n.º2 / Julho de 2015 / _editorial
A saída do número dois dos Cadernos do Museu no 4º aniversário do Núcleo da Oralidade do Museu da Ruralidade, é mais um passo de referência neste projecto que se quer longo, diverso e abrangente. Longo na temporalidade, permitindo criar, na nossa região, uma lógica de dinâmicas em torno da valorização e dignificação do património cultural, ganhando e procurando sensibilizar públicos diversos e muito distintos através da museologia, enquanto espaço de formação e comunicação intergeracional; diverso, nas temáticas e nos métodos de intervenção, porque o projecto do Museu da Ruralidade não se quer resumido à construção de exposições e discursos “escolásticos”, mas abrindo a comunicação com o exterior a outras ambiências e espaços, a materiais diversos no mostrar e a diferentes discursos expositivos e discursivos, não se limitando às paredes do Museu. Ao mesmo tempo, não resumindo a sua intervenção ao objecto, ao documento físico ou à natureza das bases e materiais utilizados na exposição. O objecto final da intervenção do Museu é o Homem e o fruto da sua intervenção;
abrangente, porque obrigatoriamente se quer que o Museu seja entendido como um espaço de cultura muito diversa, não apenas nos temas, mas também na discussão que provoca, na reflexão que incita e no papel pedagógico e formativo que assume. Perante estas premissas, o Museu da Ruralidade vem criando diversos núcleos museográficos em locais distintos do concelho, valorizando aquilo que, por um lado, é representativo cultural ou social da especificidade da localidade onde é aberto esse núcleo, como é o caso do espaço criado na “Aldeia comunitária” dos Aivados, ou por outro lado, respondendo a desafios lançados pela comunidade, como foi o caso d’”A minha escola”, em Almeirim. O desafio que a criação dos “Cadernos do Museu”, nos trouxe, ajuda-nos a mostrar a dimensão do nosso trabalho e, acima de tudo, a partilhar para reflectir em torno das opções assumidas pelo Museu da Ruralidade. Mas se essa é uma condição sine qua nom para a existência dos Cadernos, não é menos importante a certeza de que temos em que este é um espaço onde cabe outra reflexão, outra visão, outra atitude no fazer museologia. Talvez por isso, com o artigo de Adelino Coelho, a museologia enquanto dimensão discursiva, não aparece, dando lugar a outra dimensão tão presente na actividade do Museu da Ruralidade: o registo das vivências das comunidades para a construção das histórias de vida desta região. E tendo nós no período do PREC, um momento único da construção da nossa especificidade local, e tendo em conta que as oralidades e as vivências individuais são o mais importante documento para a construção dessa memória, dada a ausência de investigação e de discussão em torno de um tema que, para muitos ainda é tabu, os Cadernos do Museu assumem esta responsabilidade de provocar a memória e as vivências para dignificar um tempo tão próximo, mas que é, há muito, passado, e tão cheio de falsas interpretações.
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Liliana Isabel Gonçalves Póvoas César Lino Lopes
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Introdução Passados 4 600 milhões de anos de existência do planeta que habitamos e cerca de 4 milhões de anos de humanidade, qual a necessidade de construirmos hoje uma memória da Terra? Propomo-nos contribuir para o debate abordando esta questão em torno de um processo museológico específico: o da preservação e valorização de locais interessantes para o conhecimento da evolução do território português no decurso dos tempos geológicos. O facto de o Museu Nacional de História Natural (MNHN) e, em particular, a sua secção de Mineralogia e Geologia, onde trabalhamos, ter vindo a propor e a dinamizar, sempre em colaboração com as autarquias e, por vezes, com associações locais, processos conducentes à conservação e valorização de sítios de interesse geológico, significativos quer pelo seu carácter pedagógico, quer pelo seu interesse científico, permitiu-nos reconhecer neste processo uma base adequada a esta reflexão. Pelas suas características específicas e pela vocação que terá para estabelecer comunicação com públicos diferenciados, estamos perante um processo que poderá não ficar por uma mera actividade de preservação e utilização do património geológico numa perspectiva funcionalista, mas, pelo contrário, actuar ao nível das mentalidades e das ideologias.
