n.º1 Jan. 2015
Aivados. Comunitarismo em terras de latifúndio O 20 de Abril de 1975 na Herdade dos Aivados — Reportagem fotográfica A propósito da 1.ª manif depois do 25 de Abril de 1974 em Castro Verde
_índice:
Aivados. Comunitarismo em terras de latifúndio — Inês Fonseca
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O 20 de Abril de 1975 na Herdade dos Aivados. Reportagem fotográfica de Manuel Faria Bento A propósito da 1.ª manif depois do 25 de Abril de 1974 em Castro Verde — Miguel Rego Imagens do Museu
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_ficha técnica: Direcção: Paulo Nascimento Coordenação: Miguel Rego Design e Maquetagem: João Lourenço/Estúdio Nómada Impressão: Palma - Artes Gráficas ISSN: 2183-4547 Depósito Legal: 386863/15 Periodicidade: semestral Propriedade: Município de Castro Verde/Museu da Ruralidade Contactos: Cadernos do Museu da Ruralidade — Praça do Município, 1 — 7780-217 Castro Verde email: museururalidade@cm-castroverde.pt Colaboram neste número: Inês Fonseca, Miguel Rego, João Branco, Manuel Bento, Helena Passos, Vitória Nobre Agradecimento particular à população dos Aivados 500 exemplares
n.º1 / Janeiro de 2015 / _editorial
De há alguns anos a esta parte, o Município de Castro Verde tem procurado desenvolver de forma sustentada uma estratégia de intervenção na área do património e da memória, fomentando o aparecimento de espaços de encontro e de iniciativas que provoquem a reflexão nos mais diversos patamares da vida da comunidade. Essa estratégia assenta na sensibilização do movimento associativo, dos estabelecimentos de ensino e em iniciativas privadas para a importância da salvaguarda do património material e imaterial do concelho e da região, para a valorização da memória e a utilização dessa mais-valia como um pilar fundamental num processo de desenvolvimento, de criação de riqueza e de dignificação da comunidade. A criação de um conceito de Museu que não tenha limites temáticos, limites territoriais ou limites técnicocientíficos, levou à criação, em 2011, do Museu da Ruralidade, e à abertura do Núcleo da Oralidade, na vila de Entradas, enquanto espaço de referência do conceito de museu de território que se pretende, pouco a pouco, construir em Castro Verde. Acima de tudo, um conceito que concilie património material e imaterial sem qualquer escala de valor. No ano de 2014, a criação do Núcleo de Almeirim – A Minha Escola, veio trazer
uma lógica de partilha e de cooperação entre o Museu, o Agrupamento de Escolas de Castro Verde e a União de Freguesias de Castro Verde e Casével, que transforma este espaço num palco de cooperação entre a população e um conjunto diverso de actores, cujos frutos têm sido importantes na dinamização do tempo de lazer e de reflexão na comunidade. A abertura do Núcleo dos Aivados – Aldeia Comunitária, vem contribuir com uma nova abordagem museográfica, dando particular valor ao documento histórico enquanto instrumento na legitimação social de uma comunidade. Ao mesmo tempo, alarga-se a tipologia das entidades envolvidas no processo de criação dos espaços museológicos no concelho, já que o principal actor deste espaço é, sem qualquer sombra de dúvida, a associação do Povo dos Aivados. Neste processo de construção do Museu da Ruralidade – Museu de Território, impunha-se a criação de um veículo de comunicação que complemente o trabalho que é desenvolvido neste projecto, e que, ao mesmo tempo assuma o papel de registo e salvaguarda da memória do trabalho efectuado. Os Cadernos do Museu são o “espaço” que faltava para incentivar a reflexão e a divulgação deste projecto de museologia nestas terras campaniças. No dar voz à especificidade dos patrimónios locais perspetivando a dignificação do ser humano e da sua experiência de vida enquanto paradigma do social. E tendo como premissa a certeza de que a museologia tem de privilegiar “a comunicação, a criatividade, a assunção crítica de cidadania”, como o defendia o saudoso Alfredo Tinoco, do MINOM, ao defender que “a renovação de um museu será radical ou não será”. E para nós, é neste espaço alargado de intervenção, na complementaridade de informação e na participação intensa de toda a comunidade que assenta o futuro e a riqueza da museologia.
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Aivados Comunitarismo terras latifĂşndio em
de
InĂŞs Fonseca
— Parte I —
Comunitarismo em terras de latifúndio 1. O que é uma aldeia comunitária? No concelho de Castro Verde (distrito de Beja), existe uma aldeia comunitária – a aldeia do Monte dos Aivados. Mas o que significa, realmente, ser uma aldeia comunitária? Esta aldeia tem uma organização social particular que assenta na partilha (em regime de compropriedade), por todos os seus moradores, de cerca de 400 ha de terreno e que expressa o princípio de igualdade entre todos os moradores-proprietários. Com o propósito de combater as injustiças sociais e as relações hierarquizadas, que também existem entre os membros deste colectivo, são activados mecanismos sociais e culturais que tornam esta comunidade tendencialmente solidária. A vida dos habitantes dos Aivados não é muito diferente da dos habitantes das aldeias vizinhas. Contudo, cada indivíduo está ligado aos outros através de práticas institucionalizadas de solidariedade (os diversos subsídios e benesses, os sorteios e leilões), e da existência de um sistema de direitos e deveres com a participação de todos nos assuntos comuns (através do trabalho na “comissão”, das “reuniões da comissão”, e dos grupos de trabalho e de entreajuda). Subjacente a todas estas práticas, preside uma ideologia igualitária e de participação democrática.
1.1 Comunitarismo Agro-pastoril A organização comunitária que subjaz à exploração colectiva das terras não é, nem nunca foi, um sistema social vulgar na região do Alentejo – onde predomina a grande propriedade privada, no entanto, é possível encontrar referências semelhantes ao tipo de organização social comunitária (existente em Aivados) em alguns dos aspectos descritos relativamente ao comunitarismo
agro-pastoril, à utilização comunitária de baldios nas regiões do Norte do país (no que diz respeito às formas de reciprocidade e entreajuda) ou, ainda, relativamente aos compáscuos, uma prática de cultivo própria das Beiras interiores e do alto e baixo Alentejo (no que concerne a utilização comum, para pastagens de gado, de terrenos agrícolas particulares durante o seu pousio). Os casos mais divulgados de comunitarismo (as aldeias de Vilarinho da Furna e Rio de Onor) são apresentados pelo antropólogo Jorge Dias como sendo situações próprias de populações que vivem em “semi-autarcia”, que seria propícia à existência de “uma forte disciplina comunitária”. Esta caracterizar-se-ia por uma espécie de “democracia representativa”, com a eleição de dois responsáveis (os mordomos) e de um conselho, que assumem o poder legislativo, consultivo e executivo relativamente a todos os assuntos da comunidade (organização dos trabalhos colectivos, gestão dos trabalhos de conservação e manutenção necessários, representação de todos face ao exterior, etc.). Simultaneamente, a forma de organização social descrita para as comunidades transmontanas é totalmente idealizada por J.Dias: “o sentimento de solidariedade fraternal leva a um espírito de socorro mútuo em casos de dificuldade”1, “aqueles centos de indivíduos parecem uma família, sempre prontos a ajudarem-se uns aos outros e a tolerarem com benevolência as fraquezas alheias” 2. Claramente, como se demonstra em seguida, o caso da aldeia dos Aivados pouco tem que ver com esta representação cristalizada de uma comunidade isolada, auto-suficiente e em perpétua harmonia. 1 “Tentâmen de fixação das grandes áreas culturais portuguesas”, in Jorge Dias (1990) Estudos de Antropologia, vol.1. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, pp.159-181. 2 “Algumas considerações acerca da estrutura social do povo português”, in Jorge Dias (1990) Estudos de Antropologia, vol.1. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, pp.183-206.
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No caso destas aldeias transmontanas, a “casa” (família e respectivo património) constitui-se como a unidade de contagem e de estruturação da aldeia. Ao conselho pertencem todos os vizinhos (quer dizer, os representantes de cada “casa”) que têm os seus gados no rebanho comum, a pastar nos terrenos comuns e que participam nos trabalhos colectivos gratuitos e recíprocos. São apenas os representantes de cada “casa” com representação no conselho (que não são todas) que participam nas tomadas de decisão relativas ao património comunitário e as executam, seguindo uma racionalidade de reprodução do património de cada uma. Em Aivados, ao contrário do que sucede nas aldeias comunitárias camponesas de Trás-os-Montes, o critério utilizado para saber quem participa nas reuniões e quem tem direitos na comunidade diverge daquele aqui descrito. A base social da aldeia é constituída por assalariados rurais, que não se organiza numa lógica de representatividade por “casas” e os agregados familiares raramente estão associados à existência de património. O representante de cada agregado é o chefe de família (sempre um homem) e no caso de este não existir, o agregado pode não ser contabilizado para a participação nos assuntos colectivos (uma vez que não existe qualquer património). Simultaneamente, se numa casa cohabitarem dois irmãos com meios de subsistência autónomos (situação normal entre assalariados rurais), cada um tem representatividade individual nas questões da comunidade (uma vez que, entre estes agregados familiares não se coloca a questão da propriedade e nem da manutenção do grupo familiar como forma de perpetuação do património). Esta é uma das diferenças encontradas entre o caso da aldeia dos Aivados e as sociedades camponesas no Norte do país, mas a comunidade aqui em questão tem outras particularidades.
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1.2. História de uma investigação Em 1995, tendo de escolher um terreno sobre o qual investigar no âmbito da minha dissertação de mestrado dedicada à temática dos movimentos sociais, a aldeia dos Aivados impôs-se como uma evidência. Não existem certezas quanto à origem exacta desta propriedade comunal. Alguns autores defendem a tese, bastante provável, de que estes terrenos (com estatuto de rossios) teriam sido atribuídos aos moradores de Aivados por Sentença Régia. Contudo, afirma a tradição oral que os mesmos teriam sido doados para usufruto dos moradores daquela aldeia pela benemérita D.Maria de Lemos (senhora aristocrata provavelmente sem herdeiros). Não é possível garantir o que se terá passado relativamente à herdade dos Aivados e à forma como esta se constituiu em propriedade dos seus moradores. A única certeza é de que desde há vários séculos (segundo relatos escritos e orais) os moradores de Aivados exerceram o seu direito de usufruto dos referidos terrenos, alcançando à luz da legislação actual o direito de propriedade. Ao longo de séculos, a herdade foi palco de vários conflitos. Em causa esteve sempre a questão da propriedade dos terrenos e das suas formas de exploração, pondo em confronto os moradores da aldeia e os oficiais da Câmara de Castro Verde (séculos XVI-XVII) ou os proprietários de herdades vizinhas (século XX). O que torna o caso desta aldeia especialmente interessante é o facto de os moradores de Aivados seguirem estratégias muito diversas na resolução dos conflitos e na defesa e manutenção da sua propriedade comunal, consoante as conjunturas. Durante grande parte do século XVII, defenderam os seus interesses e enfrentaram um processo nos tribunais contra os oficiais da Câmara de Castro Verde, em virtude de estes pretenderem que a herdade era um terreno baldio daquele concelho, pelo que o município a podia aforar a quem entendesse e receber o pagamento devido.
