a planta atual do forte merece um reparo: ao contrário do aconselhado nos tratados de arquitetura militar da época, o forte apresenta uma planta triangular que é desaconselhada por originar um ângulo muito agudo na face dos baluartes e, consequentemente dificultar a defesa. Já os baluartes, dois deles (o nascente e o poente) apresentam faces em forma de cauda de andorinha, mas um deles (o norte) configura-se como meio baluarte. 1 Informação retirada do sítio da Internet da DGPC - patrimoniocultural. gov.pt/pt/património-imovel/pesquisa-do-patrimonio/classificado-ouem-vias-de-classificacao/geral/view/74200 [Consultado a 30 de janeiro de 2020].
O CONTRIBUTO DA FOTOGRAMETRIA NA ARQUEOLOGIA: O CASO DE ESTUDO DA MURALHA NASCENTE DO FORTE DE SANTA CATARINA (FIGUEIRA DA FOZ, PORTUGAL)
Avançando no tempo, voltamos a encontrar referência ao forte de Santa Catarina em 1680, mas desta vez devido ao estado de ruína em que se encontrava. Nesta data sabemos que houve inspeções no sentido de avaliar uma recuperação, ignoramos se o empreendimento se concretizou (Rocha, 2010: 126). No estado atual da investigação temos apenas informações que nos indicam que no final do século XVIII o forte continuava muito deteriorado, de tal forma que nos anos seguintes, em 1803, o número de peças de fogo estava reduzido para duas (Mello, 1963). Durante as Invasões Francesas o forte ganhou alguma relevância militar, já que a sua reconquista às tropas francesas pelo batalhão académico, a 27 de junho de 1808, assegurou o desembarque das tropas inglesas na zona de Lavos. Mas passados estes primeiros anos a sua importância diminuiu. Em 1822, o coronel Luís Gomes de Carvalho escreveu que “precisa-se levantar os 3 merloens da bateria, fazerem-se as 8 plataformas da mesma, concertar-se o telhado, paredes, portas e janelas da caza arruinada próxima ao Forte, e fazerem-se as tarimbas”2. O seu estado de ruína não se alterou visto que em 1831 as baterias do forte estavam de tal forma degradadas que não podiam receber artilharia grossa. Perdida a sua importância militar, a partir da segunda metade do século XIX o forte transformouse gradualmente num marco na paisagem urbana da Figueira da Foz. Em 1886 foi instalado o farol. Em 1911, a casamata sob o baluarte nascente foi cedida ao Instituto de Socorros a Náufragos e alguns anos mais tarde, em 1917, uma área substancial do forte foi arrendada ao Ténis Club Figueirense.
2
Informação retirada do sítio da Internet do SIPA. monumentos. gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=2711 [Consultado a 30 de janeiro de 2020].
Levantamento fotogramétrico e tratamento dos dados Na realização de um levantamento fotogramétrico de uma estrutura da dimensão da muralha nascente do forte de Santa Catarina – tem um traçado curvilíneo com um comprimento de 78 m no paramento exterior (sul) e 86 m no interior (norte) e que termina, a nascente, numa estrutura abaluartada – devemos começar por uma ida ao terreno. Observando atentamente a estrutura e a sua envolvente conseguimos identificar as condicionantes existentes no local (candeeiros, árvores, etc.) e desta forma estabelecer o método de registo mais eficiente. De seguida, e tendo em conta as informações recolhidas no terreno, devemos garantir que temos o equipamento necessário. Para este tipo de registo não precisamos obrigatoriamente de material muito dispendioso, mas é importante reter o facto de que a qualidade final dos dados é sempre proporcional à qualidade do equipamento. Neste caso recorremos a uma máquina fotográfica DSLR (Canon 1100D), um tripé de carbono (Benro) e um escadote para aceder às zonas mais altas. Definida a estratégia de registo e reunido o equipamento necessário deslocámo-nos ao local para efetuar o levantamento do alçado exterior e interior. Nesta fase dos trabalhos impõem-se três pontos: as condições climatéricas e de luminosidade, sendo aconselhados os dias preferencialmente nebulosos e as horas de menor luz solar; a colocação de alvos nos alçados, o que nos permite georreferenciar com elevada precisão os levantamentos3; a correta sobreposição de fotografias dos alçados e da estrutura abaluartada. Sobre este último ponto, a distância entre fotografias deve ter em conta a distância entre a máquina fotográfica e o objeto fotografado, de modo a obtermos uma sobreposição de 90% a 80%: neste caso de estudo, a distância ao objeto 3
Este trabalho foi feito pelos serviços de topografia da Câmara Municipal da Figueira da Foz.
237
Figura 1 - Alçado exterior.
238
Alçado 2 (vista este)
Alçado 1 (vista norte/nordeste)
O CONTRIBUTO DA FOTOGRAMETRIA NA ARQUEOLOGIA: O CASO DE ESTUDO DA MURALHA NASCENTE DO FORTE DE SANTA CATARINA (FIGUEIRA DA FOZ, PORTUGAL)
Alçado 5 (vista sul/sudoeste)
Alçado 4 (vista sul)
O CONTRIBUTO DA FOTOGRAMETRIA NA ARQUEOLOGIA: O CASO DE ESTUDO DA MURALHA NASCENTE DO FORTE DE SANTA CATARINA (FIGUEIRA DA FOZ, PORTUGAL)
Figura 2 - Alçado interior.
239
O CONTRIBUTO DA FOTOGRAMETRIA NA ARQUEOLOGIA: O CASO DE ESTUDO DA MURALHA NASCENTE DO FORTE DE SANTA CATARINA (FIGUEIRA DA FOZ, PORTUGAL)
foi em média 3 m, o que obrigou a uma distância entre fotografias de 0,30 m para uma sobreposição de 90%. Isto deve-se à forma como a fotogrametria funciona, mesmo a digital: à semelhança do olho humano, os programas identificam pontos em comum em duas fotografias diferentes do mesmo objeto e sobrepõem-nas para gerar a noção de profundidade (visão estereoscópica). Terminado o trabalho de campo, seguiu-se o de gabinete. Nesta fase importámos as fotografias para um programa específico de fotogrametria, a versão standard do Agisoft Metashape, onde criámos vários projetos de cada um dos alçados. Já no programa, avançámos com a criação de uma nuvem de pontos (dense cloud) de cada projeto, tendo, de seguida, exportado estas nuvens, em formato .las, para o programa CloudCompare. Aqui procedemos à georreferenciação da cada uma das nuvens de pontos, oferecendo a cada alvo uma coordenada precisa, preparando-as para serem desenhadas em 2D. No que diz respeito ao desenho assistido por computador (CAD) escolhemos o programa AutoCAD (versão 2018), todavia, poderíamos ter escolhido o open source QGIS ou outro programa qualquer que aceite ficheiros .las. Escolhendo o AutoCAD para desenhar em 2D os alçados, fomos obrigados primeiro a importar os ficheiros para o programa ReCap, também da Autodesk, e só depois para o AutoCAD. Já aí podemos desenhar confortavelmente, uma vez que o programa oferece um vasto número de ferramentas de desenho e edição.
Resultados Concluído o levantamento fotogramétrico é tempo de apresentarmos os dados obtidos. Para o paramento exterior, o desenho 2D do alçado permitiu identificar dez canhoeiras atualmente entaipadas, assim como a sua métrica 240
construtiva: intervaladas por merlões com um comprimento na ordem dos 2,50 m, as canhoeiras tinham uma abertura externa inicial de 3 m que decrescia, de poente para nascente, até estabilizar nos 2,25 m. É com base nestes valores que vemos mais duas canhoeiras onde hoje se encontra aberto um lanço de escadas que liga os campos de pádel ao restante campo de ténis. Quanto às duas canhoeiras que estão ainda hoje abertas, ambas têm uma abertura de 4,26 m (Fig. 1). Já para o paramento interior, com o desenho do alçado registámos as aberturas internas das canhoeiras, o que veio a confirmar, a partir da identificação do entaipamento de uma delas, a nossa proposta de duas canhoeiras na zona do lanço de escadas. De poente para nascente, as canhoeiras têm uma abertura na ordem dos 0,71 m e uma distância entre si na média de 4,80 m, exceto num único caso onde este valor sobe para 5,16 m; a partir do lanço de escadas os valores alteram-se para 0,84 m na abertura e 4,92 m na distância. A regularidade destes valores apenas muda nas canhoeiras abertas sobre a estrutura abaluartada, já que nesta parte o comprimento da abertura é de 1,80 m e 1,41 m e a distância é de 6,05 m e 6,36 m (Fig. 2 e Fig. 3).
Discussão O uso da fotogrametria como técnica de registo traz consigo várias vantagens, mas é necessário refletirmos sobre os dados obtidos. A primeira reflexão diz respeito ao número de canhoeiras identificadas, o que perfaz um total de 14. Este número leva-nos a 1643, nomeadamente à instalação de 15 peças de fogo numa nova cortina. Neste momento fica-nos a faltar a 15.ª canhoeira, mas sabemos onde a encontrar: no lanço de escadas que hoje separa o forte da muralha nascente. Na cartografia do século XIX, esta cortina, assinalada de Bateria baixa sobre a barra e com 15 canhoeiras, encostava ao baluarte nascente do forte (Fig. 4);
O CONTRIBUTO DA FOTOGRAMETRIA NA ARQUEOLOGIA: O CASO DE ESTUDO DA MURALHA NASCENTE DO FORTE DE SANTA CATARINA (FIGUEIRA DA FOZ, PORTUGAL)
contudo, no início do século XX, poucos anos após o arrendamento desta área ao clube de ténis, a cortina aparece cortada pelos dois acessos atuais (Fig. 5). Já a segunda reflexão é sobre a construção desta cortina e das canhoeiras, para a qual partimos da obra de Diogo Sylveyra Vellozo (Vellozo, 2005). Começando pela cortina, sabemos que as cortinas curvas figuram entre as cinco apresentadas por Vellozo. Apesar de preferir as retas, que deveriam ter um comprimento entre os 500 e 100 pés (165 m e 33 m), aceitava, caso as condições assim o exigissem, que se construíssem as outras (Vellozo, 2005: 80-83; 325). No nosso caso, pensamos que o traçado curvilíneo da cortina – com um comprimento máximo de 86 m – se deve ao relevo (afloramento rochoso) sobre o qual ela assenta.
No caso das canhoeiras a leitura é mais difícil, uma vez que apenas subsistem duas. Mas se atendermos ao facto de que em todas, a abertura interna é inferior à externa, constatamos que estamos perante um dos oito tipos de canhoeiras descritas por Vellozo, ainda que uma vez mais não seja a melhor solução (Vellozo, 2005: 243-246; 343). Mas se prestarmos atenção, reparamos que o comprimento de 10 palmos (2,20 m) sugerido pelo autor para a abertura externa da canhoeira está próximo dos 2,25 m por nós identificado. Outra característica digna de nota é a distância entre canhoeiras. Ao contrário de outros tratadistas, Vellozo tomava esta medida no paramento interior, sugerindo 15 pés (4,95 m) de distância. Excetuando as últimas duas canhoeiras, este valor não se afasta muito do que aqui detetámos.
Figura 3 - Modelo 3D da muralha nascente (vista nordeste).
241
O CONTRIBUTO DA FOTOGRAMETRIA NA ARQUEOLOGIA: O CASO DE ESTUDO DA MURALHA NASCENTE DO FORTE DE SANTA CATARINA (FIGUEIRA DA FOZ, PORTUGAL)
Figura 4 (em cima) - Planta do forte e das estruturas envolventes. Fonte: Planta do forte de S.ª Catharina da villa da Figueira situado na foz do rio Mondego (1853). Arquivo Histórico Municipal da Figueira da Foz. Figura 5 (em baixo) - Destaque para o acesso a poente, junto do qual se situava um pequeno tanque. Fonte: Planta do Ténis Clube da Figueira da Foz (maio de 1928). Escala 1:500, ref. 80, Arquivo Histórico Municipal da Figueira da Foz.
242
O CONTRIBUTO DA FOTOGRAMETRIA NA ARQUEOLOGIA: O CASO DE ESTUDO DA MURALHA NASCENTE DO FORTE DE SANTA CATARINA (FIGUEIRA DA FOZ, PORTUGAL)
Referências bibliográficas FABIÃO, Carlos (2004). Centros oleiros da Lusitania: Balanço dos conhecimentos e prespectivas de investigação. Actas del Congreso Internacional FIGLINAE BAETICAE. Talleres alfareros y producciones cerámicas en la Bética romana (ss. II a.C. - VII d.C.). Universidad de Cádiz, Noviembre 2003, B.A.R., int. ser., 1266, Oxford, pp. 379-410. MELLO, José Brandão Pereira de (1963). Subsídios para a história militar da Figueira da Foz. Figueira da Foz: Câmara Municipal da Figueira da Foz. PENAJOIA, Marco (2012). A questão portuária em torno de Montemor-o-Velho. Estudo de arqueologia. Coleção Memória e Identidade. Montemor-o-Velho: Câmara Municipal de Montemor-o-Velho. PENAJOIA, Marco e FURTADO, Marta (2019). Contributos para a arqueologia da arquitetura no forte de Santa Catarina. Análise de grafitos históricos. In Santa Catarina. Imagem de um território. Câmara Municipal da Figueira da Foz. Figueira da Foz: Caleidoscópio Editora, pp. 48-59. ROCHA, António dos Santos (2010 [1893]). Materiaes para a História da Figueira nos séculos XVII e XVIII. Coimbra: Livraria Alfarrabista Miguel de Carvalho. Fac-simile da 1.ª ed. Figueira da Foz: Casa Minerva. ROQUINHO, Pedro (2019). Forte de Santa Catarina - Figueira da Foz. Intervenção arqueológica decorrente da obra de requalificação do monumento. In Santa Catarina. Imagem de um território. Câmara Municipal da Figueira da Foz. Figueira da Foz: Caleidoscópio Editora, pp. 42-47. VELLOZO, Diogo da Sylveyra (2005). Arquitetura militar ou fortificação moderna. Escrito por Diogo da Sylveyra Vellozo. Transcrição e comentários por Mário Mendonça de Oliveira. Salvador: EDUFBA.
243
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
A exploração da mina de carvão do Cabo Mondego: breve apontamento sobre um património degradado The exploration of the Cape Mondego coalmine: a brief note on a degraded heritage José M. Soares Pinto1 . Pedro Miguel Callapez2 . José Manuel Brandão3 . Rodrigo Pinto4 . Ricardo Jorge Pimentel5
1
Agrupamento de Escolas Figueira Mar, Escola Secundária Dr. Bernardino Machado, Figueira da Foz | jvonpintoff@live.com Universidade de Coimbra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Departamento de Ciências da Terra, CITEUC | callapez@dct.uc.pt 3 Universidade NOVA de Lisboa, HTC-História, territórios, comunidades, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/CEF | jbrandao@fcsh.unl.pt 4 Museu Municipal Santos Rocha, Divisão de Cultura, Município da Figueira da Foz | rhodespinto@outlook.pt 5 Agrupamento de Escolas de Guia, Guia, Pombal | ricardo.pimentel@aeguia.edu.pt 2
244
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
A mina de carvão do Cabo Mondego constitui um dos principais paradigmas da Arqueologia Mineira Industrial, em Portugal. A ela se associaram diversas outras indústrias, tais como vidro, cerâmica, cimento e cal hidráulica, aproveitando as especificidades da geologia local, rica de rochas calco-margosas. Fez-se assim, do Cabo Mondego, um marco relevante no desenvolvimento de uma nação bastante impreparada face à Revolução Industrial, ao mesmo tempo que se facultou a sua emergência na comunidade científica. Da antiga mina, apenas subsistem dentro das instalações fabris, a casa da escolha de carvão, as oficinas, as entradas do Poço Mondego, da Galeria Nova Mondego e dos Poços Raposos. Na Serra da Boa Viagem, algo arruinadas, são também visíveis alguns poços de extração (Lodi, Caldas, S. João) e as chaminés de ventilação junto ao Poço Caldas, Poço Vieira e Poço Guimarães. Considerando a importância histórica deste complexo mineiro/industrial, singular em Portugal, a conservação do que ainda dele resta deverá ser tomada em consideração pelas entidades responsáveis, ainda mais que ele encerra um forte potencial geoturístico e confronta com a área protegida do Monumento Natural do Cabo Mondego.
The Cape Mondego coalmine is one of the main paradigms of industrial mining in Portugal. Developed side to side with several other industries, such as glass, ceramics, cement and hydraulic lime, it took advantage of a local geology rich in marly-limestone rocks. By this way, it became a milestone for a nation quite unprepared for the Industrial Revolution, and emerged in the scientific community. From the old colliery only the coal choice house, the workspaces, and the entrances of the Mondego shaft, Nova Mondego gallery and Raposo’s shafts subsist today within the industrial facilities. Lying somewhat ruined in the Serra da Boa Viagem, are also visible the Lodi, Caldas, and S. João extraction pits, and the ventilation shafts located next to Caldas, Vieira and Guimarães shafts. Knowing the historical importance of this coaling and industrial complex singular in Portugal, the responsible entities should consider the conservation of what still exists. It also reveals a strong geotouristic potential and is located side to side with the protected area of the Mondego Cape Natural Monument.
Palavras-chave: Mina; Exploração carbonífera; Percurso histórico; Património industrial; Cabo Mondego (Portugal).
Keywords: Mine; Coal mining; Historical path; Industrial heritage; Mondego Cape (Portugal).
245
A EXPLORAÇÃO DA MINA DE CARVÃO DO CABO MONDEGO: BREVE APONTAMENTO SOBRE UM PATRIMÓNIO DEGRADADO
Introdução Após o término da sua vida útil, as minas representam um importante património que importa conservar, pois conjugam informações geológicas e tecnológicas de valor científico, histórico e antropológico. Estas explorações encerram testemunhos únicos de práticas, técnicas e métodos de lavra, mas também de atores, vivências e dificuldades inerentes à própria atividade, da qual a labuta diária dos mineiros constitui um extraordinário exemplo de perseverança, perante condições muitas vezes adversas. Ao longo dos anos, a laboração e as estruturas mineiras contribuíram para modificar positiva ou negativamente a paisagem envolvente, influenciando a arquitetura, a toponímia e a cultura regionais, assim contribuindo para o desenvolvimento socioeconómico e turístico destas regiões. Esta relação histórica e afetiva entre a atividade mineira e as comunidades que lhe serviam de berço, constitui importante tema de interesse da Arqueologia Industrial. Os estudos efetuados neste âmbito constituem, indubitavelmente, o melhor meio de dar a conhecer técnicas, práticas laborais e vivências dos trabalhadores e respetivas famílias, contribuindo para a preservação de registos que, de outra forma, se perderiam no tempo. Atualmente, no nosso país, a indústria mineira constitui uma pálida imagem de outrora, muito influenciada pela conjuntura internacional e por novos interesses das indústrias transformadoras, colocadas que estão perante os desafios de novas tecnologias e procuras. É neste sentido que as minas desativadas, dispersas por todo o país em função da diversidade mineralógica e geológica do território, representam um potencial significativo de conhecimento e de algum saudosismo de hábitos e rotinas esquecidos no tempo. O presente estudo tem o seu enfoque, não só na exploração da mina de carvão do Cabo Mondego (paradigma da Arqueologia Mineira Industrial, 246
em Portugal) e na importância que esta teve para o desenvolvimento económico figueirense, mas também nas vivências dos que nela encontraram o seu sustento e a possibilidade de uma vida melhor para as suas famílias, numa época de uma certa escassez e repressão social impostas pelas políticas vigentes do Estado Novo. Neste contexto, o isolacionismo crescente do regime perante a Europa ocidental do pós-guerra, aberta a convergências liberais e com um desenvolvimento económico muito acima do português, motivou a necessidade de aproveitamento dos nossos recursos carboníferos, ainda que escassos e de fraca qualidade, justificando-se a persistência da lavra da mina do Cabo Mondego (Fig. 1). Muito do que está escrito e agora se regista, nomeadamente no que concerne às condições de trabalho no interior da mina e zonas envolventes, foi observado e vivenciado pelo primeiro dos autores, enquanto jovem, graças à anuência do então Diretor Geral, Eng.° Moreira dos Santos, bem como do Diretor Técnico da Mina, Eng.° José Leitão. Desses tempos, guarda recordações que muito acarinha.
A mina de carvão Independentemente da rentabilidade algo dúbia e dos sobressaltos que acompanharam os mais de 200 anos da lavra mineira (a mais antiga exploração carbonífera do país), a perseverança de uns quantos visionários em tornar este local num complexo industrial de excelência, permitiu que surgissem associadas à indústria extrativa, diversas outras indústrias, tais como vidro, cerâmica, cal hidráulica e cimento, estas duas últimas face à quantidade e qualidade dos afloramentos calco-margosos que constituem este vasto promontório (Choffat, 1880; Rocha et al., 1981). Fez-se, assim, da mina de carvão do Cabo Mondego, inicialmente denominada Real Mina de Carvão de Pedra de Buarcos, um marco relevante no desenvolvimento de uma nação bastante impreparada face à Revolução Industrial que já se
A EXPLORAÇÃO DA MINA DE CARVÃO DO CABO MONDEGO: BREVE APONTAMENTO SOBRE UM PATRIMÓNIO DEGRADADO
Figura 1 - Panorâmica das instalações exteriores do Cabo Mondego na década de 1990. Coleção J. S. Pinto.
247
A EXPLORAÇÃO DA MINA DE CARVÃO DO CABO MONDEGO: BREVE APONTAMENTO SOBRE UM PATRIMÓNIO DEGRADADO
difundira pela Europa. Ao mesmo tempo, facultou-se o seu acesso à comunidade científica (Pinto et al., 2015), daí resultando um número crescente de estudos, tirocínios e relatórios de estágio, os quais permitiram dar a conhecer detalhadamente os aspetos geológicomineiros desta exploração e do maciço calcário seu enquadrante. A descoberta e o início do aproveitamento da camada de carvão supõem-se datar de 1750 e terão sido efetuadas por um cidadão inglês, então residente na vila da Figueira da Foz. A exploração efetiva teve o seu início em 1773 e a lavra da mina prolongou-se até 1967, primeiro sob tutela régia e, posteriormente, de diversas empresas, tais como a Companhia de Negociantes de Lisboa, a Empresa das Minas do Cabo Mondego, a Companhia Mineira Industrial do Cabo Mondego, a Empresa Exploradora das Minas e Indústrias do Cabo Mondego, a Companhia Mineira Industrial de Portugal, a Companhia de Minas e Carvões de S. Pedro da Cova e, finalmente, a Companhia de Carvões e Cimentos do Cabo Mondego. Aquando da instalação da CIMPOR Cabo Mondego, a mina já se encontrava encerrada (Santos, 1981). Durante os dois séculos de exploração mineira, apesar do forte empenho daquelas empresas em trabalhos de extração difíceis, a baixa qualidade do carvão dadas as suas características petrográficas e o excesso de sulfuretos (pirites), e a reduzida possança da camada útil (entre 0,80 m e 1,25 m), constituíram grandes obstáculos (Fig. 2 e Fig. 3). As litologias encaixantes, a sucessão estratigráfica e a anisotropia do maciço também não favoreciam a lavra. No entanto, a partir do início do século XX, a exploração por talhas ascendentes permitiu a extensão dos trabalhos até mais de 3,5 km a partir da linha de costa (Galeria de Rolagem – Nova Mondego/Santa Bárbara), tendo os poços de extração (N.º 2 – Mestre, N.º 3 – Ajuda, N.º 5 – Auxílio e N.º 10) atingido 730 m de profundidade segundo o plano de inclinação da camada, de 35º para SO (Fig. 4).
248
Figura 2 (em cima) - Cortes realizados na camada de carvão, segundo desenho n.º 3714 de 1952. Coleção J. S. Pinto. Figura 3 (em baixo) - Fragmentos de carvão da camada em exploração no interior da mina, extraídos e escolhidos na década de 1960. Coleção J. S. Pinto.
A EXPLORAÇÃO DA MINA DE CARVÃO DO CABO MONDEGO: BREVE APONTAMENTO SOBRE UM PATRIMÓNIO DEGRADADO
Figura 4 - Transportando o carvão junto ao Poço N.º 5 - Auxílio. Coleção J. S. Pinto.
249
A EXPLORAÇÃO DA MINA DE CARVÃO DO CABO MONDEGO: BREVE APONTAMENTO SOBRE UM PATRIMÓNIO DEGRADADO
Durante este período foram executados numerosos trabalhos mineiros de vulto, entre os quais se incluem os poços exteriores Santo António, Esperança, Farrobo, Fontainhas, Lodres (Lodi), Caldas, Santo Amaro, São João, Vieira, Guimarães, os interiores Ajuda, Mestre, Auxílio, Bracourt, Fleury e vários outros não nomeados, diversas chaminés de ventilação e milhares de metros de galerias, das quais se destacam as denominadas Mondego, Santa Bárbara, Galeria Nova de Rolagem e Sousa Holstein.
Quotidianos mineiros Corria o inverno de 1965. Os mineiros iam chegando na fria madrugada, pelas 6 horas e 30 minutos da manhã, de cigarro no canto da boca, discutindo os resultados do futebol e contanto as novidades das suas terras. Oriundos dos lugares próximos dos Vais, Serra da Boa Viagem, Murtinheira e Quiaios, mas também de Buarcos e Figueira da Foz,
vestiam calças e casacos de zuarte azul remendados, e grossas botas de cabedal ou borracha. Traziam uma sacola de pano ou serapilheira ao ombro, espicho de vinho a tiracolo e cestos de vime onde transportavam a broa, a sardinha assada ou frita de escabeche, o naco de toucinho, ou, nos mais afortunados, a marmita com a sopa de couve de horto com unto e bacalhau. Juntando-se pouco a pouco, aglomeravam-se junto à entrada dos escritórios então denominados “casa dos engenheiros” ou “casa dos capatazes”, onde lhes era indicada a distribuição do serviço do turno, alguns na entivação ou na eletricidade, outros ainda nos desmontes e guinchos, de entre muitos trabalhos possíveis no interior da mina (Fig. 5 e Fig. 6). Depois de colocadas as chapas de identificação num painel da entrada e de afinados os gasómetros e focos de iluminação, o acesso aos respetivos poços, N.º 5 (Auxílio) e N.º 10, era efetuado através da galeria Nova Mondego/Santa Bárbara, nas berlinas puxadas por uma máquina a diesel Ruston.
Figura 5 (esquerda) - Distribuição de serviço frente à casa dos capatazes, cerca de 1965. Coleção J. S. Pinto. Figura 6 (direita) - Transporte dos mineiros no interior da mina, cerca de 1965. Coleção J. S. Pinto.
250
A EXPLORAÇÃO DA MINA DE CARVÃO DO CABO MONDEGO: BREVE APONTAMENTO SOBRE UM PATRIMÓNIO DEGRADADO
Segundo o testemunho de Manuel António, chefe de turno da CIMPOR e filho de um mineiro e encarregado geral da mina, Serafim dos Santos, conhecido por “Sr. Capelas” (Fig. 7), tudo o que se ganhava na mina ficava na mina. Com efeito, na cooperativa da empresa, na época mais bem fornecida do que muitas mercearias e armazéns da cidade, trabalhadores e famílias encontravam o necessário para o dia a dia, desde alimentação, vestuário, calçado e até outros bens, por vezes difíceis de encontrar no comércio local. O restante salário era gasto no “Teimoso” e no “Atrasado”, tabernas da época situadas lado a lado, onde os mineiros, à saída do turno, petiscavam uma vez mais a sardinha e o carapau de escabeche, sempre acompanhados pela broa e regados com um tinto manhoso. A ração poderia melhorar com os ganhos do jogo da malha, prática habitual na rua em frente às referidas tabernas. A caldeirada, um prato corrente na altura em mesas abastadas, era, no entanto, petisco
de valor excessivo para um salário de mineiro, destinando-se apenas a bolsas mais afortunadas, ou a momentos especiais. No interior da mina, com valores de temperatura ambiente que rondavam os 36º a 38ºC e uma humidade muitas vezes superior a 80%, os mineiros optavam por se colocar em tronco nu e vestir calções, substituindo também as pesadas botas de borracha ou de carneira com sola de pneu, fabricadas na empresa, por simples galochas rudimentares (Fig. 8). Estas não eram nada mais do que tábuas em madeira, ferradas para não escorregarem, e sustentadas por uma tira de cabedal passada sobre o pé. O fundo dos trabalhos (galerias e desmontes), encontrava-se frequentemente coberto por uma camada de água pútrida e de odor nauseabundo. A ausência de instalações sanitárias fazia com que os trabalhadores usassem os recantos mais escondidos para a satisfação das suas necessidades fisiológicas. A isto, acresciam o pó de carvão e as lamas resultantes
Figura 7 (esquerda) - O Sr. Serafim dos Santos e família, cerca de 1965, nas instalações do Cabo Mondego (foto cedida por cortesia do filho). Figura 8 (direita) - O trabalho penoso na mina. Coleção J. S. Pinto.
251
A EXPLORAÇÃO DA MINA DE CARVÃO DO CABO MONDEGO: BREVE APONTAMENTO SOBRE UM PATRIMÓNIO DEGRADADO
da liquefação das poeiras acumuladas através do desmonte dos níveis de marga e calcário margoso encaixante das camadas carboníferas. Desta forma, o chão que os mineiros pisavam diariamente, não era mais que um infecto manancial de parasitas e bactérias, concorrendo pela oportunidade de pequenos acidentes ou simples cortes, para provocarem infeções. No posto médico, a enfermeira Fernanda Furet, paciente e competente, tratava com eficiência estas e outras maleitas profissionais, conforme confidenciou a um dos autores, anos atrás. Para tal, tinha o cuidado de fornecer a medicação adequada e instruções para a sua toma, embora se diga que, infelizmente, esta era ignorada pela maioria dos mineiros observados, os quais preferiam ir curar as suas dores nas já referidas tabernas. Note-se que muitas das famílias mineiras eram oriundas da região de S. Pedro da Cova, mas haviam optado por se deslocarem para o Cabo Mondego, onde os salários eram mais atrativos e as condições de vida em geral, bastante melhores. Logo à partida, tinham a oportunidade de trocar os simples barracos de madeira de S. Pedro da Cova, por verdadeiras casas com as condições necessárias de salubridade, construídas no Bairro Mineiro de Santa Bárbara, sito na proximidade da empresa. Com efeito, embora a exploração de carvão, por si só, fosse dificilmente rentável, a empresa mantinha outras indústrias próximas, nomeadamente as da produção de cimento e cal hidráulica, as quais permitiam um nível económico suficiente para que a Direção investisse em obras sociais, com destaque para o bairro operário, a Casa da Malta1 e o Armazém de Víveres. A primeira destas infraestruturas estava implantada na encosta dos Vais, a caminho de Buarcos. Já as restantes tinham maior proximidade com a mina, sendo que a Casa da Malta havia sido construída a cerca de 100 m da entrada da empresa e o armazém no interior das próprias instalações. 1 Era nestas instalações que eram alojados os mineiros solteiros ou que, vindos de outros lugares, não traziam família.