Assumindo nós a Museologia como o estudo de uma relação específica entre o homem e a realidade mediada pelos bens culturais (entre os quais consideramos incluído o património, designado natural), a reflexão a que nos propomos passa por confrontar o processo em questão nos seus enunciados, premissas e perspectivas próprias, com os conceitos hoje em debate como elementos estruturantes de uma teoria museológica em construção. Até porque, enquadrando-se este projecto de um EXOMUSEU (Galopim de Carvalho et al, no prelo) no âmbito de novas tipologias de museus hoje em surgimento, e a que a museologia “normal” (sensu Kuhn,1972 ) já não responde cabalmente (Chagas, 1996), cremos que desse confronto poderá resultar um aprofundamento da consciência do alcance do processo que o MNHN tem em mãos e uma maior clareza em relação ao significado dos conceitos envolvidos. Por outro lado, uma vez que os objectos a musealizar são da Natureza e estão in-situ, o espaço/cenário onde acontece a relação homem/sujeito com o objecto/bem cultural é o território, o que nos remete para a organização do espaço e, eventualmente, nos sugere uma articulação com as necessidades de desenvolvimento das populações /comunidades. Todo este processo vai levantando problemas vários que lhe são inerentes, acrescidos dos que resultam das características próprias da sociedade portuguesa onde decorre. Donde a necessidade de políticas de preservação particulares (a preservação pode passar inclusivamente por luta política) para uma musealização na perspectiva do desenvolvimento.
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Musealizar sítios de interesse geológico, porquê?...
curando, dessa forma esbater os equívocos que resultam da interpretação do representante por dois sistemas de representação diferentes: o de quem concebeu e o do outro que observa.
As colecções de História Natural, nas quais se integram as de Geologia, são hoje consideradas verdadeiros bancos de dados à escala planetária e constituem recursos fundamentais para a acumulação do saber científico sobre a diversidade da biosfera e litosfera. Por vezes tais colecções encerram, mesmo, os únicos e últimos testemunhos dessa diversidade cada vez mais ameaçada pelo modelo de crescimento da sociedade industrial dos nossos dias.
A musealização de ocorrências geológicas mais significativas e exemplificativas surge, então, como o complemento necessário aos Museus de História Natural para o exercício da sua função por as transformar em locais onde os fenómenos naturais, uma vez apresentados de forma clara e atraente, são mais facilmente (ou naturalmente) inteligíveis por públicos mais vastos.
Mas, ainda que as peças, os elementos desses bancos de dados que são as colecções, sejam contextualizadas ou integradas em exposições explicativas dos processos naturais, não poderemos prescindir de musealizações in-situ. Além da dificuldade ou mesmo impossibilidade física de, por exemplo, um grande trilho de pegadas de dinossáurio no fundo de uma pedreira ou uma mina abandonada serem retirados do meio em que se inserem, ex-situ perderiam parte do significado que lhes advém da leitura das múltiplas inter-relações existentes só realizável no seu contexto próprio. Articulando este último aspecto com o princípio de que em Museologia se trabalha com objectos representantes de ideias, de conceitos ou de processos, e que a produção de um determinado objecto ou a escolha de uma peça específica (que comunique a ideia, o conceito ou ilustre o processo) está necessariamente de acordo com o sistema de representações de quem produz ou decide, poderemos então considerar que com este processo de musealizações de sítios estamos, no fundo, a tender para substituir o representante pelo todo, pro-
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Mas este processo tem outro mérito: o de garantir a salvaguarda de sítios de interesse geológico que constituem recursos culturais não renováveis (Muñoz, 1988): recursos culturais, pois lendo neles como quem lê num livro, sempre actualizado, a história da Terra, se pode aprender, de forma agradável e significativa, a conhecer o planeta e as leis que o regem; não renováveis, porque os processos naturais que os geraram ao longo de milhares ou milhões e anos são irrepetíveis na sua singularidade. A sua destruição implica, portanto, perdas de informação irreparáveis. Assim, uma vez definida a carga valorativa destes sítios e depois de salvos da destruição ou degradação, passam a integrar o património da humanidade (Chagas, 1993). De facto o património geológico constitui a nossa herança comum mais remota. Por isso o Museu Nacional de História Natural (Secção de Mineralogia e Geologia) tem vindo a conceber um grande projecto à escala nacional de musealização in-situ de ocorrências passíveis de serem consideradas monumentos naturais (no caso geomonumentos) ao abrigo da legislação em vigor e que designou por EXOMUSEU (Galopim de Carvalho, 1989).