Após vários anos e alguns recursos, o tribunal deu razão aos moradores da aldeia, que assim viram compensada a sua estratégia de defesa por meio de um conflito aberto (judicial) contra a Câmara de Castro Verde. Já no século XX, teve lugar outro conflito, desta vez opondo os moradores da aldeia e dois latifundiários vizinhos. O motivo foi a tentativa de usurpação de parcelas da propriedade comunal, que aqueles proprietários tentaram anexar às respectivas herdades (através de um arrendamento de terras para pastagem que, com o decorrer do tempo e a persuasão destes proprietários, acabariam por ser integradas nas suas herdades): “Havia muita miséria e então, naturalmente, decidiram pedir a esse Falcão ou uma arroba de farinha ou qualquer coisa emprestada à conta de um bocado de terra daqui. E ele tomou posse desse bocado de terra. E depois, passou-se anos e ficou com a terra” (excerto do depoimento de Alice Rosa). Esta situação manteve-se durante todo o Estado Novo, sem que os moradores da aldeia pudessem fazer alguma coisa para repor a legalidade. Nas narrativas que as pessoas fizeram sobre esse período das suas vidas, impuseram-se dois elementos: as descrições detalhadas sobre os trabalhos agrícolas e as referências às práticas quotidianas de resistência. Sabendo os riscos a que estavam sujeitos se recorressem a uma defesa conflituosa do seu direito de propriedade, optaram estrategicamente por uma defesa não-declarada: “Além, o lavrador que além estava deu ordem de pôr as pessoas p’ra fora. Com a espingarda, andava sempre com a espingarda. [...] Como sabia que aquela terra era nossa... nem podia ver a gente a apanhar uma bolota, nem se podia dizer que aquilo era nosso”. Os moradores da aldeia não reclamavam a devolução da terra que era sua, mas usufruíam do que ela lhes dava, conforme podiam. Tratava-se de actividades do dia-a-dia e aparentemente inofensivas, tais como: apanhar lenha
ou bolotas (para venda ou uso doméstico), marcar a sua presença nesses terrenos (ali faziam questão de almoçar quando trabalhavam por perto) ou atravessá-los: “Eu ía mondar ao Reguenguinho, que é partido com a terra e almoçávamos muita vez no sesmo” (excertos do depoimento de Maria Inácia Matos). Se, por um lado, não podiam recuperar aquelas parcelas de terreno, por outro lado, estabeleciam alguma supremacia sobre elas através de um contacto mantido no quotidiano. Contudo, a forma de resistência mais importante terá sido provavelmente a da transmissão da memória sobre os limites originais da Herdade (com as parcelas de terreno usurpadas) e sobre a ideia de que “as terras eram de cá” (o que os leva agora a dizer que em 1975 não foram ocupar nada, mas sim recuperar). Através da palavra e dos discursos dos mais velhos, que ensinavam aos mais novos, estes últimos foram tomando conhecimento dos limites correctos e da verdadeira dimensão da herdade que era de todos: “Uma vez era gaiato, quando andei ali no Reguengo, estava sentado num marco do Reguenguinho, com o Carrascal e Aivados. Estava sentado em cima do sesmo. Chega o meu padrinho e diz: «Olha, estás sentado em cima do marco onde chega a Herdade dos Aivados.» Nunca mais me esqueceu!” (excerto do depoimento de Dimas Ferreira Belchior). Trata-se de uma forma subtil e praticamente invisível (mas muito eficaz) de resistência, pois nenhum dos proprietários usurpadores, por mais intransigente e rigoroso que fosse na sua repressão, conseguiria impedir as pessoas de falarem, fazerem comentários, transmitirem informações: “E aquelas mulheres de idade, que andavam nos trabalhos, em a gente avistando ali a terra, diziam logo: «Olha, ainda vamos na nossa terra. Esta terra é dos Aivados!». Soube sempre onde era as partilhas dos Aivados!” (excerto do depoimento de Maria Inácia Matos). O tempo de trabalho nas propriedades vizinhas ou os
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momentos de ida para o trabalho, constituíam-se como tempos e lugares privilegiados para esta socialização da ideia de que aquelas parcelas de terreno foram injustamente apropriadas por terceiros. Com o 25 de Abril de 1974 (e o golpe militar que derrubou o Estado Novo) algo mudou na vida dos moradores de Aivados, mas não só. O Alentejo vai-se tornando, progressivamente, no centro da discussão sobre a Reforma Agrária. Seguem-se as ocupações das herdades, bem como a criação de UCPs por toda a região. É neste contexto que a população da aldeia dos Aivados aproveitou a oportunidade e foi reclamar aquilo que era seu por direito. Se, anteriormente, tinham recorrido a medidas defensivas, não-violentas ou drásticas, evitando os conflitos abertos com os proprietários vizinhos (de quem dependiam para trabalhar), nessa altura aperceberam-se que tinha chegado o momento que aguardavam e que podiam agir. Aproveitando o ambiente generalizado que se vivia por todo o Alentejo (com as ocupações das herdades) e o apoio das Forças Armadas que eram, na época, a autoridade vigente, bem como a contribuição e boa vontade generalizadas relativamente à sua atitude, os moradores da aldeia foram reocupar as parcelas que lhes pertenciam. No dia 20 de Abril de 1975 o povo dos Aivados recuperou, então, os terrenos pertencentes à herdade que exploram colectivamente (desde há vários séculos) e de que haviam sido expoliados. A um longo período de resistência, sucedeu um momento de confronto aberto. Tratou-se de um momento excepcional na conduta discreta que a população da aldeia havia mantido até então: “A ideia já estava, desde sempre o pessoal reivindicava a terra... De facto como as próprias escrituras dos outros, que nós tínhamos, diziam por onde é que ela era, sabíamos que tinha sido ocupada ilegalmente. Que tinha sido pela força. Nós sempre fomos lá buscar os frutos
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das árvores, qualquer coisa, íamos p’ra lá apascentar os gados e isso tudo... vinha a guarda e corria connosco e nós voltávamos. Foi sempre, sempre, uma luta” (excerto do depoimento de António Emídio Ventura). Este episódio configura um verdadeiro processo de resistência, protagonizado pela população dos Aivados ao longo de vários anos e que, na altura propícia, se transformou numa acção colectiva de protesto declarado. Passados uns anos, a família proprietária de um destes latifúndios instaurou um processo em Tribunal aos moradores da aldeia. Estes defenderam-se, recorrendo às memórias dos mais velhos (que testemunharam) sobre os limites originais da herdade e sobre o facto de aquelas parcelas lhes terem sido tiradas contra a sua vontade: “Contei isto tudo, lá no tribunal. E então, o advogado dele fez-me uma pergunta que eu respondi-lhe duma maneira que eles até acharam graça. O advogado perguntou-me assim: «Ouça lá, então isso que vocês fizeram agora, porque é que não tinham já feito, já há mais tempo?» e eu disse-lhe: «Oh, senhor doutor, então mas como é que nós podíamos fazer uma coisa dessas, se a gente nesse tempo até tínhamos que comer com a boca fechada?»” (excerto do depoimento de António Nobre). Já na década de 1990, o Tribunal (depois de ouvir estes testemunhos) deu-lhes razão. A história protagonizada por esta população chamou a minha atenção. O caso da aldeia comunitária dos Aivados destaca-se pelas suas particularidades: a sua longevidade, as características singulares da sua história, da sua organização social e da sua situação (uma propriedade colectiva em terras de latifúndios) e o facto de, a contra-corrente dos discursos dominantes, a aldeia ter vivido nos últimos tempos episódios que confirmam a actualidade (e a reactualização) da sua organização social comunitária. Inicialmente, tratou-se de analisar um movimen-
to de resistência ocorrido durante o Estado Novo. Interessei-me, não tanto pelo episódio de ruptura, mas sobretudo pelas condições que determinaram a existência desse movimento de resistência – as condições de vida dos assalariados rurais, as suas relações com os latifundiários e as formas de resistência e reivindicação que vão podendo assumir – e contribuiram para a formação de uma identidade comum aos habitantes de Aivados permitindo, mais tarde, que estes agissem em conjunto quando surgiu uma oportunidade. A identidade dos aivadenses, construída pela coesão em torno da compropriedade, estende-se para além da aldeia e abrange também a sua comunidade de migrantes. O que permite um verdadeiro vai-e-vem de solidariedades e esforços colectivos. Finalmente, por estes motivos, o momento da investigação inicial não foi apenas isso, mas também marcou o princípio do meu interesse e do acompanhamento desta comunidade e dos seus migrantes, até aos dias de hoje, sempre com ângulos de abordagem diversos e novas perspectivas de análise.
2. “A terra é de todos e não é de nenhum!” Ou também, “os terrenos são de todos e não são de ninguém em especial”. Em Aivados, frequentemente se ouvem estas frases, que expressam a ideia de que na aldeia todos estariam em igualdade de circunstâncias relativamente ao usufruto da terra colectiva. Contudo, o princípio da igualdade é posto em causa pela realidade social existente. A propriedade de terrenos particulares e o usufruto da propriedade colectiva traduzem uma hierarquização social que nada tem de igualitário. Assim, verifica-se a existência de uma série de mecanismos – que pretendem introduzir um equilíbrio entre as formas de propriedade / posse comunal ou privada, colectiva ou individual da terra – compensatórios da injustiça social (que também ocorre) e que visam uma re-
distribuição dos benefícios que advêm da propriedade comum da Herdade. Simultaneamente, também a gestão dos assuntos relacionados com a mesma é repartida por todos os moradores da aldeia, que têm direitos, deveres e poder de participação e de decisão.
2.1. O Povo dos Aivados Após a residência na aldeia durante, pelo menos, um ano consecutivo, qualquer indivíduo adquire o estatuto de morador dos Aivados. No caso de alguém ir morar noutra localidade (por exemplo, na povoação da Estação-de-Ourique, que também fica dentro dos limites da Herdade dos Aivados) perde imediatamente esse estatuto de morador da aldeia, bem como os direitos e privilégios que daí lhe advêm. O critério da residência na aldeia (mais do que o do nascimento ou da permanência de familiares) surge, então, como o factor decisivo para estabelecer quem pertence formalmente ao “povo dos Aivados”, integrando-se no sistema de direitos e deveres. Contudo, esta comunidade constrói a sua identidade não só a partir do interior, com os que nela residem, como também do seu exterior, através da comunidade migrante, que participa nos assuntos da sua terra natal. Assim, além do critério da residência, uma pessoa torna-se membro da comunidade através da sua participação concreta (o que acontece de modo muito diverso) nos assuntos da aldeia (muitas vezes, independentemente de residir ou não na aldeia). Nas conversas mantidas na aldeia, recorrentemente é utilizado um substantivo colectivo – “o Povo” – para designar quer a povoação quer a sua população. As pessoas referem-se ao “rebanho do povo” ou às “ofertas do povo”, incluindo não só os habitantes da aldeia como também os seus migrantes. Pertencer ao “povo dos Aivados” não significa apenas um colectivo de indivíduos
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que residem na aldeia, mas também aqueles que (residindo noutros territórios, como os seus migrantes) participam e contribuem com auxílio nos momentos importantes ou que partilham o objectivo de defesa dos interesses da aldeia e da sua herdade. Mais do que a existência concreta de um grupo com características próprias e ligado a um território, a utilização do nome “povo” refere-se a um colectivo de pessoas em torno de uma causa e com um ideal de coesão. O “povo dos Aivados” constitui-se, ao nível dos diversos discursos produzidos, como a entidade congregadora de todos os que, em algum momento das suas vidas, estiveram ligados à aldeia: porque aí nasceram ou residiram e porque mantêm laços fortes com aquele espaço e com a vida da aldeia. A pertença ao “povo dos Aivados” depende não só da ligação das pessoas a um território, mas também depende dos laços afectivos criados – as memórias, as formas de participação, o sentimento de pertença. A integração das pessoas neste colectivo depende da partilha de experiências, reais ou imaginadas, traduzindo-se na vontade de os indivíduos se associarem a um acontecimento porque se identificam com ele.
