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n.º 3 / Janeiro de 2016 / _editorial

A realização do I Colóquio de Museus Rurais do Sul, a 21 de Janeiro, de 2016, em Castro Verde, serve de mote para o número 3 dos Cadernos do Museu. Concretizamos desta forma, um objectivo claro da filosofia desta edição: ser um instrumento de trabalho para quem trabalha em património e museologia, em projectos de pequena dimensão e de escassos recursos, e não apenas o meio de comunicação do Museu da Ruralidade com a sua comunidade territorial e afectiva. Assinalamos assim, nas páginas deste número, a apresentação dos sete projectos museográficos que estão na génese da Rede de Museus Rurais do Sul, mais o contributo do Núcleo Museológico da Alfaia Agrícola, de Estremoz, e que, no passado dia 16 de Outubro, na sextafeira da Feira de Castro de 2015, decidiram avançar para este projecto, no Museu da Ruralidade, em Entradas, sem deixar de selar o compromisso informal de cooperação na Taberna do João das Cabeças, em Castro Verde. Museu da Ruralidade (Entradas – Castro Verde), Museu do Trabalho Rural da Abela (Santiago do Cacém), Núcleo Museológico de Alcaria de Javazes (Mértola), Núcleo Rural de Ervidel (Aljustrel), Museu da Farinha (S. Domingos - Santiago do Cacém), Museu Arqueológico e Etnográfico de Santa Clara-a-Nova (Almodôvar) e Museu

Rural de Pias (Serpa) deram assim corpo a uma iniciativa que tem no I Colóquio de Museus Rurais do Sul a génese formal de um projecto que se pretende seja, acima de tudo, uma metodologia de trabalho entre museus rurais do sul, e que tem a partilha de conhecimentos e de experiências através de reuniões de trabalho, acções de formação ou colóquios como principal fórmula de funcionamento. Procurando abranger os museus de carácter rural localizados desde o Algarve à Bacia do Tejo, que a ela se queiram associar, esta Rede pretende valorizar, registar e dignificar a memória das “ruralidades” do Portugal dos séculos XIX e XX que, de forma extraordinariamente rápida, está a desaparecer com as gerações que nasceram entre a I e a II guerras mundiais. Pretende-se que este seja um trabalho de cooperação e partilha dos pequenos museus que vivem tempos muito difíceis, sobretudo porque raramente estão no rol de prioridades da maioria dos poderes que superintendem os museus em Portugal. A partilha e o trabalho em parceria, que se pretende que seja a pedra de toque dos museus “rurais do sul”, permitirá desenvolver um trabalho mais interventivo e mais rico para as comunidades onde se inserem e, sobretudo, cumprir a função social que está inerente à sua criação: desenvolver o sentido de pertença a uma comunidade. Valorizando a sua memória, apostando na sua dignificação e assumindo o papel de depositários dessa mesma memória. Uma memória que é, já hoje, futuro, e que será uma referência pedagógica, técnica e científica muito importante num amanhã muito próximo.

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Museu do Trabalho Rural Abela, Santiago do Cacém Fernanda do Vale, José Matias Câmara Municipal de Santiago do Cacém Divisão de Cultura e Desporto

Horário de abertura: Quarta a sexta-feira: 14h00 — 18h00 Sábados: 10h00 — 13h00 / 14h00 — 18h00 Encerra aos domingos, segundas, terças-feiras e feriados

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Contactos: Largo 5 de Outubro 7540-011 Abela Tel.: 269 902 048 E-mail: museudotrabalhorural.abela@gmail.com


O Museu do Trabalho Rural localiza-se no Município de Santiago do Cacém, mais concretamente na aldeia de Abela. Este equipamento surgiu por iniciativa da Junta de Freguesia local que, em parceria com a Câmara Municipal de Santiago do Cacém, desenvolveu um vasto programa de obras de requalificação na freguesia, denominado “Revitalizar A Bella”, tendo o museu sido cofinanciado pelos programas AGRIS e LEADER + com candidaturas apresentadas à ADL e apoiado pela Caixa de Crédito Agrícola da Costa Azul. Situado no Largo 5 de Outubro, o museu conta com uma localização privilegiada e implantação em gaveto que lhe confere algum destaque na malha urbana, beneficiando com a cenografia da imponente fachada da Igreja Paroquial de Abela, ao fundo da rua. Instalado num edifício da década de quarenta do século passado, pertencente à Junta de Freguesia, ali funcionou, ao longo do tempo, a escola primária, o posto médico e o quartel da Guarda Nacional Republicana. Por forma a albergar condignamente o novo equipamento, na remodelação optou-se pela demolição da compartimentação existente, sem valor patrimonial, adaptando-se o interior às suas novas funções, preservando a imagem arquitetónica exterior. Com o objetivo de mostrar parte da vida rural do Concelho, o museu apresenta a exposição permanente “Memória e Identidade – Alfaia Agrícola Tradicional”, que reúne cerca de duas centenas de peças, tendo como base uma coleção de alfaias agrícolas, ferramentas e outros utensílios ligados aos trabalhos do campo, cedidos ou doados por particulares e algumas instituições. Este Polo Museológico do Museu Municipal de Santiago do Cacém foi criado para servir, em primeiro lu-

gar, a comunidade, tentando levar a população a tomar consciência dos seus valores culturais, como parte integrante e indissociável do património cultural coletivo. Os objetos apresentados transmitem conhecimentos de uma sociedade rural, pertencente ao passado, mas ainda suficientemente próxima para ser espaço de partilha de memórias e de referência que identifica e une gerações. O Museu do Trabalho Rural aborda a memória de uma sociedade que, nas últimas décadas, se transformou profundamente, bem como a relação de pertença de uma população ao seu território, contribuindo para uma nova consciencialização da importância da preservação e valorização dos recursos naturais e patrimoniais; para a proteção dos bens culturais, materiais e imateriais; e para a sua fruição por parte de toda a população. A permanente colaboração entre a comunidade e o museu, nomeadamente através das alfaias e objetos cedidos e sua respetiva integração no espólio, faz com que a população local sinta aquele espaço como seu, não dispensando uma visita por si guiada a um familiar ou amigo que à região se desloque. Os mais velhos recordam, de uma forma geral, tempos passados, alguns bem difíceis, que marcaram a vida dos avós, dos pais e, muitas vezes, a sua própria vida. São, no museu, os melhores cicerones, vão explicando aos filhos e aos netos como era naquele tempo; um tempo próximo para o explicador, mas distante para as novas gerações, habituadas a ver os pais “colher as batatas, a fruta e os cereais nas prateleiras dos supermercados…” Sim, porque, quanto a cereais, a coisa é mais complicada. Quando, nas visitas guiadas a grupos escolares, perguntamos aos meninos que cereais conhecem, as respostas surgem logo na ponta da língua, “Estrelitas e Chocapic”…, pois é! No museu, temos cereais a sério, as crianças veem e mexem no trigo, na cevada, no arroz

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com casca e ficam realmente a saber o que são os verdadeiros cereais e que é a partir destes que surgem os seus cereais de pequeno-almoço. A nível pedagógico, parece-nos inquestionável a importância de que estes espaços se revestem para as novas gerações, devendo as escolas tirar muito mais partido destes equipamentos, tendo em conta o que acontece atualmente. A Exposição incide sobre o património móvel agrícola, diretamente relacionado com o ciclo dos cereais na terra, acionado manualmente pela força braçal de homens, mulheres e não poucas vezes por crianças e pela força dos animais, sendo que a mecanização apenas é abordada na área das debulhas. Nos expositores, painéis e vitrinas, as alfaias e os objetos seguem uma sequência que acompanha o ciclo agrolaboral na vertente cerealífera e as operações específicas associadas a cada fase, como as desmoitas e o aproveitamento do mato queimado como fertilizante natural, as cavas e as lavouras, no outono; o desterroamento e as sementeiras, no inverno; as mondas, sachas

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e outros cuidados com as colheitas, na primavera; as ceifas, os transportes do cereal para as eiras, as debulhas e o armazenamento dos cereais, no verão.


Os transportes e sistemas de atrelagem são aqui presença obrigatória e merecem destaque pela sua importância em todas as fases dos trabalhos do campo. Trata-se, assim, de uma exposição cuja abrangência territorial é a do próprio Município de Santiago do Cacém.

O discurso expositivo foi elaborado de forma clara e compreensível, procurando-se o rigor histórico-científico aliado a um equilíbrio cenográfico, adotando-se soluções museográficas simples que contribuíssem para a valorização das peças e da etnografia com elas relacionada.

Este vasto território com 1058 km2 de área e onze freguesias, à época da pesquisa e levantamento, conta com uma paisagem diversificada, é constituído por várias unidades geográficas distintas, destacando-se a planície litoral de forte influência atlântica, a serra, cordão orográfico natural, elemento separador da planície interior, recortada a nascente e a sul pelo rio Sado e pela ribeira de Campilhas, com as suas variantes de solos, rede hidrográfica e diferenças climatéricas que, naturalmente, influenciaram e condicionaram o tipo de culturas. Ao nível da produção de cereais de sequeiro, a forte predominância foi para o trigo, nas zonas mais planas que, aqui tal como em todo o Alentejo, foi da maior importância, uma vez que o pão era a base da alimentação, não esquecendo a cevada, algum centeio nas terras mais delgadas da serra e o milho, tão apreciado para as papas e necessário para o consumo dos animais. Também com alguma importância na cerealicultura concelhia foi a produção do arroz, cultivado essencialmente nas várzeas da Lagoa de Santo André e dos Vales do Sado e de Campilhas.

Passados quase oito anos sobre a data da sua inauguração, este espaço museológico continua a surpreender o visitante que, por vezes, o considera um “pequeno tesouro” ou “uma cápsula do tempo”, contribuindo para a preservação da memória coletiva desta região do Litoral Alentejano, constituindo um pequeno polo de desenvolvimento, com algum impacto no comércio local, nomeadamente na restauração e similares. Acrescente-se a sua importância pedagógica, cultural e turística, tanto na transmissão dos valores do município e da região, como na divulgação junto das unidades de Turismo Rural que, como complemento às suas atividades, incluem, com alguma regularidade, a visita dos seus clientes ao Museu.

Perante uma área geográfica tão vasta, a equipa de levantamento optou por pesquisas direcionadas, enquadradas numa rede de malha larga, cobrindo todo o território. Paralelamente à campanha de levantamento no terreno, foram efetuadas pesquisas em arquivos, bibliotecas públicas e particulares, nalgumas metalúrgicas e pequenas oficinas.

Terminamos com a transcrição do texto de boasvindas existente à entrada do museu: “A Junta de Freguesia de Abela e a Câmara Municipal de Santiago do Cacém pretendem com este museu homenagear os homens e as mulheres que ao longo de séculos, arduamente rasgaram estas terras, transformando extensas zonas de charneca em magníficas searas de pão. O Museu do Trabalho Rural será um lugar de afectos, local de encontro do passado, do presente e do futuro, procurando preservar e perpetuar para os vindouros, saberes, tradições, memórias e modos de vida de um quotidiano rural em profunda transformação.”