252
Vestígios de outrora, razões do presente Numa perspetiva atual, tendo como propósito a preservação dos vestígios da atividade mineira e cimenteira, ainda existentes no Cabo Mondego e nas vertentes calcárias da Serra da Boa Viagem, tornar-se-ia necessário reconhecer e inventariar todos os elementos que pudessem vir a constituir um conjunto patrimonial ímpar pela sua singularidade e abrangência histórica, adequando-os a um futuro aproveitamento para visitas científicas, educativas, turísticas ou lúdicas. Com efeito, ao longo da sua história, o Cabo Mondego e o seu carvão encontraram lugar no imaginário dos figueirenses, sendo acarinhados por muitos deles, que se habituaram à presença da comunidade mineira e operária, vivendo, de perto, muitos dos seus problemas. Neste lugar, já vandalizado e votado à indiferença, mas ainda passível de uma recuperação válida, julgamos estar perante uma oportunidade única de valorizar a história municipal e o turismo figueirense, prestando justa homenagem a todos aqueles que votaram as suas vidas à mina e às indústrias anexas. Do antigo complexo mineiro, ainda se conserva parte do edificado, designadamente os edifícios administrativos, as oficinas e espaços da escolha do carvão, os fornos e silos, e a central elétrica (sita frente ao Farol Novo). Ainda são visíveis, no Cabo Mondego, as entradas dos “Poços Raposos”, as primeiras obras de vulto a serem construídas no decurso da exploração, por iniciativa dos irmãos do mesmo nome (Fig. 9). Consistiam em três galerias descendentes, abertas na ponta mais ocidental do troço costeiro de Jurássico Superior desenvolvido em arriba, ao nível da camada de carvão. Destas galerias, há muito inundadas e entulhadas, hoje só restam os vestígios na parede e no chão das antigas oficinas. No seu traçado original, eram em abóbada e revestidas com enxilharia até grande distância da entrada; a sua secção apresentava 4 x 3 m.
A EXPLORAÇÃO DA MINA DE CARVÃO DO CABO MONDEGO: BREVE APONTAMENTO SOBRE UM PATRIMÓNIO DEGRADADO
Quanto à galeria principal, Nova Mondego – Santa Bárbara, bem como aos restantes poços da mina, a sua presente situação de conservação não diverge muito da dos “Poços Raposos”. Estes antigos acessos ao interior da mina encontram-se abatidos e entulhados, restando as estruturas de entrada, na sua maioria mascaradas pela vegetação densa dos locais em que se encontram. Estas aberturas e as chaminés de ventilação, para além do próprio afloramento carbonífero visível na praia e em alguns pontos da serra, não parecem de difícil recuperação, assim exista vontade e se salvaguardem eventuais ações de vandalismo.
Após o fracasso da exploração inicial, a lavra carbonífera sofreu um grande incremento sob a direção de José Bonifácio, Intendente Geral de Minas e Metais do Reino, o qual, em 1805, procedeu à abertura dos poços Mondego e Santo António, localizados 150 m a nordeste dos Poços Raposos e cerca de 8 m acima do terreiro da mina velha (Solla, 1970) (Fig. 10). Mais tarde, cerca de 1830 (Ribeiro, 1858), a mina foi ampliada graças à abertura dos poços Esperança e Farrobo, dos quais a estrutura deste último ainda é visível junto à estrada do Farol Novo. Não obstante o seu estado de ruína, depois de removida a vegetação
A
B
Figura 9 (em cima) - Os Poços Raposos: A - posição das bocas marcadas na parede, fotografia recente; B - detalhe do interior de um dos poços, fotografia da década de 1920. Coleção J. S. Pinto. Figura 10 (em baixo à esquerda) - Entrada do Poço Mondego, em finais dos anos de 1980. Coleção J. S. Pinto Figura 11 (em baixo à direita) - Entrada da Galeria de Rolagem Nova Mondego - Santa Bárbara, em finais da década de 1950. Coleção J. S. Pinto.
253
A EXPLORAÇÃO DA MINA DE CARVÃO DO CABO MONDEGO: BREVE APONTAMENTO SOBRE UM PATRIMÓNIO DEGRADADO
infestante, ainda é possível observar o abobadado do poço, revestido a enxilharia. Em virtude de uma grave inundação dos trabalhos subterrâneos, em 1847, os técnicos franceses Michon e Casimir Pierre, procederam à abertura de uma galeria de esgoto, a galeria Santa Bárbara, estrutura que permitiu o reconhecimento de um novo e extenso campo de lavra para nordeste. A abertura desta galeria veio trazer reconhecidas vantagens na progressão dos trabalhos subterrâneos, que persistiram até ao encerramento da mina, em 1967 (Pinto, 2006). Durante este período de mais de um século de lavra, viriam a ser abertos os poços Fontainhas (Calha de Água), o Lodi (Lodres), Caldas, Calha do Meio, Santo Amaro, São João, Vieira e Guimarães, alguns dos quais seriam convertidos em chaminés de ventilação (“Bocas de Ar”) que permitam não só a entrada dos mineiros das povoações da Serra e de Quiaios, mas também a circulação de madeiras e outros materiais (Pinto e Callapez, 2006; 2009). Por fim, a galeria de rolagem Nova Mondego, aberta a partir de 1927, viria a simplificar em muito toda a lavra mineira, melhorando acessibilidades e o escoamento da produção (Pinto, 1921) (Fig. 11). A localização destas estruturas é conhecida e tem vindo a ser inventariada, ao longo dos últimos anos, pelo primeiro dos autores do presente estudo, um dos geólogos figueirenses que à temática da mina se têm dedicado, cientes da importância do seu valor patrimonial. Não obstante a sua relevância, encontram-se hoje ocultas por um denso matagal, no meio de tojos, silvas e acácias, facto que acaba por as proteger. A mesma sorte não têm chaminés de ventilação, facilmente localizáveis e sujeitas a atos de vandalismo, inclusive por parte de caçadores de tesouros (Fig. 12).
Nota final
O Cabo Mondego desperta paixões e muitas contradições, como algo que nada vale e, ao mesmo tempo, vale tudo. Congrega paisagens e uma envolvente natural de excelência, a que se aliam vivências humanas enraizadas na cultura local e no percurso histórico que conduziu à modernidade de um país, outrora virado para o mar que esse mesmo cabo e as suas riquezas carboníferas desde há muito confrontam. A Figueira da Foz, cidade dinâmica e em expansão que faz do turismo e da cultura alguns dos seus principais atributos, muito poderia ganhar com um retorno efetivo a este espaço, transformando-o num polo de atração regional, capaz de atrair um público diverso e de gerar oportunidades de desenvolvimento, como, aliás, se faz noutros países, em que o património mineiro e industrial não é esquecido, mas, pelo contrário, recuperado e valorizado para bem da comunidade e da memória coletiva.
Figura 12 - Chaminé do Poço Guimarães, fotografia de setembro de 2019. Coleção J. S. Pinto.
254
A EXPLORAÇÃO DA MINA DE CARVÃO DO CABO MONDEGO: BREVE APONTAMENTO SOBRE UM PATRIMÓNIO DEGRADADO
Agradecimentos P. Callapez participou neste estudo com o apoio do CITEUC, Centro de Investigação da Terra e do Espaço da Universidade de Coimbra (FCT), e do projeto de investigação HISTIGUC, ref. FCT: PTDC.FER-HFC.30666. José Brandão agradece o apoio institucional do HTC-História, territórios, comunidades/CEF.
ROCHA, Rogério et al. (1981). Carta Geológica de Portugal na escala de 1:50 000. Notícia explicativa da folha 19-C Figueira da Foz. Lisboa: Serviços Geológicos de Portugal. SANTOS, José Moreira (1981). Complexo Industrial do Cabo Mondego – Sua origem e Evolução Através dos Tempos. Cadernos Municipais da Câmara Municipal da Figueira da Foz, 10, pp. 1-109. SOLLA, Luís de Castro (1970). Primeiros tempos da Mina do Cabo Mondego. Boletim de Minas, 7 (1), pp. 5-47.
Referências bibliográficas CHOFFAT, Paul (1880). Étude stratigraphique et paléontologique des terrains jurassiques du Portugal. Premiére livraison. Le Lias et le Dogger au nord du Tage. Lisboa: Secção dos Trabalhos Geológicos de Portugal. PINTO, António Cardoso (1921). Relatório sobre a mina de carvão do Cabo Mondego. [Documento interno datilografado]. Figueira da Foz: Companhia Industrial e Mineira de Portugal. PINTO, José Manuel Soares (2006). Contribuição para o conhecimento do património mineiro do Cabo Mondego: sua importância museológica. In LOPES, F. C. e CALLAPEZ, P. M. (eds.), As Ciências da Terra ao serviço do ensino e do desenvolvimento. Figueira da Foz: Kiwanis Clube da Figueira da Foz, pp. 119-132. PINTO, José Manuel Soares e CALLAPEZ, Pedro Miguel (2006). O património mineiro do Cabo Mondego. Litorais, Revista de estudos figueirenses, 4, pp. 67-80. PINTO, José Manuel Soares e CALLAPEZ, Pedro Miguel (2009). Sinistros ocorridos na Mina de Carvão do Cabo Mondego. Litorais, Revista de estudos figueirenses, 10, pp. 43-54. PINTO, José Manuel Soares et al. (2015). A mina de carvão do Cabo Mondego: 200 anos de exploração. In BRANDÃO, José Manuel e NUNES, Maria de Fátima, Memórias do carvão. Batalha e Porto de Mós: Edição conjunta da Câmara Municipal da Batalha e da Câmara Municipal de Porto de Mós, pp. 235-258. RIBEIRO, Carlos (1858). Memórias sobre as minas de carvão dos districtos do Porto e Coimbra, e de carvão e ferro do districto de Leiria. Vol. I, parte II. Lisboa: Academia Real das Sciencias.
255
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Sobre a importância da ocorrência de celestite no Cabo Mondego: singularidade, importância científica e implicações materiais On the importance of celestite occurrence in Cabo Mondego (Jurassic, West Portugal): uniqueness, scientific importance and material implications Ricardo Jorge Pimentel1 . José M. Soares Pinto2 . José Manuel Brandão3 . Pedro Miguel Callapez4 . Rodrigo Pinto5
1
Agrupamento de Escolas de Guia, Guia, Pombal | ricardo.pimentel@aeguia.edu.pt Agrupamento de Escolas Figueira Mar, Escola Secundária Dr. Bernardino Machado, Figueira da Foz | jvonpintoff@live.com 3 Universidade NOVA de Lisboa, HTC-História, territórios, comunidades, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/CEF | jbrandao@fcsh.unl.pt 4 Universidade de Coimbra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Departamento de Ciências da Terra, CITEUC | callapez@dct.uc.pt 5 Museu Municipal Santos Rocha, Divisão de Cultura, Município da Figueira da Foz | rhodes@gmail.com 2
256
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
Em finais da década de 1970, aquando do início da lavra da nova pedreira norte do Cabo Mondego, verificou-se o aparecimento, nas frentes de desmonte, de uma grande quantidade de geodes e nódulos contendo cristais prismáticos e massas radiais de cor branca, ocasionalmente com tons de azul claro, de celestite (sulfato de estrôncio). Esta ocorrência de celestite já era conhecida desde o século XIX, considerando-se excecional no contexto nacional e constituindo assim, a par da celestite do túnel do Rossio (Lisboa), a mais notável ocorrência conhecida deste mineral em Portugal. As mineralizações de celestite e restante paragénese desenvolveram-se, por processos diagenéticos, no interior de fósseis de amonites. Amostras de celestite figueirense foram utilizadas em trabalhos pioneiros que fazem parte de textos clássicos da Mineralogia e Cristalografia do século XIX e primeiro quartel do século XX.
In the late 1970’s, when the new northern Cabo Mondego quarry began to mine, a large number of geodes and nodules containing prismatic crystals and white masses, occasionally with hues of light blue, of celestine (strontium sulphate) appeared on the blasting fronts. This occurrence of celestine has been known since the 19th century, being considered exceptional in the national context and thus constituting the most remarkable known occurrence of this mineral in Portugal. Celestine and paragenesis developed, by diagenetic processes, inside ammonite fossils. Samples were used in pioneering works about this mineral species that are part of classical Mineralogy and Crystallography texts from the 19th century and first quarter of the 20th century.
Palavras-chave: Celestite; Ocorrência mineral; Mineralogia; Cabo Mondego (Portugal).
Keywords: Celestine; Mineral occurrence; Mineralogy; Cabo Mondego (Portugal). 257
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA OCORRÊNCIA DE CELESTITE NO CABO MONDEGO: SINGULARIDADE, IMPORTÂNCIA CIENTÍFICA E IMPLICAÇÕES MATERIAIS
A celestite na diversidade geológica do Cabo Mondego Desde a Pré-história, o Homem terá procurado descobrir e transformar novas matérias-primas geológicas, como forma de evolução tecnológica e cultural. A figura de um prospetor/mineiro conduziu a um conhecimento geológico empírico do território, muito precoce. Esse conhecimento terá permitido reconhecer a diversidade mineralógica e lítica do espaço envolvente a cada comunidade. A diversidade mineralógica e lítica não é exclusiva das regiões do interior de Portugal, onde predominam litologias mais antigas, mais ricas em mineralizações e rochas, aproveitadas pelas sociedades pré-históricas e, como tal, frequentemente encontradas em contextos arqueológicos; refiram-se, como exemplos maiores, ouro, cobre, estanho e, mais raramente variscite e turquesa, e as rochas duras como o anfibolito, xisto anfibólico e cherte. O Cabo Mondego, parte integrante da unidade morfoestrutural Orla Mesocenozoica Ocidental de Portugal, apresenta uma estrutura monoclinal, formada por espessa série jurássica, basculada para sul (Rocha et al., 1981), e constitui um excelente exemplo de que a diversidade também pode estar presente em contextos sedimentares. Na Formação de Boa Viagem (Jurássico Superior) ocorre quartzo (vars. hialino e leitoso), quartzito e lidito, utilizados amiúde como matéria-prima em sítios de ocupação neolíticos, incluindo os que foram estudados por Santos Rocha (1853-1910). Já no tocante ao Complexo Carbonoso (Jurássico Superior), regista-se a exploração de carvões desde c. 1750, temática de proa da arqueologia industrial figueirense e nacional (e.g. Pinto et al., 2015). Também com ligação à arqueologia industrial, refira-se a marga e o calcário margoso, datados do Jurássico Médio e Superior, que foram largamente utilizados, desde o século XIX, para a produção de cal e cal hidráulica. Por seu turno, os calcários do 258
Jurássico Médio e Superior foram também usados para a construção de edificados desde a Idade do Ferro e Época Romana. No contexto do vastíssimo património geológico da região da Figueira da Foz, que muito deveria ser acarinhado, é de suma importância o legado paleontológico incluso nas rochas carbonatadas do Jurássico Médio e Superior do Cabo Mondego, acervo que abrange fósseis de excecional importância científica, histórica e museológica, sendo conhecido desde os finais do século XIX (Callapez et al., 2015). Acresce a este legado, uma diversidade mineralógica onde são principais protagonistas a calcite, a aragonite, a dolomite, a pirite, a marcassite, a hematite, o gesso, a anidrite e a celestite. Embora a celestite seja o mineral de estrôncio mais comum na natureza, o território nacional não é farto em ocorrências de nota. No entanto, a celestite das duas mais proeminentes localizações nacionais apresenta interesse em termos históricos e científicos. As amostras clássicas para Portugal foram coletadas nos calcários margosos do Batoniano-Caloviano (Jurássico Médio) (Pinto, Pereira e Silva, 1991; Pinto et al., 1991) da Formação de Cabo Mondego (Figueira da Foz) (Fig. 1) e em rochas do Cretácico Superior, aquando da construção do túnel do Rossio (Lisboa) (Choffat, Cotter e Girard, 1889).
Sobre a celestite A etimologia da celestite evoca a cor do céu. Trata-se de um sulfato de estrôncio (SrSO 4) do grupo da barite e da série da barite-celestite (Tabela I). À escala global, encontra-se em diversos ambientes geológicos, podendo apresentar origens sedimentar, epigenética e diagenética. Forma depósitos estratiformes; preenchimentos de fissuras e cavidades, em resultado da precipitação a partir de águas subterrâneas ricas em estrôncio e ocorre
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA OCORRÊNCIA DE CELESTITE NO CABO MONDEGO: SINGULARIDADE, IMPORTÂNCIA CIENTÍFICA E IMPLICAÇÕES MATERIAIS
Figura 1 - Calcários margosos do Batoniano-Caloviano, onde ocorre celestite, na Formação de Cabo Mondego. Fotografia de J. M. Soares Pinto, 2019.
Tabela I Informações genéricas relativas à celestite (Anthony et al., 2003: 122) Etimologia
Localidade tipo
Sistema cristalino
Maclas
Morfologia
Clivagem
do latim celestial em alusão ao tom azul
Bell's Mill, Bellwood, Blair Co., Pensilvânia, EUA
ortorrômbico
reportadas segundo {210} e {101}
tabular, prismática, lamelar, fibrosa, granular
perfeita segundo {001} boa segundo {210} pobre em {010}
Tenacidade
Fratura
Dureza
Densidade relativa
Brilho
Cor
vítreo, perlado
incolor, branco e em tons de azul claro, avermelhado, esverdeado, acastanhado e acinzentado
frágil
inexistente
3-3½ (Mohs)
3.96-3.98
259
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA OCORRÊNCIA DE CELESTITE NO CABO MONDEGO: SINGULARIDADE, IMPORTÂNCIA CIENTÍFICA E IMPLICAÇÕES MATERIAIS
em domos salinos e em depósitos hidrotermais com fluorite e sulfuretos de metais básicos. Ainda antes de Sir Humphry Davy (1778-1829) ter isolado o estrôncio (Davy, 1808), já este elemento era conhecido como constituinte de minerais provenientes de Strontian (Argyll, Escócia), nomeadamente da estroncianite. Este mineral, e o elemento desconhecido que continha, foi reconhecido em 1790, por Adair Crawford (1748-1795), aquando de estudos médicos em torno da utilização do bário (Crawford, 1790). No ano seguinte foi estudado e assim denominado por Friedrich Sulzer (1749-1830) e Johann Blumenbach (1752-1840) (Blumenbach, 1791). Nos primórdios das investigações em torno da celestite, grandes vultos da Mineralogia e da Química atribuíram-lhe uma miríade de designações. Andreas Schütz (1771-1807), denominou-a fasriger schwerspath (Schütz, 1791: 12); Louis Vauquelin (1763-1829), designou-a sulfate de strontiane (Vauquelin, 1796: 150-151); Martin Klaproth (1743-1817), batizou-a schwefelsaurer strontianite aus Pennsylvania (Klaproth, 1797: 92); Deodat Dolomieu (17501801), atribui-lhe a designação de Strontiane sulfatée cristallisée (Dolomieu, 1798: 203); Abraham Werner (1749-1817), designou-a por cöelestin (Werner, 1799: 183); Johann Georg Lenz (1748-1832), denominou exemplares sicilianos de sicilianit (Lenz, 1800: 234-235); Dietrich Ludwig Karsten (1768-1810), homenageou Andreas Schütz e renomeou-a Schützit (Karsten, 1800: 75); Thomas Thomson (1773-1852), preferiu sulfate of strontian e Baryto-sulfate of strontian (Thomson, 1836: 109-112) e Armand Lévy (1794-1841), no seu catálogo da coleção de Henri Heuland (1778-1856), empregou eschwegite (Lévy, 1837: 224) para uma variedade de celestite lamelar de Antônio Pereira (Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil), localidade mundialmente conhecida pelas jazidas de topázio var. imperial, honrando assim o barão Wilhelm Ludwig von Eschwege (1777-1855), 260
contratado pela coroa portuguesa na tentativa de desenvolvimento da mineração em Portugal e no Brasil (Choffat, 1913).
A génese da celestite do Cabo Mondego A celestite do Cabo Mondego ocorre em geodes e nódulos que preenchem o interior de moldes de amonites (Fig. 2), inclusas nos calcários margosos do Batoniano-Caloviano, sob a forma de cristais prismáticos (ortorrômbicos) e massas radiais de cor branca, ocasionalmente com tonalidade de azul claro (Pinto, Pereira e Silva, 1991; Pinto et al., 1991). Apesar da ocorrência de celestite em moldes de cefalópodes não ser inédita, tendo a devida nota em textos clássicos de mineralogia
Figura 2 - Celestite e dolomite em moldes de amonites da Formação de Cabo Mondego. Exemplar e fotografia de R. J. Pimentel, 2020.
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA OCORRÊNCIA DE CELESTITE NO CABO MONDEGO: SINGULARIDADE, IMPORTÂNCIA CIENTÍFICA E IMPLICAÇÕES MATERIAIS
Figura 3 (esquerda) - Presença de pirite na superfície de moldes de amonites da Formação de Cabo Mondego. Exemplar e fotografia de R. J. Pimentel, 2020. Figura 4 (direita) - Interior do molde de amonite da figura anterior. É observável um preenchimento da periferia para o interior com calcite, dolomite e celestite. Exemplar e fotografia de R. J. Pimentel, 2020.
(e.g. Lacroix, 1910: 111), é suficientemente incomum para que o sublinhemos e dele extraiamos importante significado tafonómico. Estes exemplares de amonites apresentam peliculas muito finas de pirite nas superfícies dos moldes (Fig. 3) e o seu interior expõe uma hierarquização nos minerais depositados: calcite, dolomite, celestite e gesso ou anidrite (Fig. 4). Nas diversas amostras analisadas foram identificadas quatro paragéneses: calcite + dolomite; calcite + celestite; calcite + dolomite + celestite + gesso e calcite + dolomite + anidrite (Pinto, Pereira e Silva, 1991: 391). Recentes trabalhos analíticos de difração de raios X, efetuados no Laboratório de Geoquímica e Raios-X do Departamento de Ciências da Terra da Universidade de Coimbra, confirmam a presença de celestite, calcite e de uma dolomite rica em ferro (Fig. 5). A celestite do Cabo Mondego deverá ter uma origem diagenética. A grande abundância em amonoides em certos estratos da Formação de Cabo Mondego sugere a atuação sindeposicional
de mecanismos biostratonómicos de time-averaging, sensu Fürsich (1990: 237), em depósitos condensados. Esta concentração de conchas de cefalópodes e sua posterior dissolução diagenética não terão sido alheias à génese desta ocorrência, não se configurando na formação desta celestite uma contribuição maioritária por precipitação direta do estrôncio da água do meio oceânico contemporâneo da deposição sedimentar. A estrutura básica da concha das amonites é composta por camadas de placas hexagonais de aragonite separadas por conchiolina. Da mesma forma que acontece com moluscos atuais, as amonites teriam incorporado estrôncio e magnésio na matriz das paredes e septos da sua concha aragonítica. Dado que a aragonite das conchas é um mineral metaestável, sofreu inversão polimórfica e transformou-se em calcite, ao longo do tempo, em função da pressão e temperatura do meio diagenético (Kulicki et al., 2015). Vários trabalhos indicam que, durante esta transformação, a aragonite liberta estrôncio, referindo-se valores de 8 000 ppm de estrôncio na rede cristalina da 261
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA OCORRÊNCIA DE CELESTITE NO CABO MONDEGO: SINGULARIDADE, IMPORTÂNCIA CIENTÍFICA E IMPLICAÇÕES MATERIAIS
Figura 5 (em cima) - O resultado de difração de raios X revelou preenchimento por celestite, calcite e dolomite. Trabalho analítico realizado por Carlos Maia, DCT - FCTUC, 2019. Figura 6 (em baixo à esquerda) - Molde de Reineckeiidae preenchido por cristais de calcite e gesso, Formação de Cabo Mondego, Caloviano. Exemplar e fotografia de R. J. Pimentel, 2019. Figura 7 (em baixo à direita) - Pormenor dos cristais de calcite e gesso, Formação de Cabo Mondego, Caloviano. Exemplar e fotografia de R. J. Pimentel, 2019.
262
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA OCORRÊNCIA DE CELESTITE NO CABO MONDEGO: SINGULARIDADE, IMPORTÂNCIA CIENTÍFICA E IMPLICAÇÕES MATERIAIS
aragonite, de 200 a 600 ppm na dolomite e de 400 ppm para a calcite (Kinsman, 1969). A diminuta taxa de sedimentação provocou, por certo, a existência de espaços vazios no fragmocone das amonites, apropriadas à precipitação de minerais (Fig. 6 e Fig. 7). A dissolução da concha (calcite e/ou aragonite) terá resultado da diminuição do pH, por aumento de pressão do CO2, em ambiente redutor, e terá gerado o CO32- necessário à precipitação dos carbonatos. A decomposição do material orgânico, em ambiente anóxico, seria fonte do SO42- para a precipitação dos sulfatos. A dissolução da concha teria contribuído para o fornecimento de Ca2+, Mg2+ e Sr2+ para a cristalização da calcite, dolomite e celestite. O facto de esta precipitação ocorrer no interior do fragmocone das amonites, conferindo um microambiente fechado, poderá explicar a precipitação de celestite em desfavor da anidrite e gesso, já que um ambiente aberto deveria manter uma concentração de iões Ca2+ e SO42- mais favorável à precipitação destes. Também é admissível que, em determinado momento, uma eventual limitação da disponibilidade dos iões sulfato desfavoreceria a precipitação de sulfatos de cálcio a favor da celestite, dada a maior solubilidade dos primeiros (Wood e Shaw, 1976).
A importância científica, histórica e didática da celestite do Cabo Mondego Exemplares de celestite do Cabo Mondego são conhecidos nas coleções de geognosia desde o século XIX. Ao conhecimento precoce deste mineral na Figueira da Foz poderá não ser alheio o facto de sobre a primeira mina de carvão portuguesa se terem debruçado, em estudos diversos, incontornáveis figuras da geologia nacional, incluindo Carlos Ribeiro (1813-1882), responsável pela Comissão Geológica de Portugal e Jacinto Pedro Gomes (1844-1916), um profundo conhecedor da mineralogia do país
(Gomes, 1898) e notável naturalista da Secção Mineralógica do Museu Nacional, anexo à Escola Politécnica de Lisboa, entre 1883 e 1916 (Choffat, 1916). A presença de exemplares de celestite figueirense em coleções antigas pode ser confirmada através da consulta ao Annuario da Academia Polytechnica do Porto, respeitante ao ano letivo de 1890-1891, em que é feita referência à oferta de algumas centenas de amostras de minerais, rochas e fósseis provenientes dos duplicados da Comissão Geológica e recebidas no ano anterior. Da coleção de minerais de Portugal, pertencente a esta instituição de ensino portuense, consta a referência a celestite do Cabo Mondego e calcite e celestite do túnel do Rossio (Fig. 8). Estas coleções eram utilizadas nos gabinetes auxiliares do ensino para apoio à 9.ª cadeira – Mineralogia, Paleontologia e Geologia – ministrada ano 4.º ano dos cursos de engenheiros civis de obras públicas, civis de minas, civis e industriais e no curso preparatório para a escola do exército, cujo lente proprietário era Wenceslau de Sousa Pereira de Lima (1858-1919) (Academia Polytechnica do Porto, 1891a; 1891b). Nas atuais coleções do Museu Geológico (LNEG, Lisboa) não foi possível encontrar quaisquer exemplares de celestite do Cabo Mondego; ao contrário do que acontece com as amostras provenientes do túnel do Rossio (exemplares n.ºs 99, 179 e 897), presumivelmente recolhidas por Paul Choffat1. O Museu Nacional de História Natural e da Ciência (Lisboa) possui um exemplar do Cabo Mondego, mas não tem quaisquer amostras do túnel do Rossio2. Refira-se que a Galeria de Minerais Bonifácio d’Andrada e Silva (Museu da Ciência, Universidade de Coimbra) possui dois exemplares do túnel do Rossio, cedidos pelo Museu Geológico3.
1
Informação obtida por J. M. Brandão em janeiro de 2020.
2
Informação obtida por J. M. Brandão em janeiro de 2020. A amostra foi oferecida por J. Soares Pinto em 1987. 3
Comunicação pessoal de J. Soares Pinto em janeiro de 2020.
263
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA OCORRÊNCIA DE CELESTITE NO CABO MONDEGO: SINGULARIDADE, IMPORTÂNCIA CIENTÍFICA E IMPLICAÇÕES MATERIAIS
Figura 8 - Exemplar de celestite proveniente do túnel do Rossio. Coleção de J. M. Soares Pinto e fotografia de R. J. Pimentel, 2020.