2.2. A comissão e a democracia participativa Também o registo de propriedade da herdade do monte dos Aivados na Conservatória do Registo Predial está inscrito em nome do “povo dos Aivados”. No entanto, impossibilitados de reconhecimento legal por parte do Estado, enquanto colectivo titular do direito de propriedade, os moradores da aldeia foram utilizando diversas fórmulas para se designarem. A administração da herdade dos Aivados e dos assuntos com ela relacionados sempre esteve a cargo de 3 pessoas – a “comissão representante do povo de Aivados” (geralmente designada “a comissão”), constituída por presidente, secretário e tesoureiro. Inicialmente,
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tratava-se de um órgão executivo, eleito de 3 em 3 anos, que obedecia às directrizes e orientações estabelecidas nas reuniões entre todos os moradores da aldeia. A “comissão” não tinha qualquer enquadramento jurídico, constituindo apenas um grupo informal de indivíduos escolhidos entre todos os habitantes da aldeia. Estes, eram nomeados nas reuniões convocadas para o efeito, através da indicação por cada um dos presentes dos nomes daqueles que lhes pareciam mais capazes para gerir os assuntos colectivos e para assumir também a responsabilidade pela escrita das contas relativas às receitas e despesas com a herdade. As funções da “comissão” resumiam-se ao recebimento do pagamento pelo arrendamento das terras de pastagem ou de pequenas parcelas do terreno comum para cultivo individual (únicas fontes de receita), à distribuição da “esmola de Natal”, à representação da comunidade face ao poder local e à organização dos trabalhos de conservação dos espaços públicos e caminhos da aldeia. Durante quase todo o século XX, verifica-se que são os próprios habitantes do Monte dos Aivados que se encarregam das obras públicas na aldeia. Foram eles que, nos anos 1930, construíram a Escola Primária (cujo edifício foi doado ao Ministério da Educação, quando este colocou um professor para aí leccionar) e que, nas décadas seguintes, se ocuparam da sua conservação (mesmo quando se tratava já de um segundo edifício, construído pelo Ministério); também construíram as estradas interiores da aldeia e as de ligação com outras vias, cuidando igualmente da sua manutenção e limpeza, para além de sempre terem assumido os trabalhos de conservação da Herdade. Em 1976, tomou posse a primeira “comissão” a seguir ao 25 de Abril de 1974 que, entretanto, havia passado a chamar-se “comissão administrativa do Povo dos Aivados”. As reuniões passam a designar-se “assembleias ge-
rais”, que se realizam com a participação de toda a população (mulheres incluídas, agora) e as eleições passam a realizar-se por escrutínio secreto – acompanhando assim as transformações para a democracia da sociedade portuguesa. Nessa época, surgem igualmente outros 2 grupos com o objectivo de ajudar a “comissão administrativa”. Trata-se da “comissão de moradores” e da “comissão recreativa, cultural e desportiva”, compostas por indivíduos mais velhos que já prestavam assistência à “comissão” ou que haviam integrado “comissões” anteriores e por jovens da aldeia. Através destes 2 grupos foi possível a canalização de alguns apoios financeiros, com vista à realização de determinados trabalhos de desenvolvimento social, cultural e desportivo. Graças à organização e colaboração destes grupos foram construídos a Casa do Povo, a Cooperativa de Consumo e o Centro Social Recreativo. Em 1989, foi criada por escritura notarial a “Associação do Povo dos Aivados” (que continua a ser designada como “a comissão” ou a “a associação”), com estatutos e uma direcção. Hoje em dia, é esta que representa os seus habitantes e que gere o património da comunidade (que aumentou drasticamente desde a recuperação das parcelas usurpadas). Actualmente, apesar do maior peso assumido pelo poder local que se ocupa dos assuntos públicos, outrora deixados ao cuidado dos moradores de Aivados, estes mantêm o seu interesse e implicação em todos os assuntos, sejam eles da competência do município ou da “comissão”. Todas as iniciativas e obras levadas a cabo pela Câmara Municipal são, assim, alvo de escrutínio, dos comentários e das críticas da parte de qualquer um na aldeia, acontecendo com muita frequência a organização informal de grupos que se dirigem pessoalmente aos serviços municipais para interceder pela aldeia ou simplesmente pedir informações.
2.3. Igualitarismo ou solidariedade? Acesso à terra e os mecanismos de redistribuição da riqueza Ao longo dos anos, os moradores dos Aivados garantiram a propriedade colectiva da Herdade do Monte dos Aivados, através de um equilíbrio entre a propriedade e o usufruto comum e a posse e o usufruto individual dos terrenos. Existe, portanto, o exercício do direito de propriedade comum de uma herdade por todos os moradores da aldeia (sem excepção), aliada ao usufruto colectivo de pequenas parcelas de terreno para cultivo individual apenas por alguns deles (os que estiverem interessados). É possível encontrar referência a várias formas de propriedade, apropriação e exploração de terras entre os habitantes de Aivados (e que podem corresponder ao mesmo indivíduo, em simultâneo). Nomeadamente: a) propriedade (e usufruto) individual – parcelas de terreno de que alguns indivíduos detinham a propriedade e que exploravam fora dos limites da herdade comunal ou, então, os ferragiais aforados a habitantes da Estação-de-Ourique; b) posse individual – ferragiais e courelas em que uma parte da herdade comunal era dividida e explorada individualmente por todos aqueles que estivessem interessados e c) propriedade comunitária – usufruto de pastos e restolhos (depois de ceifados os cereais) dos ferragiais e courelas colectivos, estes eram vendidos e o dinheiro que deles rendesse era utilizado em obras de carácter e benefício público ou na distribuição da esmola de Natal. Na aldeia, cada indivíduo possui o terreno onde está construída a sua casa (as escrituras raramente, existiam, situação que começa a alterar-se actualmente) e eventualmente, um pequeno quintal ou courela. Desde que exista uma escritura (provando a propriedade e alienando esse pedaço de terreno da Herdade) estas pequenas propriedades podem ser transmitidas em
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herança. No entanto, uma casa construída num terreno e sem escritura em nome do seu proprietário, se ruir, o terreno que ela ocupava pertence ao colectivo dos moradores de Aivados (à Herdade dos Aivados). Durante a maior parte do século XX, as famílias habitavam em casas próprias ou arrendadas e possuíam (as mais favorecidas economicamente) um pequeno quintal, onde faziam criação de galinhas, coelhos, patos, porcos, etc.. Além das formas de propriedade privada, cada indivíduo tinha ainda a possibilidade de semear ou plantar uma pequena courela pertencente à herdade, para a qual todos os anos se inscrevia recebendo o direito de cultivar uma parcela diferente. Esta rotatividade das courelas, coloca todos os indivíduos em pé de igualdade, uma vez que existem terrenos melhores que outros que não calham sempre à mesma pessoa. Tempos houve (como foi relatado, pelos entrevistados, ser a prática corrente no tempo dos seus pais e avós), em que a aldeia estava rodeada por dois círculos concêntricos, que correspondiam a diferentes formas de exploração agrícola da terra comunal (os ferragiais e as folhas, respectivamente), a que cada indivíduo podia aderir (possuísse, ou não, a título individual algum terreno fora dos limites da herdade comunitária). Na actualidade, estas áreas distintas de exploração da propriedade estão reduzidas a duas pequenas áreas: uma, junto à via rápida para o Algarve, onde são divididos e sorteados os ferragiais (os candidatos a este pedaço de terra não ultrapassam a dezena e apenas o fazem por uma questão de manutenção da tradição, uma vez que nem chegam a cultivá-los); outra, onde são sorteadas e cultivadas as courelas (com as hortas de verão). A propriedade é explorada directamente pela comunidade: através das pastagens para o rebanho comunitário e da concessão de uma parte a uma empresa de extracção de pedra (brita).
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O facto de a herdade constituir propriedade comum de todos os moradores da aldeia, pressuporia que estes se encontrassem em igualdade de circunstâncias no que se refere ao exercício desse direito. No entanto, tal situação não corresponde à realidade uma vez que, por um lado, existe uma igualdade de oportunidades no que concerne ao cultivo individual da terra, mas, por outro lado, existe uma desigualdade no que se refere à possibilidade de pôr em prática esse princípio, uma vez que nem todos os indivíduos dispõem dos meios necessários para tal. Existiam essencialmente dois motivos para que um indivíduo não semeasse a folha / courela ou o ferragial. São eles: o facto de a terra destinada ao cultivo individual não ser suficiente para todos os candidatos ou o facto de o agregado familiar não ter recursos económicos para semear ou plantar uma courela. Quem faz uma exploração directa da terra retira daí os seus lucros, mas aqueles que se encontram numa posição de inferioridade económica, que lhes nega a possibilidade de usufruto da propriedade “que é sua”(!), devem ter também eles alguma forma de rendimento (a bem da igualdade) como compensação. A esmola de Natal surge, então, como um mecanismo de reposição da igualdade entre os indivíduos (pressuposto essencial nesta forma de organização social). Esta esmola do Natal é referida pelas pessoas como sendo a principal forma de usufruto da terra pelos moradores da aldeia, que na altura do Natal dividem o lucro obtido com a herdade (deixando algum de lado) e o atribuem a quem não pode cultivar uma pequena parcela de terreno. Existem, também, outros dispositivos que têm como função reintroduzir a igualdade entre os indivíduos num contexto social que se apresenta hierarquizado e desigual, são eles: os sorteios das parcelas de terra ou as ofertas feita em nome d’o povo (sob a forma de leilões e sorteios de objectos), que permitem
a participação de todos os indivíduos na vida colectiva e nos assuntos da herdade. Hoje em dia, além de se manter a atribuição da esmola de Natal (designada por subsídio de Natal) e que é entregue a todos os moradores da aldeia sem excepção, verifica-se também a distribuição de outros subsídios, atribuídos às famílias em caso de nascimento ou de óbito de alguém e no início de cada ano lectivo das crianças em idade escolar. Além destes privilégios instituídos e que ocorrem de forma regulamentada, os moradores de Aivados beneficiam ainda de um conjunto de facilidades que lhes são concedidas apenas e quando o desejarem. Apesar da aparente continuidade de uma situação de distribuição dos rendimentos comuns por todos, verificam-se algumas diferenças na forma como os processos se desenvolvem: a esmola de Natal perdeu o seu carácter de corrector de uma injustiça (relativamente aos que não tinham a possibilidade de usufruir da propriedade comum) para passar a constituir um direito inalienável de todos os moradores da aldeia (independentemente das condições económicas de cada um), tal como os restantes subsídios. Resumindo, nos momentos em que a realidade social se afasta do ideal que se quer afirmar, é posto em prática um artifício que pretende reintroduzir a ordem social desejada. Assim, o usufruto comum da propriedade por parte de todos os moradores da aldeia, de facto, é posto em prática não através da utilização desta por todos em igualdade de circunstâncias, mas sim através da institucionalização de formas de compensação (a esmola de Natal e os actuais subsídios) daqueles que ficariam excluídos do processo de partilha do terreno comum. Como forma de combater a concentração de privilégios nas mãos de um grupo limitado de indivíduos, é criado um sistema de redistribuição dos lucros obtidos com um bem comum que não é usufruí-
do de igual modo. A terra, que é de todos e não é de ninguém, afinal traduz uma hierarquização social: na qual, uns são “mais proprietários” do que outros (consoante as possibilidades económicas do agregado familiar a que pertencem).