Minério de manganés (pirolousite) da mina de Ferragudo, Castro Verde. Complexo Vulcano-Sedimentar, idade Viseano Foto: João Xavier Matos, Laboratório Nacional de Energia e Geologia
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......e para quê? “ Os patrimónios - desde que assumidos como tal têm uma função social interessante: fazer existir uma entidade colectiva, sempre abstracta, tornando-a visível metaforicamente por exposição pública dos bens que possuiria em comum” (Micoud, 1994). No caso do processo “Exomuseu” julgamos que ele pode contribuir para que o cidadão, ao reconhecer um determinado elemento geológico como património, esteja a aprofundar a consciência da nossa identidade colectiva de filhos do Universo, feitos dos mesmos elementos químicos que as estrelas; esteja a tomar consciência do lugar do Homem na Natureza: ser vivo habitante do planeta Terra, produto e agente de uma cadeia longa e complexa de inter-relações entre litosfera, hidrosfera, atmosfera e biosfera, (Galopim de Carvalho, 1991) cadeia que teve início há 4600 milhões de anos e da qual só temos conhecimento directo de uma ínfima parte: o momento presente. “Porque já não temos memória, precisamos criar lugares de memória” (Nora, 1993). A partir do património geológico o que se pretende não é avivar ou transmitir a memória de vivências pois, na esmagadora maioria dos casos que esse património representa, não as tivemos (como espécie, claro!), mas sim criar ou recriar uma “memória” do que terá sido a Terra antes de nós, dos fenómenos que sucessivamente se produziram e foram possibilitando a Vida até às formas que hoje conhecemos. Tudo isto para adquirirmos a tal consciência da nossa identidade de filhos do Universo e, na prática, conseguirmos um viver mais harmónico com a Natureza, decorrente de um mais profundo conhecimento do seu “pulsar”. Enfim, procuramos promover uma intervenção ambiental e cívica recorrendo ao poder da memória.
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Assim, os sítios geológicos seleccionados, apesar de, como diz Nora (1993), se caracterizarem por à partida serem dotados de “ausência absoluta de vontade de memória”, porque necessitamos de compreender as nossa origens e nossa identidade como espécie, acabam por ser investidos duma “memória” que, existindo já recriada na mente dos que trabalham nesta área da ciência, se deseja cada vez mais partilhada, mais colectiva: a “memória da Terra” cadinho onde se gerou a Vida e se tem verificado a mudança constante a que esteve e está sujeita. Porque a face do planeta e a Vida que hoje conhecemos são o resultado duma longa evolução em que interagiram um sem número de factores. Porque essa evolução vai continuar. Porque nós, e o Ambiente em que vivemos, não somos mais do que uma fase efémera de transição entre passado e futuro da história da Terra e da Vida que ela transporta (Carta de Digne, 1991). E esta memória continua a ser a projecção de um tempo passado num outro tempo que é o presente. Só que a imensa maioria do tempo passado não foi vivenciado pelo género humano. Foi apenas reconstituído ou recriado. Mas alguém duvida de que os Dinossáurios fazem parte da nossa memória colectiva? E este apelo à criação de uma memória é, ainda, feito, como em qualquer outra construção museal a partir de restos (Nora, 1993) dos fenómenos havidos porque apenas uma parte, mesmo que significativa, dos processos que se deram no decurso dos milhões de anos ficaram registados nas rochas que chegaram até nós; porque nós ainda não saberemos retirar toda a informação que elas contêm, e porque os elementos com que vamos construindo a “memória da Terra” são os que o conhecimento da nossa época permite interpretar e acha significativos. E estes serão necessariamente diferentes dos que no futuro a natural evolução das
ciências, do desenvolvimento experimental e, até, das ideologias, permitirão obter. Donde a escolha de uns locais e não de outros, a relevância que se dá a uns aspectos e não a outros, a informação que se consegue extrair e divulgar e o modo de o fazer, a concepção estética e arquitectónica dos projectos de valorização. E tudo contribui para apor ao objecto geológico o selo, a assinatura duma pertença cultural e de uma época, de uma perspectiva social e, talvez também, de uma determinada “memória” de vivenciar a Natureza. Quem nestes processos poderá distinguir entre património natural e cultural? Embora haja uma selecção dos elementos a tratar, anterior à nossa intervenção, que é da autoria da Natureza e não do Homem, estes processos não são diferentes dos vividos noutras áreas do conhecimento em que se lida com testemunhos de vivências da humanidade, pois segundo Le Goff (1984) “a