Durante os estudos relativos à celestite, efetuados nos finais do século XIX, os exemplares do Cabo Mondego aparecem em lugar de destaque, nomeadamente nos trabalhos de escola prussiana. A celestite, inclusa em moldes de amonites da costa de Quiaios e Buarcos, surge num trabalho de Carl Baerwald sobre a celestite (Baerwald, 1887; 1888). O trabalho apresenta resultados de análises químicas em material do Cabo Mondego, cedido por Andreas Eremeevich Arzruni (1847-1898), professor de mineralogia em Aachen (Alemanha), valores cristalográficos obtidos por Gustav Drabant e de eixos óticos medidos por P. J. de Kanter (Baerwald, 1888: 403): Cölestin von der Küste Quiaios und Buarcos (westlich Coimbra). Wasserhelle Krystalle, die mit solchen von Kalkspath die Kammern von Ammonites macrocephalus ausfüllen. Beobachtet: m = ∞P (110); c = OP (001); d = 1/2P∞ (102); 1 = 1/4P∞ (104); = P∞ (011); y = P2 (122). c ist glatt, d und 1 sind parallel, b gestreift. Bald
264
herrscht c bald d. Ha =55º 46’ für Li-Licht, =56º 34’ für Na-Licht,= 56º 49’ für Tl Licht.
A importância destes estudos em celestites do Cabo Mondego é tal que são citados e reproduzidos os dados analíticos supra em diversas obras importantes, como o clássico da mineralogia ibérica Los Minerales de España (Calderón 1910: 171) de Salvador Calderón (1851-1911) ou extensos compêndios de mineralogia química, como é o caso de Handbuch der Mineralchemie (Doelter, 1929: 206), editado por Cornelio Doelter (1850-1930) e pelo seu discípulo Hans Leitmeier (1885-1967). A propósito de outra notável celestite portuguesa, incluída em primeiros estudos mineralógicos, refira-se que o naturalista espanhol Federico de Chaves (1869-1936) apresentou um estudo cristalográfico da celestite do túnel do
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA OCORRÊNCIA DE CELESTITE NO CABO MONDEGO: SINGULARIDADE, IMPORTÂNCIA CIENTÍFICA E IMPLICAÇÕES MATERIAIS
Rossio, efetuado em exemplares fornecidos pelo geólogo andaluz José Macpherson (1839-1902) (Chaves, 1893). A esta posse, de amostras do túnel do Rossio por parte de Macpherson, poderá não ser estranha a estreita relação entre diversos nomes da geologia espanhola e os notáveis Carlos Ribeiro e Nery Delgado (1835-1908) (Atalá-Gorgues e Carneiro, 2013).
Considerações finais Por ser localmente abundante, fácil de recolher e esteticamente apelativa, é provável que a celestite tenha despertado curiosidade e interesse nos antigos habitantes da região, desde a Pré-história. No entanto, a relativa fragilidade deste mineral, resultante das suas propriedades físicas (e.g. dureza, tenacidade e clivagem) e demais características, teria dificultado a sua utilização na confeção de adornos e outros artefactos. Até ao presente, não se encontraram indícios da sua presença em contextos funerários ou arqueológicos em geral, explorados por Santos Rocha ou outros autores nas vizinhanças da Figueira da Foz; esta teria sido preterida em prol de outros minerais, entre os quais turquesa, variscite, calcedónia (var. cornalina e var. jaspe), opala, pirite, fluorite ou quartzo (hialino), oriundos de jazidas existentes no Maciço Hespérico. Em território bafejado por importante património geológico e arqueológico, esta ocorrência de celestite, com marca na história dos estudos mineralógicos e cristalográficos, representa mais uma valorização a adicionar ao já vasto e importante património geológico do Cabo Mondego, que a todos nos importa conservar, valorizar e divulgar.
265
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA OCORRÊNCIA DE CELESTITE NO CABO MONDEGO: SINGULARIDADE, IMPORTÂNCIA CIENTÍFICA E IMPLICAÇÕES MATERIAIS
Referências bibliográficas ACADEMIA POLYTECHNICA DO PORTO (1891a). Annuario da Academia Polytechnica do Porto, Anno lectivo de 1890-1891. Porto: Typographia Occidental. ACADEMIA POLYTECHNICA DO PORTO (1891b). Catálogo do Gabinete de mineralogia, geologia e paleontologia da Academia Polytechnica do Porto. Porto: Typographia Occidental. ANTHONY, John et al. (2003). Handbook of Mineralogy. Borates, Carbonates, Sulfates, vol. V. Tucson: Mineral Data Publishing. ATALÁ-GORGUES, Jésus e CARNEIRO, Ana (2013). Like birds of a feather: The cultural origins of Iberian geological cooperation and the European Geological Map of 1896. The British Journal for the History of Science, 46(1), pp. 39-70. BAERWALD, Carl (1887). Untersuchung einiger Cölestine. Zeitschrift für Kristallographie und Mineralogie, 12, pp. 228-233. BAERWALD, Carl (1888). Untersuchung einiger Cölestine. Neues Jahrbuch für Mineralogie, Geologie and Paläontologie, vol. I, p. 403. BLUMENBACH, Johann (1791). Ueber den Strontianit, ein Schottisches Fossil, das ebenfalls eine neue Grunderde zu enthalten scheint. Bergmännisches Journal, vol. I, n.º 5, pp. 433-435. CALDERÓN, Salvador (1910). Los Minerales de España. Junta para Ampliación de Estudios e Investigaciónes Científicas, Vol. II. Madrid: Imprenta Eduardo Arias. CALLAPEZ, Pedro Miguel et al. (2015). A mina de carvão do Cabo Mondego e a Paleontologia portuguesa. In BRANDÃO, José Manuel e NUNES, Maria de Fátima (eds.), Memórias do carvão. Batalha: Câmara Municipal da Batalha e Câmara Municipal de Porto de Mós, pp. 27-50. CHAVES, Federico (1893). Nota cristalográfica sobre las celestinas de la Península. Anales de la Sociedad Española de Historia Natural, 22, pp. 94-97. CHOFFAT, Paul Léon (1913). Biographies de Géologues Portugais – Le Baron D’Eschwege. Comunicações do Serviço Geológico de Portugal, 9, pp. 180-214. CHOFFAT, Paul Léon (1916). Biographie de Géologues Portugais – Jacinto Pedro Gomes. Comunicações do Serviço Geológico de Portugal, 11, pp. 124-131.
266
CHOFFAT, Paul Léon; COTTER, Jorge Cândido Berkeley e GIRARD, Albert (1889). Etude Géologique du Tunnel du Rocio. Contribution à la connaissance du sous-sol de Lisbonne. Mémoires de la Commission des Travaux Géologiques du Portugal, pp. 1-106. CRAWFORD, Adair (1790). On the Medicinal Properties of Muriated Barytes. Medical Communications. Society for Promoting Medical Knowledge, 2, pp. 301-359. DAVY, Humphry (1808). Electro-chemical researches on the decomposition of the earths; with observations on the metals obtained from the alkaline earths, and on the amalgam procured from ammonia. Royal Society of London, Philosophical Transactions, 96, pp. 333-370. DOELTER, Cornelio (1929). Die wasserfreien Sulfate von Ca, Sr, Ba. In DOELTER, Cornelio e LEITMEIER, Hans (eds.), Sulfate, Chrom, Molybdän, Wolfram, Uran, Haloidsalze und Salzlagerstätten (1.ª ed.). Dresden e Leipzig: Theodor Steikoff, pp. 179-252. DOLOMIEU, Deodat (1798). Sur la Strontiane sulfatée cristallisée. Journal de Physique, de Chimie et d’Histoire Naturelle, 46, p. 203. FÜRSICH, Franz (1990). Fossil concentrations and life and death assemblages. In BRIGGS, Derek e CROWTHER, Peter (eds.), Palaeobiology. A synthesis. Londres: Blackwell Science, pp. 235-239. GOMES, Jacinto Pedro (1898). Mineraes descobertos em Portugal. Communicações da Comissão dos Trabalhos Geológicos de Portugal, 3, pp. 1-199. KARSTEN, Dietrich Ludwig (1800). Tabellarische Uebersicht der mineralogisch - einfachen Fossilien. Mineralogische Tabellen (1.ª ed.). Berlim: Heinrich Rottmann. KINSMAN, David (1969). Interpretation of strontium concentrations in carbonate minerals and rocks. Journal of Sedimentary Petrology, 39, pp. 486-508. KLAPROTH, Martin (1797). Beiträge zur chemischen Kenntnisse der Mineralkörper, vol. II. Berlim: Einrich August Rottmann e Posen: Decker und compagnie. KULICKI, Cyprian et al. (2015). Ammonoid Shell Microstructure. In KLUG, Christian et al. (eds.), Ammonoid Paleobiology: From anatomy to ecology. Topics in Geobiology, 43. Dordrecht, Heidelberga, Nova Iorque, Londres: Springer Verlag, pp. 321-368. DOI: 10.1007/978 94 017 9630 9
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA OCORRÊNCIA DE CELESTITE NO CABO MONDEGO: SINGULARIDADE, IMPORTÂNCIA CIENTÍFICA E IMPLICAÇÕES MATERIAIS
LACROIX, Alfred (1910). Minéralogie de la France et de ses Colonies: description physique et chimique des minéraux, étude des conditions géologiques de leurs gisements, vol. IV. Paris: Librairie Polytechnique, Ch. Béranger, Éditeur. LENZ, Johann Georg (1800). System der Mineralkörper mit Benutzung der neuesten Entdeckungen. Bamberg e Würzburg: Tobias Göbhard fel. Wittib.
WERNER, Abraham (1799). In EMMERLING, Ludwig August (ed.). Lehrbuch der Mineralogie. Giefsen: Georg Heyer. WOOD, Morris e SHAW, Harry (1976). The geochemistry of celestites from the Yate area near Bristol (U.K.). Chemical Geology, 17, pp. 179-193.
LÉVY, Armand (1837). Description d’une collection de minéraux formée par M. Henri Heuland, et appartenant à M. Ch. H. Turner, de Rooksnest, dans le comté de Surrey en Angleterre, vol. I. Londres: Adolphe Richter et Compagnie. PINTO, José Soares; PEREIRA, Luís Gama e SILVA, Fernando Gomes (1991a). Sobre a ocorrência de celestite (em moldes de amonites) nos calcários margosos do Cabo Mondego (Portugal central). Memórias e Notícias, Publicações do Museu e Laboratório Mineralógico e Geológico da Universidade de Coimbra, 122, pp. 383-394. PINTO, José Soares et al. (1991b). Sobre a ocorrência de celestite em moldes de amonites no Cabo Mondego. Actas do III Congresso Nacional de Geologia, Coimbra, outubro de 1991, p. 127. PINTO, José Soares et al. (2015). A mina de carvão do Cabo Mondego: 200 anos de exploração. In BRANDÃO, José Manuel e NUNES, Maria de Fátima, Memórias do carvão. Câmara Municipal da Batalha e Câmara Municipal de Porto de Mós, pp. 235-258. ROCHA, Rogério et al. (1981). Carta Geológica de Portugal na escala 1: 50 000. Notícia explicativa da folha 19 C, Figueira da Foz. Lisboa: Serviços Geológicos de Portugal. SCHÜTZ, Andreas (1791). Beschreibung einiger Nordamerikanischen Fossilien. Leipzig: Gommer. THOMSON, Thomas (1836). Outlines of Mineralogy, Geology, and Mineral Analysis, vol. I. Londres: Baldwin e Cradock. VAUQUELIN, Louis (1796). Du sulfate de strontiane. Journal de Physique, de Chimie et d’Histoire Naturelle, 3, pp. 150-152.
267
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Do Cabo Mondego à Estação CP – António da Silva Guimarães e a Linha do Americano From Mondego Cape to the railway station – António da Silva Guimarães and the “Americano” railway Inês Pinto1 . Ana Domingues2
1
Divisão de Cultura, Município da Figueira da Foz. Univ Coimbra Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património, FLUC | ines.pinto@cm-figfoz.pt 2 Arquivo Fotográfico Municipal, Divisão de Cultura, Município da Figueira da Foz | ana.domingues@cm-figfoz.pt
268
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
Apresenta-se neste trabalho uma breve resenha sobre o homem António da Silva Guimarães na forma do seu contributo para o desenvolvimento socioeconómico e urbanístico da Figueira da Foz. Oficial da Marinha mercante portuguesa, natural de Lisboa, juntamente com outros sócios, em 1870 cria a Empresa das Minas de Carvão do Cabo Mondego, denominada em 1873 Companhia Mineira e Industrial do Cabo Mondego. Para além do setor industrial, esta empresa foi responsável por uma das maiores evoluções urbanísticas e viárias com a criação de uma ligação entre o Cabo Mondego e o caminho-de-ferro, através da Linha do Americano.
This work presents a brief review about António da Silva Guimarães in the form of his contribution to the socioeconomic and urban development of Figueira da Foz. Officer of the portuguese merchant navy, born in Lisbon, together with other partners, in 1870 he created the Empresa das Minas de Carvão do Cabo Mondego, named in 1873 Companhia Mineira e Industrial do Cabo Mondego. In addition to the industrial sector, this company was responsible for one of the biggest urban and road developments with the creation of a connection between the Mondego Cape and the railroad, through the American railway.
Palavras-chave: Cabo Mondego; António da Silva Guimarães; Linha do Americano; Bairro Novo; Barra da Figueira da Foz.
Keywords: Mondego Cape; António da Silva Guimarães; American railway; Bairro Novo; Figueira da Foz harbor. 269
DO CABO MONDEGO À ESTAÇÃO CP – ANTÓNIO DA SILVA GUIMARÃES E A LINHA DO AMERICANO
António da Silva Guimarães (1835-1903) em 1890, aos 12 anos de idade5 e legitimado no Nascido a 11 de fevereiro de 1835, António foi batizado a 3 de março na paróquia de Santos-o-Velho, Lisboa, sendo filho de Francisco José da Silva Guimarães, natural de Santo Estevão de Barrosas, Lousada e de Marianna Carmellina Mourinello, batizada em Santos-o-Velho, Lisboa1; neto paterno de Manuel Pereira da Silva e Caetana Gomes, de Paços de Ferreira e materno de Joaquim de Sousa e Antónia Maria. Em 1867, com 32 anos, já estaria a residir na Figueira da Foz, tendo-se enamorado por uma jovem de Buarcos, de seu nome Rosa Guerra Martins, com quem teve um filho. No entanto, por motivos que desconhecemos, esta união só foi legitimada em 1903. Rosa Guerra Martins, nascida em 18 de abril de 1858 e batizada a 17 de maio na Igreja de São Pedro em Buarcos, era filha de Francisco Martins e de Comba d’Abreu Guerra, neta paterna de João Martins e de Anna Pereira Soares e materna de António d’Abreu Guerra e de Escolástica Rodrigues, todos naturais de Buarcos2. A 23 de agosto de 1878, Rosa, solteira, com autorização do pároco de Buarcos, batizou um filho na Igreja de São Martinho de Tavarede, nascido a 18 de abril desse ano, em Buarcos, a quem deu o nome de Gualdino, sem indicação da respetiva filiação paterna3. Gualdino Hermenegildo Guimarães4 viria a ser perfilhado
ato de celebração do casamento de seus pais6. Na primeira hora da tarde do dia 3 de janeiro de 1903, o prior José Augusto Esteves de Carvalho foi chamado de urgência à Rua Fernandes Coelho, n.º 9, na Figueira da Foz, para celebrar o casamento de António da Silva Guimarães, de 67 anos, com Rosa Guerra Martins, de 44 anos, encontrando o nubente “no leito e em imminente perigo de vida, como consta do respectivo attestado medico”7. António da Silva Guimarães viria a falecer às 20h00 dessa mesma noite, na sua habitação, tendo sido sepultado no Cemitério dos Prazeres em Lisboa8. De acordo com a imprensa da época, o cortejo fúnebre foi algo que nunca se vira antes na Figueira da Foz, a que toda a cidade acorreu. Acompanhado por todas as classes sociais, a enorme multidão acompanhou o corpo até à estação de caminho-deferro, de onde partiu para Lisboa, de comboio, acompanhado pelo filho9. Em sua homenagem, em novembro de 1904, a Câmara Municipal deliberou atribuir o seu nome à rua da Alegria, “que fica em frente dos escritórios d’aquella Empresa [Empresa Mineira e Industrial do Cabo Mondego] entre o Largo do Coronel Galhardo e a extremidade ocidental da rua dos Banhos”10, imortalizando o seu nome na toponímia da cidade, no coração do Bairro de Novo. Nascia assim a Esplanada António da Silva Guimarães.
1 ANTT - Prq. de Santos-o-Velho, Livro de Batismos 1834-1839, fl. 62v.
5 Conforme referência no registo de casamento de António da Silva Guimarães e de Rosa Guerra Martins, ao instrumento de perfilhação lavrado pelo tabelião Jorge Filippe Cosmelli, a 04-101890, em Lisboa.
2
AUC - Prq. de Buarcos, Livro de Batismos, 1830-1859, fl. 94. AUC - Prq. de Tavarede, Livro de Batismos, 1877. Assento n.º 24, fl. 112.
3 4
Em 12-02-1930, com 52 anos, casou com Siomara de Oliveira Roque Guimarães, de 47 anos, legitimando neste casamento os três filhos que tinham: Rosa Maria Guimarães, nascida a 03-04-1902, António José Guimarães, nascido a 07-08-1906 e Carmelina Guilhermina d’Oliveira Guimarães, nascida a 17-10-1915. Gualdino faleceu a 10-09-1944, em sua casa na Rua Doutor Calado, tendo sido sepultado no Cemitério Setentrional e depois transladado para o Cemitério dos Prazeres em Lisboa em junho de 1977. AUC - CRCFF: Casamentos, 1930, 1.º livro, averbamento n.º 25, fl. 263; Óbitos, 1938, 2.º livro, averbamento n.º 540, fl. 271v e 1944, 2.º livro, averbamento n.º 580, fl. 291v.
6 António da Silva Guimarães e Rosa Guerra Martins declararam, perante as testemunhas, “que anteriormente a este seu casamento haviam já d’entre si um filho de nome Gualdino Hermenegildo Guimarães que por esta forma legitimavam para todos os effeitos legaes (…)”. AUC - Prq. de São Julião, Livro de Casamentos, 1897-1904, assento n.º 1, fl. 1v. 7 AUC - Prq. de São Julião, Livro de Casamentos, 1897-1904, assento n.º 1, fl. 1-3. 8
AUC - Prq. de São Julião, Livro de Óbitos, 1897-1904, assento n.º 4, fl. 2. 9
A Voz da Justiça, 01-01-1903: 3.
10
270
AHMFF - Ata n.º 46, 03-11-1904, fl. 37.
DO CABO MONDEGO À ESTAÇÃO CP – ANTÓNIO DA SILVA GUIMARÃES E A LINHA DO AMERICANO
António da Silva Guimarães e a sua relação prémios obtidos por esta empresa, em exposições nacionais e internacionais a que concorreu com os com a Figueira da Foz Após uma visita à Figueira da Foz, na companhia do seu amigo João Artur Pereira Caldas, a qual António da Silva Guimarães dizia já conhecer por mar, acabaram por ficar e investir nesta cidade (Nogueira, 1937: 84-85). Tendo ingressado na Marinha Portuguesa11, veio a tornar-se um distinto oficial da marinha mercante nacional, comandou alguns vapores de passageiros entre o Brasil e vários portos europeus (Nogueira, 1937: 84-85), conseguindo avultados meios financeiros12, com os quais adquire, juntamente com João Artur Pereira Caldas, em 1867, os direitos de exploração da mina de carvão de pedra do Cabo Mondego13. Em 18 de janeiro de 1870, a Empresa das Minas de Carvão do Cabo Mondego (Goulão, 2016: 53), alterando a sua designação para Companhia Mineira e Industrial do Cabo Mondego em 1873, altura em que o Marquês de Sousa Holstein se juntou a esta empresa. Para além da mina, esta companhia possuía fábricas de vidro, de cimento e cal hidráulica, de cal gorda e de produtos cerâmicos. Espírito eminentemente progressivo e liberal, empreendedor e inteligente, fanático pelo trabalho, António da Silva Guimarães conseguiu dar um impulso favorável e prometedor de desenvolvimento à Empreza Exploradora das Minas e Indústria do Cabo Mondego, chegando a empregar 700 operários. Homem viajado, percorreu a Bélgica para estudar as explorações mineiras, procurando sempre melhorar os processos utilizados nas suas indústrias. Não havia boa ideia que não acolhesse. Entre os 11 AHM - Álbum n.º 5 de Fotografias de Praças, Bilhete de Identidade
n.º 6744, p. 164. 12 13
A Voz da Justiça, 04-01-1903: 2.
Através de escritura de 28-11-1867, João Artur Pereira Caldas adquire ao Conde do Farrobo os direitos de exploração da mina de carvão de pedra do Cabo Mondego, Figueira da Foz, ficando a pagar 1 conto de réis de pensão anual por tempo indefinido. (Silvestre, 2012: Quadro VII).
seus produtos, recebeu a medalha de ouro na Exposition Universelle de Paris de 1889 (Goulão, 2016: 79). Benemérito de institutos de caridade desta cidade14, era venerado em toda a cidade e adorado pelos seus numerosos empregados e operários. Não enriqueceu com seu trabalho, mas contribuiu para o sustento de muitos trabalhadores, apoiando também o ensino.
A Linha do Americano Para além do desenvolvimento económico e social, uma das contribuições desta empresa para a evolução urbanística da Figueira da Foz foi a criação de uma ligação entre a estação do caminho-de-ferro e o Cabo Mondego, através da Linha do Americano, que veio a atingir uma extensão total de 7 800 metros, cuja concessão obteve parecer favorável em 1874 para carruagens puxadas por cavalos, em sistema de carris (Goulão, 2016: 59) (Fig. 1). Nesse ano teve início a construção do troço entre a mina do Cabo Mondego e o Cais de embarque da Figueira. Três anos depois, em 1877, a Linha do Americano abriu ao público, com particular afluência e rentabilidade no período de banhos. Em 1883 foi prolongada até à estação de caminhode-ferro, estabelecendo então a ligação entre o Cabo Mondego e a estação ferroviária. No seu período áureo, da qual apenas restam memórias, a Linha do Americano era servida por diversas estações ao longo do seu percurso, inclusive junto ao Bairro Novo, motivo pelo qual a esplanada, que se desenvolve como uma varanda voltada ao mar, foi escolhida para perpetuar a memória do distinto oficial da marinha mercante e grande empreendedor da empresa de exploração de minas e indústrias do Cabo Mondego, recebendo o nome de António da Silva Guimarães (Pinto, 2019: 125) (Fig. 2). 14
O Figueirense, 25-05-1974: 2.
271
DO CABO MONDEGO À ESTAÇÃO CP – ANTÓNIO DA SILVA GUIMARÃES E A LINHA DO AMERICANO
Figura 1 - O “Americano” de tração animal no complexo industrial do Cabo Mondego. Finais do século XIX, prova em papel sobre cartão, formato 10x15. Fundo do AFMFF.
272
DO CABO MONDEGO À ESTAÇÃO CP – ANTÓNIO DA SILVA GUIMARÃES E A LINHA DO AMERICANO
A Photografia Académica Conimbricense de Adriano A arte de perpetuar – a fotografia e o da Silva e Sousa, com filial na rua do Museu n.º 4 registo da memória Hoje o “Americano” é relembrado ao longo do seu antigo percurso na recriação de quiosques que recordam o mais icónico meio de transporte desta cidade, projeto sustentado e complementado com recurso ao documento imagético (Fig. 3). As espécies fotográficas são, acima de tudo, o testemunho de uma época, o relato vivo de um fotógrafo, que com a sua “subjetividade” nos relata acontecimentos, de extrema importância na construção do discurso histórico atual. O desenvolvimento da arte de fotografar, acompanhou outras áreas científicas, como a física e a química, e a esta escola foi “beber” novas técnicas que permitiram o surgimento de diversos processos fotográficos que marcaram a história desta arte. Os novos avanços tecnológicos, coadjuvados com o espírito criativo, de inovação e progresso, que caracteriza o século XIX, possibilitaram perpetuar o antigo, a permanência, a memória, galvanizando a ponte entre o passado e o presente (Domingues, 2004: 16). A fotografia rapidamente se tornou um hábito para uma sociedade (principalmente a europeia) ávida de novas descobertas que seriam, agora, passíveis de captar e mostrar. Na imprensa local figueirense são inúmeras as referências a fotógrafos e estúdios de fotografia desde 1876. Uns permanentes, outros sazonais, abriam as suas portas durante a época balnear que se iniciava em junho e prolongava até outubro/novembro. Durante a época considerada nobre, de agosto a setembro, chegavam à Figueira da Foz veraneantes sobretudo de Coimbra e Lisboa, famílias abastadas que procuravam nestas paragens as águas terapêuticas, também pretendidas por famílias espanholas, em particular de Madrid, o que engrandeceu consideravelmente a população na Figueira, tornando-se um local propício aos negócios sazonais. De Lisboa chegava Augusto Bobone proprietário da Photografia Nacional 15 e de Coimbra chegavam fotógrafos que prestavam também os seus serviços durante a época balnear. 15
Gazeta da Figueira, 27-10-1894, p. 2.
em Coimbra, é detentora de três sucursais na Figueira. Na rua dos Banhos, 59 (atual rua Maestro David Sousa), na rua da Inauguração, 44 (atual rua Cândido dos Reis) e rua da Boa União, 20 a 22 (atual rua Dr. Calado). J. Sartoris proprietário da Photografia União deslocava-se de Coimbra para a rua da Boa União, junto ao Teatro Circo Saraiva de Carvalho (mais tarde Casino Peninsular, hoje Casino da Figueira) e publicitava a produção de fotografia “desde 600 reis dúzia” 16. A casa fotográfica de César Ubaldi situada no Largo da Igreja17 mantém as suas portas abertas até outubro de 1897 e, no antigo Hotel Figueirense, funcionava o atelier da Photografia Imperial 18. A Photografia Avelar, em pleno Bairro Novo, anunciava a especialização em retratos para crianças “em tamanho natural desde 2$250 reis” 19. Estas casas situavam-se fundamentalmente no Bairro Novo de Santa Catarina (atualmente referido apenas como Bairro Novo), na zona que rodeia o Casino Peninsular, local privilegiado e procurado pelas casas de fotografia (Domingues, 2004: 24-25). A Photografia Europa, com loja na rua dos Banhos, 79 e a Photografia Pereira Monteiro, na rua Cândido dos Reis n.º 56, junto ao Café Europa deram também vida ao Bairro Novo. Fundada em 1902, a primeira referência data de 1919 no periódico A Voz da Justiça. Ainda em 1930 o periódico O Palhinhas publicitava este estabelecimento como “o primeiro estabelecimento fotográfico da Província” (Fig. 4). O património documental deixado por estes fotógrafos é fulcral para o estudo das alterações urbanísticas. As imagens coevas (finais do século XIX e inícios do século XX) assim o corroboram. Uma breve visualização das fotografias que se apresentam 16
Gazeta da Figueira, 25-07-1894, p. 4.
17
Correio da Figueira, 30-04-1892, p. 4.
18
Correspondência da Figueira, 24-09-1876, p. 4.
19
Correspondência da Figueira, 29-07-1886, p. 4.
273
DO CABO MONDEGO À ESTAÇÃO CP – ANTÓNIO DA SILVA GUIMARÃES E A LINHA DO AMERICANO
Figura 2 (em cima) - O “Americano” junto à esplanada Silva Guimarães. S/d., nitrato de celulose, formato 10x15. Coleção Casa Havanesa. Fundo do AFMFF. Figura 3 (em baixo) - Linha do “Americano” junto à esplanada Silva Guimarães com carruagens de mercadorias e de passageiros. S/d., prova em papel, formato 10x15. Fundo do AFMFF.
274
DO CABO MONDEGO À ESTAÇÃO CP – ANTÓNIO DA SILVA GUIMARÃES E A LINHA DO AMERICANO
permite observar a mudança e a dinâmica da cidade. Em finais do século XIX a Linha do Americano rasga a muralha da fortificação de Buarcos, alterando para sempre este edificado do século XVI (Fig. 5). Toda a linha de praia é transformada no século XIX, ganhando nova vida entre a deslocação de banhistas, de turistas, de visitantes. Desde cedo (meados do século XIX) que a Figueira da Foz é procurada por veraneantes (Cascão, 2009: 247) e com a abertura da Linha do Americano ao público, em 1877, são facilitadas as viagens internas e o acesso às praias, a nova rede viária agiliza e facilita a exportação de mercadorias. A cidade é “rasgada” pela linha férrea, projetada e desenvolvida pela Companhia Mineira e
Industrial do Cabo Mondego, presidida por António da Silva Guimarães, alterando de forma marcante o traçado da cidade, fomentando o seu desenvolvimento económico e populacional (Fig. 6). A cidade e a praia proporcionaram o crescimento e a difusão da fotografia que se torna popular e se massifica com o nascer do século XX (Fig. 7). Para as gerações vindouras ficaram registos impressionantes que hoje estão à guarda do Arquivo Fotográfico Municipal da Figueira da Foz. Atualmente com cerca de 240 000 imagens é detentor da memória fotográfica da cidade, e contribui de forma inequívoca para a construção e/ou reconstrução da História de uma comunidade (Fig. 8).
Figura 4 - A Linha do “Americano” atravessa o pano da muralha da fortificação de Buarcos. Finais do século XIX inícios do século XX, prova em papel formato 10x15. Fundo do AFMFF.
275
DO CABO MONDEGO À ESTAÇÃO CP – ANTÓNIO DA SILVA GUIMARÃES E A LINHA DO AMERICANO
Figura 5 (em cima à esquerda) - “Americano” de tração a motor. S/d., prova em papel formato 10x15. Fundo do AFMFF. Figura 6 (em cima à direita) - Linha do “Americano” junto à zona ribeirinha (Jardim Municipal). 1900, prova em papel formato 10x15. Fundo do AFMFF. Figura 7 (em baixo à esquerda) - O “Americano” de tração animal no trajeto até ao caminho-de-ferro (zona da doca). Finais do século XIX, prova em papel formato 10x15. Fundo do AFMFF. Figura 8 (em baixo à direita) - A chegada do “Americano” à estação dos caminhos-de-ferro. S/d, prova em papel com formato 10x15. Coleção Maurício Pinto. Fundo do AFMFF.