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Núcleo Museológico de Alcaria dos Javazes Alcaria dos Javazes, Mértola Lígia Rafael, Manuel Passinhas, Santiago Macias, Orlando José

Horário de abertura: Sujeito a marcação

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Contactos: Alcaria dos Javazes Tel.: 286 610 100 ou 966 059 406 (Orlando José) E-mail: museus@cm-mertola.pt


Introdução

Um Museu não é um local onde se guardam coisas velhas, sem utilidade e sem valor, é um repositório de memórias, vivências e saberes. Nesta realidade, é o guardião dos objetos que foram pertença de indivíduos que foram felizes com pouco - tudo o que tinham era resultado do seu trabalho e único sustento da família. A coleção do Núcleo Museológico de Alcaria dos Javazes é representativa desta realidade que se situa tão longe mas, ao mesmo tempo, tão próxima de nós. Esta coleção integra objetos que, em determinado momento do seu percurso, deixaram de ter uso e valor. São hoje peças de museu que representam memórias e que permitem dar a conhecer às novas gerações formas diferentes de viver, instrumentos que permitem desenvolver um diálogo entre gerações, uma troca que beneficia todos, uns pelas memórias e outros pelo saber que daí advém. O proprietário desta coleção começou a reunir objetos ainda na sua juventude, primeiro por curiosidade, depois por interesse e gosto. A atratividade dos objetos está na sua forma, na sua função já esquecida, na relação com um saber ou com uma comunidade e na simples beleza da patine dada pelo tempo. O interesse e o gosto cresce na mesma proporção que o volume de objetos que, em determinada altura, necessitam de um espaço condigno que os preserve e dignifique. A coleção atualmente exposta e em reserva no Núcleo Museológico de Alcaria dos Javazes preserva e dignifica os objetos, permite valorizá-los e dá-los a conhecer, ao mesmo tempo que cria elos de ligação com as pessoas e com as suas memórias, relacionando passado e presente, vivências e experiências, gentes e território.

Alcaria dos Javazes: o território, a localidade e o núcleo museológico O território de uma aldeia era o seu horizonte mais próximo. Nascia-se e vivia-se num raio de poucos quilómetros e, antes da abertura das estradas e da chegada dos veículos motorizados, os dias, as semanas, os meses e os anos passavam ao ritmo dos trabalhos no campo, ao som e ao passo dos rebanhos e à repetição das tarefas do campo. Alcaria dos Javazes localiza-se perto da ribeira do Vascão porque, nestes territórios de aridez, não

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há povoados que estejam longe dos cursos de água. Da paisagem de todos eles fazem parte algumas terras de cultivo, as oliveiras, as ovelhas e, em todas elas se vivia do que a terra e os cursos de água davam. No que respeita à construção, as casas do extremo sul do Alentejo, entre elas as de Alcaria dos Javazes, tinham na terra, nas pedras e nas argamassas os seus principais componentes. Em muitas centenas de anos quase nada mudou, nem a forma de levantar os muros, nem o modo de bater a taipa, nem a maneira de construir os telhados. A cal é presença constante nestas casas, utilizada como forma de garantir durabili-

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dade às taipas e de assegurar a frescura do interior das habitações. As plantas não tinham esquemas rígidos, nem definitivos, moldando-se ao ritmo de crescimento das famílias, existindo depois caraterísticas diferenciadoras como a existência de um pequeno forno ou de um poço. A ausência de pátio interior, como era prática nas casas urbanas anteriores ao século XIII, era aqui compensada pela utilização do espaço exterior em frente à habitação. No passado tudo se construía a partir de quatro elementos: a água, o fogo, o ar e a terra. Tanto na aldeia de Alcaria dos Javazes como no núcleo museológico, a


presença desses elementos é muito marcante: o ar que nos rodeia, a terra de que se fizeram as casas, a água e o fogo que nos alimentam. O ambiente deste espaço reflete estes quatro elementos e relaciona-os com o território e as suas gentes, com o passado e o presente, é uma coleção de pequenas histórias, e uma soma de objetos que fizeram o quotidiano de muitas pessoas. Numa casa da aldeia, onde dantes morou gente, estão agora objetos, de diversas tipologias e proveniências, fragmentos de vidas que desconhecemos. São memórias de tempos idos, marcados pela simplicidade e construídas num tempo em que as horas não eram tão contadas como

hoje. À habitação antiga junta-se um novo espaço de exposição, do xisto ao betão, das formas da arquitetura vernacular às linhas modernas há um percurso de séculos. A pequena casa, com pátio e forno, ganha agora uma outra existência. Atualmente a exposição apresenta objetos relacionados com o quotidiano da casa - iluminar, cozinhar e comer – e integra objetos da coleção de Orlando José e do acervo do Museu de Mértola, relacionando a vivência de uma casa modesta de início do século XX com o quotidiano de uma casa islâmica do século XII. Mais uma vez se privilegia a relação entre passado e presente, baseada nas influências e permanências, nas memórias e nos saberes.

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A coleção

A coleção reunida por Orlando José1 é eminentemente etnográfica, sendo os objetos mais representados aqueles que se relacionam com a vida quotidiana, com o trabalho agrícola e com os ofícios tradicionais. Cronologicamente, a maior parte dos objetos é representativa do século XX e pertence a um derradeiro momento de “pré-modernização” dos campos e da sociedade. São objetos que deixaram de ter qualquer uso ou utilidade, o que levou a uma crescente desqualificação do ponto de vista social e a um aumento do interesse e atenção por parte de antiquários e colecionadores. Este foi o caso deste colecionador que, desde muito jovem, se interessou pelos objetos do passado e pela sua ligação a uma comunidade que, cada vez menos, os utilizava e lhes dava valor.

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O valor dos objetos advém do conhecimento de costumes e atividades artesanais já extintas ou em vias de extinção, representativas de saberes e fazeres cada vez mais esquecidos, de gerações de pessoas muito ligadas ao trabalho no campo, à pastorícia e a todo um conhecimento empírico, que passava de pais para filhos, da natureza e do que podia ser utilizado para a sua subsistência e da sua família. O núcleo museológico de Alcaria dos Javazes tem por base a coleção constituída ao longo de anos por Orlando José que integra mais de 1200 objetos, de tipologias ligadas a atividades do quotidiano da casa alentejana mas, também, de atividades artesanais ligadas à agricultura e execução e manutenção de utensílios, à tecelagem, à carpintaria, entre outras. Esta coleção foi, apresentada pelo seu proprietário à Câmara Municipal de Mértola, que propõe a sua cedência a esta entidade e a exposição e armazenamento dos objetos em local condigno. Reconhecendo a importância deste conjunto de objetos, no sentido da sua preservação e valorização, a Autarquia adquiriu para o efeito um imóvel na localidade de Alcaria dos Javazes. Depois de um longo período de reflexão sobre o caminho a dar à coleção e à sua exposição, em 2011 e 2012, reuniram-se as condições que permitiram avançar com a requalificação do imóvel e com o projeto museográfico, tendo o Núcleo Museológico sido inaugurado em 21 de junho de 20122. O edifício adquirido e o quintal anexo foram alvo de obras de requalificação que incluíram a intervenção sobre o edifício antigo e a construção de um módulo mo1 Orlando José, nascido a 7 de outubro de 1942, diplomado pela EADAA, desenvolveu a sua atividade profissional como Designer de Interiores. Reside em Alcaria dos Javazes. 2 A abertura ao público é assegurada pelo seu proprietário podendo também ser agendadas visitas orientadas através do Posto de Informação Turística de Mértola ou do Museu de Mértola.


derno, adaptado para área expositiva e reserva técnica. Numa primeira sala, instalada numa antiga edificação de pedra, faz-se uma abordagem ao Núcleo Museológico, relacionando a coleção com o território e a comunidade. Na segunda sala, encontram-se expostos objetos do quotidiano, que relacionam os objetos desta coleção com outros da coleção de Arte Islâmica do Museu de Mértola, e ilustram a temática escolhida para primeira exposição de longa duração – a casa alentejana: o iluminar, o cozinhar e o comer. Nas palavras do seu proprietário: “o acervo do Núcleo Museológico de Alcaria dos Javazes, colecionado e preservado ao longo de uma vida, foi crescendo com a ajuda e colaboração de muitos dos habitantes de Alcaria dos Javazes e Montes próximos, que uma vez entendida a intenção e razão pela qual se guarda, se dispunham a oferecer aquilo que entendiam já não fazer falta ou pelos seus descendentes após a sua morte e para os quais os objetos não passavam de inutilidades e cujo destino seria a lixeira. A coleção foi assim crescendo ao longo de muitos anos ao ponto de adquirir uma dimensão inicialmente inimaginável e necessitando então de instalações próprias e dignas onde pudesse ser admirada e partilhada com outros que não o seu proprietário. As comovidas reações de quem por ser já idoso, tem ao olhar objetos que manuseou ou com que trabalhou, são o reconhecimento de que vale apena lembrar essa gente com espaços como o que podemos observar em Alcaria dos Javazes. Poder modestamente informar o nome e a função de muitos dos utensílios a quem nunca os tinha visto e deles não tinha ouvido falar, por desconhecimento natural, é duplamente gratificante também. A coleção é assim um repositório de memórias que depositadas num local digno satisfaz quem a visita e enche de felicidade quem a recolheu”.

O museu e a comunidade

Atualmente, em Alcaria dos Javazes os dias passam lentos, iguais a tantos outros, onde o silêncio só é quebrado pelo chilrear dos pássaros, pelo cacarejar das galinhas e pelo distante balir das ovelhas. Em dias soalheiros, os poucos moradores aproveitam os raios de sol e desfrutam dos poucos momentos de distração proporcionados pela conversa com os vizinhos. Longe vão os tempos em que os dias eram ritmados pela ida e vinda dos homens para o campo, pela azáfama das mulheres e pelo riso das crianças. Ficam as memórias, as lembranças de outros tempos. Em territórios com estas caraterísticas, a preservação patrimonial pode constituir um elemento chave para a união das gentes e para a construção de uma memória coletiva, integradora e identitária. Este é o objetivo do Museu de Mértola que integra atualmente 13 núcleos museológicos, dez na sede de Concelho e três em pequenas localidades como Alcaria dos Javazes, com o objetivo de recuperar e valorizar o património e onde a musealização constitui o elo privilegiado de ligação com a comunidade. O objeto musealizado deixa de ser propriedade de alguém e passa a ser do coletivo, daqueles que com eles se identificam, passa a ser um elemento identitário e representativo da memória coletiva da comunidade e da passagem de testemunho para as gerações vindouras. O Museu serve de instrumento e de meio para juntar pessoas, transmitir saberes e criar fortes ligações entre gerações e grupos diferenciados. Por seu turno, o pequeno museu pode, e deve, ser o local onde se “guardam” as memórias coletivas e onde se transmitem os saberes e as experiências de outros tempos. O Museu é uma entidade viva, onde se guarda, se estuda, se divulga e se troca.