— Parte II —
Os Aivadenses, alentejanos como os outros 3. A Vida Económica e Quotidiana na Aldeia Entre a população dos Aivados, a compropriedade da herdade nunca permitiu a auto-suficiência, forçando a maioria destas pessoas a trabalhar por conta de outrém como assalariados rurais (fossem ou não pequenos proprietários, rendeiros ou parceiros). Nas descrições que fizeram, ao narrar as suas vidas antes do 25 de Abril de 1974, as pessoas foram unânimes ao afirmar que passaram por uma época “de grande miséria e muita dureza”. Enquanto trabalhadores assalariados, não ganhavam o suficiente para o sustento das famílias (com muitos filhos, na sua maioria). As condições de trabalho precárias estão na origem da “vida de miséria” que relataram. Estas famílias tinham trabalho e salário apenas em algumas alturas do ano, correspondentes às épocas agrícolas e às respectivas tarefas (amanho da terra, sementeira, monda, ceifa, colheita). Por outro lado, a protecção social em caso de doença ou velhice era nula, ficando as pessoas dependentes da assistência de familiares ou da caridade alheia. Até há poucas décadas atrás, a vida económica da aldeia estava marcada por duas actividades laborais: a pastorícia (gado ovino) e a agricultura. Os moradores de Aivados encontravam trabalho sobretudo nas herdades de Castro Verde e dos concelhos limítrofes. Estas explorações agropecuárias (também designadas por lavouras – sendo os seus proprietários os lavradores)
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dedicavam-se a produções muito variadas (desde vários tipos de cultivo da terra à criação de gado). Como consequência, a esta diversidade das tarefas agrícolas corresponde uma complexa hierarquização dos trabalhadores. Existem, então, os criados permanentes: as mulheres que ajudam nas tarefas domésticas, uma cozinheira para o pessoal da lavoura; o abegão (encarregado principal da lavoura) e o sota (seu ajudante); o guarda da Herdade; o carpinteiro; o amassador (do pão); o leiteiro, etc. Estes indivíduos mantinham, durante as suas vidas, uma certa estabilidade em relação ao patrão para quem trabalhavam; podendo, no entanto, ascender na hierarquia dos trabalhadores. Por outro lado, as restantes tarefas necessárias ao funcionamento e produção da herdade eram desempenhadas pelos assalariados temporários (designados como ganhões, alusão à imediatez com que o seu salário é recebido relativamente às tarefas que realizam – uma vez que recebem ao dia ou à semana (a jorna), ou por empreitada. Estes trabalhadores ocupam-se de diferentes tarefas, consoante a época do ano e o trabalho necessário: semear, mondar, debulhar, ceifar, colher, cortar as ramas das àrvores, tosquiar os animais, cuidar da horta, pastorear o gado, fazer o queijo, etc. Assim, apesar da imagem aparentemente homogénea, relativamente aos assalariados rurais e moradores da aldeia, a verdade é que estes apresentam uma disparidade entre si, assente em vários elementos, entre outros: os trabalhos realizados por cada indivíduo ou o tipo de contrato de trabalho. As nuances nas formas de contratação, trazem consequências: por um lado, ao nível dos salários (quanto maior o tempo de duração do contrato, mais baixo o salário) e por outro lado, ao nível das próprias relações com os patrões (quanto mais prolongado o contrato, maior ambiguidade surgia na relação entre a proximidade e dependência). No caso dos jornaleiros
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(contratados ao dia ou à semana), a maior mobilidade que lhes é permitida / imposta relativamente ao local de trabalho traduz-se numa atitude de independência do assalariado face ao patrão: acostumado a negociar todas as semanas, sabe que tem mais possibilidades de escolha. Assim, a capacidade para fazer suceder os trabalhos agrícolas uns aos outros (de modo a diminuir os períodos de desemprego) como também a procura permanente de melhores condições laborais (através da mudança de um patrão para outro que oferecesse mais salário) constituem algumas das estratégias de sobrevivência procuradas pelos assalariados rurais. Na aldeia, a grande maioria dos assalariados trabalhava por empreitada ou como concertados (por um curto período de tempo). O trabalho por empreitada, consiste num trabalho à tarefa: o proprietário diz qual o trabalho que deve ser realizado e em que local, é combinado um pagamento e um tempo máximo de duração do trabalho, no caso de os trabalhadores terminarem antes dessa data, melhor, pois podem fazer outra empreitada (por vezes, até, para outro patrão) e assim, ganhar mais dinheiro. Esta forma de contratação, a priori, parece bastante razoável, no entanto, constitui uma maior exploração destes trabalhadores que se esforçam por conseguir o máximo de empreitadas com o objectivo de ganhar mais: “Não sei porquê, gostava muito de empreitadas, era a ver se me vinha embora mais cedo. Havia, depois, os manageiros, davam umas empreitadas muito grandes. Se era um bocado de seara, vá... pagam umas tantas tiras, p’ra fazerem. Mas, às vezes, eram puxadas. Era quanto mais a gente podia” (excerto do depoimento de Maria Domingas). No caso dos concertados, trata-se de um contrato em vigor durante determinado período de tempo, para a realização de variadas tarefas (conforme a necessidade). Se, por um lado, é a forma de contratação em que os trabalhado-
res se encontram mais protegidos, pois durante aquele período de tempo (geralmente um ano) sabem que recebem um salário (que é mais baixo); por outro lado, é também aquela em que mais estão sujeitos à prepotência e à arbitrariedade dos patrões, não podendo arriscar-se a ser despedidos, pois dificilmente arranjarão outro trabalho (quando todos os proprietários já contrataram os trabalhadores de que necessitam). Estas formas de contratação, usuais entre os moradores de Aivados, reflectiam-se na existência de uma menor mobilidade (e consequente maior dependência) por parte desta mão-de-obra relativamente a um trabalho / patrão. É, então, neste quadro laboral descrito para a aldeia, que se encontra a explicação para o facto de durante várias décadas o povo dos Aivados nada ter feito (aparentemente) contra os proprietários da região (seus potenciais patrões) que se apropriaram das parcelas da sua herdade e os ameaçaram, sempre que alguém fazia referência ao assunto ou tentava de alguma forma restabelecer os limites da herdade.
3.1. Maiorais e Roupeiras O trabalho de pastoreio caracteriza-se por uma relativa estabilidade (alguns pastores chegam mesmo a trabalhar durante uma vida inteira para um único patrão) devido à actividade realizada, que implica um factor de permanência dos trabalhadores (para obter o conhecimento sobre um rebanho específico e o acompanhamento do seu desenvolvimento, de preferência, pela mesma pessoa e ao longo de vários anos). No entanto, o facto de esta profissão corresponder a uma hierarquização limitada dos seus trabalhadores (que se repartem apenas entre os ajudas e o maioral) faz com que estes procurem frequentemente emprego junto de outros patrões, em busca de melhores condições de trabalho e de salário. Simultaneamente, eram os indivíduos que
exerciam esta profissão (passando dias seguidos com o gado, fora das suas casas) que mais beneficiavam da existência de um complemento do salário estipulado. Os salários eram acrescentados com as comedias (comedorias) – comida fornecida aos trabalhadores para os dias de trabalho –, que podia ser substituída por uma saca com géneros alimentares (farinha, grão, feijão, açúcar, azeite, etc.), a que se chama ensacado. O ensacado era um complemento em géneros que fazia parte do salário do trabalhador. Contudo, a maioria destas famílias vivia em extrema pobreza: “Quando casei, a gente comprava coisas sem dinheiro... nas mercearias... Ah, isso é que também não gostava nada, de ir comprar coisas sem dinheiro. Pagava no fim do mês”. Esta situação levava-os a “desviar” estes géneros que deveriam ser a alimentação do trabalhador para partilhar com toda a família (mulher e filhos): “Eu cheguei a abalar a buscar as comedias que davam: 1 litro de azeite e 1 kg de toucinho e 4 litros de legumes grandes (o feijão, feijão branco e grãos). Depois, cozíamos o jantar, era só um jantarinho; ás vezes, tinha que ser pôr uma mã’cheínha fechada na mão. E com... s’a gente pudesse ter condições de 1 batata, era 1 batata e depois era mais aquele caldo em água e migava as sopas, agora também se miga, também se faz... agora, já é mais apuradinho, mais grossinho. Agora já é doutra maneira. E comíamos aquilo e uma saca de farinha e eu fazia 4 amassaduras. Peneirava a farinha, cozia e depois dava-me p’ra um mês. Comíamos assim: eles davam, aquilo era o comer deles, mas tinha que chegar p’ra gente” (excertos do depoimento de Leonor Medeiros, cujo marido foi maioral). No caso dos maiorais, os trabalhadores recebiam ainda um complemento especial: a possibilidade de criar algumas cabeças de gado (ovino) junto do rebanho. A rouparia surge, assim, graças ao complemento salarial dos homens e permite-lhes o aproveitamento
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do leite dessas cabeças de gado, que andam a pastar junto com o rebanho do patrão, para fazer e vender queijos. Esta actividade era levada a cabo pela maioria das mulheres da aldeia: “Eram uns rebanhos muito grandes, a gente fazíamos... sei lá, os queijos que a gente fazia! Pois, iam lá comprar os queijos e a gente fazíamos aquilo, trabalhávamos muito. Ainda antes de ir p‘rá monda, já a gente fazia queijos antes de abalar, p’ra ajudar o meu pai. Às duas da noite, o meu pai ia p’rá ordenha, ia tirar o leite às ovelhas. Depois, quando ele ia-se embora, eu levantava-me mais esta, p’rá gente lavar a casa dos queijos, que era uma casa muito grande, tinha muito caniço com os queijos... e a gente vá de fazer aquilo” (excerto do depoimento de Alice Rosa). São as mulheres que complementam os rendimentos dos respectivos maridos, quer com a sua remuneração pelos trabalhos por conta de outrém (monda, ceifa, colheita, etc.) quer com a realização de diversas tarefas consideradas do âmbito doméstico e portanto, femininas: criação de animais, pequenos trabalhos manuais (tricot, crochet), tecelagem, rouparia, etc. É este grupo (o das mulheres) que enfrenta a maior precariedade no trabalho, pois passam por diversos períodos de desemprego. Simultaneamente, a sua condição de mães em famílias numerosas impede-as muitas vezes de trabalhar fora de casa – com o tempo, acabam por desempenhar trabalhos alternativos, que lhes permitem ficar em casa, mas também a obtenção de um pequeno rendimento vem acrescentar os rendimentos dos agregados familiares.
3.2. Desforrados, Remediados e o movimento migratório As narrativas de vida recolhidas enfatizam a dificuldade dos trabalhos no campo, a precariedade a que todos estavam sujeitos e os salários reduzidos e insuficientes para a sobrevivência das famílias: “Eram orde-
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nados muito pequeninos. Não dava. E depois, as pessoas iam comprar as coisinhas p’ra comerem, muitas vezes, era sem dinheiro, depois quando recebiam, iam pagar, ficavam sem dinheiro outra vez” (excerto do depoimento de Maria Domingas). Nestes testemunhos são também descritos quotidianos de grande dureza: longas caminhadas a pé (de madrugada) até aos locais de trabalho, sem uma alimentação correcta e com poucas horas de descanso (chegavam a dormir apenas 4h por noite – uma entrevistada relatou que dormia em cima de uma arca, desconfortável, de modo a conseguir levantar-se à hora necessária para ir para a herdade onde trabalhava). Os homens, no caso de saberem desempenhar todas as tarefas da agricultura, tinham a possibilidade de arranjar trabalho durante praticamente todo o ano. Quanto às tarefas agrícolas femininas, estas realizamse durante períodos determinados, fora dos quais as mulheres se encontram irremediavelmente desempregadas; os rendimentos que auferem com o seu trabalho são considerados um complemento do rendimento do marido, no agregado familiar. Em qualquer dos casos, todos estes serviços eram remunerados com salários muito baixos. Surgiram, também, algumas referências à existência de indivíduos (poucos) que possuíam algumas terras suas (obtidas por herança), o que lhes permitia uma vida mais facilitada, com um nível económico ligeiramente superior – são os “remediados”, por comparação com os “desforrados”, que nada tinham. No entanto, em diversas alturas também eles tinham de trabalhar por conta de outrém (geralmente possuíam uma parelha de mulas e iam lavrar a terra de outras pessoas, pelo que eram pagos). Além destes indivíduos, existiam igualmente os comerciantes da aldeia: pelo menos dois, com estabelecimento comercial de porta aberta (tabernavenda) e outros tantos que, em determinados momen-
tos das suas vidas, se dedicaram ao comércio de gado. Este grupo, apesar de ser considerado privilegiado (no contexto económico da aldeia), partilha com os assalariados rurais as mesmas dificuldades. São estes últimos os seus clientes, quando eles não tinham dinheiro suficiente para o pagamento das despesas, as consequências recaíam sobre os primeiros. Por outro lado, são estes comerciantes os principais intervenientes numa teia de solidariedades que era activada em momentos de crise para os assalariados rurais: vendem fiado, sempre que alguém não tem dinheiro para fazer as suas compras para o sustento da família. Na realidade, o equilíbrio económico da maioria destes agregados familiares é precário. No caso de uma família ter a infelicidade de perder um dos membros do casal (por morte ou doença), manter-se auto-suficiente era praticamente impossível, sobretudo, no caso de mulheres que ficavam sózinhas com os filhos. Duas famílias, cujos homens se dedicam à mesma actividade (maioral das ovelhas) e cujos restantes membros participam para complementar os rendimentos (os filhos como ajudas e a mulher como roupeira), mas que têm um número diferente de filhos, irão apresentar um nível de vida também ele diverso: o agregado familiar com mais crianças tem mais encargos, o que (quando o dinheiro não abunda) se manifesta de forma marcante. Por outro lado, não são apenas factores como a dimensão ou a estrutura do agregado que influenciam o nível de vida das famílias, mas também outros factores como os grupos etários dos filhos e se estes estão em idade de estudar, de trabalhar ou de sair de casa (isto é, a fase do ciclo de vida dos agregados em que cada um se encontra). Na investigação realizada, tomei contacto com esta realidade social diversa e pude observar o seu desenvolvimento através dos percursos dos respectivos filhos. O indivíduo mais privilegiado, por ser filho único,
pôde usufruir de uma “concentração dos rendimentos familiares”, tudo o que os seus pais auferiam através das suas actividades por conta de outrém ou por conta própria (rouparia e tecelagem) destinava-se a um agregado de apenas 3 indivíduos, pelo que ele seguiu os seus estudos fora da aldeia e mais tarde, alcançou uma melhor situação profissional. A sua filha (também única) tem um curso universitário. Pelo contrário, os diversos filhos do outro casal não tiveram a mesma sorte: os mesmos rendimentos do caso anterior tinham de ser repartidos pelas 8 pessoas do agregado. A maioria das crianças cumpriu a escolaridade mínima (3ª classe), apenas o filho mais novo fez o 7ºano (quando andava a estudar, já os irmãos mais velhos trabalhavam, tendo mesmo alguns saído de casa). No momento da investigação nenhum deles residia na aldeia, todos a abandonaram em busca de melhores condições de vida. Se, hoje em dia, a terceira geração destas duas famílias tem um nível de vida não muito distinto entre si, o início do seu percurso foi muito diferente, bem como as estratégias que um e outros seguiram. No caso da família mais desfavorecida economicamente, é evidente que a estratégia da segunda geração para melhorar as suas condições de vida passou pela emigração. O facto de as famílias da aldeia terem a possibilidade de cultivar uma pequena parcela de terra (pertencente à Herdade, que é partilhada por todos) faz com esta aldeia seja diferente das que a rodeiam. Contudo, tal verifica-se essencialmente no que diz respeito aos discursos produzidos pelos moradores sobre a sua aldeia – todos se sentem donos de “um bocadinho de terra”. A realidade mostra-nos que isso não é (nunca foi) suficiente para poderem não trabalhar como assalariados ou para viverem melhor apesar dos reduzidos salários auferidos. Trata-se de famílias que, para cultivarem as pequenas parcelas de terreno que lhes são distribuídos,
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se vêem na contingência de realizar um investimento excessivo (em sementes e na preparação da terra) para as suas possibilidades. Assim, a produção que retiram dessas courelas (onde fazem pequenas searas ou hortas) constitui um pequeno complemento aos parcos salários que auferem como trabalhadores para os lavradores vizinhos. A sua dependência relativamente aos proprietários-patrões é total: se não arranjarem trabalho e salários que permitam o sustento dos seus agregados familiares, terão de sair da aldeia em busca de melhores condições de vida. Assim, durante a primeira metade do século XX, muitos dos moradores da aldeia viram-se forçados a procurar trabalho noutras zonas da região, por exemplo, em migrações sazonais para trabalhar nos campos de arroz do distrito de Setúbal. E, a partir da década de 1960, momento do surto de migração definitiva (quer para outras regiões do país, como também para o estrangeiro), a maioria integrou este movimento de êxodo rural que transformou o país.