276
DO CABO MONDEGO À ESTAÇÃO CP – ANTÓNIO DA SILVA GUIMARÃES E A LINHA DO AMERICANO
Referências bibliográficas BAURET, Gabriel (1992). A Fotografia; história, estilos, tendências, aplicações. Lisboa: Edições 70. BOCCATO, V. R. C. e FUJITA, M. S. L. (2006). Discutindo a análise documental de fotografias: uma síntese bibliográfica. Cadernos BAD, pp. 84-89. CASCÃO, R. (2009). Monografia da Freguesia de S. Julião da Figueira da Foz. Figueira da Foz: Junta de Freguesia de S. Julião. DOMINGUES, Ana (2014). Digitalização e disponibilização de um espólio com thesaurus temático em plataforma digital: aplicação a casestudy do fundo da Casa Havanesa sobre a Figueira da Foz na Grande Guerra. Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras. Trabalho de projeto do Mestrado em Património Europeu, Multimédia e Sociedade de Informação. Acessível em https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/27250?mode=full GOULÃO, Sebastião (2016). O caso Cabo Mondego: O dever da arquitetura sobre o território abandonado. Departamento de Arquitetura da FCTUC, Coimbra. Acessível em http://hdl.handle.net/10316/41465 NOGUEIRA, Francisco (1937). Beneméritos – António da Silva Guimarães. Album Figueirense, Ano III, janeiro, n.º 3, pp. 84-85. PINTO, Inês Maria Jordão (2019). Percursos Turísticos na Figueira da Foz: patrimonialização e funcionalização do castelo Engenheiro Silva. FLUC, Coimbra. Acessível em http://hdl.handle.net/10316/86504
AHMFF - Arquivo Histórico Municipal da Figueira da Foz Ata n.º 46, de 03-11-1904, fl. 37. ANTT - Arquivo Nacional Torre do Tombo Paróquia de Santos-o-Velho, Livro de Registo de Batismos 18341839, fl. 62v. AUC - Arquivo da Universidade de Coimbra Paróquia de São Julião Livro de registo de Casamentos, 1897-1904, assento n.º 1, fl. 1-3. Livro de registo de Óbitos, 1897-1904, assento n.º 4, fl. 2. Paróquia de Buarcos Livro de Batismos, 1830/1859, fl. 94. Paróquia de Tavarede Livro de Batismos, 1877. Assento n.º 24, fl. 112. CRCFF - Conservatória do Registo Civil da Figueira da Foz Casamentos, 1930, 1.º livro, averbamento n.º 25, fl. 26. Óbitos, 1938, 2.º livro, averbamento n.º 540, fl. 271v. Óbitos, 1944, 2.º livro, averbamento n.º 580, fl. 291v. BPMPFT - Biblioteca Pública Municipal Pedro Fernandes Tomás Periódicos locais Correio da Figueira, 1892. Correspondência da Figueira, 1886. (O) Figueirense, 1974. Gazeta da Figueira, 1876 e 1894. (O) Palhinhas, 1930. (A) Voz da Justiça, de 11-01-1903. (A) Voz da Justiça, de 04-01-1903. (A) Voz da Justiça, 1919.
SILVESTRE, Susana Marta Delgado Pinheiro (2012). O Conde do Farrobo a ação e o mecenato no século XIX, vol. II. FCSH: Universidade Nova de Lisboa. Quadro VII - Relação dos bens imobiliários do Conde do Farrobo. Tese de doutoramento em História e Teoria das Ideias. Acessível em http://hdl.handle.net/10362/12291
Referências arquivísticas AFMFF - Arquivo Fotográfico Municipal da Figueira da Foz Coleção Casa Havanesa Coleção Maurício Pinto AHM - Arquivo Histórico de Marinha Álbum n.º 5 de Fotografias de Praças, Bilhete de Identidade n.º 6744, p. 164.
277
MATERIAIS (ARQUEOLÓGICOS) PARA A HISTÓRIA DA FIGUEIRA NOS SÉCULOS XVIII E XIX
Materiais (arqueológicos) para a História da Figueira nos séculos XVIII e XIX (Archaeological) materials for the History of Figueira in the 18th and 19th centuries José Ricardo Nóbrega1
1
Museu Municipal Santos Rocha, Divisão de Cultura, Município da Figueira da Foz | jose.nobrega@cm-figfoz.pt
278
MATERIAIS (ARQUEOLÓGICOS) PARA A HISTÓRIA DA FIGUEIRA NOS SÉCULOS XVIII E XIX
RESUMO
ABSTRACT
A primeira alteração ao Plano Diretor Municipal da Figueira da Foz, concretizada pela Câmara Municipal em finais de 2017, implicou a adoção de novos pressupostos nas intervenções urbanísticas doravante empreendidas sobre os núcleos urbanos mais antigos do concelho. Pelo facto de constituírem áreas urbanas com ocupação antrópica diacrónica, estas possuem um reconhecido potencial patrimonial e uma elevada sensibilidade arqueológica, heranças culturais que carecem de salvaguardas. No âmbito da empreitada municipal de “Requalificação das Ruas do Núcleo Antigo da Figueira da Foz”, a conjugação de esforços entre as especialidades de Engenharia e Arqueologia, está a permitir efetuar o reconhecimento e o cadastro do património edificado e arqueológico subsistente ao longo desta área classificada e protegida em sede de PDM. De facto, são as obras que ora se fazem que permitem contar a história das obras de outrora e, nessa medida, constituem uma oportunidade única de reconhecer e registar a evolução espacial e o desenvolvimento urbano da cidade e, especialmente, compreender a sua histórica relação simbiótica com o Rio Mondego. A população, desmemoriada relativamente à “época dourada” da História da Figueira da Foz, redescobre a cada praça, entroncamento ou rua intervencionada, amplas estruturas arqueológicas e infraestruturas edificadas, muitas delas ainda em funcionamento e ao serviço da atual cidade. Executadas através de complexas e dispendiosas obras hidráulicas, empreendidas pela Câmara Municipal ou pelo Estado Central ao longo dos séculos XVIII e XIX, estas constituem atualmente um importante património edificado e arqueológico das épocas Pombalina e Industrial, que urge reconhecer, estudar e, na medida certa, preservar e valorizar.
The first amendment to the Municipal Master Plan of Figueira da Foz, carried out by the Town Council in late 2017, implied the adoption of new assumptions for the urban interventions henceforth undertaken on the ancient urban centers of the municipality. Due to the fact that they constitute urban areas with diachronic anthropic occupation, they have a recognized heritage potential and high archaeological sensitivity, cultural heritages that need to be safeguarded. Within the scope of the municipal endeavor of “Requalification of the Streets of the Old Core of Figueira da Foz”, the combine efforts between the Engineering and Archaeology specialties is enabling the recognition and the registry of the remaining built and archaeological heritage, throughout this classified and protected area under the Municipal Master Plan. In fact, it is the contruction works now underway that allow us to reckon the history of the construction works of yore, and therefore, constitute a unique opportunity to recognize and record the town’s spatial evolution and urban development and, especially, to understand its historic symbiotic relationship with the Mondego River. The population, forgetful of the “golden age” of Figueira da Foz’s History, rediscovers in each intervened square, junction or street, wide archaeological structures and built infrastructures, many of them still in use and serving the present time town. Accomplished through complex and expensive hydraulic works undertaken by the Town Council or the Central State, throughout the 18th and 19th centuries, they currently constitute an important build and archaeological heritage of the Pombaline and Industrial periods, which must be recognized, studied, and rightly preserved and valued.
Palavras-chave: Estruturas portuárias; Infraestruturas hidráulicas; Arqueologia urbana; Urbanismo Pombalino.
Keywords: Port structures; Hydraulic infrastructures; Urban archaeology; Pombaline Urbanism.
279
MATERIAIS (ARQUEOLÓGICOS) PARA A HISTÓRIA DA FIGUEIRA NOS SÉCULOS XVIII E XIX
A empreitada municipal de “Requalificação das Ruas do Núcleo Antigo da Figueira da Foz”, iniciada em meados de 2018, é o exemplo e um dos primordiais meios para a implementação e concretização de grande parte dos objetivos gerais plasmados no novo PDM. Além de contribuir para a melhoria da qualidade de vida urbana e de promover a mobilidade e a acessibilidade de residentes e visitantes a esta zona da cidade, esta ampla e abrangente empreitada, possui uma importância estratégica para a cidade, dada a sua capacidade de induzir, exponencialmente, o investimento privado na reabilitação urbana e, em simultâneo, fomentar a reestruturação e a diversificação das atividades económicas e comerciais ali presentes (Fig. 1). No decurso deste tipo de empreitadas públicas, executadas em espaços e vias urbanas, a ocorrência de vestígios culturais do foro arqueológico ou patrimonial, acarreta sempre constrangimentos objetivos e dificuldades subjetivas, que a denominada Arqueologia de Salvamento, necessariamente tem de conhecer, gerir e dar resposta, tanto do ponto de vista técnico e prático, como ao nível científico e teórico. Em contexto de obra, cabe à Arqueologia acompanhar a execução dos trabalhos de Engenharia projetados, de modo a assegurar a atempada deteção, salvaguarda ou preservação dos vestígios patrimoniais e culturais já conhecidos ou que se verifique subsistirem ocultos nas áreas intervencionadas, através da aplicação das adequadas medidas de registo técnico e de minimização de impactes patrimoniais e culturais. No âmbito do acompanhamento arqueológico da empreitada municipal de “Requalificação das Ruas do Núcleo Antigo da Figueira da Foz”, o signatário verificou a subsistência, em plena Praça 8 de Maio (vulgo, Praça “Nova”), de um muro afeto a um antigo cais e de uma pequena rampa de alagem adossada a este (Fig. 2). Na origem deste arqueossítio está um imóvel ribeirinho, afeto a uma realidade paisagista, geológica, hidrológica e histórica, datável
280
dos séculos XVII ou XVIII e anterior à realidade urbana atualmente vigente neste local. Com efeito, este edifício foi originalmente construído sobre a margem nascente da antiga Praia da Reboleira, que ainda em 1783, compunha a área hoje ocupada pela atual Praça 8 de Maio (Rocha, 1893: 87-88). Nessa altura, um pequeno “braço de rio” adentrava a embocadura ribeirinha do largo, suave e baixo Vale da Reboleira, formando uma pequena enseada fluvial (Callapez, 2006: 11-14). Devido à sua natureza náutica, este arqueossítio está fundeado em meio húmido, sendo constituído pela conjugação e sobreposição de dois conjuntos de estruturas de cariz portuário, com funções análogas, mas pertencentes a duas realidades flúviomarítimas distintas, afetas a diferentes cronologias de construção, ocupação e abandono. Através da análise da figura 3 é possível constatar a subsistência de três elementos edificados diferenciados, com arquiteturas e funções distintas e parcialmente sobrepostos. Composto por dois fortes muros concorrentes, formando planta em ângulo obtuso, o edifício pertencia a D. Rodrigo da Cunha (Rocha, 1893: 171) e comporia um armazém ou entreposto comercial privado, vocacionado para comércio marítimo e fluvial, com caraterísticas e funções idênticas a tantos outros armazéns comerciais que povoavam a margem direita da foz do Rio Mondego, realidade urbana e paisagem ribeirinha que se mantiveram, sem alterações de monta, até ao último terço do século XIX. Aquando da execução dos aterros e terrapleno conducentes à constituição da Praça Nova da Reboleira (executados entre 1784 e 1789), a antiga enseada fluvial da Praia da Reboleira foi delimitada ao longo da sua embocadura através da edificação de um muro, sendo este imóvel demolido (c. 1787) ao nível do arranque do antigo piso térreo (Rocha, 1893: 170-171). Este muro, que constituiu o cais de acostagem público da nova praça, foi encostado ao exterior do embasamento do edifício preexistente, formando um ângulo. Finalmente, a este mesmo ângulo foi depois adossada uma pequena rampa de
MATERIAIS (ARQUEOLÓGICOS) PARA A HISTÓRIA DA FIGUEIRA NOS SÉCULOS XVIII E XIX
Figura 1 (em cima à esquerda) - Delimitação da área urbana, a vermelho, a intervencionar no âmbito da empreitada municipal de “Requalificação das Ruas do Núcleo Antigo da Figueira da Foz”. Figura 2 (em baixo à esquerda) - Vista geral, sentido sul-norte, do muro do cais e da rampa de alagem detetados sob o arruamento nascente da Praça 8 de Maio. Agosto de 2018. Fotografia do autor. Figura 3 (direita) - Ortofotomosaico do sítio arqueológico detetado no arruamento nascente da Praça 8 de Maio. Vista sul-norte.
281
MATERIAIS (ARQUEOLÓGICOS) PARA A HISTÓRIA DA FIGUEIRA NOS SÉCULOS XVIII E XIX
alagem, que foi encontrada em razoável estado de conservação e que compõe o elemento edificado mais recente dos três encontrados sob os aterros da atual Praça 8 de Maio (vulgo, Praça “Nova”) (Fig. 2 e Fig. 3). A construção da inicial Praça Nova da Reboleira, munida de um longo cais de acostagem público, anulou os vários cais privativos, de pequeno e médio porte, que anteriormente pontificavam nas margens laterais da praia fluvial desta enseada, a qual funcionou até 1784, como uma doca de abrigo natural que servia o porto da Figueira da Foz. Estas primitivas estruturas portuárias, fundadoras do imaginário coletivo figueirense, são verdadeiros elementos identitários e simbólicos da génese flúvio-marítima da povoação e do seu processo de afirmação enquanto importante porto no contexto do comércio marítimo nacional e transatlântico dos séculos XVII, XVIII e XIX. A sua descoberta permite aos arqueólogos e historiadores situar as antigas ocupações patentes nesta enseada, reconhecer a linha de costa aqui existente e quantificar a transformação operada sobre a primitiva enseada fluvial da Praia da Reboleira. Deste modo, comprova-se que o espaço urbano que hoje conforma a denominada Praça “Nova”, assim designada por contraste à sua congénere antecedente, localizada imediatamente a ocidente (a Praça “Velha”, constituída c. 1777-1782), partilha com esta a mesma morfologia geológica e uma análoga constituição de origem antrópica, resultando a criação destas duas praças públicas, de sucessivas obras de aterro e terraplanagem, executadas pela edilidade local durante o último quartel do século XVIII (Rocha, 1893: 3133; 40-41; 151). As transformações das fisionomias das antigas Praia da Ribeira (Praça “Velha”) e Praia da Reboleira (Praça “Nova”), permitiram a ocupação e a reconfiguração urbana das envolventes destes dois importantes espaços fluviais da Vila da Figueira, constituindo então, novas realidades físicas, que se
282
mantiveram, sem alterações de maior, até ao período conhecido como Regeneração (1851-1865), mas que permanecem por consubstanciar cientificamente, em face das poucas plantas, imagens ou fotografias conhecidas que as ilustrem (Fig. 4). Apesar de só agora localizados, a existência destes antigos cais públicos e estruturas portuárias privadas não era ignorada pelos historiadores, arqueólogos e investigadores locais. O roteiro histórico da evolução urban(ístic)a desta zona da atual cidade da Figueira da Foz, é uma pouco conhecida, mas muito importante, monografia local, editada pela primeira vez em 1893 e denominada Materiaes para a Historia da Figueira nos seculos XVII e XVIII. Da autoria de António dos Santos Rocha, insigne advogado, político, arqueólogo e historiador figueirense, esta constitui um verdadeiro ensaio antropogeográfico, no qual são descritos, pela primeira vez, os principais fatores socioeconómicos e políticos responsáveis pela emancipação administrativa e pelo crescimento físico do primitivo burgo da Figueira da Foz. Baseada unicamente em fontes escritas primárias dos séculos XVII e XVIII, oriundas de arquivos públicos e privados e de cartórios notariais locais, que o próprio autor logrou adquirir, compilar, interpretar e cruzar, conjuntamente com as suas observações e a recolha de testemunhos orais locais, esta compõe um pioneiro e inovador estudo historiográfico de marcado pendor geográfico, social e urbano. Aquando da sua publicação, pelo seu vanguardismo metodológico, rigor técnico e qualidade científica, depressa esta se impôs no panorama historiográfico nacional, como o protótipo de uma monografia técnica local de excelência (Vilhena, 1937: 23-26; Joaquim de Carvalho, 1954, Prefácio à 2.ª edição). Apesar da profundidade do seu alcance histórico e arqueológico (Jardim, 1911: 50-51), só agora, 125 anos depois, esta começa a merecer o devido reconhecimento e atestação material. Com efeito, a enorme quantidade de factos históricos e de informações geográficas, toponímicas
MATERIAIS (ARQUEOLÓGICOS) PARA A HISTÓRIA DA FIGUEIRA NOS SÉCULOS XVIII E XIX
Figura 4 - Rara fotografia da zona ribeirinha da Figueira da Foz, sendo visível a natureza rochosa da margem direita da foz do Rio Mondego. Perspetiva aproximada SE-NO. Fotografia anterior a 1842 (Rocha, 1893: 90-91; Loureiro, 1905: 16-17), gentilmente cedida pelo Dr. Miguel de Carvalho.
e urbanísticas coligidas, encadeadas e vertidas na obra, as centenas de notas de rodapé relativas, quer às inúmeras fontes compulsadas, quer aos diversos aspetos sociais e históricos complementares aos muitos temas abordados e, principalmente, o desfasamento das nomenclaturas antigas e da toponímia então em uso (face à toponímia atualmente vigente na cidade), não facilitam a perceção, por parte do leitor, das sucessivas transformações físicas operadas, ao longo do tempo, sobre as principais ruas e praças do atual Núcleo Antigo da cidade. O facto desta obra não incluir quaisquer fotografias ou ilustrações, não ajuda os seus leitores a visualizar os contextos rústicos e urbanos descritos ou reconstruídos por Santos Rocha, sendo o único contributo visual para a interpretação das realidades ancestrais propostas, a Planta inclusa e que, pela
sua qualidade e singularidade, depressa se tornou o ex-líbris desta obra (Fig. 5). Esta excecional planta cartográfica é da autoria de Francisco Carlos Ferreira de Loureiro (1839-1904), engenheiro silvicultor e funcionário público na Figueira da Foz, onde entre outras funções profissionais, foi desenhador, projetista e condutor de trabalhos florestais e de obras públicas (Reis, 2004: 65), nomeadamente para o seu irmão mais velho, o brilhante engenheiro militar especializado em obras hidráulicas, Adolfo Ferreira de Loureiro (1836-1911), que durante muitos anos desempenhou funções como engenheiro fiscal, projetista e/ou diretor das principais obras públicas régias do cais, porto e barra da Figueira da Foz, executadas entre 1860 e 1888 (Loureiro, 1905: 65-66, 122).
283
MATERIAIS (ARQUEOLÓGICOS) PARA A HISTÓRIA DA FIGUEIRA NOS SÉCULOS XVIII E XIX
Figura 5 - Planta ilustrativa proposta por António dos Santos Rocha e desenhada por Francisco Ferreira Loureiro antes de 1893.
Produzida circa de 1890 1, a pedido de Santos Rocha (1893: 15), esta Planta foi pensada e desenhada com o propósito de representar o local de assentamento da aldeia ribeirinha da Figueira, constituída em redor da Igreja Matriz de São Julião, quando, a partir do século XVII, esta se começou a expandir ao longo dos pequenos promontórios naturais que compunham a margem direita da Foz do Mondego ocupando, primeiro as margens das enseadas ou praias fluviais e, depois, as encostas dos suaves vales envolventes. O facto desta Planta exibir os seus elementos à escala e de decalcar fielmente a malha urbana e viária da então jovem cidade da Figueira da Foz, contribuiu decisivamente para o seu realismo cartográfico, atingindo plenamente o objetivo de ilustrar, de forma muito aproximada e realista, a morfologia e os principais aspetos da paisagem ribeirinha da localidade de antanho. Não obstante, tamanha verossimilhança induz em erro muitos dos leitores desta obra que, pouco habituados a tal fidelidade topográfica e competência gráfica, depressa consideram esta representação cartográfica, 1
Vide António dos Santos Rocha, Topographia da Figueira nos fins do século XVIII, Guia Annunciador da Praia da Figueira, 1890, pp. 17-21.
284
hipotética e ilustrativa, como a reprodução de uma verdadeira Planta da primitiva aldeia da Figueira da Foz, supostamente produzida duzentos anos antes. Ainda hoje, esta Planta é replicada por estudiosos e apresentada por curiosos como a mais antiga “Planta da Figueira da Foz” conhecida. Esta paisagem composta por pequenas enseadas fluviais naturais, subsistentes ao longo da margem direita do rio, começou a ser definitivamente anulada pela posterior construção do Caes Novo e da Doca da Figueira, entre 1869 e 1873. Esta abrangente empreitada régia, consolidou e uniformizou a zona ribeirinha da então Vila, substituindo os anteriores cais de acostagem edificados pelo município, bem como as várias estruturas portuárias de carácter privado que existiam a poente e a nascente da atual Praça 8 de Maio. Corolário de uma sucessão de obras públicas de engenharia hidráulica empreendidas ao longo da margem direita da foz do Mondego a partir de 1842 (Loureiro, 1905: 16-17), este novo cais público, estendia-se desde o Cais da Alfândega até ao limite sudeste da atual Praça “Nova”, onde a moderna doca substituiu a inicial, condenando e aterrando o muro do primitivo cais e as rampas de alagem que conformavam o limite sul da Praça Nova da Reboleira original (Fig. 6). Projetadas pelo engenheiro
MATERIAIS (ARQUEOLÓGICOS) PARA A HISTÓRIA DA FIGUEIRA NOS SÉCULOS XVIII E XIX
Figura 6 - Frente ribeirinha da Praça Nova da Reboleira, no decurso da construção do Caes Novo, c. 1871. Construção da rampa de varadouro nascente, com destaque do muro do cais e da rampa de alagem, detetados no arruamento nascente da atual Praça 8 de Maio (cfr. figura 2). Fundo do AFMFF.
Adolfo Ferreira de Loureiro (Loureiro, 1874: 7), a direção e a condução destas obras portuárias ficaram a cargo deste e do seu irmão, Francisco Ferreira de Loureiro, responsável pelo amplo aterro executado sobre a margem direita do Mondego (Reis, 2004: 65), com vista à constituição do Bairro do Teatro, implantado entre a Praça “Nova” e o limite sul da atual Rua Vasco da Gama (Fig. 7). A concretização da obra do Caes Novo significou também, a alteração da dimensão, da área e do aspeto da então Praça Nova da Reboleira, ampliando para sul a praça pública originalmente criada pela edilidade local, em finais do século XVIII. Após a repetição do processo de aterro e terrapleno sobre o cais e as rampas que originalmente compunham o limite meridional desta praça, esta foi, uma vez mais, delimitada a sul por um forte muro, desta feita em silharia, compondo o novo cais de acostagem, agora munido de amplas rampas de varadouro. Atualmente aterrado sob a ilha central da Praça 8 de Maio, o muro do cais edificado entre 1784 e 1789, prolonga-se rumo ao Cais da Alfândega, sendo responsável pela configuração da atual Rua Cais da Alfândega, delimitando esta artéria
a sudeste e fossilizando a orientação dissonante desta antiga via marginal na atual malha urbana ribeirinha de tipologia ortogonal. Apesar das alterações planimétrica e altimétrica impostas pela constituição do Caes Novo, esta empreitada da monarquia constitucional manteve a funcionalidade das infraestruturas municipais que então serviam esta praça e toda a sua envolvente urbana, garantindo o prolongamento para sul, até ao limite do novo cais construído, do coletor geral que compunha o principal cano de drenagem de águas pluviais e residuais desta zona da vila, cujo novo ponto de descarga no rio, é perfeitamente visível do lado esquerdo da figura 6. Com efeito, no âmbito do acompanhamento da empreitada em epígrafe, o arqueólogo signatário confirmou a subsistência deste extenso coletor geral de drenagem unitária de águas, que se prolonga sob o eixo maior da Praça 8 de Maio, orientado de norte para sul (montante-jusante) e que, ainda hoje, se mantém em pleno funcionamento. Esta infraestrutura hidráulica é constituída por um “aqueduto” enterrado, formando um estreito corredor confinado por dois muros paralelos, construídos em alvenaria isódoma de pedra calcária 285
MATERIAIS (ARQUEOLÓGICOS) PARA A HISTÓRIA DA FIGUEIRA NOS SÉCULOS XVIII E XIX
ligada com argamassa de cal aérea, munido de piso em calçada de seixo de rio e servido por abobada de berço abaulada, igualmente edificada em pedra calcária disposta a cutelo. Este antigo coletor de águas pluviais possui boa qualidade construtiva e exibe um bom estado geral de conservação, sobrevindo nesta praça numa extensão edificada superior a 90 metros de comprimento. O arranque desta estrutura arqueológica localiza-se junto da praceta lajeada subsistente na metade sul da ilha central da Praça “Nova”, evoluindo daqui para norte, ao longo do passeio ocidental desta, até entroncar na Rua dos Combatentes da Grande Guerra. Datável do primeiro lustro do século XIX (Rocha, 1893: 185, nota 6), este coletor foi mandado construir pela edilidade local para debelar as muitas dificuldades sentidas nesta praça pública no inverno, face às águas pluviais que ali se acumulavam, situação agravada pelo facto de para ali também escorrerem as águas oriundas da Rua Nova ou Rua dos Armazéns (atual Rua dos Combatentes da Grande Guerra), conforme se infere pela ata da Câmara Municipal, datada de finais de 1801, que delibera a edificação de um Cano geral ao longo da Praça Nova da Reboleira2. Este mesmo “cano geral”, inicialmente pensado para servir a Praça “Nova”, foi em seguida prolongado para norte, através da então denominada Rua Nova ou Rua dos Armazéns. Com efeito, no âmbito do acompanhamento arqueológico em epígrafe, verificou-se igualmente a subsistência deste grande coletor geral ao longo da atual Rua Combatentes da Grande Guerra, artéria urbana gizada aquando da constituição da Praça Nova da Reboleira e aberta ad-hoc entre 1785 e 1787 (Rocha, 1893: 171; 173; 176; 181) (Fig. 8 e Fig. 9). A sua construção ao longo desta rua, poderá estar relacionada com a necessidade de encanar ou drenar o fio de água afeto ao antigo ribeiro que, oriundo da Rua de Santo António (atual Rua 2
Atas da Câmara Municipal da Figueira da Foz, Livro n.º 3, fl. 25, 16 de novembro de 1801.
286
Dr. Santos Rocha), descia para esta Rua Nova, algures pela evolvente norte da atual Rua Jorge Galamba Marques, dirigindo-se depois para sul, rumo ao topo norte da enseada fluvial da Praia da Reboleira, onde desaguava no rio, perto do atual entroncamento da Praça “Nova” com a Rua dos Ferreiros (Rocha, 1893: 40-41; 150) (cfr. figura 5). Através da análise da morfologia e da tipologia construtiva dos dois troços deste coletor geral, presentes nas atuais Praça 8 de Maio e Rua dos Combatentes da Grande Guerra, verificamos tratar-se de uma única estrutura, cuja cota de implantação base varia, condicionando a sua pendente e a altura interior (vão livre) disponível, que nunca é inferior a 1,10 metros (Fig. 8). Ao longo da Rua dos Combatentes este apresenta uma assinalável extensão edificada, com 130 metros de comprimento e excelente estado de conservação geral, evidenciando a sua elevada qualidade construtiva (Fig. 9). O seu ponto inicial compõem-se de numa câmara de visita quadrada, em alvenaria de pedra, implantada no eixo da atual via, localizada defronte ao edifício com o n.º de polícia 61 da Rua dos Combatentes da Grande Guerra, 15 metros a norte do cruzamento desta rua com a Rua Jorge Galamba Marques e a Rua da Restauração. No mesmo local, subsiste um inusitado marco pétreo, do tipo Frade de Esquina, aparentemente sinalizando o arranque desta importante infraestrutura (subsistente à porta do imóvel com o n.º de polícia 48). De matriz construtiva claramente pombalina, estilo arquitetónico de carácter iminentemente funcional e economicista, pautado pela uniformidade dos materiais e dos processos de construção empregues, a edificação deste coletor geral é tributária das cloacas gerais, adotadas e difundidas em Portugal pelos urbanistas e arquitetos europeus e nacionais após o Terramoto de Lisboa de 1755.
MATERIAIS (ARQUEOLÓGICOS) PARA A HISTÓRIA DA FIGUEIRA NOS SÉCULOS XVIII E XIX
Figura 7 (em cima à esquerda) - Extrato da Planta da Villa da Figueira, de Ernesto Fernandes Thomaz, c. 1871. Onde se percebe a ampla área conquistada à margem norte do rio, para a constituição do novel “Bairro do Teatro”. Fundo do AFMFF. Figura 8 (em baixo à esquerda) - Aspeto do interior do “cano geral” (coletor geral), detetado e preservado ao longo de grande parte da Rua dos Combatentes da Grande Guerra. Perspetiva aproximada sul-norte. Fevereiro de 2019. Fotografia do autor. Figura 9 (direira) - Aspeto geral do extradorso da abóbada e da parte superior dos muros laterais do antigo “cano geral” (coletor geral), detetado e preservado ao longo da metade sul da Rua dos Combatentes da Grande Guerra. Abril de 2019. Perspetiva aproximada norte-sul. Fotografia do autor.