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Espaço Museológico Rural de Pias Pias, Serpa Madalena Borralho

Horário de abertura: Terça e sexta-feira: 9h00 — 12h30 / 14h00 — 17h30 (Restantes dias sujeito a marcação)

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Contactos: Rua 5 de Outubro, 45/47 7830-260 Pias Tel.: 284 858 234 E-mail: junta.freg.pias@mail.telepac.pt


“Memória Viva” Casas singelas de branco caiadas, como diz a moda, assim se caracteriza Pias vista do lado de fora. Por dentro, é de todas as cores como qualquer povo alentejano. Acolhedor na sua essência, tem nas festas anuais já centenárias, a que lhe chama Festa Rija, um certo orgulho que o transcende, em receber com simpatia, quem venha ver a honraria a São Luís e a Santíssimo Sacramento, que outrora foi de dois dias. Tendo como padroeira Santa Luzia, milagreira da cura das doenças dos olhos, homenageia-a nestes dias, levando-a à sua ermida. Guardiões das suas raízes, acham também na natureza a sua força, apreciando e disfrutando do campo e da sua ribeira do Enxoé, afluente do rio Guadiana. A zona granítica onde se situa, terá originado a vinda de gentes para a exploração e extração da pedra, fazendo com que esta actividade dos cabouqueiros tenha sido provavelmente a pioneira. O seu nome estará relacionado com ela, sendo o seu topónimo “Aspias”, (mapa de 1762) devido à manufacturação da pedra, as saliências deixadas nas rochas após se extraírem as mós para os moinhos, e outros, tornavam-se oportunos bebedouros para os animais, a que lhe chamariam “pias”. As condições propícias para a fixação de famílias “n`Aspias”, originou a fixação de outras famílias e actividades. Terra onde carnavais encheram largos de gargalhadas, com danças de Entrudo em que homens faziam de moças. Gente alegre, que inventa alcunhas e se ri delas. Pela Páscoa, honrando tradições e costumes, o borrego ainda se come no campo, em peculiar convívio. Mas em tempos em sábados aleluia, bem cedo a correr as muitas mercearias que a aldeia tinha e os montes, andaram rapazes de chocalhos ao pescoço, chocalhando e dando

alarme, em troca de alguma comida e de algum doce. Outrora pelo São João, cada zona tinha um mastro, onde casais dançaram ao som das suas próprias cantigas. Em agradecimento de graças concedidas, prometiam-se os jordões, festa ancestral, única no país, cuja a origem se perdeu no tempo, onde ainda hoje homens e mulheres cantam a São João. A estação de um comboio que já não passa, encheu-se em tempos de gente e de choro, em dolorosas despedidas dos seus, para a emigração e para a guerra e de alegria de os ver chegar. Mantinha em actividade uma aldeia, que recebia quem vinha comprar os tão afamados, vinho, azeite e pão, mas também foi pretexto de uma estrada em que o contentamento juvenil se passeava. As muitas crianças da aldeia mantiveram até aos anos 80 três escolas em funcionamento e “escolas pagas” em acção. Ruas onde em tempos todos os dias passava o aguadeiro no carro de burros, vendendo a água dos poços das redondezas e onde se ouvia o apregoador “alumiar” olivais, farejais, casas e coisas perdidas. Aos domingos, moços corriam as tabernas, para depois passarem a cantar, tantas vezes desculpa para ver as namoradas. Essas, que se vestiram de escuro, com lenços, aventais e botas de modo diferente, mostrando a todos a tristeza e em silêncio a esperança de os ver regressar. Onde passaram noivas de cara tapada para a igreja, em casamentos que envolviam a vizinhança, com feituras de receitas passadas de geração em geração. Dias de cante e bailação, em que à noite se ia encerrar os noivos, num ritual de cortesia único. Casas brancas de afectuosos olhares, que ficavam negras, num luto profundamente enraizado, que em culto se prolongava toda a vida. Um povo genuíno, que soube sempre ser nobre e generoso, como só o povo o sabe ser.

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O Espaço Museológico Rural de Pias é um projecto longínquo desta Junta de Freguesia com aproximadamente 20 anos. Com as dificuldades que lhe foram impostas ao longo destes anos, a Junta reuniu todos os meios que lhe foram possíveis e no amplo espaço do seu edifício, foi realizando obras que o valorizassem. Por vontade expressa de alguns executivos, teve durante algum tempo uma oficina de artesãos e um posto de venda desse mesmo artesanato. A carência de meios humanos e monetários, mas a vontade de ver algo maior e mais relevante para o povo, fez com que recorresse ao Centro de Emprego e em março de 2014 inicia este desafio apaixonante. Havendo algum espólio reunido durante anos e também herdado da Unidade Cooperativa de Produção da Reforma Agrária, na realização deste Espaço, teve sempre em mente a defesa e salvaguarda do património identitário do povo de Pias. Assim, surge a necessidade de solicitar a todos a doação de objetos em falta e outros já não usados nos nossos novos hábitos, com o fim de promover, preservar e valorizar o património histórico-cultural, retratando vivências das nossas raízes, avivando memórias e dando-as a conhecer aos mais novos. Tendo em vista a abertura do Espaço nas “Jornadas Sénior”- em Maio 2014”, da etnografia do Grupo Coral e Etnográfico “Os Camponeses de Pias”, algum artesanato já existente e a reconstituição de uma habitação rural, (sala I e II) foi com toda a disponibilidade por parte do Grupo que aceitaram a sugestão e que um dos elementos mais velhos, (Primo Bento Mestre, 81 anos) decifrou todos as profissões e utensílios.

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Considerando que o cante é parte integrante da nossa ruralidade e tendo o Grupo a sua sede neste edifício, tornou-se imperativo expor toda a sua história e “Etnografia”. Em 2014, o ano da inscrição pela UNESCO, do Cante Alentejano como Património Cultural e Imaterial da Humanidade, o Grupo Coral e Etnográfico “Os Camponeses de Pias” integra a Confraria do Cante integrando a lista desta candidatura, apoiando-a desde o primeiro momento. Este Grupo Coral da nossa música tradicional alentejana tem na voz a paixão que os nossos antepassados entoaram na dura faina dos campos, nas tabernas e em outras horas de lazer. A sua riqueza não se fica apenas pela beleza da sua entoação, mas também pelo uso dos trajes e utensílios de trabalho, das várias profissões dos nossos camponeses de há cem anos, transportando-nos a um passado que nos fica bem presente em toda a sua etnografia. A sua fidelidade aos trajes, que consideram indissociáveis do cante, faz deles um dos grupos mais harmoniosos. A sua longevidade, riqueza etnográfica e a sua alta qualidade vocal, já levou as nossas raízes a muitos sítios do mundo, onde tiveram e temos, a honra de serem várias vezes 1º prémio de cante e de traje. No “Artesanato”, mulheres quiseram doar as roupas “debaixo”, que fizeram com todo o primor para mostrar aos maridos, rendas e bordados magníficos, de prendadas meninas de outrora. A par de miniaturas de cadeiras em madeira, cestos em fios, arame e molas, monumentos da terra, em fósforos. Falando de jogos e “Brincas d’ outro tempo”, foi-lhes sugerido que as fizessem e não faltaram os jogos que se registaram e as bonecas de trapo, tal como as dos rapazes, de fisgas, armadilhas e carros de arame. Num tempo sem tecnologia, uns e outros usaram da imaginação


e criatividade como qualquer criança em qualquer tempo, mas onde postigos estavam abertos e a liberdade de entrar e sair de casa era uma constante, lembrando que foi só a partir do 25 de Abril de 1974 que rapazes e raparigas se misturaram na rua e nas escolas, para brincarem nas “rodas”, - danças de roda com cantigas, passadas de geração em geração. Foi com genuíno entusiasmo que algumas mulheres vieram ao Espaço, doar objectos para a “Habitação Rural” e sugerir outros, contando histórias acerca destes, recordando e participando na construção daquela que

foi a casa onde vivenciaram a sua infância e juventude. As três divisões onde viveram famílias numerosas, num mundo doméstico marcado por dificuldades, traz-lhes à memória, o namoro na “Casa de fora”, também chamada “Sóto da jenela”, quando a tinha, onde namorados vinham dar a “massada” e onde se casavam, lembrando também vizinhos, bailaricos e jogos da época, na casa onde havia o brio de ter o “esteio” mais bonito. O “Sóto da cama” e o preceito de uma cama bem feita deu-lhes o orgulho dos bordados e rendas que fizeram para os enxovais. No “Sóto do lume”, os serões e contos à lareira, o amassado do pão, chama para a mesa pequena e

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pouco farta, os pais, os irmãos e os avós num sentido de família que se une num só prato de miséria mas farto em harmonia. “Terra de bom vinho”, Pias teve em tempos 4 adegas, com muitos homens a trabalhar nelas, num tempo em que a maquinaria moderna ainda não tinha chegado e homens e mulheres nas extensas vinhas trabalharam arduamente numa actividade relevante do ponto de vista sócio-económico para a aldeia. O vinho assumiu desde sempre o papel de irmão do cante e da vinha ao copo nas tabernas, que foram 47 até finais dos anos 50, ouviram-se modas, de almas regadas de branco e de tinto. Mestre António Cachola, 80 anos, Adegueiro até aos 70 anos e fazedor de excelente vinho, lembra com orgulho esses tempos. Foi como trabalhador da “Adega” da Unidade Cooperativa de Produção, mais do que uma vez, receber pela Junta Nacional do Vinho, o 1º prémio de melhor vinho. Está exposta a sua história como adegueiro e contou com orgulho como funcionavam os utensílios expostos e a adega. Estão registadas todas as adegas e tabernas desse tempo. O Mestre Francisco Martins de 84 anos, foi Adegueiro 38 anos. Estão no Espaço alguns utensílios de “Lagar”, inclusive uma balança. Nos muitos olivais que circundaram a freguesia de Pias, quase toda a população trabalhou e a apanha da azeitona nunca era menos de três a quatro meses. De novembro a fevereiro a azeitona corria para os lagares, que chegaram a ser 14 até à década de 60. Trabalho duro em que homens se desdobravam em turnos, chegando um lagar a ter 24 trabalhadores. O azeite, esse bem precioso a que até o cancioneiro alentejano lhe fez referência, com cantigas como:

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“oliveira a luz divina” e expressões, “nem que andasses com uma candeia de azeite…!”. Num tempo em que candeias de azeite ajudaram a fazer da noite dia, a memória de quem viu um lagar de varas a trabalhar e um outro com homens e animais em esforço, testemunha uma imensa labuta, até este chegar aos que o podiam alcançar. Rita Alegre, 65 anos, foi a mulher que decifrou todos os objectos de Rouparia e que recordou com saudade todos os afazeres envolvidos na vida dos seus avós e pais a que ela lhe deu continuidade . Pensa-se que a designação de “Rouparia” terá sido dada pela utilização de muitos “coadores”, - panos muito brancos de lã, estopa, algodão e linho, sendo por


mece estava feito. Alimento que serviu muitas vezes de refeição, à falta de outra. Até final dos anos 50, Pias teve 18 profissões de artesãos, empregando centenas de homens e algumas mulheres. Na altura com um número populacional elevado, estas actividades tiveram papel relevante na economia local. A mecanização não tinha chegado e tudo dependia das mãos destes operários. Dependeram também, muitas destas mãos umas das outras, quando à falta de uma ferramenta, outras a tinham que construir. A memória diz-nos, que nesse tempo, ouviam-se sons de uma aldeia activa, em que martelos batiam em latas, madeiras, bigornas e outros, enquanto moças riam, aprendendo a dar os primeiros pontos.

vezes mais de trinta, todos os dias lavados e postos a secar, após a sua utilização no fabrico dos queijos. O seu fabricante, “Roupeiro”, exerceu a sua actividade em Pias pelos métodos tradicionais até aos anos 80 . Esta, permanece até aos nossos dias já modernizada. Toda a labuta antiga, exigia empenho, dedicação e muito rigor. Na freguesia de Pias existiram as Rouparias dos montes do Alvarrão, Parreira, Belmeque e Bolarina, sendo também uma zona na aldeia batizada de “bairro do almece”, onde Catarina Alegre, Úrsula Estrela, Luzia Baptista e Josefa Caeiro anunciavam ao som do búzio, que o al-

Os “Mestres” de oficio cedo foram aprender a profissão, porque começar a ganhar algum dinheiro, era mais importante que qualquer escola. Na sua maioria, passada de pais para filhos, ensinavam-lho, ou iam para outra oficina qualquer. A escola da vida e o jeito, fizeram de meninos Mestres de um saber precioso, mas que também os livraria de andar ao rigor do tempo. Aprendizes de outros Mestres, foi com eles que se iniciaram na especialização do fazer e que da arte das suas mãos, saíram obras tantas vezes já imaginadas. Estão patentes no Espaço, 12 artesãos e alguns dos seus utensílios. Os Mestres, Alfaiate–Domingos Borralho, 71 anos, Ferreiro-Romão Mariano, 85 anos, Sapateiro-José Grou, 85 anos e o Carpinteiro-José Moita, 79 anos, ainda subsistem aos tempos. Foi em conversas com eles que todo o registo de todos os artesãos existentes até aos anos 60, na então aldeia, estão catalogados. “Agricultura” - A freguesia de Pias situada em zona agrícola, tem como base da sua sustentabilidade, es-

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sencialmente todas as actividades relacionadas com a agricultura. Até ao 25 de Abril de 1974, a maior parte das famílias conheceu a miséria e com ela a fome. Foi com a reforma agrária que esta população construiu condições laborais e sociais dignas. Ao nascer do dia, homens e mulheres durante várias gerações, caminharam para os campos até o sol se pôr. Infâncias foram roubadas, porque os tempos assim o exigiam e outros homens o permitiram, num Alentejo esquecido. Regaram sementes com suor e cresceram a par de cada fruto que brotou da terra. A dureza dos trabalhos na extensa planície de quase nenhuma sombra e a aspereza da vida, deu-lhes o cansaço calcado nos rostos e a resistência que ainda hoje lhe admiramos. Quadrilhas de gente trabalhadora, os Mestres do campo, arrastaram em cânticos tristezas e alegrias, para encurtar os dias, lutando sabiamente pelos seus sonhos. Alice Pica, 82 anos, Benta Carmona, 83 anos e Bento Mestre de 81 anos, são os representantes neste Espaço da geração quase extinta que viveu tempos difíceis do nosso mundo rural, num testemunho absolutamente comovedor, envolto nos muitos utensílios da terra, em que falámos uma vida numa tarde. “… Ainda hoje me enleva andar por aí e ver os campos…era uma vida dura, mas cantava-se nos trabalhos…!” “… As mulheres…éramos uma escravas…em tudo…!” “…Gostava que esta juventude pensasse nesta gente que penou muito…e que soubessem que tudo quanto eles têm, é graças ao nosso sofrimento…!” As “Meninas Santos” foram desde sempre motivo de comentário e especulação. A curiosidade da população acerca das duas irmãs nasceu sobretudo, destas terem optado por não serem vistas por ninguém, viven-

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do enclausuradas em sua própria casa. Com o passar dos anos as meninas deixaram de o ser e o povo chamava-as de “As Santas”, levando até crianças a pensar que algum misticismo havia nelas e a casa onde viviam, envolta em mistério. Nos seus muitos livros, todos protegidos de forras improvisadas, algumas pintadas à mão, foram encontrados, entre outros, vários recortes de jornal, onde nos é revelado os seus mais variados interesses (em arquivo). Do ponto de vista etnográfico verifica-se o contraste entre a classe burguesa e o povo do mundo rural, numa dada época. Os bens móveis que faziam parte de acervo hereditário de Maria de Lurdes, foram objecto de venda judicial e a Junta de Freguesia de Pias veio a adquiri-los por arrematação em hasta pública em 14 de Maio de 2014, num total de 1037 peças inseridas neste espaço, sendo que destas, 40 foram integradas na habitação rural e agricultura. A exposição de todo o seu legado literário (720 livros, 94 revistas e 16 almanaques, catalogados por autor/título/editora) e o quadro elaborado (composto entre outros por 60 peças em renda), são o grande atractivo deste espólio. Fazendo também parte da vida passada, estão expostos “Outros” objectos da vida quotidiana, como uma urna de voto antiga, uma chocadeira ou uma régua usada por professores, num tempo em que não era obrigatório ir à escola. Numa perspectiva do que deve ser um espaço com o qual o povo de outrora, mas ainda presente, se identifique, vendo-se representados em todo o seu quotidiano de um passado tão próximo, este Espaço tenta ser o mais transversal possível, focando as mais variadas vertentes da vida. Para a elaboração de todo Espaço de Etnografia, Ar-


tesanato, Brincas e Jogos Tradicionais, Habitação Rural, Adega, Rouparia, Lagar, Mestres Artesãos, Agricultura, Outros e Meninas Santos, decorreram 15 meses de restauro mas também de pesquisa com conversas, com homens e mulheres, substanciais para o resultado do trabalho. A procura e o contacto com as gerações dos anos 20 e 30 e a sua passagem de saberes torna imperioso a procura de mais e obriga à pesquisa mais alargada e a um registo com testemunhos, fundamentais para a história, em coexistência com mundo de hoje e das suas profundas alterações sociais. Urge absorver essa memória viva, também pela idade avançada dos seus intervenientes. Esses são os verdadeiros actores de saberes e fazeres e o testemunho de um passado que temos de enaltecer e afirmar no presente, para assim semear um futuro com base nas nossas raízes, no respeito e orgulho nos nossos antepassados, que o torne mais próspero na sabedoria para um mundo melhor. “O que era esse tempo…!” foi frase exclamada por alguns, não querendo mostrar só os objectos, mas mostrar também a vida com eles, com todo o envolvimento histórico e social da época. O valor afectivo para com muitos dos objectos e utensílios, não impediu de os quererem doar e ver expostos para todos os verem e saberem como era, numa tentativa de perpetuar as suas memórias. O orgulho demonstrado pelos mais velhos no obrigado são a prova de lhes foi feita homenagem merecida. O bom relacionamento com os mais velhos foi essencial para a recolha e fundamental para elaboração deste Espaço a quem muito agradeço. A divulgação, com entrega de cartazes e brochuras na EBI Pias, lar, associações, restaurantes, albergaria e taberna do cante, é importante para a mostra das suas

mais valias mas tendo como objectivo mais e melhor, com a realização de acções que interajam com as escolas, o Lar, a população em geral, numa dinamização diversificada de actividades, menorizando também assim as suas carências. Após a inauguração foram doados 20 utensílios para restauro. 3 agrícolas; 4 de dois miniaturistas de Pias; 5 inseridos nos “Outros”, Brincas e “Habitação Rural; 5 nos “Mestres”; 3 na “Rouparia”. Foram também expostas 10 peças artesanais em pedra e gesso e vidro, como vasos, candeeiros e jarras. Foram também doadas roupas de uma jovem do início do século XX e fotografias antigas.

Mensagem deixada no livro do museu em 09 de Outubro de2015:

Quem não viveu nos primeiros anos do Séc. XX, pode conhecer, através dos utensílios, a história de uma época de míngua e de heroísmos, na luta pela sobrevivência. Antigas profissões e vivências campesinas, podemos reconhecê-las neste espaço, .... Uma exposição a ver e a revisitar, sempre com o agrado de uma nova descoberta, pois os pormenores referem o devido “enfoque”.

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Museu da Farinha S. Domingos, Santiago do Cacém Amadeu Gonçalves

Horário de abertura: Terça a domingo: 10h00 — 13h00 / 14h30 — 18h00 Encerra à segunda-feira

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Contactos: Rua 1.º de Maio, 36 7540-415 S. Domingos Tel.: 935 133 412 E-mail: museudafarinha@gmail.com


Origens

A Fábrica de Moagem de José Mateus Vilhena

Introdução

A proteção e valorização do património rural, bem como o reconhecimento do valor do passado, são tarefas urgentes e indispensáveis à preservação da autoestima, ao desenvolvimento económico, social e cultural das populações. Tornar o património conhecido, interativo e acessível ao público cabe não só às instituições oficiais e às entidades privadas detentoras desse património mas também às próprias populações para quem ele deve ser motivo de orgulho. O intuito deste texto é dar a conhecer um elemento do património rural da aldeia de S. Domingos, concelho de Santiago do Cacém, que contribuiu desde a sua fundação para o desenvolvimento da aldeia e da região: a Fábrica de Moagem de José Mateus Vilhena, transformada agora em Museu da Farinha. É um monumento importante da indústria moageira, como já há poucos em Portugal, que constituiu um marco na história da moagem e da cultura rural em Portugal, e que, através da preservação, da reabilitação e da valorização, foi e é um vetor de desenvolvimento local e um reavivar da memória e de um saber-fazer tradicional ainda hoje útil económica, social, turística e culturalmente. A Fábrica da Moagem funcionou continuamente 59 anos e, apesar de inativa, toda a maquinaria se encontra em bom estado de conservação e, se necessário, pronta a laborar. Todo o edifício mantém a sua forma original Este Museu é testemunho de que o Homem necessita de perpetuar a sua história, de forma a transmiti-la às gerações vindouras. Situada em S. Domingos, uma das freguesias do concelho de Santiago do Cacém, a aldeia necessita de algum dinamismo que lhe pode advir da ativação das

suas memórias. Surgiu, por isso a ideia de reabrir a antiga moagem, convertida em museu, para que tanto crianças como adultos possam ter acesso à história da vida passada da aldeia onde vivem e, ao mesmo tempo, poder disponibilizar todas estas memórias aos visitantes no sentido de conhecerem a transformação que os cereais sofriam até se transformarem em farinha.