4. A comunidade de aivadenses na Baixa da Banheira O principal destino de quem saiu da aldeia foi a margem Sul do Tejo (Barreiro, Seixal, Setúbal) e as várias indústrias aí existentes. Os outros destinos eram no estrangeiro (Alemanha e Suíça). Os primeiros trabalhadores migrantes a chegar aos locais de destino foram chamando os restantes e acabaram por aí se fixar até aos dias de hoje, o que conduziu à existência de verdadeiras correntes migratórias para territórios específicos e a formação de comunidades de migrantes instalados nesses locais e originários da mesma terra. No meu percurso como investigadora, também eu segui uma dessa redes de migrantes da aldeia. Em 2008, passados 13 anos do primeiro trabalho em Aivados, decidi interessar-me pela percurso de vida dos
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seus migrantes no âmbito de uma investigação dedicada à temática da precarização laboral. Para o efeito, escolhi como terreno a Baixa da Banheira, onde existe uma considerável comunidade de aivadenses, que aí se formou por este processo em que os primeiros a chegar atraem outros (familiares, amigos ou conhecidos). A escolha do terreno de observação não esteve longe dessa situação, pois resultou do meu conhecimento em 1995 de algumas destas pessoas e da decisão de lhes pedir auxílio para a minha entrada naquele terreno, abrindome as portas de suas casas e apresentando-me outras pessoas (originárias ou não dos Aivados) que pudessem aceitar colaborar nesta segunda investigação. No âmbito deste trabalho, cheguei mesmo a conhecer aquele que me foi apresentado como o primeiro aivadense a instalar-se na Baixa da Banheira. A Baixa da Banheira (concelho da Moita) é uma das povoações da “cintura industrial” de Lisboa a sul do Tejo, que inclui outros concelhos como Alcochete, Almada, Barreiro, Montijo, Seixal. Toda esta região conheceu, durante uma grande parte do século XX, um forte crescimento industrial. Ao longo desse período, identificam-se dois momentos marcantes no desenvolvimento da região. O primeiro, nos anos ‘40, corresponde à primeira industrialização de toda esta zona (com a instalação de várias unidades de preparação e transformação de cortiça, a construção das linhas de caminho-deferro do sul e sueste e a instalação das oficinas gerais da empresa dos Caminhos-de-Ferro). O segundo, a partir dos anos ‘60, corresponde à instalação de novas unidades industriais e ao desenvolvimento das já existentes (agro-química, estaleiros navais, siderurgia e diversas fábricas do sector têxtil). Nesta segunda fase, uma enorme quantidade de mão-de-obra, vinda do sul do país (das zonas rurais e piscatórias do Alentejo e do Algarve) e também das regiões de Trás-os-Montes e Beira-Baixa,
foi trabalhar para essas empresas e começou a instalarse nesses concelhos. Começou, então, o crescimento urbano da Baixa da Banheira, ao longo da Estrada Nacional nº11, junto à linha de caminho-de-ferro. Na década de 1960, esta freguesia foi criada e era apelidada, pelas populações vizinhas, de “o Bairro Xangai”, numa alusão à explosão demográfica que sofreu e às más condições de habitabilidade, nesses anos era uma das freguesias com maior densidade populacional do país. A comunidade de migrantes da Baixa da Banheira, que se viram forçados a sair da sua terra, mantém uma forte nostalgia pelas suas origens na aldeia e pelos tempos em que lá viviam e trabalhavam, apesar da pobreza. É neste contexto que surgiram os almoços-convívio da comunidade de aivadenses radicados na Baixa da Banheira e que se realizam numa das muitas colectividades existentes: “Um dia, estavam lá naquela colectividade que é «Os Alentejanos» e o Eduardo teve essa ideia e disse: «Eh, tanta malta da nossa aldeia aqui na Baixa da Banheira, havíamos de fazer uma coisa aí, um almoço... um convívio p’ra se juntarem». Olhe, não lhe digo, foi em 15 dias. Aquilo foi em 15 dias que comunicaram, p’ra toda a gente. [...] Foi perto de 300 pessoas: lá, na Baixa da Banheira, Barreiro, Lisboa, naqueles arredores todos. Tudo ali veio. Eu chorei tanto, tanto... Eu choro sempre! Quer dizer, pessoas que eu já não via há anos, quarenta e tal anos e mais, tão pertinho”. Para além dos encontros, este grupo de migrantes pensou também em organizar um almoço-convívio na aldeia, com o propósito de proporcionar a todos uma visita comemorativa do dia em que recuperaram as terras e das antigas amizades. A ideia surgiu num desses almoços da Baixa da Banheira: “Lá, ficou logo decidido: «Para o ano ou noutro ano, vamos fazer lá aos Aivados!» e foi assim. [...] No primeiro ano, trouxemos dois autocarros. Então e as pessoas que vieram de carro? Eram muitos
carros, muitos carros” (excertos do depoimento de Maria Antónia Mestre). “Havia pessoas que havia 20 e tal anos que não se viam umas às outras... talvez mais... havia pessoas que quando se viam até choravam. O Eduardo, nessa altura do almoço, havia 30 anos que não via o Ramiro, aqui o mano do Zé Mateus. ‘Tiveram até às 2h da noita, conversando e depois, de vez em quando, abraçavam-se” (excertos dos depoimentos de Mavilde Guerreiro Jacinto Nobre e de Emília Serra). Estes migrantes, como estão em permanente contacto uns com os outros no seu local de destino, depressa o transformaram num local de comemoração e rememoração da terra natal e de tudo com ela relacionado (história local, modo de vida, etc.), reforçando os laços entre todos na comunidade migrante e entre estes e as suas famílias e amigos na aldeia, contribuindo para a formação de uma identidade na terra de origem que se estende além do seu território e que integra aqueles que de lá saíram. Muitos, apesar de já não residirem na aldeia, continuaram a participar activamente no quotidiano dos seus conterrâneos. Durante o tempo em que estiveram fora dos Aivados, muitas das iniciativas realizadas pelos que ficaram foram apoiadas por eles: a recuperação das parcelas da herdade, a angariação de dinheiro, a colaboração com várias iniciativas da comissão, etc..
4.1. Vai-e-vem de camionetas solidárias É fora da aldeia, sobretudo na Baixa da Banheira, que se encontra o grupo de indivíduos que mais contribuiu para a construção da sua memória-identidade e que também muito colaborou com a população residente na aldeia, sempre que tal foi necessário. A seguir ao 25 de Abril de 1974, a comunidade de aivadenses residentes na Baixa da Banheira imediatamente se juntou aos seus conterrâneos, com a ideia de tentar recuperar as parcelas de terreno alienadas, como relatou um dos
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participantes dessa iniciativa: “Nós do povo dos Aivados, radicados naquela cintura de Lisboa, eu, mais a minha mulher, mais outra... e mais um rapazinho que está aqui, que é o Vítor, que está agora na Alemanha, pequenino... da sra. Alice... reunimo-nos e pensámos: «A gente temos que ir fazer lá qualquer coisa por aquilo, somos de lá e temos que ir lá ajudar aquilo e temos que ir lá ao Carrascal, que aquilo é nosso!” (excerto do depoimento de Francisco Gomes). Assim, quando foi a recuperação das parcelas de terreno alienadas, organizaram-se e deslocaram-se à aldeia, para participar nesse movimento: “Viemos, trouxemos duas camionetas. [...] Porque havia muita gente que gostava de vir e não tinham transporte, não tinham carros. Depois, alugou-se duas camionetas e as pessoas vieram. Viemos num dia e fomos no outro. Foi uma emoção grande. Eu hei-de ter esse dia sempre na minha memória, sempre!” (excerto do depoimento de Maria Antónia Mestre). Em seguida, quando foi necessária a colaboração de todos nos trabalhos agrícolas desses terrenos, como puderam e à distância, também contribuíram: “Nós fizemos umas subscrições, por exemplo, para comprar aqui o tractor, que é o Ventura que anda com ele. Fizemos lá uma rifas e um molho de livros e distribuímos pela malta da aldeia e vendemos... E já deu p’ra comprar o tractor... comprámos o bidão da água que está ali.” (excerto do depoimento de Francisco Gomes). E finalmente, também marcaram a sua presença, dando apoio ao longo de todo o processo em Tribunal, quando os seus conterrâneos foram depôr sobre os limites da herdade. Nessa altura, também foram alugadas camionetas para quem quisesse assistir às sessões. No entanto, estas não foram as únicas camionetas solidárias de que ouvi falar, durante a investigação na aldeia. Em conversa com várias pessoas, relativamente ao período da Reforma Agrária (em que a população
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da aldeia também apoiou as ocupações de herdades próximas) e da recuperação das parcelas da herdade dos Aivados, surgiu a referência a camionetas com bens alimentares que teriam sido enviadas da aldeia “lá p’ra Baixa da Banheira”. Na altura, nunca consegui desvendar o mistério dessas camionetas solidárias em direcção à margem Sul. Só mais tarde, durante o trabalho na Baixa da Banheira é que alguém me voltou a falar no assunto. Tratou-se de uma entrevista a um antigo membro de uma Comissão de Trabalhadores da Lisnave, empresa da construção naval que atravessou uma grave crise no início dos anos 1980, no contexto do processo de desindustrialização e de desmantelamento da indústria naval europeia. Durante mais de 3 anos, os operários desta empresa (muitos deles a residir na Baixa da Banheira e originários da aldeia dos Aivados) começaram a receber os seus salários de forma bastante irregular: uns meses recebiam apenas parte do ordenado; noutros, não recebiam nada; outros meses, ainda, recebiam apenas parte do que lhes era devido dos meses anteriores. Quando o interroguei sobre esses tempos e mais concretamente, sobre as formas de sobrevivência às quais estes trabalhadores tinham recorrido, referiu a emergência de redes de entreajuda e as práticas informais de solidariedade. Como exemplo, falou-me das camionetas que chegavam dos meios rurais mais diversos (de onde era originária esta população trabalhadora). Tratava-se de camionetas que alguém tinha a possibilidade de arranjar e que serviam para fazer chegar a estes trabalhadores os bens alimentares doados pelos seus conterrâneos, umas vezes de uma aldeia outras vezes de outra. Eram, então, estas as tais camionetas de que me falaram na aldeia, que os aivadenses (solidários com os seus migrantes) também tinham enviado, mas que já não sabiam muito bem localizar no tempo contí-
nuo das solidariedades e entreajudas entre a aldeia e a sua comunidade migrante. A realidade é que a integração desta população trabalhadora migrante em redes de entreajuda e de solidariedade constituiu um factor essencial para as pessoas enfrentarem as condições de vida e de trabalho (e as consequentes dificuldades), com que se depararam em diferentes conjunturas. Já foram aqui referidas as práticas de solidariedade e reciprocidade vigentes na aldeia dos Aivados e que assentavam no facto de os moradores da aldeia partilharem uma herdade. Essas práticas vão ter uma continuidade nos locais de destino dos seus migrantes. Muitas famílias, impossibilitadas de pagar os preços exigidos pelo aluguer de uma casa no Barreiro ou na Moita, instalaram-se ao longo da linha de caminho-de-ferro do Sul, transformando a Baixa da Banheira (até então, eminentemente agrícola) numa terra dormitório – com as pessoas a realizarem movimentos pendulares diários, para irem trabalhar nas localidades vizinhas. Esta situação, que é relatada por muitos dos entrevistados como um momento difícil no seu percurso biográfico, deu lugar a formas de entreajuda e solidariedade diversas. Foi nos momentos de crise que se estabeleceram intensas relações de apoio e entreajuda entre os elementos dos núcleos familiares nesta população trabalhadora, sobretudo entre pessoas originárias da mesma aldeia. Estas redes sociais assentavam, sobretudo, em grupos de parentesco (mais próximo ou afastado) e também em grupos de conhecidos (conterrâneos, amigos, colegas de trabalho, novos vizinhos). Cada agregado doméstico e cada indivíduo inseria-se numa teia própria de relações sociais de ajuda e solidariedade. Simultaneamente, as funcionalidades de cada rede também variam, tornando-a mais ou menos operativa e eficaz, consoante as conjunturas e as necessidades
que se apresentam. Foram estas redes que permitiram um estreitamento das relações entre os migrantes aivadenses e entre estes e os que ficaram na aldeia.