287
MATERIAIS (ARQUEOLÓGICOS) PARA A HISTÓRIA DA FIGUEIRA NOS SÉCULOS XVIII E XIX
De facto, na base dos processos físicos de expansão urbana da Figueira da Foz, está a adoção das propostas urbanísticas e das mesmas soluções técnicas empregues nas grandes obras públicas de reconstrução de Lisboa, então encetadas sob a direção do Marquês de Pombal. A exemplo do programa de obras pombalinas para a capital do reino, a Câmara local encetou, à sua escala e apenas 20 anos depois, o seu próprio programa de conquista de novos “espaços vitais” ao rio, através da construção de paredões estruturais e da execução de amplos aterros sobre a sinuosa margem direita do rio, visando dotar a Vila de amplas praças públicas, epicentros do modus vivendi mercantil, urbano, moderno, cosmopolita e industrial. A par da constituição das praças da Ribeira e da Reboleira, do calcetamento das vias existentes e da abertura de novas e retilíneas ruas, a edilidade promoveu a infraestruturação das áreas urbanizadas, sobretudo através da construção de aquedutos para a distribuição de água potável e da edificação de amplos coletores gerais para águas pluviais (Rocha, 1893: 43). De tipologia iminentemente funcional e construção despojada, a extensão e o porte edificado destas estruturas e infraestruturas antigas denunciam as suas vastas áreas de influência e a sua preponderância funcional e infraestrutural, tanto para a estabilização geológica, como para o correto funcionamento hidrológico e hidráulico da zona urbana afeta ao Núcleo Antigo da Figueira da Foz. A manutenção em funções destes coletores gerais, ao longo dos tempos, assentou na sua elevada qualidade de construção e na sua excelente capacidade de escoamento, inicialmente instalada. Há muito apagadas da memória coletiva da cidade hodierna, estas constituem hoje em dia, um relevante património histórico e arqueológico, fundamental para o (re)conhecimento e análise das estratégias e dos métodos antrópicos de apropriação, transformação e manutenção, ao longo dos últimos três séculos, dos diferentes espaços físicos que compunham a envolvente natural e a zona ribeirinha
288
da vila. A sua salvaguarda, preservação, registo e investigação são igualmente essenciais para a compressão dos conhecimentos teóricos e científicos atingidos pelas gerações de antanho e para o estudo das inovações técnicas e tecnológicas afetas aos períodos pombalino e industrial. Os trabalhos arqueológicos desenvolvidos desde 2018, no âmbito da empreitada municipal em curso no Núcleo Antigo da Figueira da Foz, permitiram detetar, expor, registar e salvaguardar as realidades arqueológicas e o património edificado que atestam e confirmam as elucubrações geológicas, as análises bibliográficas e as interpretações históricas compiladas por António dos Santos Rocha, na sua seminal obra de historiografia figueirense. Deste modo, fica claro para os arqueólogos e investigadores, que a corroboração bibliográfica e a consubstanciação historiográfica dos vestígios arqueológicos, afetos a este período da História da Figueira da Foz, estão fortemente respaldadas pela douta e sólida opinião técnico-científica deste investigador, historiador e arqueólogo de nomeada. Deste processo resulta, também, a confirmação, em primeira mão, da importância científica das fontes primárias para a arqueologia histórica e a enorme mais-valia da bibliografia técnica de fundo local, quer para o cadastro arqueológico, quer para a valorização patrimonial da atual cidade. De resto, foi o próprio António dos Santos Rocha que vaticinou o papel e a importância que a sua monografia local viria a ter para a Arqueologia da sua terra no futuro, quando esclareceu os seus leitores sobre o verdadeiro desígnio da sua obra: Além d’estas indicações geraes, o que pudémos colher àcerca dos usos e costumes do povo da Figueira, diz respeito principalmente ao seculo XVIII. Será ainda actualmente pouco importante, por não estarmos muito longe da epocha; mas no futuro não deixará de prestar algum auxilio á arqueologia, quando esta sciencia tomar o devido desenvolvimento entre nós; e por isso não deixaremos de registar todos os dados obtidos, taes como os encontrámos em documentos authenticos. (Rocha, 1893: 232).
MATERIAIS (ARQUEOLÓGICOS) PARA A HISTÓRIA DA FIGUEIRA NOS SÉCULOS XVIII E XIX
Referências bibliográficas CALLAPEZ, Pedro M. (2006). Os rochedos encantados de São Julião e de Santa Catarina, berço da Figueira da Foz. In As Ciências da Terra ao serviço do ensino e do desenvolvimento, o exemplo da Figueira da Foz. Kiwanis Club da Figueira da Foz, pp. 11-22. Acessível em https://www.researchgate.net/publication/339795706 JARDIM, José (1911). Notas d’um figueirense. Revista Figueira, Boletim do Grupo “Studium” e da BPMFF, Série I, n.ºs 3 e 4, Março-Abril de 1911, pp. 46-54. LOUREIRO, Adolpho Ferreira de (1874). Memória sobre O Mondego e Barra da Figueira, Lisboa: Impressa Nacional. LOUREIRO, Adolpho Ferreira de (1905). Porto da Figueira da Foz. Separata d’ Os Portos Marítimos de Portugal e Ilhas Adjacentes. Lisboa: Impressa Nacional. REIS, José Pinto dos (2004). A Misericórdia da Figueira e o seu hospital. Figueira da Foz: Misericórdia - Obra da Figueira. ROCHA, António dos Santos (1890). Topographia da Figueira nos fins do século XVIII, Guia Annunciador da Praia da Figueira. Figueira: Imprensa Lusitana, pp. 17-21. ROCHA, António dos Santos (1893). Materiaes para a História da Figueira nos séculos XVII e XVIII. História, Topographia e Etnographia. Figueira: Casa Minerva. A 2.ª edição é de 1954. VILHENA, Henrique de (1937). O Dr. António dos Santos Rocha (Elogio, Notas, Bibliografia de S.R., Notas de Bibliografia sôbre S.R.). Lisboa: Oficinas Fernandes.
Referências arquivísticas AFMFF - Arquivo Fotográfico Municipal da Figueira da Foz Coleção Antiga do Município. AHMFF - Arquivo Histórico Municipal da Figueira da Foz Atas da Câmara Municipal da Figueira da Foz, Livro n.º 3, 1801.
289
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
R. Laidlaw & Son, Glasgow. O contributo da diversificação do investimento britânico no estrangeiro para a modernização dos sistemas urbanos de distribuição de água na Figueira da Foz R. Laidlaw & Son, Glasgow. The contribution of the diversification of British investment abroad to the modernization of urban water distribution systems in Figueira da Foz José Ricardo Nóbrega1 . Cláudia Figueira2
1 2
Museu Municipal Santos Rocha, Divisão de Cultura, Município da Figueira da Foz | jose.nobrega@cm-figfoz.pt Museu Municipal Santos Rocha, Divisão de Cultura, Município da Figueira da Foz | figueiraclaudia77@gmail.com
290
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
No âmbito dos trabalhos afetos à empreitada municipal de “Requalificação das Ruas do Núcleo Antigo da Figueira da Foz”, o arqueólogo responsável pelo acompanhamento arqueológico verificou a subsistência, em funções, da primitiva rede de distribuição doméstica de água potável que, ainda hoje, serve parte da cidade. Composta por tubagens, válvulas de seccionamento e outras equipagens importadas, estes compõem exemplos raros da metalomecânica indústrial e da inovação tecnológica alcançada pelos britânicos na segunda metade do século XIX, no decurso da 2.ª Revolução Industrial. Ao constatar que esta rede, apesar dos seus 130 anos de existência e serviço, compunha a mais recente das “antigas” redes infraestruturais afetas ao secular abastecimento de águas potáveis da Figueira da Foz do Mondego, os autores procederam a uma análise bibliográfica e documental de síntese, consubstanciada pelas realidades arqueológicas e patrimoniais detetadas no solo da atual Cidade. O resultado é um ensaio de reconstituição histórica das redes ou sistemas iniciais de abastecimento de águas potáveis do burgo, criados após a elevação da primitiva aldeia ribeirinha a Vila (1771) e parcialmente mantidos depois da conclusão do processo de implementação da rede de “água entubada” (1887-1894).
As part of the work related to the Municipal Contract for the “Requalification of the Streets of the Ancient Nucleus of Figueira da Foz”, the archaeologist in charge of the archaeological monitoring verified the subsistence, in service, of the primitive domestic drinking water distribution network that still serves part of the city today. Composed of pipes, sectioning valves and other imported equipment, these are rare examples of industrial metalworks and technological innovation achieved by the British in the second half of the 19th century, during the 2nd Industrial Revolution. Upon realizing that this network, despite its 130 years of existence and service, comprised the most recent of the infrastructural networks related to the secular drinking water supply system in Figueira da Foz do Mondego, the authors carried out a synthetic bibliographic and documental analysis, substantiated by the archaeological and heritage realities detected in the current city grounds. The result is a essay of historical reconstitution of the initial networks or drinking water supply systems of the village, created after the elevation of the primitive riverside settlement to the category of “Vila” (1771) and partially maintained after the conclusion of the implementation process of the “intubated water” network (1887-1894).
Palavras-chave: Arqueologia urbana; Revolução Industrial; Abastecimento de água; Investimento britânico.
Keywords: Urban Archaeology; Industrial Revolution; Water supply; British investment.
291
R. LAIDLAW & SON, GLASGOW. O CONTRIBUTO DA DIVERSIFICAÇÃO DO INVESTIMENTO BRITÂNICO NO ESTRANGEIRO PARA A MODERNIZAÇÃO DOS SISTEMAS URBANOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA NA FIGUEIRA DA FOZ
No decurso do terceiro quartel do século XVIII, as históricas dificuldades no abastecimento de água potável à primitiva povoação da Figueira da Foz do Mondego, degeneraram numa aguda carestia para a população e num sério obstáculo ao desenvolvimento das atividades comerciais e mercantis no porto marítimo da localidade, pois apenas existia uma fonte no lugar, localizada no Largo da Praia da Fonte (atual Largo Pereira das Neves) e conhecida por “Fonte da Figueira” ou depois por “Fonte da Villa”. Após a elevação do lugar a Vila (a 12 de março de 1771), os seus sucessivos responsáveis políticos multiplicaram esforços no sentido de dotar a área urbana, então em franco crescimento, de um sistema urbano de abastecimento de água potável às populações, capaz de servir as suas necessidades e de melhorar as condições de higiene no acesso a essas mesmas águas1. Ao longo do último quartel do século XVIII, até às Invasões Francesas, decorreu o primeiro grande período de expansão urbana da Vila da Figueira da Foz2. A jovem edilidade promoveu a criação de duas praças ribeirinhas; a regularização dos antigos caminhos existentes e o arroteamento ex-novo de inúmeras ruas; a par do calcetamento de grande parte das vias e espaços públicos (Rocha, 1893: 136; 151; 156-157), dando origem a parte da malha urbana atualmente designada por Núcleo Antigo da Figueira da Foz. Em conjunto com os cais e as praças edificadas sobre a margem direita do rio, a sul, e a expansão urbana sobre a envolvente direta da primitiva aldeia ribeirinha, a norte, a Câmara promoveu a 1
António dos Santos Rocha, Materiaes para a História da Figueira nos séculos XVII e XVIII - História, Topographia e Etnographia, 1893, pp. 132-134; 151-152; 153, nota 4; 154, notas 1 e 2. 2
Ao longo do século XVIII, a primitiva aldeia da Figueira expandiu-se de forma orgânica para norte pelos caminhos naturais para o Convento de Santo António (Ruas José da Silva Fonseca e Dr. Santos Rocha) e para nascente pelos sítios da Praia da Reboleira (Praça 8 de Maio) e do Monte (Ruas dos Ferreiros e Direita do Monte) rumo à Estrada de Lamas (caminho para Coimbra).
292
criação de uma primitiva rede de abastecimento de água potável às praças e artérias urbanas que então possuíam maior número de residentes e de atividades comerciais. Esta nova rede era composta por aquedutos e/ou encanamentos subterrâneos. Partindo de “minas” escavadas ou de fontes naturais conhecidas, as águas captadas nos mananciais3, eram encaminhadas de modo gravítico, através de canais artificiais em pedra e/ou por calhas de madeira, até aos poços-reservatórios propositadamente construídos para as armazenar. Por fim, as águas eram disponibilizadas às populações através de pequenas fontes e chafarizes ou, diretamente, a partir dos poços ou reservatórios constituídos, com o recurso a baldes (Rocha, 1893: 152-155). De todos os processos urbanos e infraestruturais afetos à expansão urbana planeada e encetada pela Câmara da Vila da Figueira da Foz durante este período, de cerca de 35 anos, a constituição deste sistema de abastecimento de água potável à Vila foi o mais moroso e difícil. As complexidades técnicas inerentes à execução dos trabalhos; as dificuldades da edilidade em custear as obras; a ausência de know-how dos intervenientes e as condicionantes físicas impostas aos traçados projetados para os aquedutos e encanamentos, decorrentes dos limites dos lotes urbanos já edificados, foram os maiores obstáculos à concretização dos vários projetos e empreitadas. Desta nova rede ou sistema de abastecimento, a primeira obra a ser lançada foi a captação (mina) do Casal da Rata, localizada a poente do troço central da atual Rua das Galinheiras. Projetada em 1774 por um vedor propositadamente chamado para o efeito, a obra já estava em curso em 1779. 3
As águas eram captadas em “minas” escavadas no substrato geológico, como no caso da mina do Casal da Rata, ou encanadas a partir de fontes naturais (Fontes da Lapa e da Mata de Santo António), subsistentes nas encostas e falésias dos montes, que delimitavam, a norte e a nascente, as áreas inicialmente urbanizadas após a elevação da primitiva aldeia ribeirinha a Vila.
R. LAIDLAW & SON, GLASGOW. O CONTRIBUTO DA DIVERSIFICAÇÃO DO INVESTIMENTO BRITÂNICO NO ESTRANGEIRO PARA A MODERNIZAÇÃO DOS SISTEMAS URBANOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA NA FIGUEIRA DA FOZ
Por força das constantes dificuldades e indecisões, a sua construção ter-se-á prolongado até 1794, altura em que a Rua Nova da Mina passou a ser designada por Rua da Bica, denunciando a existência de uma “bica”, alimentada através de um poço-cisterna (Rocha, 1893: 154-155). O projeto inicial só terá sido definitivamente concluído em 1806, após a adjudicação da construção do chafariz, no limite sul da atual Rua dos Bombeiros Voluntários, ao que tudo indica, defronte ao entroncamento desta com a atual Ladeira da Lomba (Rocha, 1893: 155, nota 1). Este chafariz, adossado à fachada principal de uma casa na Rua da Bica, então propriedade do Vereador José Henrique da Fonseca, ainda servia a Vila em 1883. Nesta altura, este solicitou à Câmara (da qual fazia parte), autorização para demolir uma “pirâmide” (ou seja, um elemento arquitetónico decorativo), subsistente sobre a dita Fonte, de modo a possibilitar a abertura de uma janela na frontaria do seu imóvel4. No início de 1889, José Henriques da Fonseca, antigo Vereador e antigo Presidente da Câmara, vendeu a sua casa na Rua da Bica ao governo do reino, para ali ser instalada a nova “Estação de telegrapho-postal” da Cidade5. A inauguração deste novo equipamento público, originou a alteração da toponímia desta rua6. Finalmente, em meados de 1892, a Câmara demoliu o chafariz e anulou esta fonte pública7. 4
Atas da Câmara, Livros n.º 33 e 34, fl. 70v., 28 de fevereiro de 1883. 5
Gazeta da Figueira, Casa para a estação telegrapho-postal, n.º 148, 13 de março de 1889. 6 Nesta altura, a Rua da Bica passou a designar-se por Rua do Correio Geral. A casa deste rico proprietário deveria ser aquela que, alguns anos mais tarde, cerca de 1909, deu lugar a um novo edifício construído de raiz para os Correios e Telégrafos, implantado no lote urbano do lado poente (defronte) do atual entroncamento da Ladeira da Lomba com a Rua dos Bombeiros Voluntários. Este grande edifício, ainda existente, passou depois a albergar a Esquadra da Polícia da Segurança Pública na Figueira da Foz e pertence, hoje em dia, à Câmara Municipal. 7
Correio da Figueira, Fontes e Marcos Fontenarios, Ano 4, 6 de agosto de 1892.
O atribulado percurso de vida da “Fonte da Bica” começou logo com a construção da sua mina de captação de água e do aqueduto subterrâneo ao longo do Casal da Rata, atual Rua da Graça, antiga Rua Detrás (Costa, 1997: 44). Foi devido aos constantes atrasos e às muitas dificuldades sentidas no decurso da construção destes primitivos elementos que a edilidade entendeu promover a utilização das águas da Fonte da Lapa, localizada na cumeada do Monte, subsistente ao cimo do Vale de Lamas8. Para esse efeito, a Câmara mandou abrir um caminho público até esta fonte, entre outras obras tendentes à utilização das suas águas pelas populações, executadas em finais de 1784 (Rocha, 1893: 154). Mais tarde, foi também aberta uma “nova mina” para a Rua de Santo António (atual Rua Dr. Santos Rocha), cujo usufruto foi disponibilizado às populações em 1794 (Rocha, 1893: 155). Em 1888, a construção de uma casa de habitação privada, determinou a demolição da parte positiva de uma fonte subsistente no alto da Rua de Santo António9. Esta estava localizada no lote urbano hoje ocupado pelo edifício com os números de polícia 120 e 120A, na atual Rua Dr. Santos Rocha. Perdura, na base da fachada deste imóvel, um pequeno plinto (coluna cilíndrica) em ferro fundido pertencente ao sistema mecânico de elevação de água (“bomba de picota ou de braço”). Este foi então instalado para permitir que a população continuasse a retirar água desta “fonte” (na verdade, um poço ou reservatório), uma vez que, anteriormente a esta transformação, a água era ali obtida por meio de baldes10. A construção, neste período, por parte da Câmara, de vários aquedutos ou encanamentos ao 8
Esta fonte está hoje no interior do Quartel/Centro de Formação da GNR, sobre a encosta NE do Monte. 9 Correio da Figueira, Bomba na rua de Santo António, Ano 1, n.º 1, 1 de Janeiro de 1889. 10
Idem, ibidem.
293
R. LAIDLAW & SON, GLASGOW. O CONTRIBUTO DA DIVERSIFICAÇÃO DO INVESTIMENTO BRITÂNICO NO ESTRANGEIRO PARA A MODERNIZAÇÃO DOS SISTEMAS URBANOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA NA FIGUEIRA DA FOZ
longo do então designado Vale de Santo António11, terá originado a denominação popular de “Vale de Canos”, adotada para o Vale a partir de 1785 ou 1787 (Rocha, 1893: 165-168). À medida que a Vila e as suas atividades comerciais, mercantis, portuárias e industriais se foram desenvolvendo, nomeadamente durante o período entre 1815 e 1825, renovou-se a pressão demográfica e imobiliária sobre as primeiras zonas alvo de expansão urbana programada (Casal da Fonte, Vales de Santo António e de Lamas e Casal do Monte). Concomitantemente, ressurgiram os problemas de abastecimento de água às populações. A insipiente rede pública de abastecimento de águas, criada em finais do século XVIII, revelava-se já insuficiente para suprir as crescentes necessidades de residentes, visitantes e turistas, bem como, para acorrer a todas as solicitações afetas às diversas atividades comerciais, mercantis e industriais em desenvolvimento na Figueira da Foz do Mondego. Se os mais abastados podiam recorrer aos poços, reservatórios domésticos de águas pluviais e/ou às cisternas das suas casas ou propriedades periurbanas, a maioria da população, o crescente número de visitantes e turistas e os muitos navios que demandavam ao porto flúvio-marítimo da Vila, só podiam recorrer aos chafarizes públicos e aos aguadeiros (que se abasteciam, preferencialmente, na Fonte da Várzea). Com efeito, logo em 1836, a Câmara da Figueira da Foz solicita apoio à Câmara de Mangualde, no sentido de esta enviar um vedor para estudar o abastecimento de água à Vila, mas esta solicitação não é atendida (Coelho, 1936: 341-342). 11 Originalmente, no início do século XVIII, o Cerrado do Vale de Santo António, pertencente à família dos Quadros, Morgado do Couto de Tavarede, tinha como limites: a poente a Rua da Lomba (atual Rua José da Silva Fonseca), a norte os então designados Caminho de Santo António (atual Rua Visconde da Marinha Grande) e Caminho da Cerca (atual Rua do Hospital) e a nascente o limite poente do Vale de Lamas (atual Ruas da Caridade e 9 de Julho ou então a Rua da Fé).
294
O recurso ao expediente inicialmente utilizado em 1774, aquando da criação da captação da mina do Casal da Rata12, indicia a subsistência das dificuldades da edilidade em dar cabal resposta às múltiplas solicitações nesta matéria. Mormente, demonstra a inexistência, na localidade, de gente qualificada para estudar, planear ou reforçar o abastecimento de água à Vila, numa altura em que esta enceta, definitivamente, a sua retoma económico-social e o seu percurso como promissora estância balnear. Até meados do século XIX, apesar do progressivo aumento das queixas da população, o sistema de abastecimento de água municipal ter-se-á mantido (Brandão e Callapez, 2017: 22-23), provavelmente, com a mesma composição e capacidade que possuía no dealbar da 1.ª Invasão Francesa. A pressão sobre as infraestruturas de abastecimento de água subsistentes era sentida sobretudo nos meses de veraneio (antigamente, de julho a outubro), por força da crescente afluência de turistas e visitantes à Vila nesta estação do ano. A aparente estagnação do desenvolvimento da rede de abastecimento de água às populações, pese embora o considerável desenvolvimento urbano e urbanístico que a Vila patenteou ao longo do segundo terço do século XIX, ter-se-á ficado a dever a um reduzido crescimento populacional da Figueira da Foz (Cascão, 2009: 117), mas também às imensas dificuldades técnicas e às limitações financeiras das sucessivas edilidades. No decurso do primeiro lustro da década de 60 do século XIX, a questão do abastecimento de água à Vila assume contornos de imperativo local e multiplicam-se na imprensa, quer os pedidos intervenção camarária, quer as propostas de reforço da rede ou dos caudais das fontes existentes. Ainda em 1864, a premência das limitações no abastecimento de água à Vila para a opinião 12 António dos Santos Rocha, Materiaes para a História da Figueira
nos séculos XVII e XVIII - História, Topographia e Etnographia, 1893, p. 153, nota 1.
R. LAIDLAW & SON, GLASGOW. O CONTRIBUTO DA DIVERSIFICAÇÃO DO INVESTIMENTO BRITÂNICO NO ESTRANGEIRO PARA A MODERNIZAÇÃO DOS SISTEMAS URBANOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA NA FIGUEIRA DA FOZ
pública local e regional, levaram o então presidente da Câmara, João José da Costa, em artigo publicado no jornal O Figueirense, a defender a captação de águas na vertente sul da Serra da Boa Viagem, como a única solução viável para o abastecimento à Vila (Coelho, 1936: 341). Esta mesma opção técnica será, anos mais tarde, estudada e projetada no decurso do primeiro mandato do Dr. António dos Santos Rocha à frente dos destinos da Câmara Municipal (1878-1880). Nas vésperas do verão de 1864, em face da galopante escassez de água na Vila, a edilidade é instada, pelo editor do jornal O Figueirense, a fazer obras de reforço da captação (“minar”) no Monte da Fonte da Lapa, ao que a Câmara replica que irá antes proceder à abertura de poços “em alguns sítios da Figueira” 13. Nesse mesmo jornal é ainda lembrado o “mau estado” em que a Fonte da Várzea permanecia e solicitado que a Câmara proceda à sua limpeza14. À entrada do último terço do século, a constituição da Companhia Edificadora Figueirense, empresa de capitais privados consubstanciada entre 1861 e 1867, com vista à concretização do novo Bairro de Santa Catarina (Cascão, 1998: 236-240), será responsável, a breve trecho, pela duplicação da área urbana da Vila. A nova realidade urbana irá pressionar, ainda mais, as limitações da população no acesso à água potável. Esta insistente questão, em conjunto com outros problemas infraestruturais (drenagem de esgotos e saúde/limpeza públicas), ganham contornos de travão ao progresso social e obstam à melhoria das condições de higiene e salubridade dos habitantes e visitantes, desta forma ameaçando o desenvolvimento urbano e económico da Figueira da Foz (Cascão, 1998: 154-159). Assim, uma vez goradas as espectativas camarárias de reforçar o abastecimento de água às populações e à Vila, através de obras capazes de assegurar o
aumento dos caudais das Fontes do Monte e Várzea, a Câmara opta por encetar um programa municipal de abertura de poços públicos. Alguns dos poços criados anteriormente e aqueles já que municiavam as fontes ou chafarizes15 serão também equipados com bombas mecânicas (de ação manual) para elevação de água. Exemplo da implementação prática desta mesma política de abertura de poços-minas, servidos por bombas mecânicas para elevação de água, com vista ao reforço e/ou alargamento da rede de abastecimento público de água às populações, é a solicitação enviada pela Câmara Municipal à Mesa da Santa Casa da Misericórdia, datada de 19 de agosto de 1875. Nesta missiva, a edilidade requer a cedência de uma pequena fração da mata/cerca por parte da Misericórdia, no limite sul desta, por desejar: (…) fazer obra na nascente d’água da fonte nova, na Rua da Cerca da Santa Casa da Misericordia ao cimo da Rua de S. João, e sendo preciso para isso recolher um pouco no referido muro, formando meia laranja ou meio circulo para alli se colocar uma bomba, evitando assim que seja d’alguma forma impedido o transito publico no referido local com o assentamento d’aquella bomba na Rua da Cerca (…). (Reis, 2004: 140).
Da análise do translado feito por José Pinto dos Reis, sobre este longo processo institucional, ficamos também a saber que, da construção encetada pela Câmara, resultou uma “fonte”, cuja parte visível (positiva) era composta por um muro reentrante, de planta semicircular, edificado às custas da antiga cerca da mata da Misericórdia (antiga cerca/mata do Convento de Santo António). Este muro rodeava a fonte criada pelos lados e por trás e era servido por bancos de cantaria corridos, sendo o espaço munido de pavimento em cantaria. No poço que alimentava esta fonte foi instalada a “bomba”, que até então subsistia na antiga Fonte Nova (…) mudada da, então Rua Nova, que lhe dera o nome (…) (Reis, 2004: 135 e 138), ou seja, a bomba proveniente
13
O Figueirense, Escassez d’água, Ano 1, n.º 51, 24 de julho de 1864.
14
O Figueirense, Pedido, Ano 1, n.º 51, 24 de julho de 1864.
15
Atas da Câmara, Livros n.º 32 a 37, fl. 168, 3 de setembro de 1881.
295
R. LAIDLAW & SON, GLASGOW. O CONTRIBUTO DA DIVERSIFICAÇÃO DO INVESTIMENTO BRITÂNICO NO ESTRANGEIRO PARA A MODERNIZAÇÃO DOS SISTEMAS URBANOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA NA FIGUEIRA DA FOZ
da “Fonte Nova” original localizada na antiga “Rua Nova dos Armazéns” (atual Rua dos Combatentes da Grande Guerra). A “nova fonte” municipal, assim edificada, parece ter mantido a designação da precedente “Fonte Nova”16, mas, logo em 1893, a Misericórdia solicitava à Câmara a sua demolição e desafetação, afirmando que esta se encontrava seca, parcialmente destruída, que constituía um perigoso foco de infeção de doenças, já que o seu poço servia agora como local de despejos por parte de vizinhos e transeuntes. A Misericórdia propunha ainda proceder, às suas custas, à demolição do muro, dos bancos e do pavimento da fonte e a (re)construir o muro necessário à restituição do alinhamento original da sua cerca (Reis, 2004: 138-139). O Dr. Joaquim Pereira Jardim, na altura Presidente da Câmara, não acedeu à solicitação da Misericórdia. Ao invés do proposto por esta, mandou reparar e manteve a fonte em funcionamento, pelo menos até 1898, ano em que ressurgem os confrontos entre a Misericórdia e a Câmara, por esta continuar ao serviço das populações (Reis, 2004: 137). Finalmente, em 1902, a parte positiva desta fonte acabou mesmo por ser desmantelada pela Câmara Municipal e parte da sua área de implantação devolvida à Misericórdia, sendo reconstruído o muro da cerca da mata, decisões por fim tomadas pelo então Presidente da Câmara e antigo Provedor da Santa Casa da Misericórdia, Dr. António dos Santos Rocha (Reis, 2004: 135; 138 e 141) (Fig. 1). A existência e localização deste poço e a subsistência da “bomba” no seu interior, foram atestadas pelas arqueólogas da Câmara Municipal da Figueira da Foz, em 1994, quando procediam ao acompanhamento das obras de implantação da rede de gás natural ao longo das atuais Ruas do Hospital e de São João do Vale (Ferreira et al., 1994). Este 16
Atas da Câmara, livro 32 a 37, fl. 168, 3 de setembro de 1881; Correio da Figueira, Fonte Nova, 2 de novembro de 1892.
296
amplo poço subsiste abandonado, parcialmente entulhado e selado, mas ainda possui parte da dita bomba em ferro, empregue para elevação das águas, encontrando-se localizado exatamente no entroncamento destas duas vias. O facto deste poço se implantar imediatamente a montante do percurso conhecido do “Aqueduto de São João do Vale”17 e ambos estarem ligados (Pereira, 2004: 49-56), garante-nos que este aqueduto de adução de água, anterior à mudança da “Fonte Nova” para a Rua da Cerca (no entroncamento com o topo norte da Rua de São João do Vale), conduzia as águas deste mesmo local até um ponto de abastecimento público localizado na então Rua Nova, que constituia a própria “Fonte Nova” original. Assim, verificamos que em 1875, o “Aqueduto de São João do Vale” foi despojado da sua função original pela Câmara, que o intercetou a montante, por via da constituição de uma nova fonte, munida de poço com bomba mecânica, anulando grande parte do antigo percurso que as águas faziam até esse momento, ao longo do Vale de Santo António ou de Canos. Da mesma forma, a transladação da referida bomba, indicia que também a primitiva “Fonte Nova”, em paralelo com o aqueduto que a municiava, foi desafetada da sua função primordial, permanecendo, ainda hoje, a sua localização original uma incógnita. Verificamos também que, em data anterior a 1875, esta fonte era já servida por um sistema mecânico em ferro para elevação de águas, equipamento indicador de que, também esta seria, a exemplo de outras “fontes” na Vila, composta por um poço-reservatório. Efetivamente, o abastecimento de água deste poço era garantido pelo aqueduto de adução de águas conhecido por “Aqueduto de São João do Vale”. 17 Detetado inicialmente em 1988, o seu real traçado e extensão conservada foram também reconhecidos, de forma mais consubstanciada, aquando das obras de instalação do gás natural, em 1994, pela equipa de arqueologia então afeta ao Museu Municipal Santos Rocha.