intervenção do historiador que escolhe o documento extraindo-o do conjunto dos dados do passado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhe um valor de testemunho que, pelo menos em parte, depende da sua própria posição na sociedade da sua época e da sua organização mental, insere-se numa situação inicial que é ainda menos “neutra” do que a sua intervenção. O documento não é inócuo (....) O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro - voluntária ou involuntariamente - determinada imagem de si próprias”. Portanto, como acontece com qualquer processo museológico, também os sítios geológicos musealizados existem a partir de uma política selectiva e voluntária. Escolhemos os que podem simbolizar fenómenos mais amplos, nos parecem mais interessantes, mais
didácticos, mais promissores no futuro em termos da informação a retirar. E neles o testemunho de caracter ideológico também se manifesta por ausências e lacunas. Ainda neste caso continuamos a programar o esquecimento, a programar a deterioração. Com tudo isto queremos dizer que consideramos os sítios geológicos musealizados incluídos entre os lugares de memória, lugares de poder e lugares de esquecimento. E partilhamos a opinião que podem ser ainda lugares de contemplação e constituírem assim, espaços de reencontro connosco próprios, espaços de resistência à voragem da vida actual. A comunicação a partir deste tipo de património pode ter particular importância para nos remeter à nossa verdadeira dimensão, para nos situar na nossa relação com o Universo (em parceria com o resto da humanidade), por se estabelecer a partir de lugares privilegiados de articulação com o Tempo através do tempo de existência deste planeta, do tempo do Universo. “Sem dúvida, para que haja um sentimento de passado é necessário que ocorra uma brecha entre o presente e o passado, que apareça um “antes” e um “depois”. Mas trata-se menos de uma separação vivida no campo da diferença radical do que um intervalo vivido no modo da filiação a ser restabelecida. Os dois grandes temas da inteligibilidade da história, ao menos a partir dos tempos modernos, progresso e decadência, ambos exprimiam bem esse culto da continuidade, a certeza de saber a quem e ao que devíamos o que somos” (Nora, 1993). O património geológico “fala-nos” de um tempo “antes de nós”, tal como somos hoje, ou mesmo antes do género humano. De um tempo de um planeta diferente onde “progresso e decadência” são sedimentação e erosão, ou evolução e extinção. Através
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Molde externo de fóssil de Posidonia becheri (bivalve marinho) em xistos da Formação de Mértola, idade Viseano superior (cerca de 333 a 342 milhões de anos) Foto: João Xavier Matos, Laboratório Nacional de Energia e Geologia
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destes processos referenciados ao tempo e referências dele, iremos descobrindo o fio condutor da história da Terra, e da Vida que ela abriga, onde nos filiamos. Mesmo que o futuro da humanidade não possa ser visível (Nora, 1993) pelo menos os processos em que estamos envolvidos e as suas possíveis consequências não nos serão tão estranhos. De facto ao erigirmos como património um determinado elemento geológico não se estará a conservar só “para o passado”, mas igualmente para o futuro. A geohistória e a evolução da Vida, em particular na sua relação com os sucessivos paleoclimas e paleogeografias, constituem um manancial de informações fundamentais para a interpretação do presente, mas também para a elaboração de cenários de previsão de mudanças globais e suas consequências. E contribui ainda para a aquisição da consciência de que a Terra, como sistema autoregulador que é, pode responder às agressões desta civilização evoluindo para um ambiente desfavorável ao Homem (Póvoas et al, 1995). Esta componente do processo, assim como outras de carácter dominantemente pedagógico já atrás referidas, dão corpo ao aspecto funcional que, em coexistência com os aspectos material e simbólico (Nora, 1993), decorrentes de questões antes abordadas confirmam os sítios de interesse geológico como lugares de memória. Musealizar in-situ é ainda um modo de mais directamente ir ao encontro dos públicos, facilitando o acesso à problemática inerente à compreensão do planeta em que vivem, removendo a barreira que a entrada dum museu ainda constitui para sectores alargados da população. E talvez, também, o facto de estarmos colocados fora do contexto tradicional da sala do museu seja facilitador da descoberta de soluções museográfi-
cas menos formais, mais criativas, com maior capacidade de comunicação e propiciadoras de várias leituras ou várias abordagens.