4.2. Regresso à aldeia? O trabalho industrial representou para estes migrantes uma vantagem importante relativamente às actividades a que se dedicavam nas suas terras de origem (como a agricultura ou a pesca), passando a auferir salários melhores e regulares, bem como alguns direitos sociais. Convém, no entanto, salientar que, no contexto dos países europeus, a economia portuguesa sempre foi uma economia periférica, com um processo de industrialização tardio e com uma estabilização incipiente da classe operária; acompanhados de um estado-providência quase inexistente e de um modelo de desenvolvimento do país caracterizado pelo predomínio do trabalho pouco qualificado e de baixa remuneração. Portugal constitui, assim, um exemplo particular da evolução das políticas laborais, relativamente a outros países ocidentais e industrializados, caracterizando-se durante a maior parte do século XX pela manutenção de um mercado laboral flexível. A população trabalhadora portuguesa, tradicionalmente precária no que diz respeito aos direitos laborais e às protecções sociais associadas ao trabalho, nunca chegou a viver uma verdadeira integração na condição salarial. Ao longo de todo o século XX (exceptuando um breve período, no pós-25 de Abril de 1974), também a população trabalhadora da Baixa da Banheira se manteve sujeita a formas de precariedade laboral, motivadas quer pelas condições de contratação do trabalho como pelas condições de desempenho do trabalho (ausência de regras de higiene e segurança, falta de protecção social em situações de invalidez ou quando era atingida a idade da reforma, etc.). Simultaneamente, à situação de
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pleno emprego motivada pelo crescimento industrial correspondeu sempre uma política de baixos salários praticada pelas empresas, que seria invertida apenas com o 25 de Abril de 1974. Contudo, logo a partir de 1986, com a entrada do país na Comunidade Económica Europeia, teve início a designada modernização do mercado laboral que correspondeu a um progressivo desmantelamento da condição salarial (relativamente) estável que tinha começado a formar-se com o regime democrático. Nas três últimas décadas, toda a cintura industrial de Lisboa passou por um fenómeno de desactivação industrial. Verificou-se um crescimento do sector terciário (com a chegada de grandes superfícies comerciais), por sua vez, no sector secundário, que continua a existir em pequena escala, destacam-se as empresas de pequena e média dimensão (sobretudo no sector da construção civil). Esta modificação do tecido económico da região foi acompanhada não só por um crescimento da taxa de desemprego (consequência da diminuição dos postos de trabalho necessários à nova actividade económica) e dos efectivos de reformados, mas também por uma degradação das condições de emprego e de trabalho e dos direitos sociais associados. Assim, a comunidade de migrantes dos Aivados sempre viveu com um pé na aldeia de origem e outro na terra de destino, situação que é por todos assumida como uma estratégia de sobrevivência. Em 1995, quando tomei contacto com esta comunidade de aivadenses instalada na Baixa da Banheira, verifiquei que estas famílias estavam a sofrer as consequências do processo de desactivação industrial do país e da consequente crise de emprego. Se a geração que chegou à região na década de ‘60 conheceu, relativamente à condição de trabalhadores temporários que tinham nas terras de origem, uma melhoria de vida e uma estabilização na condição salarial,
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esse quadro durou muito pouco tempo. As situações de instabilidade e precariedade laboral reemergem para a mesma geração de trabalhadores que haviam alcançado essa estabilidade, precisamente quando se aproximavam do fim da sua vida activa. Este processo de precarização social também não poupou as gerações mais novas. Hoje em dia, esta população encontra-se maioritariamente numa grave situação de precariedade profissional, económica e social. Na geração dos mais velhos (que protagonizou a migração para o meio urbano e industrial) muitos homens haviam estado ou estavam ainda a receber o subsídio de desemprego ou pré-reformas. Para eles, encontrar um novo emprego era uma tarefa dificultada pela idade (cuja média rondava os 55 anos). Por sua vez, as mulheres haviam sido as primeiras a perder os empregos (com o encerramento de muitas fábricas do sector textil, na década de 1970) e ficaram imediatamente relegadas para a esfera do trabalho doméstico e das actividades informais. As gerações mais jovens, nomeadamente os filhos e netos daqueles que migraram, por sua vez, também se debatiam com dificuldades para entrar e permanecer no mercado de trabalho: saltavam de formação profissional em formação profissional e alternavam empregos temporários com períodos de desemprego. Os discursos produzidos pelas pessoas sobre o seu próprio percurso de vida e de trabalho, assim como das suas famílias, revelam uma população em que apenas um pequeno grupo (o dos homens em idade activa) e durante o curto período entre 1960 e 1980 integrou a condição salarial estabilizada. Simultaneamente, quando interrogados sobre as suas expectativas de vida, muitos admitiam a possibilidade (ou a vontade) de um regresso aos Aivados, sua terra natal: “Ainda agora estava dizendo aqui à Maria: «A gente, se
fosse coisa que pudesse, ainda comprava aqui uma casinha...». Pois, o meu marido já não trabalha, está no Fundo de Desemprego. Uma pessoa ía, estava lá uns tempos, depois vinha, estava aqui um mês ou dois, ou isso. Mas como não tenho aqui casa...” (excerto do depoimento de Maria Antónia Mestre). Contudo, essa situação nem sempre se concretizou. Tal como a maioria dos assalariados rurais (e sem terra) do Alentejo, os migrantes aivadenses também não herdaram casas ou propriedades familiares nas suas aldeias de origem – “Os meus pais viveram aqui muitos anos, mas nunca me deixaram nada. Foi sempre casa de aluguer, nunca tiveram uma casa deles” (excerto do depoimento de Maria Antónia Mestre) –, ao contrário do que sucedeu com a população camponesa do Norte. Assim, o retorno à terra natal é mais difícil, pois depende da possibilidade (que nem todos têm) de comprar casa e também da existência de casa à venda. Simultaneamente, os projectos de retorno nem sempre acontecem como esperado. Nos locais de destino, estes migrantes deixam outras solicitações: casa, filhos e netos e uma vida inteira que não é fácil deixar para trás. Recentemente, a aldeia dos Aivados viveu esse fenómeno, que também se verificou por todo o Alentejo e noutras zonas rurais do país: migrantes pré-reformados ou reformados, refazem as suas vidas e tentam regressar às terras de origem. Por vezes, as casas que têm a capacidade económica para adquirir situam-se em locais que não são a sua terra natal e desta forma, o retorno dos migrantes assemelha-se a uma “dança das cadeiras”. Assim, o futuro da aldeia dos Aivados e dos seus migrantes continua em aberto e será aquilo que os que integram esta comunidade puderem e desejarem fazer.
A autora Inês Fonseca, antropóloga e investigadora, tem dedicado os seus trabalhos a diferentes temáticas, tais como Memória, Identidade e Mudança Social; Poder e Movimentos Sociais; Redes Sociais, Família e Parentesco ou ainda, Mundo do Trabalho e Precarização Social. No estudo que realizou na aldeia comunitária dos Aivados, interessou-se pelo conflito e a resistência protagonizados pelos moradores da aldeia, em luta contra a usurpação de parcelas da herdade comunitária, durante o Estado Novo. Em 1995, a investigadora viveu 6 meses na aldeia, ouviu e recolheu as histórias dos seus habitantes sobre a recuperação da terra que lhes pertence (em 1975) e também sobre o tempo em que não puderam opôr-se a essa usurpação. Contudo, a história deste conflito em torno dos limites da herdade dos Aivados não se confina ao território da aldeia. E, em 2008, a investigadora decide seguir a comunidade migrante de aivadenses, instalada na Baixa da Banheira (concelho da Moita, na cintura industrial de Lisboa), para ouvir os relatos daqueles que se viram forçados a sair da sua terra natal em busca de trabalho e melhores condições de vida, mas que continuam a pertencer e a participar na aldeia que é de todos.