R. LAIDLAW & SON, GLASGOW. O CONTRIBUTO DA DIVERSIFICAÇÃO DO INVESTIMENTO BRITÂNICO NO ESTRANGEIRO PARA A MODERNIZAÇÃO DOS SISTEMAS URBANOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA NA FIGUEIRA DA FOZ
Figura 1 - Extrato da [Planta da Figueira da Foz 1891-1893], com localização das fontes: 1 - Fonte da Figueira ou da Vila; 2 - Mina do Casal da Rata; 3 - Fonte da Bica; 4 - Fonte da Lapa; 5 - Fonte da Rua de Santo António; 6 - Fonte Nova (na Rua da Cerca); 7 - Fonte da Várzea; 8 - Fonte da Ladeira (da Várzea). Acessível no Arquivo Histórico Municipal da Figueira da Foz.
297
R. LAIDLAW & SON, GLASGOW. O CONTRIBUTO DA DIVERSIFICAÇÃO DO INVESTIMENTO BRITÂNICO NO ESTRANGEIRO PARA A MODERNIZAÇÃO DOS SISTEMAS URBANOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA NA FIGUEIRA DA FOZ
Comprova-se assim que, ao longo do terceiro quartel do século XIX, a Câmara adotou uma nova estratégia municipal para o reforço da rede de abastecimento público de águas existente na Figueira da Foz. A primitiva rede de abastecimento, gizada pela edilidade da jovem Vila, ainda em Época Pombalina, era caracteristicamente composta por vários aquedutos e encanamentos (edificados de forma individual), que isoladamente agregavam os seus próprios sistemas de captação (mina ou fonte) e de adução das águas (aqueduto ou encanamento). Cada um destes, a partir de um manancial existente, mais ou menos próximo, permitia o abastecimento de águas a um poço-reservatório, bica ou chafariz público, localizados em determinada rua, praça ou largo, assim servindo um determinado bairro ou zona urbana da Vila. Com efeito, a partir de 1860, numa altura em que se generaliza a construção de canos gerais e privados para drenagem (mista) de águas residuais e pluviais domésticas (Cascão, 2009: 104), a Câmara opta pela abertura de múltiplos poços artesianos e pelo aproveitamento/ reconversão das nascentes existentes, aparentemente abandonando, em definitivo, a construção de aquedutos e encanamentos para o abastecimento de água potável às populações. Na Europa, as redes citadinas de poços de água, servidos por bombas mecânicas acionadas manualmente, quer de pequena capacidade (Bomba de Picota ou Rabiço, para poços até 7 m de profundidade), quer de grande capacidade (Bomba de Volante ou Moderna, para poços de 7 a 15 m de profundidade), evoluíram ao longo do segundo quartel do século XIX e estavam já amplamente disseminadas em Inglaterra em meados desse século. A sua aplicação na Figueira da Foz parece ter sido tardia e visou, sobretudo, minimizar os impactos negativos da progressiva degradação dos sistemas de adução e abastecimento de água ao público, que eram compostos pelas infraestruturas edificadas nas últimas décadas do século XVIII. 298
Os componentes desta rede foram reformulados, abandonados ou reforçados pela nova rede de poços-mina e/ou artesianos então criada e, alguns destes, foram equipados com bombas mecânicas. Certo é que, a Câmara Municipal tinha já “na calha”, desde 1865, a criação de uma moderna rede de captação, abastecimento e distribuição de água, através do sistema de “água entubada” (Cascão, 1998: 154), para distribuição individual aos domicílios, estabelecimentos comerciais e industriais. A exemplo do que já acontecia em Lisboa (1857-63 e 1868), em Coimbra (1872) e no Porto (1873), esta nova rede seria executada e gerida por uma empresa privada. O processo foi finalmente despoletado pela Câmara, na presidência do Dr. António Santos Rocha, quando este, em novembro de 1878, “encomendou” a Joaquim Filipe Nery Delgado os estudos preliminares para o novo sistema de abastecimento de águas à Figueira da Foz (Brandão e Callapez, 2017: 31-37). Mais tarde, em 1886, o município contrai um empréstimo para adjudicar a execução dos projetos afetos aos novos sistemas de captação, adução, armazenamento e distribuição (pública e domiciliária) de água potável às populações e, igualmente, para uma rede de iluminação pública a gás. Após anos de tentativas frustradas por parte da Câmara, procurando resolver o secular deficit de abastecimento de água potável à Vila, caberá em 1887, à Anglo-Portuguese Gas and Water Company Limited, uma Sociedade Anónima de capitais maioritariamente britânicos, a construção e exploração de modernas redes de abastecimento e distribuição de água potável e de gás para iluminação ao burgo, recém elevado a Cidade, a 20 de setembro de 1882 (Cascão, 1998: 154-155). Para o efeito foram celebrados, entre a Câmara Municipal e a empresa privada estrangeira concessionária, dois contratos, ambos em regime de monopólio, com vista a garantir a captação e abastecimento de água potável à Cidade (concessão por 90 anos) e,
R. LAIDLAW & SON, GLASGOW. O CONTRIBUTO DA DIVERSIFICAÇÃO DO INVESTIMENTO BRITÂNICO NO ESTRANGEIRO PARA A MODERNIZAÇÃO DOS SISTEMAS URBANOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA NA FIGUEIRA DA FOZ
simultaneamente, permitir a produção e distribuição de gás (contratualizadas por 40 anos)18, destinada a substituir a iluminação pública a azeite e petróleo, bem como, a servir os privados e a florescente indústria urbana local. Os trabalhos necessários à criação das novas redes infraestruturais de gás e de água foram divididos em três grandes empreitadas, nomeadamente, a construção de uma fábrica de destilação de gás de carvão19; a execução de um sistema de abastecimento de água, composto pela captação (através de mina escavada na rocha em Vale Sampaio, Tavarede)20, adução e depósito das águas exploradas num reservatório (implantado no altaneiro Sítio do Pinhal)21 e, concomitantemente, através da construção de amplas redes de distribuição de água e de gás, que implicaram o assentamento, em simultâneo, de tubagens para a água e para o gás ao longo das ruas da Cidade22. Para a concretização destas empreitadas, executadas pela Anglo-Portuguese Gas and Water Company Limited, sob apertada fiscalização camarária, concorreram a engenharia, os técnicos, as matérias-primas e os equipamentos britânicos importados, assim como, grande quantidade de mão de obra e de materiais de construção locais e nacionais. Atualmente, no âmbito do acompanhamento arqueológico da empreitada municipal de “Requalificação das Ruas do Núcleo Antigo da Figueira da Foz”, têm sido detetados e recolhidos vários elementos em ferro, afetos à secular rede de distribuição de água à Cidade, que subsiste, ainda hoje, em funções. As tubagens, em ferro 18 Comissão Distrital de Coimbra, Accordão N.º 84 e Accordão N.º 85, Coimbra, 16 de dezembro de 1886. 19 Idem, Accordão N.º 85, Contrato do Gaz, 16 de dezembro de 1886, Coimbra. 20 Correio da Figueira, Agua e gaz, 1.º Ano, n.º 2, 1 de janeiro de 1889. 21 Correio da Figueira, Abastecimento d’aguas, 1.º Ano, n.º 3, 8 de janeiro de 1889, p. 3; Correio da Figueira, Companhia de Aguas, 1.º Ano, n.º 11, 5 de março de 1889. 22
Gazeta da Figueira, Aguas e gaz, 13 de abril de 1889; Correio da Figueira, Agua e gaz, Ano 1, n.º 25, 2 de abril de 1889, p. 3.
fundido, possuem vários diâmetros, mas todas se encontram bastante obstruídas, por via da “dureza” das águas (bicarbonatadas-cálcicas), captadas ao longo da mina escavada no substrato rochoso de Vale Sampaio (Tavarede) e que serviu a cidade da Figueira da Foz durante mais de 80 anos (Brandão e Callapez, 2017: 111). As válvulas de seccionamento, em ferro fundido e com uma qualidade de construção, a todos os níveis, notável, ostentam o sigillo de produção da companhia escocesa R. Laidlaw & Son, de Glasgow, denunciando o local de proveniência/importação e identificando o nome da empresa privada britânica que as produziu e forneceu, há cerca de 130 anos, à concessionária responsável pela execução e posterior exploração das duas novas redes de distribuição de água e gás à Cidade (Fig. 2 e Fig. 3). Fundada em 1852, esta companhia detinha outras empresas. Robert Laidlaw e o seu filho eram importantes engenheiros de gás e água, bem como, fundidores de renome mundial e metalúrgicos especializados em sistemas de produção e distribuição de gás e água, com três fundições em Glasgow e escritórios em Edimburgo e Londres (Fraser e Maver, 1996: 113, vol. II). Além de produzirem canos em ferro fundido, eram sobretudo produtores e fornecedores de válvulas de seccionamento de todos os tamanhos para gás, água e vapor, e também de tanques, cisternas, sistemas de tratamento de água, motores para bombagem hidráulica, contadores de água de múltiplos equipamentos para produção de gás de carvão, candeeiros de rua e candelabros a gás (Fraser e Maver, 1996: 113-114, vol. II). Gozando de ampla reputação profissional e produtores de uma vasta gama de equipamentos, esta família conseguiu negócios por todo o mundo, sendo o elo de ligação entre o setor metalúrgico britânico, as sociedades anónimas com monopólios locais de abastecimento de gás e água e as grandes empreitadas públicas de obras hidráulicas (Fraser e Maver, 1996: 113, vol. II). Alargaram ainda a sua 299
R. LAIDLAW & SON, GLASGOW. O CONTRIBUTO DA DIVERSIFICAÇÃO DO INVESTIMENTO BRITÂNICO NO ESTRANGEIRO PARA A MODERNIZAÇÃO DOS SISTEMAS URBANOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA NA FIGUEIRA DA FOZ
Figura 2 (em cima) - Válvula de seccionamento em ferro fundido, c. 1889. Descoberta no cruzamento da atual Rua dos Combatentes da Grande Guerra com a Rua Jorge Galamba Marques. Foi previamente desativada, pelos serviços da empresa Águas da Figueira, no início de 2019, antes da sua remoção, em julho desse ano. Figura 3 (em baixo) - Válvula de seccionamento em ferro fundido, c. 1889. Pormenor do sigillo, envolto em fina cartela, marca de produção da empresa R. Laidlaw & Son, Glasgow.
300
R. LAIDLAW & SON, GLASGOW. O CONTRIBUTO DA DIVERSIFICAÇÃO DO INVESTIMENTO BRITÂNICO NO ESTRANGEIRO PARA A MODERNIZAÇÃO DOS SISTEMAS URBANOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA NA FIGUEIRA DA FOZ
influência ao setor da exportação e dos transportes marítimos, fundamentais para o abastecimento das suas participadas, amplamente dependentes do financiamento, know-how, materiais, máquinas e matérias-primas oriundas das Ilhas Britânicas (Fig. 4). Além de ser um dos fundadores, Robert Laidlaw foi um dos principais acionistas (Brandão e Callapez, 2017: 60-62) e um dos diretores da Anglo-Portuguese Gás and Water Company, Limited, propositadamente constituída para o efeito em 1887, em Londres (Cascão, 2009: 106). A 21 de janeiro de 1926, alguns meses depois da Câmara da Figueira da Foz ter finalmente conseguido resgatar a concessão do serviço de abastecimento, distribuição e os contadores de água à companhia, esta abre falência. O seu diretor era então David Laidlaw, filho (Son) de Robert Laidlaw23 (Fig. 5). Deslembrado e até agora nunca estudado, o extenso e moroso processo de execução, através das ruas da cidade, das novas redes de distribuição de água e de gás, nem sempre terá sido pacífico. A implantação das tubagens, em ferro fundido, para abastecimento público e privado de gás de iluminação e para a nova rede de distribuição de água potável a fontenários e bocas de incêndio públicos, mas também a todo o tipo de clientes privados, implicou a abertura de extensas valas ao longo de quase todas as ruas e principais acessos à cidade. A abertura destas valas, apesar de pouco profundas e de reduzida largura, foi executada de forma inteiramente manual, o que implicou não só o recurso a uma vasta quantidade e variedade de mão de obra local, mas também significou afetações e situações de todos os géneros, revelando as dificuldades sentidas, já então, para conseguir implantar/enterrar as novas infraestruturas ao longo do solo urbano da cidade. Este processo foi lento e provocou grandes dificuldades, não só
Figura 4 - Anúncio publicitário dos produtos e da empresa R. Laidlaw & Son, de Glasgow (c. 1852).
aos seus executantes, mas também a transeuntes e a moradores. As tubagens eram depostas nas valas abertas, somente após serem assembladas em consideráveis troços, já que os diferentes tubos em ferro fundido eram ligados e selados entre si com chumbo quente e a execução deste processo seria, com certeza, mais difícil e demorado se executado, tubo a tubo, dentro das valas previamente abertas ao longo das ruas.
23
The London Gazette, Anglo-Portuguese Gas & Water Company, Ltd., n.º 713, 29 de janeiro de 1926.
301
R. LAIDLAW & SON, GLASGOW. O CONTRIBUTO DA DIVERSIFICAÇÃO DO INVESTIMENTO BRITÂNICO NO ESTRANGEIRO PARA A MODERNIZAÇÃO DOS SISTEMAS URBANOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA NA FIGUEIRA DA FOZ
Figura 5 - Liquidação voluntária da empresa, com designação do respetivo liquidatário. The London Gazette, Anglo-Portuguese Gas & Water Company, Ltd., n.º 33128, 29 de janeiro de 1926, p. 713.
Efetivamente, os órgãos de comunicação social da época fazem eco das várias ocorrências de carácter geológico, das incidências arqueológicas e das muitas contrariedades e dificuldades para os habitantes e visitantes da Cidade. Os principais constrangimentos decorriam, sobretudo, dos atrasos verificados na abertura de valas ao longo das diversas ruas, por força da geologia base da área de implantação ribeirinha da cidade. Com efeito, foi necessário recorrer muitas vezes ao emprego de explosivos, à época, o único procedimento capaz de agilizar a desagregação dos afloramentos rochosos subsistentes ao longo de algumas das principais artérias, adros e praças da Cidade, denunciando assim a natureza rochosa de grande parte da margem norte do Rio Mondego (Fig. 6). Concorreram igualmente para o atraso dos trabalhos, as ocorrências do foro antropológico verificadas em redor da Igreja Matriz de São Julião (Fig. 7). Simultaneamente, a demora na reposição das muitas calçadas afetadas pelas obras, após a conclusão dos trabalhos de implantação das referidas redes, ditou o prolongamento no tempo das 302
dificuldades e o descontentamento das populações (Fig. 8). Além destas condicionantes, também a subsistência de outras infraestruturas de cronologia precedente e de múltiplas realidades edificadas antigas (vestígios de construções), ocultas no solo, constituíam, já então, impeditivos ao normal andamento dos trabalhos. Reconhecemos, ainda hoje, destruições ou adaptações, que a implantação da nova rede de água provocou nas demais redes preexistentes, sendo estas, a exemplo do que atualmente acontece, anuladas ou mantidas em funções, consoante se encontravam desativadas ou em uso (Fig. 9). As evidências estratigráficas resultantes das análises técnicas executadas, demonstram que a esmagadora maioria destas tubagens foi deposta sobre, ou cruzando na perpendicular, outras infraestruturas preexistentes, afetas às redes de adução de água ou de drenagem de águas pluviais e/ou residuais (Fig. 10).
Figura 6 - Correio da Figueira, Canalisação para gaz e agua, 25 de maio de 1889.
R. LAIDLAW & SON, GLASGOW. O CONTRIBUTO DA DIVERSIFICAÇÃO DO INVESTIMENTO BRITÂNICO NO ESTRANGEIRO PARA A MODERNIZAÇÃO DOS SISTEMAS URBANOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA NA FIGUEIRA DA FOZ
Comprova-se assim, que a “moderna” rede de distribuição domiciliária de água potável, constituída entre 1887 e 1894, é de todas as infraestruturas “antigas” da Cidade, a mais recente, ainda que conte já com mais de 130 anos de existência. Verificamos igualmente que, muitas vezes, a implantação destas tubagens cruzaram, ou foram montadas no interior da rede de condutas (unitárias ou mistas) de drenagem de águas da cidade, infraestruturas com cronologias de edificação mais antigas, que já serviam as casas e as ruas da Vila antes da construção da rede de “água entubada”. A concretização da nova rede de distribuição de água potável, apesar da sua comodidade e modernidade, permitindo levar a cada casa, por canos e torneiras, a água que anteriormente os habitantes da Cidade tinham de ir buscar à fonte, ao chafariz, à cisterna ou ao poço, não significou, de todo, o abandono das redes de abastecimento públicas da antiga Vila da Figueira da Foz do Mondego. Na verdade, fosse pelo custo individual da instalação da rede doméstica de água, fosse pelo custo associado à manutenção do serviço, fosse ainda pelas limitações de caudal que a nova rede de distribuição de água potável apresentava em várias zonas da Cidade, a população da Figueira continuou a recorrer, por mais algumas décadas, às antigas fontes e poços públicos de utilização gratuita (Cascão, 1998: 155). Os chafarizes e as fontes afetas às primitivas redes de abastecimento de água à Vila, que se mantiveram em funções foram, entretanto, reforçadas pelos marcos fontenários edificados, afetos à nova rede de distribuição de água canalizada, cerca de 1890. Este serviço público era suportado pela Câmara Municipal e, ao contrário das pretensões da companhia privada fornecedora de água e gás canalizados, que alegava ter o monopólio da distribuição de água à cidade, a edilidade manterá, de modo paralelo e concomitante, a esta nova rede de água, o usufruto público das fontes centenárias e a autorização dos privados captarem e/ou venderem água na Cidade (Brandão e Callapez, 2017: 105-107).
Figura 7 (em cima) - Correio da Figueira, Ossadas, 19 de junho de 1889. Figura 8 (em baixo) - Correio da Figueira, Ruas intransitaveis, 12 de outubro de 1889.
303
R. LAIDLAW & SON, GLASGOW. O CONTRIBUTO DA DIVERSIFICAÇÃO DO INVESTIMENTO BRITÂNICO NO ESTRANGEIRO PARA A MODERNIZAÇÃO DOS SISTEMAS URBANOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA NA FIGUEIRA DA FOZ
Figura 9 (em cima) - Ramal doméstico de drenagem de águas residuais preexistente, amputado e desafetado aquando da implatação da rede de distribuição de água potável (1889-94). Detetado no limite norte do arruamento poente da Praça 8 de Maio no decurso do acompanhamento arqueológico da empreitada municipal de “Requalificação das Ruas do Núcleo Antigo da Figueira da Foz”. Março de 2019. Fotografia do autor. Figura 10 (em baixo) - Ramal doméstico de drenagem de águas residuais preexistente, parcialmente afetado mas mantido em funções, aquando da implatação da rede de distribuição de água potável (1889-94). Detetado no passeio do arruamento nascente da Praça 8 de Maio no decurso do acompanhamento arqueológico da empreitada municipal de “Requalificação das Ruas do Núcleo Antigo da Figueira da Foz”. Setembro de 2018. Fotografia do autor.
304
R. LAIDLAW & SON, GLASGOW. O CONTRIBUTO DA DIVERSIFICAÇÃO DO INVESTIMENTO BRITÂNICO NO ESTRANGEIRO PARA A MODERNIZAÇÃO DOS SISTEMAS URBANOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA NA FIGUEIRA DA FOZ
Referências bibliográficas BRANDÃO, José M. e CALLAPEZ, Pedro M. (2017). O abastecimento de água à Figueira da Foz em finais de Oitocentos. Comodidade e modernidade. Figueira da Foz: Município da Figueira da Foz. DO RESGATE da concessão do serviço do abastecimento das águas à cidade da Figueira da Foz. [Figueira da Foz: s.n.], [1922?]. Acessível na Biblioteca Pública Municipal Pedro Fernandes Tomás. CASCÃO, Rui A. F. (1998). Figueira da Foz e Buarcos entre 1861 e 1910. Permanência e Mudança em duas comunidades do litoral. Figueira da Foz: CEMAR, CMFF e Livraria Minerva. CASCÃO, Rui A. F. (2009). Monografia da Freguesia de S. Julião da Figueira da Foz. Figueira da Foz: Junta de Freguesia de São Julião. COELHO, João de Oliveira (1936). O abastecimento de água à Figueira. Álbum Figueirense, Ano II, n.º 11, abril de 1936, Figueira da Foz, pp. 341-342. COMISSÃO DISTRITAL DE COIMBRA, Accordão N.º 84 e Accordão N.º 85, Coimbra, 16 de dezembro de 1886. Existe um duplicado, com o título Contrato do Gaz, acessível na BPMPFT. COSTA, Fausto Caniceiro da (1997). Toponímia da Figueira nos séculos XVII, XVIII, XIX e XX. Figueira da Foz: Edição do Autor. FERREIRA, Ana Margarida et al. (1994). A galeria subterrânea de São João do Vale. Acompanhamento das obras de instalação da rede urbana de gás natural. Figueira da Foz: Museu Municipal Dr. Santos Rocha. Relatório acessível na Biblioteca do Museu Municipal Santos Rocha. FRASER, W. Hamish; MAVER, Irene (1996). Glasgow, volume II 1830 to 1912. Manchester University Press. Mancchester and New York, distributed exclusively in the USA by St. Martins Press. http://books.google.pt [Consultado em 30-07-2019] GRACES Guide to British Industrial History. http://gracesguide.co.uk/R._Laidlaw_and-Son [Consultado em 29-07-2019] INDEX of Firms (1888). R. Laidlaw & Son. https://www.glasgowwestaddress.co.uk/1888_Book/Laidlaw_R_&_ Son.htm [consultado a 30-07-2019]
MATA, Maria Eugénia (2008). A Forgotten Country in Globalisation? The Role of Foreign Capital in Nineteenth-Century Portugal. In MULLER, Margrit e MYLLYNTAUS Timo (eds.), Pathbreakers: Small European Countries Responding to Globalisation and Deglobalisation. Bern: Peter Lang, pp. 177-208. PEREIRA, Isabel (2004). Os primórdios do abastecimento de água à Figueira da Foz: estruturas descobertas. Revista Litorais: Estudos Figueirenses, Ano 2, n.º 2, 1.º Semestre de 2005, pp. 49-56. REIS, José Pinto dos (2004). A Misericórdia da Figueira e o seu hospital. Figueira da Foz: Misericórdia - Obra da Figueira. ROCHA, António dos Santos (1893). Materiaes para a História da Figueira nos séculos XVII e XVIII. História, Topographia e Etnographia. Figueira: Casa Minerva. A 2.ª edição é de 1954. SECO, António Luís de Sousa Henriques (1853). Memoria HistoricoChorographica dos diversos concelhos do Districto Administrativo de Coimbra. Coimbra: Imprensa da Universidade. THOMÁS, Pedro Fernandes (1910). A Figueira e a invasão francesa. Notas e documentos. Figueira: Imprensa Lusitâna. Existe ed. fac-simile. Figueira da Foz: Livraria Alfarrabista, 2008.
Referências arquivísticas AHMFF - Arquivo Histórico Municipal da Figueira da Foz Atas da Câmara Municipal da Figueira da Foz, Livros n.ºs 32 a 37, 1881-1883. Copiadores de correspondência Cx. Correspondência geral, 1856-1921. Cx. Contratos pareceres, reclamações, 1886-1951. BPMPFT - Biblioteca Pública Municipal Pedro Fernandes Tomás Periódicos O Figueirense, 1883 e 1884. Gazeta da Figueira, 1887 a 1889. O Correio da Figueira, 1889 a 1892. The London Gazette, Anglo Portuguese Gas & Water Company Ltd., n.º 33128, 29 de Janeiro de 1926, Londres. https://www.thegazette.co.uk/London/issue/33128/page/713/data. pdf [consultado a 30-07-2019]
305
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Princípios para a valorização do Património Industrial do Cabo Mondego Principles for enhancing the Industrial Heritage of the Mondego Cape Francisco José Cruz Velho da Costa1
1
Faculdade de Letras da Universidade do Porto | francisco.velhodacosta@gmail.com
306
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
RESUMO
ABSTRACT
O presente artigo elabora uma exploração das potencialidades patrimoniais do complexo industrial do Cabo Mondego. Inicia-se com uma breve análise ao estudo da designação de património industrial, transitando depois para um enquadramento histórico do desenvolvimento do complexo industrial. Por sua vez, explora os dados legais e patrimoniais que gravitam no lugar, dando posterior espaço para a reflexão dos diferentes usos que o complexo poderá ter.
This article elaborates na exploration of the patrimonial potentialities of the industrial complex from Mondego Cape. It begins with a brief analysis on the study of the industrial heritage designation, and then moves to a historical framework on the development of the industrial complex. In turn, it explores the legal and heritage data, giving further space for reflection on the diferente uses that the complex may have.
Palavras-chave: Património; Cabo Mondego; Complexo Industrial; Cultura; Figueira da Foz.
Keywords: Heritage; Mondego Cape; Industrial Complex; Culture; Figueira da Foz. 307
PRINCÍPIOS PARA A VALORIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO INDUSTRIAL DO CABO MONDEGO
Introdução O presente artigo pretende efetuar uma consciencialização do património em potência do complexo industrial do Cabo Mondego e das possibilidades de valorização patrimonial que poderão ser exploradas. Para tal, recorre a uma análise sobre o desenvolvimento das noções patrimoniais relativas à indústria, de maneira a reforçar a necessidade de dar voz à salvaguarda dos seus bens. O artigo não apresenta uma solução, mas sim múltiplas leituras para o aproveitamento do espaço.
Património Industrial – O proliferar de um conceito O abandono de zonas industrializadas, no século XX, entende-se como o ponto que acelerou a ruína de alguns espaços citadinos. O termo arqueologia industrial é aplicado, em 1955, por Michael Rix. As autoras Ana Matos, Isabel Ribeiro e Maria Santos, associam a metamorfose e expansão do termo com a criação da Industrial Archeology Research Committe, em 1958; a primeira conferência nacional sobre arqueologia industrial, em 1959, e na definição do conceito de monumento industrial no mesmo ano (Matos, Ribeiro e Santos, 2010: 24). O desaparecimento de um símbolo da revolução industrial, a Euston Station, em 1962, levou à necessidade de se refletir sobre as práticas de intervenção patrimonial, com o objetivo de fecundar a ação de inventariar, estudar, preservar e valorizar o património industrial. Portugal acabou por ser recetor do desenvolvimento do termo com a primeira exposição de arqueologia industrial em Tomar, em 1978. Face às necessidades que o debate patrimonial venceu, em 1980, fundou-se a Associação de Arqueologia Industrial da Região de Lisboa (AAIRL) (AA.VV., 1978: 1-10) para preservar a indústria do município. Por necessidade de alargar o âmbito da preservação 308
pelo território nacional, é criada, em 1987, a Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial (APAI) (Matos, Ribeiro e Santos, 2010: 25). Consoante o processo de proteção, assinalado pela APAI, e crescente intervenção no território nacional, assistimos à musealização de alguns espólios, tais como a Fábrica de Cimento de Maceira-Liz ou o Museu Mineiro do Lousal, elementos que, inativos, são reconvertidos em espaços de divulgação cultural. A proteção do património industrial, na Europa, não difere da nossa. Como exemplo, atentamos no caso de como na França se criaram museus com o âmbito de “conservar um traço da sociedade industrial e agrícola herdada do século XIX, como para assumir a passagem para a era pós industrial” (Rasse, 1997: 17). Acreditamos que a homogeneidade da intervenção foi alicerçada pelas recomendações do Conselho Europeu, nas décadas de 70 e 90, do século XX. Sendo recomendações, não tendo um carácter normativo, eram forma de fazer circular práticas de intervenção (Cordeiro, 2009: 94). Estando o debate da defesa do património industrial a vencer terreno, é escrita a Carta de Nizhny Tagil. A mesma sintetiza todos os pontos assinalados nas recomendações, visando uma uniformização de intervenção à escala global. O facto de ser um documento recomendativo permitiria a adaptação à legislação de cada país. A carta define várias intervenções, como no assinalar de práticas para a sua salvaguarda, projeção e meios de acessibilidade (Carta de Nizhny Tagil, 2003: 1-14). Deste modo, generaliza-se a salvaguarda do património industrial através da musealização, onde um antigo espaço fabril dá lugar a um museu, possibilitando a divulgação do seu património (Matos e Sampaio, 2014: 96-110). A expansão de redes museológicas em Portugal, segundo a opinião de Lopes Cordeiro, contribuiu para a “inexistência de uma rede museológica equilibrada a nível nacional” (Cordeiro, 2009: 52), cuja viabilidade foi nula, apelando-se a reflexões.
PRINCÍPIOS PARA A VALORIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO INDUSTRIAL DO CABO MONDEGO
Na consciência das diferentes intervenções e do crescimento de museus, em 28 de Novembro de 2011, é redigido o documento Princípios conjuntos do ICOMOS-TICCIC para a Conservação de Sítios, Estruturas, Áreas e Paisagens de Património Industrial. O documento apela a uma maior organização e controlo na proliferação de museus industriais. Por iniciativa da Federação Europeia das Associações de Património Industrial e Técnico (E-FAITH), 2015 foi assinalado como o Ano Europeu do Património Industrial e Técnico. Em Portugal, a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), no mesmo ano, adota o tema para as Jornadas Europeias do Património, permitindo uma revisão das ações de salvaguarda, do mesmo. Segundo Graça Filipe, mais do que falar sobre património industrial, é necessário refletir na maneira de como é gerido e qual a durabilidade dos projetos em que se enquadram, vigorando o sentido prospetivo e rentabilidade cultural para a comunidade (Filipe, 2015: 8-11). Por sua vez, José Cordeiro salienta que “é necessário encontrar uma adequada resposta formativa no âmbito da conservação e restauro de artefactos industriais, como importa igualmente que os museus industriais se dotem de laboratórios de conservação” (Cordeiro, 2015: 12). Deolinda Folgado, consciente das problemáticas levantadas, assinala alguns princípios base que devem ser atendidos, quando pretendemos proteger o património industrial (Folgado, 2015: 13-14).