Museus de sítio.... Uma vez erigidos em património estes sítios geológicos vão ser objecto das três funções fundamentais do Museu: preservar, investigar, comunicar. Já a sua salvaguarda constitui, geralmente, o aspecto decisivo da acção de preservar e exige muitas vezes políticas de preservação particulares. Pelo menos no caso da sociedade portuguesa, antes ainda de serem aplicadas aos objectos as tecnologias específicas para a sua preservação, ou antes de se construir as necessárias estruturas para os proteger da acção destruidora dos agentes atmosféricos (e antrópicos) foi, por vezes, necessário desenvolver luta política intensa com o desencadear de movimentos de opinião que, por exemplo, no caso da Pista de Pegadas de Dinossáurios de Carenque, passaram por petições à Assembleia da República e manifestações de grupos escolares no local a salvar das retroescavadoras. Estes sítios, na maior parte dos casos, já tinham sido alvo de trabalhos vários de investigação científica, aliás no geral responsáveis pela atribuição de significado particular justificativo da importância da sua preservação e do seu valor didáctico. E continuarão a ser alvo de novas investigações sempre que a evolução das ciências que se cruzam para o seu estudo conheçam mudanças que permitam fazer novas leituras e retirar outras informações. Também nessas potencialidades futuras reside o seu interesse. Ao musealizar-se cada um destes sítios está-se pre-
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cisamente a tentar descodificar a informação que podemos retirar do objecto. A tentar, através dele, estabelecer a relação entre nós e o outro. A tentar, com ele, comunicar. Os sítios de interesse geológico, uma vez alvo destes processos e através deles transformados em “geomonumentos”, constituirão outros tantos Museus.
.... Ou um novo museu para uma nova colecção? Mas também poderemos encarar esses sítios como um conjunto. Uma colecção. Maranhites mosesii (Sommer) Brito, 1967; Afloramento Ribeira de Porteiros, Amostra X3, 1, 1345-15; Microfoto: Zélia Pereira, Laboratório Nacional de Energia e Geologia
Apesar de não estarem retirados do seu contexto original, de não estarem guardados nas reservas dum museu, não deixam de constituir uma espécie de colecção. Eles terão que ser preservados, conservados, inventariados, objecto de estudos vários. Eles poderão constituir uma colecção de sítios que permitam ler a evolução geológica do território de um país. A “reserva” será esse próprio território e o Museu englobará a reserva e a base de dados que centralize a informação sobre todos eles, assim como sobre as relações que entre eles se possam estabelecer. “O Museu já não é o que era” diz Van Mensch. Neste caso pode não ter portas, nem paredes, a colecção não estar concentrada dentro de um edifício, os objectos não serem arrancados ao lugar a que pertencem. Mas o essencial da função do Museu subsiste.