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_memória fotográfica
20 Abril 1975 Herdade Aivados O
de
de
, na
dos
_reportagem fotográfica de Manuel Faria Bento
Texto: Miguel Rego Fotografias: Manuel Faria Bento e José Frederico
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Na construção do projecto do Núcleo dos Aivados – Aldeia Comunitária, do Museu da Ruralidade, o espólio fotográfico de Manuel Faria Bento, a que recentemente tivemos acesso, é um conjunto documental de extraordinário interesse. Porque nos trouxe a cor, a alegria, a vivacidade, o sedutor que terá sido o dia 20 de Abril de 1975 para a comunidade dos Aivados; porque nos ajuda a construir aquele momento marcante da vida e da memória destas terras de história centenária; porque ajudam a desmistificar algumas ideias preconcebidas quanto à forma e à participação das pessoas, da envolvência de alguns partidos políticos nesta acção popular e, acima de tudo, porque dão corpo a algumas descrições conhecidas sobre este dia. (continua na pág. 37)
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O 20 de Abril de 1975 foi o dia em que os aivadenses se juntaram para recuperar as terras que o Monte do Carrascal e o Monte Novo tinham anexado ao longo de muitos anos às terras dos Aivados que rondavam, nas suas origens, cerca de 400 hectares e se viam, então, reduzidas a pouco mais de 200. Aqui estiveram em festa e em luta a maioria dos aivadenses, mobilizados pelo sonho de recuperar o seu património cuja posse estava provada documentalmente desde meados do século XVI. Manuel Faria Bento era um daqueles aivadenses que, apesar de estar ausente, não quis deixar de estar presente, trazendo com ele a sua Roleflex com um rolo de slides, e a máquina de super 8, Yashica. Dessa bobine de 8m/m não tem a certeza do seu destino. Mas alguns dos 36 slides tirados nesse dia histórico para as gentes dos Aivados estão aqui, neste trabalho que aqui trazemos, e que poderemos ver melhor documentado no Núcleo dos Aivados, do Museu da Ruralidade. Manuel Faria Bento nasceu a 1 de Novembro de 1942, no Montinho da Ribeira de Móra, no concelho de Almodôvar, mas só foi registado no dia de Natal desse ano, dia oficial do seu nascimento. O seu pai, Manuel Frederico, conhecido ti Serrinha, era originário da Graça de Padrões (a sua mãe, Conceição Maria, era do Monte dos Morzelos – Ourique), chegou a estas terras ainda nos anos quarenta do século XX, por força de trabalhar nos montes que havia à volta da aldeia. Nos Aivados ficou Manuel Faria Bento até aos 15 anos, partindo então para a zona de Lisboa. Começou a fazer fotografia à volta de 1963, altura em que adquiriu um “caixote que acho não tinha marca”, diz. Pouco depois comprou também um caixote com que fazia filmes “para o qual se compravam bobines com sete metros e meio, de 16 m/m, que se enviavam para França, na compra os portes já estavam
incluídos, bobine que quando nos era devolvida, vinha com quinze metros de filme, de 8 m/m, sem qualquer registo sonoro.” O também poeta popular, que está a construir em livro a sua história de vida, gostava de fotografar porque queria mostrar aos outros aquilo que via. Tinha prazer em divulgar as fotografias que fazia, “assim como o enquadramento com que as construía”. Hoje, revê as centenas de fotogramas que tem “com a sensação de que registei a vida com as fotografias que tirei. Fotografar marcou toda a minha vida”. As fotografias do dia 20 de Abril têm hoje para si, e em particular por se estar a fazer o museu, uma relevância muito particular e nunca imaginou “que estas tivessem a importância que têm para os Aivados”. Lembra-se daquele dia com particular emoção. “Morava então no Barreiro e, mobilizado pelo António Ventura que me contou o que se pretendia fazer naquele dia, vim com a mulher, o filho e um amigo, no carro. Chegado aos Aivados encontrei toda aquela gente, a família, tudo em grande festa”. A alegria que inundava a aldeia transbordou quando “o senhor Torpes, motorista do tractor, começou a fazer o rego da extrema da propriedade, junto à passagem de nível. “ Primeiro do lado do Monte Novo e depois do lado do Carrascal, o rego foi demarcando o limite centenário da propriedade dos Aivados “com o pessoal todo atrás”. Cada vez que vê os slides que tirou nesse dia vêm-lhe aos olhos “lágrimas de tristeza, pelos que partiram, mas também de muita alegria, pois dou muito valor ao passado. E recordar é viver”!
Nota final: As fotografias (pág. 35 e 36) foram tiradas pelo irmão de Manuel Bento, José Frederico, e são também elas ilustrativas daquele dia 20 de Abril de 1975, nas terras dos Aivados.
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A propósito da
1 ª manif depois 25 de Abril 1974 .
do
de
em
,
Castro Verde
Miguel Rego*
Como se fora a prateleira do tempo, um Museu acolhe o espólio. O museólogo cria as condições ideais para o seu depósito nas reservas. Emprateleirado, fica de quarentena para aquela que será a ocasião tida como certa. Para o dia que será a peça do mês ou o objeto da semana. Talvez para lembrar uma data, quem sabe para ilustrar o dia evocativo de qualquer coisa promovida por importantes entidades nacionais, eventualmente com responsabilidade na área da cultura. Talvez possa ser o objeto a alargar o mote de referências bibliográficas no dia internacional de qualquer coisa. Numa determinada data, a universalidade do acontecimento, exige que seja aquela a peça, aquele o fotograma, aquela a história de vida que pode proporcionar uma boa exposição ou um colóquio. Porque não a génese do logótipo do museu, a cuja apresentação não faltará uma entidade de referência num beberete participado; um discorrer prático de memórias em que todos são entendidos. Seguramente, não faltarão bebidas e falas petiscadas entre um sucol de laranja e duas empadinhas de galinha. O importante é que na sua dimensão de peça numerada, descrita, medida e pesada, possa contribuir para que esteja salvaguardada e dignificada a memória. O museu fez a sua parte. Os técnicos, os museólogos fizeram o seu trabalho. Cumpridos todos os passos do método, será que a “memória” de um objecto, de uma colecção, estão salvaguardados estando debaixo do guarda-chuva do museólogo que fez o seu trabalho técnico e evitou o desconforto de se questionar com: “o que farei com esta peça”?
* Coordenador do Museu da Ruralidade
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Vem a talhe de foice, e a propósito conveniências ou inconveniências da museologia, ou de alguns actores da museologia, perguntar se estamos preparados para responder para que serve um museu. E sobretudo: de que se serve o museu na inevitabilidade coerente de ser invadido pelas oralidades e as representações da memória, os objectos do quotidiano passado, os símbolos
de um tempo presente ávido de se dar a conhecer utilizando a representação da memória e ser o espelho de uma sociedade e de uma comunidade... Chegados ao talhe da foice, importa reafirmar o conceito por demais conhecido de que “Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, ao servi-
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ço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberto ao público, e que adquire, conserva, estuda, comunica e expõe testemunhos materiais do homem e do seu meio ambiente, tendo em vista o estudo, a educação e a fruição”… Onde é que já lemos isto mil e uma vezes sem conta… Mas importa questionar… Cabem aqui as oralidades? O tempo do ontem imediato? Os discursos sociais do bairro, da comunidade com quem convivo na geografia dos afetos e no compromisso, com essa e outras comunidades, de que o museu tem sempre alguma coisa para dar. É por isso que, no âmbito das comemorações dos 40 anos do 25 de Abril, o Museu da Ruralidade provocou a criação de uma exposição itinerante (que teve a colaboração da União de Freguesias de Castro Verde e Casével e do Município de Castro Verde) sobre a primeira manifestação ocorrida após o 25 de Abril de 1974 em Castro Verde, chegado até nós em dois formatos: um filme super 8, já digitalizado e disponível em DVD, e um conjunto extraordinário de fotografias a preto e branco. Um olhar partilhado e cúmplice de imagens recolhidas em suportes diferentes e pessoas distintas, tão ingénuas, assim como o próprio dia, aquele 1º de maio de 1974, onde todos eram uma espécie de representação feliz da ingenuidade e da esperança. Se fosse uma estória, a sua leitura podia começar assim: Era uma vez um tempo novo que nascia sem se saber como. Mas, na rua… Um tempo de criatividade que emergia do fundo de todas memórias, transportado na infantilidade dos risos, dos olhares firmes e seguros de homens e mulheres que renasciam de, sabe-se lá que tempo, conquistando o espaço público da rua. Percorrendo as artérias onde o poder totalitário tinha os seus
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símbolos, a representação da sua superioridade social, a evocação do seu poder político e económico. A farmácia, a sociedade dos ricos, a casa da torre ou a janela art deco dos anos vinte. A torre de betão, onde subindo, podia o olhar escorrer para lá das areias, para lá da imensidão da propriedade que se perdia já no sol-posto. O que vejo ali? Um punhado incessante de homens e mulheres invadindo a mesma praça de jorna onde os homens, ainda ontem, antes do dia claro da manhã inventada, esperavam os dez tostões quase diários que afagavam a fome com o cigarro comprado avulso e o copo de vinho. Os dez tostões dados por caridade, encostados os homens às mesmas paredes onde esperavam a chamada para a monda, para a ceifa, para a apanha da azeitona. Todos esses marcos da geografia do
Um punhado incessante de homens e mulheres invadindo a mesma praça de jorna onde os homens, ainda ontem, antes do dia claro da manhã inventada, esperavam os dez tostões quase diários que afagavam a fome com o cigarro comprado avulso e o copo de vinho.
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O que vejo ali? Fotos, um filme, memórias que começo a recolher com avidez para registar… A manifestação pública é o primeiro acto que nasce de uma revolta da memória. Uma revolta em que a agitação febril leva os agentes sociais a superarem-se, como dizia Durkheim. Na rua, aqueles homens e aquelas mulheres, a maioria quase analfabetos, aprendem a gerir um silêncio de dezenas de anos na ingenuidade acordada, nas palavras de ordem que ouvem, que repetem, que reinventam assumindo uma personalidade ignorada e vilipendiada pelo tempo que, desde aquele dia, já é passado.
poder da vila térrea, branca na imaginação do regime, vestida da terra castanha da taipa, eram agora invadidos pela incomensurável alegria de um grupo que sai para a rua para se mostrar, para assumir finalmente o seu papel num palco invisível e com um guião improvisado.
Mesmo no silêncio das imagens, das imagens que o Museu inventaria, percebe-se que a descoberta das palavras é um dos mais importantes passos deste tempo que o museólogo vê ali como um tempo novo. Ou como um fantasma, pelos preconceitos que arrasta.
Era Maio. O primeiro dia depois de uma revolução que encheu de pessoas e militares e flores as ruas de Lisboa.
Percebe-se que as palavras ajudam a transformar a relação com o espaço, com a comunidade, com o tempo onde respira, e que reconhece na transformação do tecido social que está a acontecer naquele preciso momento.
Gente mais gente… risos, gestos serenos e improváveis num tempo de ruptura profunda, mas com a incógnita do tempo presente. E esse emerge sobretudo nas palavras de ordem apreendidas e repetidas até à exaustão pela rua fora, pelo tempo fora. Viva o Povo. Viva a Democracia. Abaixo o Capitalismo. Portugal libertado… Antes o Povo com casas que Casas do povo. Abaixo os informadores da Pide – Caxias. Enfim a Vitória. Jamais o fascismo voltará a reinar em Terra portuguesa. Viva Portugal. O povo de Entradas está convosco dá a sua adesão. Só o povo deve decidir o futuro de Portugal, abaixo o capitalismo.
Enche-se a rua e desaparece a arte da dissimulação, fundamental para a sobrevivência num mundo que se enganou no destino reinventado, mas também fundamental para a integração na comunidade. Uma comunidade que se redescobre na autenticidade, deixando cair a máscara da raiva, do desejo de vingança que parece invadir cada rosto, intencionalmente oculto, intencionalmente liberto, intencionalmente representado em cada gesto, em cada punho, em cada som gritado e mostrado. Estes são os quadros apreendidos nas imagens que che-
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garam ao museu. Uma espécie de nostalgia veste esta relação com os fotogramas de que pouco mais se conhece que o instante em que são recolhidos e que, apesar de bastante conhecidos na comunidade castrense, mas de certa forma ignorados, obriga no imediato a recordar e reflectir um certo sentir do compromisso social que os museus têm desde a Mesa Redonda de Santiago, no ano de 1972, e reafirmado na Declaração do Quebec, em que estes se devem assumir como veículo de transformação da sociedade através do resgate do Património e da Memória. Agentes da transformação social, resgatando as lutas populares e deixando definitivamente a ideia de instituição elitista. Foi isso que fizemos!
A exposição Em Castro Verde, os primeiros passos da Revolução de Abril tiveram, no 1º de Maio de 1974, um dos seus momentos mais marcantes. À sede do concelho confluíram então centenas de cidadãos, vindos de todas as freguesias, para participar no comício que se realizou no Largo do Padrão e, a partir daí, em cortejo, percorrer as ruas da vila saudando a revolução vitoriosa do Movimento das Forças Armadas. Desse dia inesquecível para todos aqueles que o viveram, ficaram dois conjuntos extraordinários de imagens. Um e outro de valor documental incalculável: as fotografias, da autoria de Vitória Nobre, e o filme de cerca de 15 minutos, efetuado por Francisco de Lara Colaço Alegre.