O complexo industrial do Cabo Mondego A história da formação do complexo industrial, localizado a norte de Buarcos, conhece a sua génese com as primeiras explorações de carvão com a ação de um inglês, residente na Figueira da Foz (Pinto e Callapez, 2006: 970). A Figueira da Foz, entre 1650-60, obteve um aumento de mercadores estrangeiros com as medidas comerciais aplicadas após a Restauração (AA.VV., 1984: 88). Um número
considerável de ingleses procurou fazer fortuna com a exploração de sal e cal. Sendo a Inglaterra epicentro da expansão da Revolução Industrial, deduzimos que a informação e valorização do carvão, em 1750, foram fatores que levaram o inglês a procurar pelo minério. A exploração de cal é anterior à de carvão. De acordo com Santos Rocha existiam adjacentemente à antiga praia fluvial da fonte e Zona do Monte (Rocha, 1954: 27) – áreas que hoje correspondem à parte norte e este da Praça 8 de Maio –, maciços calcários. Devido ao acrescimento urbano, dos séculos XVIII e XIX, e da produção de cal, o registo natural dos maciços acabou por desaparecer. Uma vez exploradas as camadas superficiais de carvão no Cabo Mondego, são indicados Guilherme Elsden e Domingos Vandelli para o elaborar de estudos aprofundados, em 1761. Verificada a abundância de carvão jurássico, em 1773, procede, por ordem de Marquês de Pombal, a real exploração, atribuindo-se o cargo de coordenação a Nunes de Figueiredo (Pinto e Callapez, 2006: 970). Nunes de Figueiredo é substituído pelos irmãos Rapozo, em 1787, efetuando a abertura dos primeiros poços mineiros, os Poços Rapozo (Pinto e Callapez, 2006: 970), cuja extração é interrompida por uma inundação, em 1789 (Carvalho, 1789: 3). Em 1801 é retomada a lavra com a administração de José Bonifácio d’Andrade e Silva, abrindo-se a Mina Mondego. Por sua vez, a exploração mineira cessa em 1819, dando lugar a uma sucessão de companhias particulares1 que, desde 1819 até 1967 mantêm a extração mineira (Pinto e Callapez, 2006: 970). A data de 1967 1 Desde 1819 até 1967 o couto mineiro foi sucessivamente propriedade de várias companhias. Enumeram-se, por ordem A Companhia de Negociantes de Lisboa; Empresa das Minas do Cabo Mondego; Companhia Mineira e Industrial do Cabo Mondego; Empresa Exploradora das Minas e Indústrias do Cabo Mondego; Companhia Mineira e Industrial de Portugal; Companhia de Minas e Carvões de São Pedro da Cova e Companhia de Carvões e Cimentos do Cabo Mondego.
309
PRINCÍPIOS PARA A VALORIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO INDUSTRIAL DO CABO MONDEGO
marca o encerramento da exploração de carvão, devido ao incêndio de 1961, e da desvalorização do carvão (Rocha, 1954: 129). A instalação mineira ergueu, na parte inferior do Cabo Mondego várias chaminés, multiplicando-se consoante as galerias abertas. Para além das instalações mineiras, surgiram outras fábricas, como a construção dos primeiros fornos para a exploração da produção de cal hidráulica e cimento, em 1801 (Cardoso, 2015: 8), e com edifício próprio em 1874. Em 1855, erguia-se a fábrica de vidro (Esteves; Rodrigues, 1904: 561). Esta, obtendo uma produção considerável, planeou, em 1872, criar um forno para o fabrico de cristal (Carvalho, 1872: 4). Registamos novo aumento de fornos, para produção de vidro, em 1878 (Carvalho, 1878: 2). Em 1880 encontrávamos um complexo industrial significativo. Em março de 1900, são renovados alguns aspetos do conjunto fabril, tais como a aplicação de instalações elétricas, a construção de mais oficinas para a fábrica de vidros, sistemas de iluminação e canalizações (Reis, 1900: 2). O desenvolvimento do complexo traduziu-se num conjunto de críticas positivas: “A Figueira da Foz é hoje incontestavelmente um importante centro fabril e manufactureiro” (Reis, 1900: 1). A produção de cimento só ficou estabelecida em 1938, pela Companhia de Carvões e Cimentos do Cabo Mondego S.A.R.L. que, por sua vez, passou a ser concessionária do Couto Mineiro do Cabo Mondego, encerrando em 1984. A aquisição e coordenação local impostas pela CIMPOR-Cimentos de Portugal S.A., explicam a relativa sobrevivência da fábrica de cal hidráulica, que acabou por fechar, a 15 de maio de 2013, abandonando o espaço industrial.
310
Reflexão sobre as leis patrimoniais que abrigam o Cabo Mondego
Segundo as agências de comunicação, a CIMPOR, desistindo de recorrer da sentença, após a perda em tribunal do reclamar o espaço do conjunto industrial do Cabo Mondego como sua propriedade, a 27 de dezembro de 2018, os terrenos caminham para o domínio público. A autarquia uma vez tuteladora do espaço, após confirmação, terá abertura para futuras intervenções. A mesma, em 2019, requalificou a estrada enforca cães e projetou uma ciclovia nas proximidades do complexo. O plano de orçamento da Câmara, do ano de 2019, definiu como objetivos “recuperar e restaurar ecologicamente a paisagem da orla marítima do Cabo Mondego e valorizar aquele espaço para aproveitamento turístico e recreativo, assegurando as adequadas fontes de cofinanciamento comunitário” (Município da Figueira da Foz, 2019: 11). Por outro lado, há o interesse de dar “um impulso no processo de candidatura que o Município pretende apresentar à UNESCO para a classificação do Geoparque Jurássico do Cabo Mondego como património mundial” (Município da Figueira da Foz, 2019: 11). A medida alicerça-se ao facto do Cabo Mondego ter sido premiado com o Golden Spike. Uma vez aprovada a candidatura pela UNESCO, se não existir um planeamento prévio para o espaço industrial do Cabo Mondego, serão difíceis as intervenções posteriores. É assim necessário definir um eixo harmonioso entre a salvaguarda do complexo industrial com a natureza envolvente. Antes de iniciar uma análise às leis patrimoniais que abrigam o espaço, devemos ter em conta os registos imóveis que perduram. Das minas, segundo José Pinto e Pedro Callapez, são visíveis as instalações de apoio, estradas do Poço Mondego e Galeria Nova, algumas entradas de poços na Serra da Boa Viagem e três chaminés (Pinto e Callapez, 2006: 970).
PRINCÍPIOS PARA A VALORIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO INDUSTRIAL DO CABO MONDEGO
Quanto às antigas fábricas de vidro, cimento e de cal hidráulicas perduram alguns apontamentos dos alicerces e limitações dos edificados antigos. Como podemos salvaguardar o património industrial do Cabo Mondego? De que forma o podemos tornar acessível para todos? Será realmente necessária a sua proteção? A resposta para tais questões, só nos é permitida com o estudo dos instrumentos de planeamento e gestão territorial, efetuado por António Cardoso. O autor enumera vários elementos a ter em consideração: o Plano Diretor Municipal da Figueira da Foz (PDM); a Reserva Ecológica Nacional; o Plano de Ordenamento da Orla Costeira Ovar-Marinha Grande; o Farol do Cabo Mondego/Farol de Buarcos; a Classificação do Cabo Mondego como Monumento Natural e a inclusão do lugar na Rede Natura 2000 (Cardoso, 2015: 1). Deparamo-nos com um conjunto de proteções considerável, sendo a reflexão necessária de maneira a consolidar um projeto viável para o complexo que, ao mesmo tempo, enquadre as orientações de planeamento local. Passando à análise: a) Plano Diretor Municipal (PDM) da Figueira da Foz: O plano classifica o local do antigo complexo industrial como Espaços Industriais – Área a Reconverter e a parte norte como Espaços de Indústria Extrativa – Consolidada. Sendo que o plano ainda se encontra em procedimento, o que podemos assinalar é a maneira de como delimita a área industrial face à totalidade da adjacente área natural. A delimitação integra o Farol do Cabo Mondego. No artigo 18.º – Classes de espaços – a alínea c) define “a área do espaço urbano ou urbanizável a ampliar em cada acerto não poderá ser superior à da propriedade a que respeita e que já estava contida nessas zonas”, assim como a alínea d) “nos casos em que o limite entre classes de espaços ofereça dúvidas, compete ao município a sua definição”.
b) Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) Ovar-Marinha Grande: Classifica o local como Áreas naturais de Nível II, assinalando que o uso ecológico ou público do espaço deve garantir a sua segurança e preservação, devido à adução da costa. Impossibilita a construção de novo edificado na orla costeira que não esteja integrado no espaço da instalação industrial. As normas definidas ficaram transpostas, em 29 de junho de 2017, face à Lei n.º 31/2014 de 30 de maio. c) Farol de Buarcos, Imóvel de interesse público: O presente imóvel, segundo o Sistema de Informação para o Património Arquitetónico (SIPA), foi considerado imóvel de interesse público a 23 de Junho de 2004. d) Cabo Mondego classificado como Monumento Natural: Elevado a Monumento Nacional, por Decreto Regulamentar n.º 82/2007, a planta que define a sua classificação abrange o complexo industrial devido a ser superveniente ao PDM. No preâmbulo é estabelecido que “é fundamental preservar os direitos de terceiros, cuja propriedade confina ou coincide com a área delimitada do Monumento Natural e que nessa mesma área confinante ou coincidente exerçam atividade económica”. e) Rede Natura 2000: Uma rede ecológica do espaço europeu, atenta para a salvaguarda do litoral do Cabo Mondego, enumerando fatores de ameaça e devidas restrições para preservar o espaço natural. O integrar do Cabo Mondego na Rede Natura 2000 “surge como resposta a ameaças decorrentes da pressão urbanística e da crescente procura das zonas de naturalidade elevada”. Consoante a análise dos diferentes parâmetros de proteção, administração e organização patrimonial, projetamos alguns pontos para o aproveitamento do antigo complexo industrial, de forma a elevar o seu património e torná-lo num centro cultural que acrescente um novo valor patrimonial à Figueira da Foz. 311
PRINCÍPIOS PARA A VALORIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO INDUSTRIAL DO CABO MONDEGO
Possibilidades de uso e restrições Segundo Amado Mendes, os mais de 200 anos de história do complexo justificam um “património industrial importante a se defender e preservar” (Mendes, 1998: 21). Ainda no tempo em que a CIMPOR mantinha a sua atividade, em 1998, o autor defendia que a “vocação turística da cidade da Figueira da Foz tem-se coadunado mal com a atividade extrativa e industrial do Cabo Mondego” (Mendes, 1998: 21), salientando a necessidade de se quebrar com a ideia de este processo ser “um inimigo do turismo figueirense” (Mendes, 1998: 30-31). Por outro lado, António Cardoso, de acordo com os usos turísticos possibilitados por lei, defende o aproveitamento das existentes edificações para valorizar os recursos da área envolvente (Cardoso, 2015: 13). O PDM defende o uso/reconversão do espaço industrial. Quanto ao POOC, garante a salvaguarda dos direitos e manutenção de atividades económicas, mas não prevê, em texto, o seu uso. O mesmo plano, seguindo o princípio de um novo uso turístico para o complexo, define que é estimulante para a salvaguarda do ambiente e menos gravoso. No que toca às correspetivas proteções patrimoniais do Farol do Cabo Mondego e do Cabo Mondego enquanto Monumento Natural, dão espaço para o uso turístico do lugar, se este evitar a gentificação. A presente condição é igualmente prevista no plano da Rede Natura 2000. António Cardoso ressalva os condicionamentos no uso do espaço industrial, para uso turístico. Segundo este, há a necessidade de se elaborar um plano de pormenor, não se esquecendo a revisão na construção das infraestruturas e cuidados ambientais (Cardoso, 2015: 13). Por outro lado, a construção de novas edificações é quase impossibilitada, devido à aplicabilidade do Plano Regional de Ordenamento do Território do Centro (PROTC). Consequentemente, a Estratégia Nacional de Gestão Integrada das Zonas Costeiras (ENGIZC) estabelece as zonas costeiras 312
como zonas non aedificandi, segundo a norma T18, impossibilitando a densificação de áreas naturalmente vulneráveis na orla costeira – com exceção dos aglomerados urbanos já existentes. Olhando para a questão da valorização ambiental/patrimonial, António Cardoso defende que a aplicabilidade só seria possível com a expropriação dos prédios para entidade pública (Cardoso, 2015: 14). O autor assinala que um cenário zero é desaconselhável, pois aumentaria a degradação do património e não fruição dos seus valores (Cardoso, 2015: 14).
Compreender o passado através do presente Com o decorrer do estudo, entendemos que existem dois possíveis futuros para o complexo industrial do Cabo Mondego.
A ruína como memória do passado Estando o complexo abandonado e em ruína, são escassos os recursos a usufruir, tendo em conta a segurança e manutenção. Outra questão é a proximidade com o ar do mar, que irá acelerar a oxidação de alguns componentes. A degradação levará à vandalização do seu espólio. Tomemos o exemplo da antiga Fábrica de Cerâmica das Devesas, cujos antigos traços se perderam com as décadas de abandono. A ideia de se fazer turismo com base na ruína parece, num primeiro olhar, algo antagónico. Devemos retirar lições do Memorial da Paz, em Hiroshima, de como preserva, na ruína, as trágicas recordações do poder atómico. O facto de ser visitado assume-se como elemento que ajuda à preservação e salvaguarda. Dentro da mesma vertente, pudemos encontrar o inverso onde a procura e movimentações turísticas não controladas acabam por adulterar registos
PRINCÍPIOS PARA A VALORIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO INDUSTRIAL DO CABO MONDEGO
do passado. Exemplo é o que apuramos com o turismo em Chernobil, cidade abandonada de Pripyat, potencializado pelo sucesso da série da HBO, levando à gentificação de uma antiga cidade fantasma. Considerando os casos, o turismo local é promovido, quer pelos fatores históricos inerentes a cada lugar, quer como pela atração natural que o homem possui pela ruína. De acordo com Maria Silva, as ruínas e vestígios antigos fabris “oferecem intensas sensações espaciais, materiais e experienciais a quem as visita” (Silva, 2015: 139). Neste sentido, para estimular tais sensações, é necessário pensar nas possibilidades de intervenção turística nestes lugares. Acreditamos que a valorização turística do complexo, ficando este intocável, passaria pelas visitas guiadas. Para tal, seria necessário um levantamento dos espaços a visitar e da segurança. Segundo o princípio, criar-se-ia um itinerário adequado à história do complexo, levando os visitantes aos lugares das antigas minas e fábricas. O mesmo poderia incluir visitas ao Farol do Cabo Mondego, e a outros espaços, respeitando o património natural. O ponto negativo seria a degradação do património, pela ação do tempo, permanecendo o lugar como resgate da história. Embora desfavorável, a ideia de roteiro é proveitosa para outras medidas de intervenção. O ponto positivo é o carácter pouco dispendioso, não necessitando de manutenções regulares a não ser a segurança e proteção.
Uma medida do presente com futuro Na possibilidade de conversão da existente fábrica do complexo em centro interpretativo, abrem-se novas possibilidades no aproveitamento patrimonial. Destacamos que o princípio de centro interpretativo se baseia pelo respeito e ordem museológica da Figueira da Foz, uma vez que existe o Museu Municipal Santos Rocha que preserva
a história da Figueira e o espólio arqueológico do Cabo Mondego. A ser concretizada a ideia de centro interpretativo, permite-se uma correlação entre os dois polos, abrindo caminho a diferentes ações culturais. Existem exemplos de centros interpretativos ou museus criados a partir de antigas arquiteturas industriais, tais como a Tate Modern de Londres ou a Caixaforum de Barcelona e Madrid (Silva, 2015: 139). Recordamos que é possível a renovação da atual fábrica. Não tendo qualquer plano arquitetónico para a presente intervenção, as medidas assinaladas devem ser entendidas como apontamentos para a revitalização, acessibilidade, promoção e salvaguarda do património. Atentando para o património em potência e para a história do complexo encontramos diferentes temas a abordar: Minas, Cerâmica, Vidros, etc. Na divergência de temas, projetamos duas possibilidades – a organização de um percurso do centro interpretativo segundo a ordem cronológica do crescimento do complexo ou uma composição separada dos diferentes temas industriais. Ambas, a nosso ver, contribuem para a perceção e valorização do património. Os espaços deverão possuir vestígios que complementam as informações. A presença de alguns objetos no centro interpretativo pode causar impacto, pelas histórias que representam e contributo que prestam ao discurso local. Uma vez expostos, são registo físico da história. Exemplificando, o lugar dedicado ao espaço das Minas podia ter um pedaço de carvão local. Os diferentes espaços devem ainda ser acompanhados com registos fotográficos ou filmográficos que complementam de maneira gráfica a história industrial. Por sua vez, é necessário um espaço dinâmico para revitalizar a promoção cultural, um lugar dedicado a exposições itinerantes. Devido ao desaparecimento do património entendemos necessário o integrar de um espaço que possibilite a utilização de novas tecnologias de maneira a 313
PRINCÍPIOS PARA A VALORIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO INDUSTRIAL DO CABO MONDEGO
salientar o legado industrial perdido, com uso da realidade aumentada ou projeção virtual a 3D, que expliquem as diferentes camadas de tempo. Uma vez efetuada a visita ao centro interpretativo, o realizar de um itinerário de visita física aos antigos locais seria um outro contributo. O ponto negativo da medida revê-se pelos custos envolventes na revitalização e modificação interior da atual fábrica. O ponto positivo é revisto pelo acesso direto à cultura local, sendo um valor de acrescento para o património da Figueira da Foz.
Conclusão A presente comunicação assume um papel de reflexão sobre o complexo industrial do Cabo Mondego, e do seu devido aproveitamento enquanto património industrial. Após a observação das proteções legais, conseguimos apurar as possibilidades que podem ser concretizadas para a valorização, salvaguarda, proteção, divulgação e dinamização cultural do espaço em questão. Os diferentes prós e contras salientam a necessidade do debate de maneira a compreender a vontade de se preservar o lugar. Se entendermos o conjunto industrial, face à realidade da rede industrial musealizada em Portugal, devemos assinalar o seu devido contributo, não só para a história local, como no seu enquadramento face à realidade nacional. Deste modo, devemos entender a presente comunicação como um elemento que proporcione o debate entre as entidades responsáveis pelo património, ajudando à divulgação e necessidade de o preservar.
314
PRINCÍPIOS PARA A VALORIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO INDUSTRIAL DO CABO MONDEGO
Referências bibliográficas AA.VV. (1978). Primeira exposição de arqueologia industrial: no projecto do Museu da Fábrica de Fiação de Tomar. Coimbra.
MATOS, Ana Cardoso de e SAMPAIO, Maria da Luz (2014). Património Industrial e Museologia em Portugal. Museologia & Interdisciplinaridade, Vol. III, n.º 5, Maio/Junho, pp. 96-110.
AA.VV. (1984). Relatório da Associação Commercial da Figueira Março de 1893 a Março de 1894. Figueira da Foz: Casa Minerva.
MATOS, Ana Cardoso de; RIBEIRO, Isabel Maria e SANTOS, Maria Luísa (2010). Intervir no Património industrial: Das experiências realizadas às novas prespectivas de Valorização. Lisboa: APAI-Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial.
CARDOSO, António José de Magalhães (2015). Planeamento e Gestão no Cabo Mondego (Figueira da Foz). In VIII Congresso sobre Planeamento e Gestão das Zonas Costeiras dos Países de Expressão Portuguesa. Aveiro: Universidade de Aveiro, pp. 1-14.
MENDES, José Amado (1998). Cabo Mondego (Figueira da Foz): exploração mineira e indústria. Coimbra.
CARTA DE NIZNY TAGIL (2003). Sobre o património Industrial. The international Committee for the conservation of the Industrial Heritage (TICCIH). Tradução para a língua portuguesa efetuada pela APPI, 17 de Julho, pp. 1-14. CARVALHO, Joaquim Martins (1789). Notícias da Figueira. O Conimbricense - Jornal Político, Instructivo e Commercial, Ano 2, n.º 2056, Sabbado, 9 de Setembro. Coimbra: Imprensa de E. Trovão, p. 3. CARVALHO, Joaquim Martins (1872). Notícias da Figueira. O Conimbricense - Jornal Político, Instructivo e Commercial, Ano 25, n.º 2620, Terça-Feira, 3 de Setembro. Coimbra: Imprensa de E. Trovão, p. 4. CARVALHO, Joaquim Martins (1878). Notícias da Figueira da Foz. O Conimbricense - Jornal Político, Instructivo e Commercial, Ano 32, n.º 3277, Sabbado, 28 de Dezembro. Coimbra: Imprensa de E. Trovão, p. 2. CORDEIRO, José Manuel Lopes (2009). O Património Industrial e as Novas Cartas Patrimoniais: Nizhny, Tagil, Riga, Monterrey e El Bierzo. Arqueologia Industrial, 4.ª Série, Vol. I-II, Lisboa, pp. 52-94. CORDEIRO, José Manuel Lopes (2015). Conferências, Encontros, Debates. Boletim ICOM Portugal, Série III, n.º 4, Setembro. Lisboa: ICOM. ESTEVES, Pereira e RODRIGUES, Guilherme (1904). Portugal Diccionario Histórico, Chorographico, Heraldico, Biographico, Bibliographico, Numismatico e Artístico. Vol. II/B-C. Lisboa: Imprensa da Universidade. FILIPE, Graça (2015). Conferências, Encontros, Debates. Boletim ICOM Portugal, Série III, n.º 4, Setembro. Lisboa: ICOM. FOLGADO, Deolinda (2015). Conferências, Encontros, Debates. Boletim ICOM Portugal, Série III, n.º 4, Setembro. Lisboa: ICOM.
MUNICÍPIO DA FIGUEIRA DA FOZ (2019). G.O.P. - Grandes Opções do Plano 2019-2022 - Orçamento Municipal 2019. Figueira da Foz. PACHECO, Susana (s/d.). A Arqueologia Industrial e a Preservação do Património Industrial na cidade de Lisboa. Lisboa: Arqueologia Urbana. PINTO, José M. Soares e CALLAPEZ, Pedro M. (2006). O património mineiro do Cabo Mondego e sua importância museológica. In VII Congresso Nacional de Geologia, Universidade de Évora. PINTO, José Manuel Soares et al. (2015). A mina de carvão do Cabo Mondego: 200 anos de exploração. In BRANDÃO, José Manuel e NUNES, Maria de Fátima (eds.), Memórias do carvão. Batalha e Porto de Mós: Edição conjunta da Câmara Municipal da Batalha e da Câmara Municipal de Porto de Mós, pp. 235-258. RASSE, Paul (1997). Techniques et Cultures au Musée. Paris: Presses Universitarires de Lyon. REIS, José Maria R. (1900). Desastres. O Figueirense: Bi-semanário Independente, Ano 1, n.º 13, Domingo, 4 de Março. Figueira da Foz: Typographia Popular, p. 2. REIS, José Maria R. (1900). Empreza do Cabo Mondego. O Figueirense: Bi-semanário Independente, Ano 1, n.º 14, Quinta, 8 de Março. Figueira da Foz: Typographia Popular, p. 1. ROCHA, António dos Santos (1954 [1893]). Materiaes para a História da Figueira nos séculos XVII e XVIII. Figueira da Foz: Tipografia Cruz & Cardoso, Ld.ª. SILVA, Maria Teresa Vieira Alves da (2015). Salvaguarda e valorização do Património Industrial em Portugal. Contributo para a Intervenção na Fábrica de Cerâmica das Devesas. Porto: Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitetura.
315
Património Industrial – Que Futuro? Mesa-redonda Industrial Heritage – What Future? Round table discussion Margarida Perrolas1 . Maria Manuel Ataíde2 . Pedro Miguel Callapez3 . José Manuel Brandão4 . Paulo Trincão5
1
Diretora do Departamento de Cultura e Turismo, Município de Figueira da Foz | margarida.perrolas@cm-figfoz.pt Chefe de Divisão de Urbanismo, Município de Figueira da Foz | maria.manuel@cm-figfoz.pt 3 Universidade de Coimbra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Departamento de Ciências da Terra | callapez@dct.uc.pt 4 Universidade NOVA de Lisboa, HTC-História, territórios, comunidades, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/CEF | jbrandao@fcsh.unl.pt 5 Museu da Ciência da Universidade de Coimbra | paulo.trincao@exploratorio.pt 2
PATRIMÓNIO INDUSTRIAL – QUE FUTURO? MESA-REDONDA
“Há tempos de usar o olhar da coruja e tempos de voar como o falcão.”
Margarida Perrolas (moderadora): Estando na reta final do nosso Colóquio – “Santos Rocha, Arqueologia e Territórios da Figueira da Foz” – compete-me dar início a esta mesa-redonda cujo tema é Património Industrial - Que Futuro? Farei uma primeira ronda de perguntas a todos os intervenientes e, no fim, abriremos o debate ao público. Passo desde já a apresentar o painel de convidados, e vou fazê-lo necessariamente de forma muito sucinta, isto porque a maioria já esteve presente em painéis anteriores. O Professor Dr. José Manuel Brandão é Geólogo, graduado em Museologia, doutorado em História e Filosofia das Ciências e investigador do Instituto da História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Para além da docência, que exerceu durante vários anos, desempenhou funções como responsável pelas atividades educativas no Museu Nacional de História Natural e da Ciência e foi conservador do Museu Geológico, do então denominado Instituto Geológico e Mineiro. É autor e coautor de diversas publicações no âmbito da História, da Museologia, das Geociências e do Património Mineiro. O Professor Dr. Pedro Callapez, investigador e professor na área da Geologia, é doutorado em Estratigrafia e Paleontologia pela Universidade de Coimbra. É investigador nas áreas de Museologia e
D. João II [Atrib.]
História, aplicadas às Ciências da Terra e divulgação das Ciências Naturais, autor e coautor de vários estudos, incluindo trabalhos sobre Geologia, Préhistória, História da Água na Figueira da Foz e Couto Mineiro do Cabo Mondego. A Arquiteta Maria Manuel Ataíde, especialista em Urbanismo pela Universidade de Aveiro, desempenha funções de chefe de Divisão de Urbanismo, na Câmara Municipal da Figueira da Foz, desde 2011. Com competências nas áreas de Planeamento, de Licenciamento de Obras Particulares, de Reabilitação Urbana e de Fiscalização, tem colaborado ativamente na elaboração de instrumentos de gestão territorial, no concelho da Figueira da Foz. Destes destaca-se a revisão do Plano Diretor Municipal, de terceira geração, que tem como principais objetivos a proteção do ambiente e a salvaguarda do património paisagístico, histórico e cultural. O Professor Dr. Paulo Trincão é licenciado em Geologia e doutorado em Estratigrafia e Paleontologia pela Universidade Nova de Lisboa. Para além da docência e, como sabem, responsável pela realização de várias exposições, desempenhou funções de Diretor do Instituto de História da Ciência e da Técnica, no Museu Nacional da Ciência e da Técnica; foi diretor do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra e Diretor da FábricaCentro de Ciência Viva de Aveiro. Atualmente
PATRIMÓNIO INDUSTRIAL – QUE FUTURO? MESA-REDONDA
exerce a função de Presidente do ExploratórioCentro de Ciência Viva de Coimbra e a de diretoradjunto do Museu da Ciência, sendo autor e coautor de diversas publicações. Espero tenham gostado do documentário1 com que iniciámos esta mesa-redonda que, na verdade, revela a dimensão de uma cidade em torno de todo o seu património, quer histórico e cultural, quer arqueológico ou industrial, sendo algo que não pode deixar ninguém indiferente. O que proponho agora é, precisamente, uma conversa com estes especialistas, procurando dar resposta à pergunta: Que futuro para Património Industrial e Natural do Cabo Mondego? Começo pelo Professor Dr. José Brandão, colocandolhe a seguinte questão: À semelhança dos exemplos que acabámos de ver, nesta reportagem da RTP, considera que o espaço do antigo Couto Mineiro Cabo Mondego tem, efetivamente, potencial para uma intervenção similar? José Manuel Brandão: Não quero ir até tão longe como o filme, à Estónia, mas chamo a atenção para o exemplo da nossa vizinha Espanha que, neste momento, tem sete ou oito museus só para o carvão e para a história do carvão. Aquilo que verificamos é que são museus relativamente pequenos, muitos deles evolutivos, o que significa que houve algum investimento de início, mas depois, à medida que rentabilizam os programas, vão crescendo e ampliando-se. Em relação ao Cabo Mondego, as últimas comunicações do anterior painel demostraram, perfeitamente, as suas extraordinárias potencialidades, quer em termos do património construído ainda 1
Esta mesa-redonda iniciou-se com a projeção de um clip do documentário sobre o Kultuurikatel que as jornalistas Raquel Abecassis e Raquel Mourão Lopes realizaram para a série De Lisboa a Helsínquia da RTP, emitido no dia 17 de novembro de 2018. O Kultuurikatel é um hub de indústrias criativas instalado na antiga central elétrica da cidade de Talin, capital da Estónia, que foi requalificada para funções culturais com a ajuda financeira da União Europeia.