Início da atividade

Nos meados dos anos 20 do século passado, José Mateus Vilhena abandonou a lavoura e a criação de gado para comprar um terreno nos limites da aldeia de S. Domingos, no concelho de Santiago do Cacém. Nesse local existia um moinho movido por uma caldeira a vapor, que era uma locomóvel. A fábrica da moagem foi construída nesse terreno em 1925, e chegou a ser a de maior movimento do distrito de Setúbal, segundo o filho do fundador. A razão desta grande atividade foi a alta qualidade e grande abundância dos trigos da região, que era preferido pelas padarias, e que obrigava esta moagem em especial a trabalho acrescido.

Funcionamento da moagem

A Fábrica de Moagem foi instalada num edifício de rés do chão e 1º andar, sendo a maior parte dos seus equipamentos construídos em madeira de pinho nórdico. As razões para o uso deste material são várias: a madeira era mais barata que os metais, e era de mais fácil transporte, uma vez que o engenho e todos os equipamentos foram montados no local. Outras moagens existentes na zona, como a de Santiago do Cacém, Alvalade ou Grândola, usavam a madeira como material predominante de construção. Na construção do edifício da fábrica foram utilizadas técnicas e materiais diferenciados: as paredes fo-

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ram construídas em taipa, que consistia no uso da terra argilosa colocada entre taipais para a construção, no chão do piso térreo foi utilizado um cimento próprio para este tipo de indústria; o piso superior é em madeira de eucalipto e pinho; a cobertura é forrada a chapa de zinco; nas janelas, a madeira e o vidro e nas portas, a madeira e o ferro. Os cereais e as maquias dos agricultores eram depositados em sacas no átrio de entrada, e eram pesados numa balança centesimal e registado o peso em nome dos clientes. Se vinham a granel eram dispostos no celeiro, ao lado da moagem, que tinha diversas divisões ou tulhas, onde se separavam o trigo, o milho, o centeio, a cevada e a aveia. O cereal mais farinado era o trigo. Depois de pesado, era despejado no tegão, recipiente em cimento com estrado em ferro e madeira, com cavidade funda, que tem um crivo que filtrava as maiores impurezas, e transportado daí através de noras com alcatruzes fixos a uma correia para o 1º andar, para ser despejado na tarara, aparelho para limpar ou joeirar os cereais, agitando-os e ventilando-os. A tarara tem movimento oscilante e crivos de diferentes medidas, para sementes mais ou menos gradas. As impurezas eram aspiradas por uma ventoinha e armazenadas num coletor de pó. As impurezas mais gradas caíam diretamente numa caixa lateral. Desse aparelho, o trigo seguia para uma bandeja triangular, montada sobre réguas de madeira flexíveis, para separar pedras e outras impurezas. Tem também um movimento oscilante, sendo que as pedras saíam pela parte mais baixa e o trigo pela mais alta, diretamente para outra nora que o transportava para o separador cilíndrico metálico com bossas de calibres diferentes, para separar o joio e outras sementes e impurezas do trigo. Daqui seguia, já limpo, por um tubo metálico, para o escovador, aparelho de madeira com escovas de ráfia

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e aço para limpar o pó dos grãos e uma ventoinha, que encaminhava o pó e os resíduos para outro coletor, de onde eram recolhidos para fazer cola para os sapateiros e ração para o gado. O último sistema de noras e alcatruzes integra o molhador, um doseador com recipiente que contém água, para humedecer o trigo, condição indispensável para uma moagem de qualidade. Seguia daí para dois silos através de uma conduta equipada com um parafuso sem-fim, de onde caía por gravidade para as mós. Existem 2 casais de mós, fabricadas em quartzo do rio, movimentadas por um sistema de rodas dentadas com dentes de madeira de azinho e ferro. Podiam funcionar separados ou em simultâneo, sendo que as 2 pedras de cada casal de mós têm durezas diferentes. As mós são picadas com uma técnica especial, e quem fazia este trabalho era o moleiro, que desmontava a mó andadeira (a de cima) e a assentava em dois cavaletes, também chamados cavalos. Depois, com um picão, picava as duas mós. A frequência deste trabalho dependia da dureza das pedras e do volume de horas de trabalho das mós, geralmente era mensal, e era uma tarefa árdua. Existe ainda o casal de mós original, do tempo em que José Mateus Vilhena comprou o terreno, que passou a ser utilizada para o fabrico de farinha para rações. Por último tinha lugar o ensacamento da farinha. Depois de moída, saía das mós para uma caixa com um parafuso sem-fim, que a despejava em sacos de 75 Kg, e ficava no átrio de entrada à espera de ser recolhida pelo produtor. Todo o engenho é movido por um motor diesel Petter-Fielding de 40 B.H.P., fabricado em 1949 no Reino Unido, que transmite o movimento através de correias de cabedal ligadas a tambores de diversos diâmetros em quatro eixos horizontais. A Fábrica da Moagem funcionou até 31 de dezem-


bro de 1984, e encerrou devido ao abandono do cultivo do trigo na região e ao crescente número de moagens industriais de grande capacidade, que ditou o fim da indústria artesanal de moagem.

Intervenção museológica Objetivos

As obras de reabilitação e valorização da Fábrica da Moagem como monumento da arqueologia industrial terminaram em novembro de 2014, tendo dado origem ao Museu da Farinha. A recuperação de espaços de convívio e de conhecimento do património rural e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de atividades

de caráter didático-cultural estão em curso. Temos como objetivos preservar e divulgar um elemento do património rural e industrial marcante para a região, salvaguardar os conteúdos da tradição oral, os ofícios e artes, as histórias, as tradições e costumes, a música e a gastronomia, investigá-los, estudá-los e expô-los e mostrar o ciclo do pão, desde a seara até à mesa. Para esse efeito, foi criada pelos proprietários a sociedade “JMV-Turismo Cultural, Lda.” que se candidatou ao programa PRODER no âmbito da medida 3.2 “Melhoria da Qualidade de Vida”, e da ação 3.2.1 “Conservação e Valorização do Património Rural” para a criação do Museu da Farinha. Foi celebrado um pro-

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Atividades

No âmbito das atividades definidas para o Museu, foi elaborado um plano de Atividades que abrange as áreas do Estudo e Investigação, da Inventariação e Documentação, da Conservação e Restauro, da Divulgação e Comunicação e da Educação, em que estão contempladas ações como a realização de estudos etnográficos, a elaboração de textos, fichas e produção de fotografias, a consulta museológica, o inventário e elaboração de fichas dos objetos e sua conservação preventiva, a elaboração de um boletim informativo (newsletter), de um site na internet, de um catálogo da exposição e de um folheto.

tocolo de cooperação com o Município de Santiago do Cacém, que se compromete a prestar acompanhamento científico e a colaborar nos eventos que se realizarão no Museu, a elaborar o Projeto Museológico e Museográfico, o guião de exposição, o projeto de iluminação cénica, entre outros. O Museu compromete-se a facultar a entrada gratuita, pelo menos uma vez por ano, às instituições sem fins lucrativos e aos estabelecimentos de ensino sedeados no concelho. A Associação Portuguesa de Museologia elaborou um parecer que avaliza o processo de musealização da Fábrica de Moagem, salientando a utilidade deste projeto para a comunidade local/regional e nacional.

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Estão também definidas várias outras atividades: 1. Elaboração de um projeto conjunto com as escolas do concelho de Santiago do Cacém para a elaboração de uma mascote com base nos cereais; 2. Elaboração de um caderno de observação do crescimento dos cereais; 3. Exposições temáticas elaboradas pelos alunos dos 2º e 3º ciclos; 4. Recolha e compilação de histórias da aldeia com a colaboração dos idosos; 5. Conversas com essas pessoas no auditório do Museu sobre “Como era no meu tempo”; 6. Encenação, durante as festas da aldeia, do percurso do cereal desde a entrega e a pesagem até à moagem, com trajes dos anos 30 do século passado; 7. Presença mensal de um contador de histórias; 8. Atividades em família como amassar e cozer o pão simples ou com chouriço e pizzas; 9. Exploração dos sentidos: o olfato, o paladar, a cor, o tato dos cereais; 10. Programas de aniversário, lanche no Museu; 11. Oficina temporária de artesãos de cestaria, ola-


ria, fabrico de móveis, trabalho em cortiça, tapeçaria, miniaturas, rendas e bordados, artes decorativas, etc.; 12. Acolhimento de exposições temporárias; 13. Debates sobre diversos temas e problemas, com moderadores convidados (“À conversa com…”). O acompanhamento museológico permanente foi assegurado durante todas as fases do projeto de musealização. Deste modo a reabilitação da Moagem seguiu com rigor técnico todas as fases de um processo museológico. Esta unidade museológica é do património rural de São Domingos. Todos os espaços são visitáveis, de modo a que os públicos possam compreender a memória do monumento industrial, quer a nível arquitetónico e técnico quer funcional. Segundo o Dr. António Nabais, museólogo que tem acompanhado de perto o processo e cuja contribuição tem sido valiosíssima, “(…) estamos perante uma prática de preservação do património, visto sob o prisma de um valor cultural e social para servir a sociedade contemporânea. O olhar museológico estará sempre presente em todas fases deste processo, porque se reconhece que a museologia através de um projeto museológico fornece instrumentos, teóricos e práticos, essenciais para reabilitar monumentos e colocá-los acessíveis à sociedade e ao seu desenvolvimento”. O projeto quer mostrar que o património cultural é dinâmico e que a coexistência do passado e do presente é saudável para o desenvolvimento da sociedade, criando meios para um futuro que seja cada vez mais próspero. A reabilitação dos monumentos não se reduz à cópia e réplica, mas à criatividade e inovação sem destruir a memória.

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Núcleo Museológico da Alfaia Agrícola Estremoz Hugo Guerreiro

Horário de abertura: Terça a domingo: 9h00 — 12h30 / 14h00 — 17h30 Encerra à segunda-feira

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Contactos: Estrada de São Domingos, 7100 Estremoz Tel.: 268 339 219 E-mail: museu.municipal@cm-estremoz.pt


Gestão institucional

O Núcleo Museológico da Alfaia Agrícola de Estremoz é parte integrante do Museu Municipal Prof. Joaquim Vermelho, o qual é por sua vez um sector afeto à Vereação do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Estremoz (CME).

Vocação

A Vocação do Núcleo Museológico da Alfaia Agrícola de Estremoz passa, além do cumprimento integral das funções museológicas no âmbito do Museu Municipal, pelo registo, inventário, documentação e apresentação da cultura material e imaterial do concelho de Estremoz, dando um especial enfoque ao mundo rural, nomeadamente ao universo agrícola.