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Esses dois documentos resultaram agora numa exposição, de características itinerantes, (percorreu as principais localidades do concelho e esteve exposta na Salvada – Beja) que, para além de mostrar a festa do primeiro 1º de Maio, após o 25 de Abril de 1974, pretende igualmente homenagear os dois “repórteres” que, de forma quase inconsciente, fizeram um dos mais belos documentos da história contemporânea de Castro Verde.
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Durante a exposição, para além de se poder assistir ao filme da manifestação e ver algumas das fotografias desse 1º de Maio de 1974, é possível ouvir o som integral de uma sessão de esclarecimento realizada em Santa Bárbara de Padrões, em meados de Junho de 1974. Gravado pelo senhor António Jorge, do Monte dos Merendeiros, à altura residente em Santa Bárbara dos Padrões, podemos ouvir, entre outros, Fernando Caeiros, Francisco Galrito, Manuel Marques e Fernando Costa, figuras de referência dos primeiros passos da democracia no concelho de Castro Verde.
Os autores Francisco de Lara Colaço Alegre, nascido em Castro Verde a 30 de Abril de 1920, fez inicialmente o Curso de Regente Agrícola em Évora, tendo efetuado as respetivas provas de equivalência em Coimbra. Mais tarde, efetua o Curso de Veterinário, na Escola Médico-Veterinária de Lisboa. Desempenhou a profissão de Veterinário a título individual, nunca estando ligado contratualmente a qualquer instituição, e foi pioneiro na prática de inseminação artificial e de cesarianas, em gado bovino, experiências desenvolvidas por iniciativa e investimento próprio. Foi um dos grandes impulsionadores do Externato António Francisco Colaço. É eleito Presidente da Comissão Administrativa que assume os destinos da Câmara Municipal depois do 25 de Abril, tomando posse a 14 de Maio, em Beja. A fotografia, tal como a columbofilia, é uma das suas grandes paixões. As imagens em super 8 recolhidas por si no 1º de Maio de 1974, nas ruas de Castro Verde, são um documento de extraordinário valor histórico, indispensável para a construção da memória da comunidade, mas igualmente um documento fundamental para o conhecimento da especificidade antropológica e social das gentes do concelho. Faleceu a 25 de Março de 2005. Maria Vitória Silva Pereira Nobre da Conceição, nasceu a 30 de Dezembro de 1948, no Cercal do Alentejo. Aos 19 anos começa a trabalhar na Plurifoto (casa de fotografia), em Castro Verde, onde durante 12 anos realizou trabalhos de estúdio e reportagem. Os primeiros passos do 25 de Abril acompanha-os com a sua máquina fotográfica, criando alguns dos mais interessantes fotogramas das primeiras manifestações públicas da Revolução dos Cravos, na nossa região. As fotos da manifestação do 1º de Maio de 1974, nas ruas de Castro Verde, são bem exemplo disso. Imagens que transpiram a festa desse dia e que refletem a forma como as gentes de Castro Verde receberam a Revolução dos Cravos.
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FORJA
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Rua de Santa Madalena Entradas (Castro Verde) GPS: 37º 46.660’N / 8º 00.732W
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WC
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WC
Espaços Técnicos
1
/ Taberna De vez em quando fazemos da taberna um ponto de encontro para as vozes dos grupos corais, para as histórias de ontem e os personagens do mundo da ruralidade. Aqui fazemos, de vez em quando um petisco, e juntamos mais uma voz às vozes da terra campaniça.
2
/ Loja O espaço da loja pretende divulgar e promover produtos locais e regionais, assumindo-se como espaço de excelências daquilo que as nossas gentes fazem.
3, 4
_trilho, sala 4
5
/ Debulhadora Fixa São das mais importantes alfaias do nosso imaginário. Chegadas às eiras,ali ficavam um, dois, às vezes três meses a debulhar trigo e cevada, ininterruptamente, trazendo animação às noites da planura quente. Aqui podemos observar uma Ransones, de 1907, que foi utilizada mais de quarenta anos nos campos de Castro Verde.
O Museu da Ruralidade acolhe uma colecção de equipamentos, máquinas e objectos ligados à actividade agrícola e ao mundo rural da região de Castro Verde e, ao mesmo tempo, procura mostrar alguns aspectos da oralidade e do património imaterial das terras do Campo Branco. Aqui podemos encontrar uma debulhadora fixa e um arado lado a lado com um seleccionador de sementes ou uma enfardadeira manual. Conhecer os objectos da oficina do último abegão de Castro Verde ou ver a forja do ferreiro Matos de Entradas. Ouvir os sons da viola campaniça enquanto olhamos o fervilhar das gentes na Feira de Castro.
8 / Exposições Temporárias (Feira de Castro - 1.ª exposição)
_oficina do ferreiro
/ Exposições
Temporárias e Oficina do Abegão
Tararas, marôs, debulhadoras, picadeiras, trilhos, grades. Equipamentos e alfaias agrícolas que animaram os campos da ruralidade antes da mecanização da agricultura que aqui podem ser vistas. Ao mesmo tempo, muitos dos objectos do último abegão de Castro Verde, estão aqui patentes ao público.
7 _debulhadora fixa
6
/ Oficina do Ferreiro A família Matos foi a ultima família que fez funcionar uma forja em Entradas. Corria o ano de 2009 e preparava-se a montagem de fole, engenho e bigorna para serem reinstalados no Museu da Ruralidade.
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/ Miniaturas Manuel da Conceição Silva é o miniaturista de Entradas que nos mostra os instrumentos e alfaias do mundo rural que habitaram a sua vida de camponês há mais de trinta anos. Cristalizados na memória, os seus dedos percorrem madeira, cortiça e lata para afeiçoar aos nossos sentidos objectos que são apenas memória.
Elementos maiores da cultura imaterial da região do Campo Branco, a Viola Campaniça, enquanto instrumento musical de expressão regional, e a Feira de Castro, enquanto ponto de encontro anual das gentes campaniças, têm neste espaço a ambiência necessária para que o visitante encontre os momentos de diálogo para melhor conhecer o instrumento e o seu palco maior.
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/ Sala de Projecção Num modo contínuo estão em projecção diversos documentários, de curta duração, sobre
as mais diversas actividades agrícolas e vivências do mundo rural. É permitido utilizar este espaço para sessões de promoção e divulgação da região, assim como para leccionar.
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/ Centro de Documentação
Aqui estão disponíveis vários documentos em formato digital sobre as mais diversas temáticas do património imaterial da região do Campo Branco. Ao mesmo tempo, estão acessíveis diversos documentos sobre algumas entidades ligadas ao mundo rural na nossa região, em particular dos anos cinquenta e sessenta do século passado.
Os
logos do Museu da Ruralidade — Imagens com memória
A construção das imagens de representação dos vários núcleos do Museu da Ruralidade têm sido processos de criação que procuram refletir, na essência, a especificidade de cada um dos núcleos museológicos. Dessa forma, pretende-se dar uma
O logotipo do Núcleo da Oralidade, objectivando uma intervenção mais lata e mais ampla, mas menos definida tematicamente, porque pretende intervir mais ao nível do património imaterial, procura valorizar as oralidades e os saber-fazer representando essas formas de expressão na boca, na mão e no olho, sem deixar de ter como referência o território e a natureza da sua paisagem, aqui representados pela árvore. Criado por António Duro, este logo é também, falando de forma simplista, a imagem genérica do Museu da Ruralidade.
imagem singular a cada um deles, sem criar qualquer tipo de hierarquização, dado que estamos perante um projecto de museu de território, mas onde cada espaço temático de intervenção tem o seu papel muito bem definido.
Para o Núcleo de Almeirim - A Minha Escola, a proposta materializa-se pela valorização do perfil estilizado, do edifício da antiga escola primária de Almeirim como imagem representativa do núcleo que vai albergar. Para a autora, Helena Passos, sendo o referido edifício, erigido no contexto do último Plano dos Centenários, uma referência imagética dos espaços educativos do Estado Novo, impunha-se que este logotipo fizesse essa ponte referencial, até porque o Núcleo A Minha Escola pretende albergar e ser depositário da memória da comunidade escolar de Castro Verde e, ao mesmo tempo, espaço de reflexão em torno destas temáticas.
O Núcleo dos Aivados – Aldeia Comunitária, assume a imagem criada para o totem identificador instalado na entrada da aldeia dos Aivados, freguesia de Castro Verde, afirmando (e informando sobre) o cariz comunitário da comunidade. Também criado por Helena Passos, a proposta concretiza-se num objeto composto por quatro módulos distintos que se justapõem por forma a erigir um propósito, evocando assim o espírito comunitário do povoado que se pretende assinalar e homenagear. O logo é constituído por quatro cubos sobrepostos e ritmado pelas diferentes orientações de implantação dos poliedros, bem como, pela policromia que estes apresentam. Os pigmentos utilizados, o amarelo ocre e o vermelho óxido de ferro, são alguns dos mais empregues nos apontamentos de cor da arquitetura tradicional/vernacular da região.
museu da ruralidade / cadernos do museu — 47
Os números do Museu da Ruralidade em 2014 O Museu da Ruralidade recebeu ao longo do ano de 2014, 5623 visitantes e utilizadores, sendo que 4471 no Núcleo da Oralidade, em Entradas, e 1152 no Núcleo de Almeirim - A Minha Escola. Dos cerca de 4500 visitantes que visitaram ou participaram nas iniciativas promovidas pelo Museu da Ruralidade, em Entradas, números que correspondem a mais 35 visitantes que no ano transacto, 47% eram oriundos do concelho, 17% do resto do país, em particular do Algarve, 16% da região de Lisboa, 14% da região de Beja, 4% estrangeiros e 2% emigrantes, em particular da Suiça. Dos 177 visitantes estrangeiros, 35 eram de Espanha, 34 do Reino Unido e 30 de França. Março foi o mês com mais visitantes, coincidindo com a realização do Entrudanças, e o mês com menos visitantes foi o de Janeiro. No que concerne ao Núcleo de Almeirim - A Minha Escola, cuja filosofia de funcionamento assenta muito na interacção com a comunidade escolar, teve o seu ponto alto de visitantes no mês de Novembro, com 217 visitantes, quando o Gabinete de Desporto, do Município de Castro Verde, organizou naquele espaço algumas oficinas do Projecto Actividade Com Vida, coincidindo com visitas de algumas turnas do Agrupamento de Escolas de Castro Verde. As iniciativas realizadas ao longo do ano de 2014 procuraram ser o mais diversas possível, no que diz respeito às suas temáticas, procurando chegar a todos os públicos e a todas as faixas etárias.
48 — cadernos do museu / museu da ruralidade
Das iniciativas realizadas no Núcleo da Oralidade, queremos destacar a realização da Exposição “A propósito de Carlos Lobo, objectos de uma profissão desaparecida – O Caldeireiro”; Exposição “Aves de Castro Verde”, fotografias de Dinis Cortes; Organização de 2 oficinas de construção de Bonecos de Estremoz; Realização de quatro “Tertúlia a 13”; Organização de diversas actividades de atl’s com crianças do concelho; Organização de acções do Grupo da Meia em Entradas, S. Marcos da Atabueira, Almeirim e Casével; Colaboração na Organização da Festa de Fim de Ano dos Alunos da Escola do 1º Ciclo de Entradas; organização do programa de animação do III aniversário do Museu. O Museu colaborou ainda no Festival Entrudanças, evento em que apresentou a peça de arte pública, “Há cravos sem ser em Abril”, executada no seio do Grupo da Meia, grupo informal de mulheres sedeada no Museu da Ruralidade, e que foi o contributo “artístico” no âmbito das comemorações dos 40 anos do 25 de Abril. Na multidisciplinar intervenção do Museu importa ainda destacar a concepção da Exposição Itinerante “Castro Verde recebe Abril – o 1º de Maio de 1974” e a organização do I Encontro de Museus do Distrito de Beja, realizado em Castro Verde. As actividades no Núcleo de Almeirim – A minha Escola, tiveram uma dimensão menor, procurando chegar, sobretudo, à comunidade escolar, promovendo visitas guiadas e albergando aulas ao vivo, fruto da intervenção do Agrupamento de Escolas e, em particular, através do envolvimento do Professor Rui Santana e da Professora Lucinda Simões.