318
existente, quer em termos de algum património móvel, apesar de já mais depauperado, e de um património arquivístico extraordinariamente interessante. E aqui, volto a insistir na importância da história oral, que é muitas vezes esquecida, mas que é uma ferramenta fundamental. Em comparação com as imagens projetadas da central elétrica [a Kultuurikatel, em Tallin], aqui mais próximo, na vizinha Espanha, perto de Léon, na cidade de Ponferrada, funcionando em simultâneo com a mina de carvão havia, e há, uma central elétrica a que chamam, pomposamente, “Fábrica da Luz” e que foi posta à disposição da população para que dela pudesse usufruir em termos de património. O que é curioso em ambas, como se viu nestas imagens, é que não há uma intervenção de arquitetura e de consolidação muito grande. Há, sim, a preocupação de criar condições de segurança à visitação e de criar uma história que as pessoas percebam ao fazer o percurso, sendo este delineado com algum cuidado para que haja uma sequência cronológica ou uma sequência de etapas de trabalho, ou seja, uma cadeia operatória clara para o visitante. É de facto impressionante: uma pessoa vira, contorna a zona das caldeiras, e depara-se com écrans enormes, TV Led, em que vê os antigos trabalhadores, ali a falar! Por trás destes testemunhos está um enorme trabalho de recolha das memórias sobre a forma como tudo aquilo funcionou. Se calhar, para a mina [do Cabo Mondego] a recolha de testemunhos orais pode já ser um pouco complicada. Talvez ainda haja gente viva que trabalhou nas minas… Mas, se não, há os descentes diretos que ainda têm o “pote do almoço”, que sabiam como é que se fazia, que sabiam os horários, que ouviam a sirene a trabalhar… É extremamente importante tudo isso ser recolhido e é um trabalho exequível para um centro de interpretação. Outra das hipóteses que exploraram, em Espanha (não no caso do carvão), foi a ideia dos Parques Mineiros que também não implicam investimentos substanciais. No fundo, criam-se duas ou três
PATRIMÓNIO INDUSTRIAL – QUE FUTURO? MESA-REDONDA
condições para ter uma exposição e uma interpretação simples do sítio, em que a própria ruína, pela sua singularidade ou pela sua monumentalidade, também pode ser conservada e ilustrada. No fundo, a degradação do edifício também é uma parte da sua história. No Cabo Mondego, não significa necessariamente que se vá reconstruir tudo, ou que tudo seja visitável, mas há que fazer, sobretudo, uma seleção muito clara daquilo que foram os pontos nevrálgicos da história da mina. A partir desse ponto, então terá de haver algum investimento no sítio, mas sem que isso implique o investimento de horrores de dinheiro! Em conclusão, há duas questões que são palavraschave: a primeira é definir muito claramente quais são as singularidades que distinguem o Cabo Mondego, por exemplo, das minas de S. Pedro da Cova (que são quase coevas, apesar de mais recentes também têm 200 anos de história); a segunda são as singularidades que o possam, também, distinguir de outros pequenos projetos já realizados. Ao nível da singularidade e da originalidade interessa, portanto, selecionar pequenos pontos que sejam importantes do ponto de vista científico, o que é que eles significaram dentro da cadeia operatória da mina, e que tenham um valor pedagógico, ou seja, para que as pessoas possam perceber qual era o significado de cada um desses pontos num determinado conjunto.
propriamente dita, mas também um histórico ligado às atividades de natureza científica, educativa e, mais recentemente, lúdica, que o torna indissociável de tudo aquilo que se possa vir a fazer em torno do Cabo Mondego, que não se esgota, por si só, no carvão. Quando refletimos sobre o assunto, pensamos em coleções de natureza geológica, muitas delas de natureza paleontológica, que se encontram dispersas por museus nacionais, e que não se encontram representadas, a nível museológico, aqui na Figueira, como ontem tive aqui oportunidade de referir2. Isso [as coleções de natureza geológica] poderia servir, com o aproveitamento de algum edificado do Cabo Mondego, como uma maneira de transpor esta lacuna, fazendo, por exemplo, uma extensão do próprio Museu Municipal. Ligado a esse eventual centro de interpretação, que aqui já foi falado e que teria o papel de fazer essa junção entre, a parte do património mineiro e industrial, propriamente dito, e todo o património geológico existente. Este começa pelos próprios extratos, pelas camadas de carvão, continua pelas arribas sobranceiras ao ponto mineiro, onde se encontra um conjunto de afloramentos, conhecidos e estudados, desde há dois séculos, e que continua também pela pedreira de cal, que é uma pedreira antiga (que se encontra imediatamente por detrás do edificado), que importa também ter em consideração e preservar. De entre todo este conjunto de acervos ligados à Margarida Perrolas: Coloco agora uma questão ao parte geológica, alguns são extremamente apelativos, Professor Callapez. Falamos do património edificado principalmente, os de natureza paleontológica, os fabril e mineiro. Como é que conseguiríamos quais têm vindo a sofrer de depravação/degradação. interligar o património edificado com o património [Veja-se o que aconteceu] com aquela bonita pegada geológico natural do Cabo Mondego? de dinossauro que tínhamos na Figueira e que, soube, foi destruída. Mas isso só mostra que há Pedro Miguel Callapez: O Cabo Mondego vale todo um trabalho para ser feito, que não pode ser não só pelo edificado propriamente dito, mas pelo compartimentado... É um trabalho em que se deve seu espaço. O espaço começa, logo à partida, por ter em conta a especificidade do local, como referiu todo o vasto afloramento geológico que se encontra 2 Considerações sobre o papel da Geologia e seus atores no universo à volta desse edificado. Ele próprio também tem arqueológico de António dos Santos Rocha. Páginas 44 a 61 desta um histórico, não só ligado à atividade extrativa, publicação. 319
PATRIMÓNIO INDUSTRIAL – QUE FUTURO? MESA-REDONDA
o meu colega José Brandão, especificidade essa que passa também pela componente geológica. Nunca esquecendo que o que está em causa no meio disto tudo, também é o progresso do Município, em termos de progresso socioeconómico, cultural e histórico. Toda a parte cultural e histórica é importantíssima! E isto lembra-me, para terminar a minha intervenção, o que já está a ser feito noutras cidades portuguesas, e que é feito no âmbito internacional. Começou em Barcelona, em meados dos anos 90, que é o paradigma das cidades educadoras em que, a cidade aparece através de um conjunto de iniciativas, entre as quais, iniciativas como a recuperação de um sítio histórico; iniciativas essas que comungam a participação de toda a população, de todos os setores ativos da cidade, no sentido do bem-estar, do progresso e da educação da sua própria população. E esta situação do Cabo Mondego poderia ser um contributo substancial para a Figueira da Foz como cidade educadora. Margarida Perrolas: Muito obrigada, Professor Callapez! Lançou mais um desafio para a nossa equipa do Museu Municipal que o irá, certamente, aceitar e abraçar de coração. Arquiteta Maria Manuel, na sua perspetiva de Chefe de Divisão de Urbanismo, ou seja, na perspetiva técnica, gostava que nos pudesse explicar um bocadinho sobre o que é que a Câmara Municipal tem vindo a fazer com vista à salvaguarda do sítio do Cabo Mondego. Maria Manuel Ataíde: Desde o encerramento da CIMPOR, a 15 de março em 2013, a Câmara deparou-se com um novo paradigma, ou seja, surgiu a oportunidade de, novamente (é uma luta que perdura há décadas), solicitar à CIMPOR uma colaboração, no sentido de devolver aquele espaço à cidade. Para isso, os Professores aqui presentes, Pedro Callapez, José Soares Pinto e José Brandão, enviaram uma carta à Câmara disponibilizandose para trabalhar probono, desde que a CIMPOR 320
abrisse as suas portas. A Câmara enviou o pedido à CIMPOR, nesse sentido, mas não teve resposta favorável. Entretanto, tudo isto está relacionado com o instrumento de gestão territorial (estamos perante o PDM dos anos 90) em que o Cabo Mondego surge com a classificação de “indústria extrativa e indústria a reconverter”, ou seja, como “espaço industrial”. Além deste, existem as várias servidões decorrentes da classificação como “Monumento Nacional Natural” (2007), da “Rede Natura”, da “Reserva Ecológica”, que se vão sobrepondo. Concluindo, para não me alongar, a Divisão de Urbanismo procurou sempre alterar estes condicionamentos, conjugando todas as vontades, de valorização do património natural, geológico, paleontológico, industrial, etc. Em 2014, apresentámos um “Plano de Intervenção em Espaço Rústico”, abrangendo toda esta área, no sentido de abrir aquele espaço para o cidadão. Este plano obteve o aval da Administração Central, mas mesmo assim, e não desistindo (porque o investimento monetário é importante), apresentámos candidaturas para haver financiamento de algumas intervenções no espaço, nomeadamente ao projeto LIFE3. Este, que estabeleceria o corredor ecológico – chamado o Corredor Verde-Azul –, e cujo financiamento, por parte da Comissão Europeia seria de cerca de um milhão, avançando a Câmara com outro milhão, não foi aprovado. Não desistindo, em 2017, apresentámos nova candidatura! Entretanto, pedimos a avaliação dos terrenos para, caso fosse necessário, a Câmara expropriar o terreno à CIMPOR. Só o corredor, ao longo da orla marítima, foi avaliado em cerca de 690 mil euros! Apenas o valor do solo, mais um edifício! Não havendo dinheiro, também não há projeto! 3 O Programa LIFE - cujo acrónimo traduz L’Instrument Financier
pour l’Environment – é um instrumento financeiro comunitário que foi criado com o objetivo específico de contribuir para a execução, a atualização e o desenvolvimento das Políticas e Estratégias Europeias na área do Ambiente, através do cofinanciamento de projetos com valor acrescentado europeu.
PATRIMÓNIO INDUSTRIAL – QUE FUTURO? MESA-REDONDA
A CIMPOR foi um bocadinho fechando as suas EuroVelo5. O que é a EuroVelo? É uma ciclovia, portas… Começou a perceber que a Câmara queria uma rota ciclável por toda a Europa, e que vai passar, entrar pela CIMPOR adentro! exatamente, na estrada junto ao mar. Está também em estudo o projeto da estrada do Enforca-Cães, por cima. Ou seja, a rodovia viária, por cima, e a Margarida Perrolas: E entrámos! ciclável por baixo. São estas pequenas coisas que Maria Manuel Ataíde: E entrámos… Nesse começam a abrir portas. entretanto, a CIMPOR vendeu a uma empresa Temos, ainda, uma boa notícia! O tribunal declarou brasileira. Quem está à distância olha para este à CIMPOR que há uma grande faixa, que absorve património como um fator económico, e essa empresa os edifícios, e que pertence ao “domínio público começou a desmantelar as estruturas industriais, para marítimo”. O Estado, através da Agência Portuguesa vender a peso, o ferro. Enquanto isso, a Divisão de do Ambiente-APA, terá que acionar os mecanismos Urbanismo e a Divisão da Cultura fizeram várias necessários de retoma daquele território para o investidas ao local, contrariamente à vontade do domínio público. Os edifícios são privados, terá proprietário, conseguindo por diversas vezes, através de ser feita uma avaliação dos imóveis, numa do então Presidente da Câmara, pedir para pararem outra etapa, e em 2019/2020 vamos avançar. Acho de desmantelar, porque o património estava a ir-se que estamos num ponto certo da viragem deste embora. E foi muito património embora… Isto paradigma… espero eu! durou de 2017 a 2019. Estivemos lá com a Dr.ª Deolinda Folgado, da Direção Geral do Património Margarida Perrolas: Partimos então do princípio Cultural, que disse: – “Sim, senhor! Pelo menos a de que está para breve, a Câmara poder ficar com fábrica da cal tinha muito interesse em abrir uma algum daquele património edificado, certo? musealização”. Assim, conseguimos travar algum do desmantelamento! Conseguimos, na revisão Maria Manuel Ataíde: Sim. do Plano Diretor Municipal, aprovado em 2017, classificar o espaço, não como espaço industrial, Margarida Perrolas: O que eu pergunto agora ao mas sim como espaço cultural! E, além disso, temos Dr. Paulo Trincão é se, com a sua experiência nas as várias servidões, como o POOC e a REN, que áreas de Comunicação, Ciência e Serviço Educativo, não nos deixam fazer muito mais4. Finalmente, e de grande proximidade com o público, considera em setembro de 2017 é aprovada esta nova versão fácil que se consiga implementar um modelo de do PDM que nos permite olhar para o futuro com sucesso naquele espaço? uma maior esperança, de que podemos… o cidadão Paulo Trincão: Tenho estado a ouvir com cuidado pode… voltar a ter aquele espaço para a cidade. todas as intervenções e confesso que não me sai Margarida Perrolas: Relembro que também existe da cabeça, a história da coruja. A maior parte das intervenções tem a lógica da história da coruja: os o projeto da ciclovia. nossos filhos são sempre os mais bonitos de todos Maria Manuel Ataíde: Sim, neste momento, e temos de respeitá-los e protegê-los. Eu acho isso há um projeto da CIM-Baixo Mondego que é a 5 A Rede Europeia de Ciclovias (EuroVelo) inclui atualmente 15 rotas 4 POOC – Plano de Ordenamento da Orla Costeira e REN – Reserva
Ecológica Nacional.
cicláveis de longa distância que cruzam o continente Europeu. As rotas podem ser usadas por cicloturistas, bem como pelos habitantes locais, nas suas deslocações diárias.
321
PATRIMÓNIO INDUSTRIAL – QUE FUTURO? MESA-REDONDA
bem, por princípio! Conheço bem o Cabo Mondego, há mais de 40 anos, onde trabalhei muito, dei muitas aulas, conheço alguma coisa do património edificado, mas também conheço o que se passa com o património mineiro em Portugal. Aliás, fui o primeiro português a participar nas expedições de patrimónios mineiros, há 40 anos, e temos uma realidade muito clara. As grandes minas portuguesas e as grandes produções minerais, de volfrâmio e de pirite, estão numa fase de musealização muito parecida com esta. Como saberão, o carvão em Portugal, praticamente não existiu no conceito Europeu, tínhamos um rabinho do arco carbonífero em São Pedro da Cova, mas não tem nada a ver com Espanha, nem com o resto da Europa. Em termos de grande produção mineira, Portugal, não é muito significativo, mas efetivamente, o Cabo Mondego é muito importante porque é histórico, é a primeira [mina] e dentro da nossa realidade teve algum peso. Mas visto no âmbito nacional, eu tenho seríssimas dúvidas de que alguém olhe para este património mineiro como prioritário, em termos de uma grande intervenção. Por isso, acho que esse caminho é generoso, é muito bom para exercícios académicos e para as pessoas aprenderem, mas uma das coisas que eu acho que se deve ensinar nas universidades é ler a realidade de uma forma objetiva, com a capacidade de formar as pessoas, para estas não viverem como o D. Quixote vivia! Eu acho que estamos, muitas vezes, a roçar nesta discussão elementos deste tipo. Contudo, há muita coisa a fazer no Cabo Mondego, como é óbvio. A primeira, do meu ponto de vista, é aquilo que é distintivo. Não é só, obviamente, o valor geológico e paleontológico, como já foi referido, mas são dois pequenos pormenores de suprema importância. O primeiro é a proximidade do Cabo Mondego à Universidade mais antiga do país, a Coimbra, e desde há séculos ser o local, por eleição, para aulas e para investigação, por duas razões: pelo seu conteúdo e pela inclinação das rochas. Pelo facto de termos as rochas quase verticais, com cerca de 70º de inclinação para sul, num pequeno espaço geográfico, 322
conseguimos passar uma grande quantidade de tempo. É claro que não é só na Figueira da Foz, é em São Pedro de Moel também, e noutros sedimentos jurássicos do país. De facto, é muito bom para dar aulas e é muito bom para explicar uma série de conceitos que já foram falados. E isso vai, do meu ponto de vista, desde sempre como local ativo de ensino. Tanto faz a Universidade de Coimbra como faz a Universidade de Aveiro, como faz Salamanca, como fazem outras. Portanto, do meu ponto de vista, esta visão de laboratório didático do Cabo Mondego, deve ser incentivada, ampliada e divulgada. Para isso não é preciso uma grande estrutura de apoio, o núcleo museológico que há em Buarcos pode, perfeitamente, servir de apoio. É evidente que muita gente vê o nível embrionário em que estamos, do ponto de vista político, de patrimónios e da sua passagem para o domínio público, etc. Mostra claramente que não é possível fazer logo um projeto sustentado da natureza que é apresentado. Obviamente, que ainda estamos muito, muito, muito atrás em relação a isso. De qualquer forma, há outra questão, que preocupa quase todos, e que é a apropriação pública do espaço. Essa apropriação pública do espaço passa pela sua conservação e pela sua compreensão. Para quê? Para, de alguma maneira, manter, pelo menos, o que existe, seja o edificado, seja o natural, de forma a aguentá-lo por muito mais tempo. Mas, do meu ponto de vista, e desculpem a polémica, é errado pensar que na nossa esperança de vida, se pode fazer uma intervenção com a natureza daquela que temos abordado. Lamento, mas é o que eu penso sobre o assunto. Margarida Perrolas: Muito obrigada. Vamos passar ao debate, abro a discussão ao público. Pedia aos interessados que queiram colocar alguma questão, que se identifiquem. Público: Sou Licínia do Nascimento, natural da Murtinheira, sou bisneta, neta, sobrinha e prima
PATRIMÓNIO INDUSTRIAL – QUE FUTURO? MESA-REDONDA
de pessoas que trabalharam no Cabo Mondego; sou sobrinha do encarregado geral, que era o Sr. Cardoso Neto; prima do diretor do Cabo Mondego; filha do Sr. Augusto Nascimento e prima do Sr. Velaciano Nascimento, que também lá trabalharam. Conheço tudo, desde o princípio, quase desde que o Cabo Mondego foi aberto. A estrada Murtinheira/Farol foi aberta por pessoas que iam trabalhar para o Cabo Mondego, há já bastantes anos. Aquela estrada tem mais de 200 anos, eu não era nascida nessa altura, mas fui ouvindo, por “A, B e C”, e sei que aquela estrada está aberta há muitos anos. Nunca foi do Cabo Mondego! Aquela estrada não é privada! É pública! Foi sempre pública! E é só isso que eu quero dizer. Muito obrigado. Margarida Perrolas: Não havendo mais perguntas, resta-me em nome do Sr. Presidente da Câmara da Figueira da Foz e da Organização deixar um agradecimento muito especial a todos os participantes e a todos os presentes de cada painel, pelas comunicações de elevada qualidade científica, reforçando, assim, o papel da arqueologia na atualidade. Um grande obrigado à Comissão de Honra e à Comissão Científica pelo investimento, dedicação e rigor com que acompanharam, desde a primeira hora, a realização deste colóquio. Quero agradecer ainda a generosidade da nossa antiga Diretora, a Dr.ª Isabel Pereira, que esteve connosco durante o dia de ontem e acompanhou as sessões. O meu último agradecimento é a quem concebeu, produziu e realizou este colóquio, e também as exposições, ou seja, à minha equipa técnica do Museu Municipal, liderado pela Dr.ª Ana Ferreira. São eles que, diariamente, com o seu trabalho, a sua dedicação e a sua sabedoria, conseguem manter viva a memória de António dos Santos Rocha, divulgando sempre o imenso e valioso legado que nos deixou. Muito obrigado a todos e bem hajam pela vossa presença! 323
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
Memória do Colóquio Colloquium Memory Cartaz . Programa . Álbum Fotográfico . Agradecimentos Poster . Program . Photo Album . Acknowledgments
324
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA GEOLOGIA E SEUS ATORES NO UNIVERSO ARQUEOLÓGICO DE ANTÓNIO DOS SANTOS ROCHA
325
MEMÓRIA DO COLÓQUIO PROGRAMA
SANTOS ROCHA, ARQUEOLOGIA E TERRITÓRIOS DA FIGUEIRA DA FOZ 21 Novembro | Quinta feira
14h30 | Painel II Sítios e materiais arqueológicos
09h30 | Sessão de abertura
Os ocupantes dos monumentos megalíticos da região da Figueira da Foz escavados por Santos Rocha: o que os seus restos ósseos nos revelam. Ana Maria Silva
Carlos Monteiro | Presidente Câmara Municipal da Figueira da Foz Helena Catarino | Coordenadora da Secção e Instituto de Arqueologia da Universidade de Coimbra
Santos Rocha e a Anta da Capela de Santo Amaro. A calote com evidências de trepanação. Carlos Didelet
10h00 | Painel I Santos Rocha, vida e obra
O Dólmen do Cabeço dos Moinhos (Serra da Boa Viagem, Figueira da Foz): contributos para o estudo das práticas funerárias pré-históricas. Ana M. S. Bettencourt, Ana Maria Silva, Cláudia Costa, Sofia Tereso e Carlos S. Cruz
Hacer arqueología hoy: investigación, difusión y defensa del rigor e independencia disciplinar. Gonzalo Ruiz Sapatero | Professor da Universidade Complutense de Madrid Santos Rocha, arqueólogo de corpo inteiro. Monumentos megalíticos da Figueira e sua proteção. Raquel Vilaça e Ana Margarida Ferreira Entre cortesia e partilha científica: as moldagens arqueológicas oferecidas por Nery Delgado ao Museu Municipal da Figueira da Foz (1894). José Manuel Brandão Considerações sobre o papel da Geologia e seus atores no universo arqueológico figueirense de António dos Santos Rocha. Pedro Miguel Callapez, José Manuel Brandão, Miguel de Carvalho, Pedro Alexandre Dinis, Ricardo Jorge Pimentel, José M. Soares Pinto, Rodrigo Pinto, Pedro Santarém Andrade e Luís Manuel Simões 12h20 | Debate 12h40 | Visita à exposição temporária Santos Rocha, Arqueologia e Territórios da Figueira da Foz.
326
15h30 | Debate Os Cacos. Sempre os Cacos... Notas sobre a produção de cerâmica em Santa Olaia na Idade do Ferro. Sara Oliveira Almeida, Maria Isabel Prudêncio, Rosa Marques, Maria Isabel Dias e Dulce Russo Sobre as mais antigas mós circulares rotativas no Ocidente da Península Ibérica: os trabalhos de Santos Rocha nos sítios do baixo Mondego (Santa Olaia e Crasto de Tavarede). Carlos Fabião Os textos clássicos e a faixa costeira da Lusitânia Setentrional: um tópico revisitado. Amílcar Guerra Um farol romano na Foz do Mondego? Vasco Gil Mantas 17h40 | Debate
MEMÓRIA DO COLÓQUIO PROGRAMA
22 Novembro | Sexta feira 10h00 | Painel III Arqueologia e património industrial Materiais (Arqueológicos) para a História da Figueira nos séculos XVIII e XIX. José Ricardo Nóbrega A exploração da Mina Cabo Mondego: breve apontamento sobre um património degradado. José M. Soares Pinto, Pedro Miguel Callapez, José Manuel Brandão e Rodrigo Pinto The attempted introduction of pumping technology at the Buarcos coal mine: an ambition of the superintendent, and travelled mineralogist, Bonifácio de Andrada (Portugal, early 19th century). José Manuel Brandão e Robert Vernon Sobre a importância da ocorrência de celestite no Cabo Mondego: singularidade, importância científica e implicações materiais. Ricardo Jorge Pimentel, José M. Soares Pinto, José Manuel Brandão, Pedro Miguel Callapez e Rodrigo Pinto
A Fauna de Santa Olaia. Rodrigo Pinto O Contributo da Fotogrametria no Registo Arqueológico: o caso de estudo da muralha Nascente do Forte de St.ª Catarina (Figueira da Foz). Bruno Freitas e Marco Penajoia Do Cabo Mondego à Estação da CP – António da Silva Guimarães e a Linha do Americano. Inês Pinto e Ana Domingues R. Laidlaw & Son, Glasgow – O contributo direto da diversificação dos investimentos britânicos no estrangeiro, a partir de 1880, para a modernização urbana da Figueira da Foz. José Ricardo Nóbrega e Cláudia Figueira 14h00 | Painel III Arqueologia e património industrial Compreender o passado através do presente – perspetivas para o património industrial do Cabo Mondego. Francisco Velho da Costa
11h20 | Debate
O caso do Cabo Mondego. O dever da Arquitetura sobre o território abandonado. Sebastião Goulão
12h00 | Mostra de pósteres, com a presença dos autores
14h40 | Debate
Contributos para o estudo do depósito metálico de Espite (Ourém). Pietro Musso Mack, Xosé-Lois Armada e Raquel Vilaça
15h30 | Mesa-redonda Património Industrial – Que Futuro? Margarida Perrolas | Moderadora
Um punhal de cobre esquecido, um sítio (re)encontrado: Loriga (Alhadas de Baixo, Figueira da Foz). Ana Rita Pereira, Carlo Bottaini e Raquel Vilaça
16h45 | Sessão de encerramento
Contributo para o estudo da ocupação pré-histórica da Figueira da Foz: “A estação humana do Arneiro”. Carlos E. F. Batista e Ana M. S. Bettencourt Elementos para o estudo da ocupação romana na foz do Mondego. Marco Penajoia
23 Novembro | Sábado Excursões Científicas Santa Olaia – Visita guiada por Marco Penajoia Dólmen das Carniçosas – Visita guiada por Carlos Batista Cabo Mondego – Visita guiada por Pedro Miguel Callapez e José M. Soares Pinto
327
MEMÓRIA DO COLÓQUIO ÁLBUM FOTOGRÁFICO | LEGENDAS
Página 329
Página 333 (em baixo)
Página 330 (em cima) Conferência | Gonzalo Ruiz Zapatero
Página 334 (em cima à esquerda)
Página 330 (em baixo, da esquerda para a direita) Mesa | José Manuel Brandão, Ana Maria Bettencourt, Pedro Miguel Callapez, Carlos Didelet, Ana Maria Silva e Raquel Vilaça
Página 334 (em cima à direita)
Sessão de abertura | Helena Catarino e Carlos Monteiro
Página 331 (em cima, da esquerda para a direita) Mesa | Helena Catarino, Carlos Fabião, Vasco Gil Mantas, Amílcar Guerra e Sara Almeida Página 331 (em baixo, da esquerda para a direita)
Mesa | José Manuel Brandão, José Soares Pinto, Ricardo Pimentel, Teresa Gonçalves, Robert Vernon e José Ricardo Nóbrega
Página 332 (em cima, da esquerda para a direita)
Apresentação dos pósteres | Marco Penajoia, Helena Moura, Raquel Vilaça e Ana Margarida Ferreira (primeiro plano); Rodrigo Pinto, José Manuel Brandão Ricardo Pimentel e outros (segundo plano à esquerda); José Ricardo Nóbrega, Fernando Mendes, Bruno Freitas e Cláudia Figueira (segundo plano à direita)
Página 332 (ao centro à esquerda)
Apresentação dos pósteres | Marco Penajoia, Helena Moura e Manuela Abreu
Página 332 (ao centro à direita)
Apresentação dos pósteres | Carlos Batista, Maria Manuel Ataíde e António Albuquerque
Página 332 (em baixo à esquerda) Apresentação dos pósteres | Ana Domingues e Fernando Mendes Página 332 (em baixo à direita)
Apresentação dos pósteres | Cláudia Figueira e Bruno Freitas
Página 333 (em cima, da esquerda para a direita)
Mesa-redonda | Pedro Miguel Callapez, José Manuel Brandão, Margarida Perrolas, Maria Manuel Ataíde e Paulo Trincão
328
Mesa-redonda | Plateia
Excursão a Santa Olaia | Ruínas
Excursão a Santa Olaia | Marco Penajoia apresenta o sítio
Página 334 (ao centro) Excursão ao Dólmen das Carniçosas | Carlos Batista apresenta o monumento Página 334 (em baixo à esquerda)
Excursão ao Cabo Mondego | José Soares Pinto apresenta o tema em frente à entrada dos Poços Raposos
Página 334 (em baixo à direita) Excursão ao Cabo Mondego
MEMÓRIA DO COLÓQUIO SESSÃO DE ABERTURA
329
MEMÓRIA DO COLÓQUIO COMUNICAÇÕES
330
MEMÓRIA DO COLÓQUIO COMUNICAÇÕES
331
MEMÓRIA DO COLÓQUIO APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS PÓSTERES
332
MEMÓRIA DO COLÓQUIO MESA REDONDA
333
MEMÓRIA DO COLÓQUIO EXCURSÕES CIENTÍFICAS
334
Agradecimentos As coordenadoras e os responsáveis pelas instituições editoras deste volume agradecem reconhecidamente a todas as pessoas e entidades que, de alguma forma, contribuíram para a realização do Colóquio. Pedimos desculpa a quem possamos, involuntariamente, ter esquecido. Adília Alarcão, António Ferreira Soares, Isabel Pereira, Jorge de Alarcão, Jorge Paiva, José Manuel Brandão, José Morais Arnaud e Luís Raposo, membros da comissão de honra. António Campar de Almeida, Amílcar Guerra, Carlos Fabião, Helena Catarino, Pedro Callapez, Raquel Vilaça, José Manuel Soares Pinto, Teresa Gonçalves e Thierry Aubry, membros da comissão científica. Odete Sousa e Fátima Filomena, artistas ceramistas que criaram o arranjo floral da mesa de honra. Raquel Lopes e Rebeca Abecassis, jornalistas da RTP, autoras do videoclip sobre o Kultuurikatel que abriu a mesa-redonda. Sofia Teodósio, engenheira coordenadora do Gabinete de Projetos de Arquitetura e Engenharia, Tintas Robbialac SA. Teotónio Paulo de Jesus Cavaco, diretor do Centro de Formação de Associação de Escolas (CFAE) Beira Mar.
APOIOS
Revista Conimbriga | Anexos Coleção do Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra CRUZ, Domingos J. da A Mamoa 1 de Chã de Carvalhal no contexto arqueológico da Serra da Aboboreira Coimbra, 1992, 180 pág., ilustr., formato 21x29,5 cm LOPES, Maria da Conceição A sigillata de Reprezas, tratamento informático Coimbra, 1994, 258 pág., ilustr., formato 21x29,5 cm LOPES, Maria da Conceição A cidade romana de Beja. Percursos e debates acerca da civitas de Pax Ivlia Coimbra, 2003, 392 pág., ilustr., formato 21x27 cm CARVALHO, Pedro C. Cova da Beira. Ocupação e exploração do território na época romana Fundão/Coimbra, 2007, 590 pág., ilustr., formato 16x24 cm VILAÇA, Raquel Depósitos de bronze do território português, um debate em aberto Coimbra, 2007, 150 pág., ilustr., formato 16x24 cm CORREIA, Virgílio Hipólito A Arquitectura doméstica de Conimbriga e as estruturas económicas e sociais da cidade romana Coimbra, 2013, 418 pág., ilustr., formato 16x23 cm FERREIRA, Ana Margarida e VILAÇA, Raquel (coord.) Santos Rocha, Arqueologia e Territórios da Figueira da Foz Figueira da Foz/Coimbra, 2021, 336 pág., ilustr., formato 21x27cm