Objetivos

1. Preservação da memória da cultura material e imaterial, nos seus mais diversos suportes; 2. Fomentar a criação de Redes temáticas regionais que permitam uma melhor compreensão da cultura material e imaterial do povo alentejano; 3. Participar no estudo, investigação e posterior divulgação dos temas próprios ligados ao Núcleo Museológico; 4. Fazer do Núcleo Museológico da Alfaia Agrícola de Estremoz um espaço de partilha de saberes, com grande ligação à comunidade e movimento associativo local, fomentando o voluntariado e a recolha de dados relativos à cultural material e imaterial do concelho.

Breve história

Pequenas mostras de alfaias agrícolas nas Feiras de Artesanato de Estremoz, deram origem a uma grande exposição na Feira Internacional Agro-Pecuária e do Artesanato de Estremoz, que decorreu de 1 a 8 de Maio de 1987, onde estiveram ao público mais de 4 mil peças recolhidas pelo Sr. Crispim Vicente Serrano (funcionário da CME) em várias Casas de Lavoura do concelho. Da Horta do Quiton cerca de quatro mil peças foram transferidas para um imóvel devoluto da EPAC, sito na Rua Serpa Pinto. Apenas em 15 dias o Prof. Joaquim Vermelho, com o auxílio de trabalhadores da CME, montou uma exposição temporária nesta antiga Moagem, que seria então apresentada durante mais uma FIAPE. No entanto, por manifesta vontade da comunidade e da autarquia, a vasta exibição passou de temporária a permanente, ficando este mesmo imóvel como o Museu da Alfaia Agrícola. Entretanto já estava ativa uma Comissão da Alfaia Agrícola, onde um conjunto de cidadãos estremocenses preocupados com o desaparecimento da memória local ao nível da agricultura, uniram esforços para dinamizar culturalmente o espaço. No dia 18 de Janeiro de 1996 celebrou-se a escritura de constituição da ETMOZ - Associação Etnográfica e Cultural de Estremoz, cujo objetivo era apoiar e incentivar a recolha, conservação, valorização e investigação do património cultural e ambiental das comunidades da região. A associação veio formalizar a Comissão da Alfaia Agrícola, ficando a gerir integralmente o Museu e seu acervo através de um protocolo que fez com a CME. O protocolo foi anulado em 2003, ficando a partir desta data a autarquia com a gestão total das coleções e imóvel, sendo as coleções integradas no Museu Municipal Prof. Joaquim Vermelho, enquanto Núcleo Museológico do mesmo.

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Em Abril de 2004, pelas más condições o imóvel o espaço é encerrado, ficando os colaboradores do Museu a trabalhar no inventário e conservação do acervo. Após a procura de diversas soluções para resolução do problema do encerramento do Núcleo, em 2009 o executivo municipal iniciou negociações com a EPAC para aluguer de um pavilhão que acolhesse as coleções.

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A 15 de Julho de 2010, após obras de adaptação de um pavilhão sito na envolvente dos Silos, começou a transferência de peças do antigo Museu (concluída em 2011). Após a recuperação de parte das coleções e sua exposição em Reserva Visitável, o Núcleo Museológico abre ao público a 25 de Junho de 2013.


A Reserva Visitável

A vastidão do acervo do Núcleo Museológico da Alfaia Agrícola de Estremoz e a exiguidade do espaço do pavilhão para onde se fez a transferência, exigiram que se pensasse uma nova metodologia de apresentação das coleções. Dado que era impossível recriar ambientes de trabalho agrícola, pela exígua dimensão do referido pavilhão, optou-se por concretizar a ideia de uma Reserva Visitável, ou seja, um espaço onde se acondicionam as peças por tipologia e função. Este modo de apresentação, para além de facilitador em termos de arrumação, permite também observar diferenças entre peças, mas ajuda igualmente a compreender a sua evolução histórica e técnica. Dentro do pavilhão construiu-se ainda um pequeno espaço de Reserva Não Visitável, onde se colocaram peças que não estão em condições de exposição, ou por estarem incompletas, ou pelo seu mau estado de conservação e infestação (Zona de Quarentena), mas também cujo enquadramento, ou condições de apresentação, não se compatibilizam com o conceito atual desta Reserva Visitável.

A Organização da Reserva Visitável

Para a arrumação da Reserva Visitável, optou-se por seguir o critério de organização do inventário museológico, o qual em grande medida segue as recomendações emanadas nas Normas de Inventário da Alfaia Agrícola do já extinto Instituto Português de Museus. As cinco categorias deste acervo em exposição são então a Alfaia Agrícola, Metrologia, Oficinas e Unidades Transformadoras do Mundo Agrícola, Outros e os Transportes, que se subdividem por sua vez nas seguintes subcategorias:

Alfaia Agrícola: Instrumentos de Corte e Manuseio de Forragens; Instrumentos de Debulha; Instrumentos de Limpeza de Cereais e Manuseio de Palhas; Instrumentos de Mobilização da Terra; Instrumentos de Recolha e Manuseio de Fertilizantes Naturais; Instrumentos de Sementeira; Instrumentos de Rega e Monda; Instrumentos de Colheita de Cereais. A Alfaia Agrícola é o conjunto de instrumentos de trabalho diretamente manuseados pelo homem, na sequência das operações que visam a produção de bens e que têm a terra como objeto e meio desse mesmo trabalho. Elas caracterizam-se pela relação de íntima proximidade e adaptação física ao corpo do agricultor que as utiliza (Normas de Inventário da Alfaia Agrícola, IPM, 2000, pp.17.). Optámos por introduzir nesta categoria alguns equipamentos da primeira vaga de mecanização que ocorreu no Alentejo, dada a especificidade da coleção e a ligação plena que ainda tinham à agricultura tradicional (não industrializada).

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Metrologia: Metrologia Agrícola A coleção em Reserva Visitável é composta por diferentes medidas líquidas para cereal. A maioria das caixas possui marca de aferição por punção. Estão também em exposição diversas massas e balanças. Oficinas e Unidades Transformadoras do Mundo Agrícola: Oficina de Ferreiro; Oficina de Carpintaria e Abegoaria; Oficina de Latoeiro. As Oficinas e Unidades Transformadoras do Mundo Agrícola, reportam a profissões e espaços associados às atividades do mundo rural, seja na área da transformação dos frutos da exploração (ex: Queijaria e Enchidos), seja de apoio à agricultura (ex: Abegoaria/Carpintaria e Ferraria). Em exposição temos uma “Carpintaria”, “Ferraria” e “Latoaria”. Transportes: Instrumentos de Acarreio Humano; Instrumentos de Atrelagem; Instrumentos de Condução e Controle de Animais; Transportes de Tração Humana; Transportes a Dorso de Animal; Transportes de Tração Animal. Quanto aos “Transportes”, esta é uma categoria que tem de estar sempre associada a um acervo ligado ao mundo rural. Os carros eram essenciais para o transporte dos frutos da colheita, mas também para conduzir ao local de trabalho trabalhadores, alfaias e alimentação. Em exposição, associadas a este categoria, apresenta-se também toda uma panóplia de sistemas de atrelagem de animais a carros e alfaias. São aqui incluídos também os carrinhos movidos por ação do homem, para conduzirem ao destino sacas, cântaros e forragens para gado. Não esquecemos nesta categoria, apesar de ser uma inovação da mecânica, o Trator.

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Outros: Nesta categoria incluímos peças presentes nas coleções, mas que não são passíveis de incluir em nenhum dos grandes conjuntos de instrumentos/ transportes, como por exemplo os chocalhos, campaínhas ou esquilas.

Trabalhos em desenvolvimento

A abertura ao público das Reservas Visitáveis fez-se em 25 de Junho de 2013. O acervo não estava nas condições ideais de apresentação, conservação ou minimamente estudado, mas abriu-se mesmo assim o Núcleo para que a comunidade pudesse voltar a usufruir deste acervo. Contudo, desde então, a recuperação das peças que constituem as diversas coleções e o novo inventário tem avançado a bom ritmo. Em termos de investigação, sempre que necessário os técnicos do Museu Municipal recorrem a antigos trabalhadores agrícolas, que têm ajudado na demonstração como funcionavam certas alfaias e como eram manuseadas. Estes dados têm reflexo na legendagem e no inventário. O grande objetivo passa porém por um futuro Núcleo Museológico da Alfaia Agrícola, com espaço não só de Reserva Visitável, mas também de Exposição de Longa Duração.


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Núcleo rural de Ervidel Museu Municipal de Aljustrel Ervidel, Aljustrel Artur Martins, Sílvia Mestre

Horário de abertura: Terça a sábado: 9h30 — 12h30 / 14h00 — 18h00 Encerra domingo e segunda-feira

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Contactos: Rua do Poço 7600-234 Ervidel Tel.: 286 600 170 (Museu de Aljustrel) E-mail: museu@mun-aljustrel.pt


O concelho de Aljustrel possui, desde há 150 anos, uma dicotomia cultural que advém do facto de ser um concelho rural que possui na vila sede uma importante mina, fazendo com que coexistam, em simultâneo, uma cultura de tipo rural e outra de cariz mais industrial. Ciente da importância que estes traços culturais representam para a comunidade de Aljustrel, e da sua importância em termos de História Local, decidiu a autarquia criar um Museu que pudesse preservar, para as gerações vindouras, aquilo que foi o modo de vida dos seus antepassados, nos diversos aspetos de vivência do quotidiano e da sua cultura material. Neste sentido, foi criado o Museu Municipal de Aljustrel, com o objetivo de proceder à recolha, tratamento, conservação e divulgação da memória material e imaterial das populações do concelho, assumindo-se como um Museu polinucleado. De um modo geral, o património encontra-se ligado ao meio natural envolvente, por isso muita da sua cultura material como as técnicas de construção, o vestuário ou o tipo de alimentação, por exemplo, resultam da adaptação das populações ao clima, à geologia e à fauna e flora da região. É o somatório de todos os aspetos patrimoniais do passado de um povo que o caracteriza, e o diferencia, de outras comunidades, formando a sua “identidade cultural”. Esta diversidade cultural permite, por exemplo, que o Baixo Alentejo tenha características que o diferenciam do Algarve e até do Alto Alentejo, ou que, mesmo no Baixo Alentejo haja regiões com características próprias, provenientes, por exemplo, de especializações profissionais, como em Aljustrel onde, devido à existência da mina, existe uma “cultura” própria, necessariamente diferente de um concelho eminentemente rural e que se reflete, por exemplo, nos cantares, no vestuário, no vocabulário, na arquitetura vernácula e em

tantos outros pormenores da sua população que, não a diferenciando de outras comunidades, enriquecem a cultura alentejana ao aumentar a sua diversidade. O incremento verificado em todo o mundo ao nível dos audiovisuais e das telecomunicações tem levado à globalização dos contactos interculturais, favorecendo a propagação de culturas de regiões economicamente mais fortes, em detrimento de outras com menos capacidade, provocando um “nivelamento” cultural e o progressivo desaparecimento dos regionalismos. Se concordamos que ao desaparecer uma espécie animal ou vegetal todos nós ficamos mais pobres, o mesmo acontece quando desaparecem elementos de diversidade cultural. O progresso e o desenvolvimento devem prosseguir no sentido do bem-estar das populações, mas isso não deve ser feito à custa do sacrifício da memória coletiva. Para que continue a haver diversidade cultural, para que as nossas diferenças permitam realçar as nossas potencialidades, evitando a submersão numa “normalidade” redutora torna-se fundamental guardar memória das nossas tradições, não no sentido de regressar ao culto do passado ou de o exaltar, mas apenas conservar a sua memória como manifestação de identidade cultural. Quando em 1989 os herdeiros do Sr. José Ramires Saraiva, lavrador de Ervidel, colocaram em venda a coleção etnográfica reunida por aquele agricultor, de imediato a Câmara Municipal propôs a sua aquisição para evitar o seu desmembramento e a saída das peças do concelho, no intuito de promover a sua instalação em local adequado e com o devido tratamento museológico, juntamente com outros materiais recolhidos no concelho pela edilidade, como forma de prestar homenagem aos homens e mulheres que fizeram, e fazem, da agricultura o seu modo de vida. Segundo a definição do ICOM (International Coun-

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cil of Museums), um museu é “uma instituição permanente, sem fins lucrativos ao serviço da sociedade, que adquire, conserva, comunica e apresenta, testemunhos materiais do homem e do seu meio, com o propósito de estudar, educar e entreter”. Neste sentido, a criação do Núcleo Rural de Ervidel, aberto ao público desde 15 de Abril de 2000, pretendeu também atingir objetivos de ordem didática e pedagógica, dotando os educadores com mais um instrumento de aprendizagem. Para o efeito procedeu-se ao aproveitamento de um antigo lagar de azeite, propriedade da Câmara Municipal, onde até 1999 funcionaram as oficinas mecânicas da Junta de Freguesia de Ervidel. O projeto, de recu-

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peração e adaptação do imóvel, foi elaborado pela Câmara Municipal de Aljustrel, através do seus Serviços Técnicos, sob a coordenação da Arqtª. Judite Aiveca e o projeto museológico foi elaborado pelo Sector de Museus, Património e Arquivos, coordenado pelo Dr. Artur Martins, tendo os materiais expostos sido recuperados pelo sector de Conservação e Restauro do Museu Municipal de Aljustrel. O espaço destinado a este núcleo rural é amplo, com um grande comprimento e de largura reduzida, possuindo uma configuração que não permite o estabelecimento de circuitos expositivos. No projeto de adaptação do edifício privilegiou-se a manutenção da sua traça original, sem grandes alterações de fundo, procedendo-se fundamentalmente à recuperação de elementos degradados. Em face do espaço disponível e dos materiais constantes da coleção optámos por colocar apenas uma parte da coleção em exposição, criando dois núcleos agrícolas principais: o núcleo do mel, atividade outrora importante na freguesia; o ciclo do trigo, em que se mostram os diversos utensílios e técnicas utilizadas nas diversas fases do processo que culmina no fabrico do pão. Procedeu-se também à reconstituição de uma cozinha e um quarto de dormir de uma casa de assalariados rurais. Os materiais da coleção que não foi possível musealizar devido à falta de espaço, são os referentes à produção de azeite, que poderão eventualmente integrar um núcleo expositivo a criar num lagar de azeite propriedade da Câmara Municipal e que se situa muito próximo deste núcleo agrícola. Possuímos também materiais referentes à produção vinícola, outra importante atividade da região, que poderão vir a integrar a musealização de uma adega tradicional, que a Câmara Municipal se proponha adquirir em Ervidel no futuro. A criação de três núcleos museológicos separados fisicamente,


o existente e os que se possam vir a criar, levará os visitantes a percorrer a povoação, conhecê-la um pouco melhor e, eventualmente, consumir no comércio local. A recuperação dos objetos que se foram abandonando e que, no decurso da história, constituíram o suporte material característico de uma sociedade rural já em fase de mudança radical, permitirá manter vivos no futuro os conhecimentos, formas de vida, formas de atuação, e costumes que foram característicos da comunidade de Aljustrel e da região em que se insere. Para isso mantemos uma atividade regular com as escolas do concelho, promovendo visitas ao núcleo integradas em projetos de atividades relacionados com

os núcleos do pão e do mel. Nestes projetos as crianças são convidadas não apenas a visitar os núcleos mas também a recriar a forma tradicional de amassar e fazer pão e bolos.

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Museu da Ruralidade Entradas, Castro Verde Miguel Rego

Horário de abertura: Terça a domingo: 9h30 — 12h30 / 14h00 — 18h00 Encerra à segunda-feira

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Contactos: Rua de Santa Madalena 7780-328 Entradas Tel.: 286 915 329 E-mail: museururalidade@gmail.com


Instalação “O meu presépio” - Natal de 2015

O Museu da Ruralidade assenta a sua filosofia de funcionamento numa lógica de intervenção em torno de duas referências estruturais: identidade e território. De identidade, porque procura a valorização e a dignificação da memória de uma comunidade, sem qualquer tipo de preconceito na abordagem metodológica. De território, porque procura alargar o seu funcionamento ao espaço geográfico de Castro Verde, sem deixar de contextualizar essa localização na região do Campo Branco e na paisagem da diáspora. A abertura do Núcleo da Oralidade, em Entradas, na antiga casa agrícola da Leda, veio trazer ao projecto, a partir de 2011, um espaço permanente de exposições,

onde se entrecruzam equipamentos, objectos e máquinas agrícolas com exposições temporárias sobre diversos temas, seja no interior do Museu, seja no seu pátio exterior, procurando que o património material seja valorizado associando-lhe o património imaterial e a dimensão humana que está, naturalmente, relacionada com todo esse espólio. Ao mesmo tempo, o espaço de “taberna”, um dos espaços da “Casa da Leda”, acolhe ocasionalmente conversas, ensaios de cante alentejano, exposições e, sobretudo, assume-se como oficina de saberes-fazer que, por exemplo, em dezembro de 2015, culminou com a instalação do projecto “O meu presépio”, uma instalação realizada por 15 mulheres da vila de Entradas.

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Das iniciativas que decorrem no Museu, sejam elas ocasionais ou provocadas, procura-se registar, de forma sistemática, alguns dos seus momentos mais importantes, cujo resultado tem como destino o Centro de Documentação e Biblioteca que, num mesmo espaço, permitem ao visitante, estudioso ou utilizador, apreender conceitos de ruralidade, recolher informação, conhecer momentos da actividade do museu, rever ou conhecer acontecimentos que aqui tiveram lugar, relatos de instantes da vida de ontem e de hoje desta comunidade de que o Museu é já parte integrante. É neste registo insistente que se constrói o deve e haver de um trabalho de dignificação da memória que é

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feito com a comunidade, não tendo apenas o património material como documento de referência. À exposição da ferramenta de trabalho, da debulhadora fixa ou da forja do ferreiro, junta-se o registo da memória do Natal de há 50 anos, os segredos da gastronomia “dos tempos da miséria”, as memórias das debulhas na eira, das ceifas, das mondas, da apanha da azeitona, da bolota ou do fugir com umas braçadas furtivas de lenha. O projecto do Museu da Ruralidade carrega na sua intervenção uma natureza lógica de recolha e de valorização de toda a espécie de documento, tendo como premissa maior a valorização da comunidade humana e das suas manifestações culturais, a salvaguarda dessa


Núcleo “A minha escola” - Almeirim

memória, procurando constituir-se como a sua reserva identitária. Sem qualquer tipo de desconforto científico ou contradição teórica, o espaço de diálogo com a comunidade e de divulgação para o visitante, assumese igualmente como um local de depósito, mesmo que avulso, de pedaços de documentos que, mais tarde ou mais cedo, serão utilizados em exposições, em trabalhos científicos, em momentos de evocação ou mostra ocasional. Apesar das críticas naturais, assumimos, sem qualquer tipo de complexo, esta “funcionalidade” do Museu da Ruralidade enquanto depositário de memórias, fórmula que entendemos imprescindível para o aproximar do projecto de Museu de Território à co-

munidade. Abrangente, solidário, adaptável a diversos públicos, abrindo portas a um discurso intuitivo, sem no entanto cair no facilitismo cru do brique-a-braque ou “mostra de velharias”. A abertura do Núcleo da Oralidade, em Entradas, foi um passo estruturante num processo de valorização deste território de ruralidades que, desde há muito tempo, o Município de Castro Verde vinha desenvolvendo. Num trabalho tantas vezes imperceptível e que se reflectia (e reflecte) no apoio aos grupos corais, no esforço de recuperação (salvação) do fenómeno de extinção da viola campaniça, no apoio à divulgação de formas de expressão musicais pouco conhecidas como

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Inauguração do Núcleo “Aivados-Aldeia Comunitária”

o despique e o baldão, na dignificação do espaço rural enquanto território de múltiplas vivências e representações comunitárias, e que poderemos invocar, de forma muito sintética, no apoio à divulgação do “museu” do Monte das Oliveiras, na recuperação do moinho de vento Largo da Feira ou na dinamização de uma longa e plural filosofia editorial. O passo seguinte ao Núcleo da Oralidade deste projecto de Museu de Território foi a criação, em 2014, do Núcleo “A minha Escola”, em Almeirim, dando continuidade a um processo de crescimento do Museu da Ruralidade, sempre centrado na descentralização territorial e na dignificação comunitária assente na valorização da especificidade de cada local onde se cria o novo polo “musealizado”. Instalado numa escola onde há mais de cinco anos

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não se ouviam os risos das crianças, construída em 1959/60, uma das últimas escolas construídas no âmbito do “Plano dos Centenários”, e procurando ser o espaço de representação da comunidade escolar de Castro Verde, este núcleo tem duas particularidades que importa destacar, e que são sinónimo da filosofia de fundo do Museu da Ruralidade, na sua natureza enquanto museu de território. Por um lado, é um projecto cuja criação/construção foi concretizado com outros parceiros, neste caso particular com o Agrupamento de Escolas de Castro Verde e com a União de Freguesias de Castro Verde e Casével, conjugando nesta parceria instituições cujo papel na formação e na dignificação da identidade comunitária são imprescindíveis e incontestáveis. Por outro lado, porque todo o processo de criação do Núcleo de Almeirim, assim como o seu funcionamento e alguma da sua programação, passa pela intervenção directa dos habitantes da localidade e pelos estabelecimentos de ensino, tal como acontece, aliás, em Entradas, em algumas das exposições de caracter semi-permanente. Algumas das iniciativas de animação, programação e calendarização passam, de forma objectiva, pela realização e aprovação em reuniões abertas com a população. Uma realidade que perpassou de forma muito forte na criação do Núcleo “Aivados-Aldeia Comunitária”, em 2015. A especificidade local da aldeia dos Aivados, onde a propriedade da localidade e os terrenos adjacentes são pertença de toda a comunidade desde, pelo menos, meados do século XVI, mas cuja manutenção de propriedade só foi possível graças a uma oposição forte, resignada e estendida no tempo por parte da população, fez com que o Museu procurasse abrir um outro núcleo museológico que mostrasse esta realidade.


Aivados é uma pequena aldeia, a 16 quilómetros de Castro Verde, cuja população é proprietária de um terreno com cerca de 400 hectares, onde se encontra instalada há cerca de 500 anos. As várias peripécias e processos de manutenção da posse da terra são uma história particularmente rica e única no nosso país, e essa história, para além de alguns dos momentos mais importantes do devir da aldeia comunitária, nomeadamente a recuperação a 20 de Abril de 1975 das terras que haviam sido usurpadas por proprietários vizinhos durante o Estado Novo, é o que se pretende contar neste espaço. Este elemento particularmente diferenciador no concelho de Castro Verde e de todo o Sul de Portugal, foi um factor determinante para, de imediato, receber o apoio da comunidade aivadense, permitindo-se desta forma valorizar e mostrar a natureza e a sua história comunitária, tornando-se uma experiência museológica com uma forte intervenção local e, se quisermos, sufragado por uma comunidade que, afinal, é parte fundamental neste projecto. Melhor dizendo, razão de ser. Paralelamente, a Associação do Povo dos Aivados cedeu o espaço para instalação do Núcleo Museológico; é a população dos Aivados quem tem uma posição decisória na sua criação (que decorreu durante uma reunião pública com a participação de um importante sector da população, e onde não faltaram os representantes da Junta de Freguesia e da Câmara Municipal), e é uma parceria entre as três entidades que permite a abertura e funcionamento do próprio Núcleo, que associa igualmente um programa de animação que envolve a população. O projecto de Museu de Território do Museu da Ruralidade tem nos espaços físicos a âncora para a sua actividade sobretudo porque não tem um quadro de pessoal. A consolidação do seu trabalho passa pela

interacção indispensável com os Serviços Socioculturais do Município e com colaborações pontuais com o Agrupamento de Escolas, com as Juntas de Freguesia e com algumas associações locais, com particular destaque para o Grupo Coral “As Ceifeiras”, de Entradas, que permitem salvaguardar a inexistência de um corpo de pessoal permanente. Mas, é também ao nível das parcerias com outras realidades museológicas, e com algumas iniciativas de caracter científico consubstanciadas em protocolos estabelecidos com universidades (Universidade de Évora ou Universidade Nova, só para citar dois exemplos), em que representa o papel de objecto de estudo ou plataforma de diálogo com actores locais e regionais, que o Museu da Ruralidade procura ter um contacto contínuo com o mundo da museologia ou do estudo etnográfico/ antropológico. Experiências que servem para aprender, apreender e consolidar saberes que são fundamentais para melhorar as suas preocupações, sejam elas metodológicas ou científicas. A sua integração em redes como o NUOME (Núcleo da Oralidade, Memória e Esquecimento, nascido no âmbito do MINOM), a Rede de Museus do Baixo Alentejo ou a Rede de Museus Rurais do Sul, vem na senda destas preocupações, sempre pertinentes pela necessidade que museus da dimensão do Museu da Ruralidade têm em crescer com qualidade e evoluir técnica e cientificamente em temas e preocupações que dizem directamente respeito à comunidade onde estão inseridos.

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Museu Arqueológico e Etnográfico Manuel Vicente Guerreiro Santa Clara-a-Nova, Almodôvar Andreia Guerreiro Gabinete de Turismo da Câmara Municipal de Almodôvar

Horário de abertura: Terça a domingo: 9h00 — 12h30 / 14h00 — 17h30 Encerra à segunda-feira

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Contactos: Estrada Municipal 25 7700 Santa Clara-a-Nova Tel.: 286 660 600 E-mail: gab.turismo@cm-almodovar.pt


O Museu Etnográfico e Arqueológico Manuel Vicente Guerreiro está situado na aldeia de Santa Clara-a-Nova, que marca a separação entre os montes elevados da serra do Caldeirão e a peneplanície alentejana do concelho de Almodôvar. Terra de gente simples e humilde, desde sempre ligada à vida na terra onde o trigo, sobreiros e linho, vacas, porcos e cabras, moinhos de vento e destilarias, queijos e enchidos, são ainda hoje marcas presentes desde tempos imemoriais. A arte e o engenho dos homens e mulheres da terra moldaram a sua face nas casas baixas abrigadas do sol, as gentes vestiram-se de panos de linho e surrobeco e

agasalharam-se nas mantas de montanhesco e ao domingo pela manhã, no adro soalheiro da Igreja, comentavam-se as últimas notícias da paróquia, da Casa do Povo e da Vila de Almodôvar. Neste dia, negociavam-se também os preços do campo e contratavam-se os trabalhos do abegão, do ferreiro, da tecedeira ou do tirador de cortiça. Era assim a vida da aldeia. Uma vida que importava preservar. Na década de 80, o movimento humano de Santa Clara-a-Nova uniu-se para atingir um único fim: reunir o património etnográfico e salvaguardá-lo. A sua inventariação representou um trabalho conjunto do povo da

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aldeia e do Sr. Manuel Vicente Guerreiro, presidente de Junta desta Freguesia entre 1977 e 2001 e que foi o grande impulsionador deste projeto pois, por iniciativa pessoal, começou a recolher objetos ligados à cultura local, sobretudo os associados a atividades caídas em desuso, tendo já em vista a criação de um pequeno Museu Etnográfico. Desta forma, em 1984 organizou-se numa das salas da Casa da Cultura, uma exposição de todos os objetos recolhidos até então. Esta iniciativa teve um grande impacto junto da população que começou a doar mais objetos e tornou inevitável a ampliação desta exposição. Em 1987 foi inaugurado, pelo então Presidente da República, Dr. Mário Soares, um pequeno Museu Etnográfico constituído apenas por 4 salas. O Museu é aberto ao público na mesma altura em que se reportam as primeiras intervenções no Sítio Arqueológico das Mesas do Castelinho que tinha sido alvo, um ano antes de uma destruição em grande escala promovida pelo anterior proprietário do terreno. Desde o primeiro momento e reconhecendo a importância deste sítio arqueológico, o Sr. Manuel Vicente

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Guerreiro reserva um espaço que possa vir a receber os achados provenientes das Mesas do Castelinho, situação que se concretizou em 1993 com o apoio dos arqueológos Amilcar Guerra e Carlos Fabião aquando do projeto de ampliação do espaço e restruturação da exposição, financiado pelo Programa LEADER I. Hoje, o remodelado Museu Arqueológico e Etnográfico Manuel Vicente Guerreiro encerra em si um espólio de grande valor histórico, já que aqui se reúnem centenas de memórias das gerações que se sucederam na aldeia e no concelho, fruto do labor paciente dos habitantes da terra que relembraram as suas velhas recordações, oferecendo peças, prestando informações e com isso dando vida às imagens da vida quotidiana. O projeto que permitiu a sua reabilitação e modernização expositiva levou a que hoje, o espólio deste espaço com dois pisos, se encontre disposto compreendendo um percurso que foi definido para que o visitante realize uma “viagem” pelas vivências de um povo que remontam até ao seculo V a.C. Assim, depois de uma breve passagem pela sala do território onde é convidado a ver um pequeno filme com imagens atuais da freguesia e do concelho, o visitante inicia a sua viagem ao passado no núcleo arqueológico onde são apresentados os três períodos de ocupação do Sítio das Mesas do Castelinho – Idade do Ferro, Romano e Islâmico – através de uma exposição de cerâmicas e metais provenientes das escavações deste local. Após conhecer a ocupação islâmica e a influência da mesma na nossa cultura, o visitante percorre o rés-dochão onde, no salão, está exposta uma coleção de interessantes equipamentos agrícolas que refletem o ciclo do pão, encenado em ambientes que reproduzem os principais momentos deste ciclo, desde a lavoura, à sementeira, à monda, à ceifa, à debulha e ao enfardamento, complementados com outras atividades que completavam


a vida do campo e o aproveitamento dos seus recursos, como a apicultura, a tiragem da cortiça e a pastorícia. Também neste piso está a sala dedicada ao “abegão”, ofício tão importante que nas povoações mais pequenas do Concelho e que fazia a construção e manutenção do equipamento agrícola, metendo igualmente a mão de mestre na madeira e no ferro, sendo que nalguns casos, ainda fazia o trabalho de ferrador. No primeiro andar, para além dos diferentes espaços expositivos que contemplam as vivências do povo de Santa Clara-a-Nova, o visitante é convidado a apreciar a venda/taberna, a arte da tecelagem, a escola, a casa do povo e biblioteca, a barbearia e a conhecer outras recordações que ficaram eternizadas através de um

documentário produzido com testemunhos reais e que é apresentado na sala da memória. O Museu oferece ainda uma reconstituição muito exata de uma casa tipicamente alentejana de monte que pode ser apreciada na última fase do percurso proposto e que é considerada como ex-libris deste espaço pelo imenso espólio que encerra. A nível pedagógico, este Museu procura hoje a dar a conhecer, de forma participativa o património etnográfico regional, promover a ligação escola/museu/comunidade, sensibilizar para a importância do conhecimento e preservação do património cultural, despertar o sentido crítico e a sensibilidade estética e incentivar o gosto pela descoberta.

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Grupo de Trabalho do Cante de Castro Verde lança Colectânea de Cante

Planície a Cantar

No âmbito da evocação do 1º aniversário da inscrição do Cante Alentejano na Lista do Património Cultural Imaterial da Humanidade, da UNESCO, realizou-se no passado dia 29 de novembro o lançamento da colectânea de cante “Planície a Cantar”, um CD que inclui temas dos grupos corais do concelho já com trabalhos publicados. A iniciativa, organizada pelo Grupo de Trabalho do Cante, de Castro Verde, contou com a participação dos nove grupos corais do concelho, e foi antecedida de uma concentração e um desfile de todos os grupos entre a Igreja dos Remédios e a Praça da República.

O Museu da Ruralidade integra o Grupo de Trabalho do Cante de Castro Verde desde a sua criação, em 2012.

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Culminando com a subida de todos os cantadores ao palco do Cineteatro Municipal de Castro Verde, a interpretação conjunta das modas “Castro Verde és nossa Terra”, “Vai de Centro ao Centro” e “Vamos nós saindo”,

esta iniciativa foi um momento de grande simbolismo para o cante alentejano de Castro Verde e para todos os amantes do cante.

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