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Associação de acritarcas e algas prasinófitas de sedimentos intersetados em sondagens da região de Rosário. Microfoto: Zélia Pereira, Laboratório Nacional de Energia e Geologia LEGENDA 1. Gorgonisphaeridium elongatum; Sondagem CP2, amostra 18, 363,20m, lâmina 2, 1322-105. / 2. Gorgonisphaeridium sp.; Sondagem CP2, amostra 18, 363,20m, lâmina 2, 1345-89. / 3. Gorgonisphaeridium plerispinosum Wicander, 1974; Sondagem CP2, amostra 17, 359,0m, lâmina 1, 1520-150. / 4. Gorgonisphaeridium plerispinosum Wicander, 1974; Sondagem NC16, amostra 9, 173,40m, lâmina 1, 1358-140. / 5. Gorgonisphaeridium plerispinosum Wicander, 1974; Sondagem CP2, amostra 17, 359,0m, lâmina 1, 1098-125. / 6. Umbellasphaeridium saharicum Jardiné, Combaz, Magloire, Peninguel, Vachey, 1972; sondagem A6-1, amostra 26,25m, lâmina 2, 1165205. / 7. Crassiangulina sp.; Sondagem CP2, amostra 17, 359,0m, lâmina 1, 1126-138. / 8. Cymatiosphaera sp.; Sondagem CP2, amostra 18, 363,20m, lâmina 1, 1075-55. / 9. Navifusa bacilla (Deunff) Playford, 1977; Sondagem CP2, amostra 18, 363,20m, lâmina 1, 1035-200. / 10. Baltisphaeridium sp., Sondagem CP2, amostra 18, 363,20m, lâmina 1, 1045-107. / 11. Cymatiosphaera perimembrana Staplin, 1961; Sondagem CP2, amostra 18, 363,20m, lâmina 1, 1160-142. / 12. Cymatiosphaera sp.; Sondagem CP2, amostra 18, 363,20m, lâmina 2, 1270-130. / 13. Maranhites perplexus Wicander, Playford, 1985; Sondagem NC16, amostra 2, 81,05m, lâmina 1, 1240-163.
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Cenários de intervenção Vivemos hoje um tempo de rápidas transformações. Um pouco por todo o lado sentimos que se alteram as vivências, se alteram as relações sociais, se alteram as paisagens e, por vezes, porque alheios a toda esta dinâmica, sentimo-nos estranhos (estrangeiros?) aos espaços em que habitualmente vivemos. O crescente desenvolvimento económico está a produzir novos ricos e novos pobres, além de que tem criado novas situações de ruptura do Industrial e do Urbano nas suas interdependências com o Ambiente e o Social, evidenciando, na grande maioria das vezes, a irracionalidade da exploração dos recursos naturais. A natureza e a dimensão dos problemas criados geram incertezas no futuro e colocam na ordem do dia a discussão sobre qual o modelo de desenvolvimento que queremos construir. Pelas implicações que tem na construção do presente e do futuro, este debate acaba por dizer respeito a todos os cidadãos e, por isso mesmo, não é um exclusivo dos poderes instituídos ainda que legitimados pelo voto popular. A articulação Património Natural/Desenvolvimento perspectiva a via para um modelo de Desenvolvimento apoiado nos valores geoculturais intrínsecos aos espaços naturais e construídos - parte e factor integrante da nossa identidade - e, ainda, nas memórias individuais ou colectivas, sejam elas veiculadas e descodificadas pelas próprias comunidades ou pelos manuais da Ciência. Este caminho do Desenvolvimento não será a perspectiva das classes dominantes que vão traçando as “auto-estradas do seu Progresso”. No entanto para as populações será uma necessidade e para os desenraiza-
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dos poderá ser uma bandeira. “Abrindo-se as avenidas da discussão” como propunha António Sérgio, e assumindo nós este propósito como um objectivo dos Museus - já que estes são guardiões de memórias, saberes e identidades que se democratizados constituirão um instrumento de poder ou contrapoder em “boas mãos” - poderemos entender melhor os mecanismos de produção deste presente/futuro caracterizado pela mutação constante, e intervir nele. Trata-se efectivamente de uma questão de Poder e da definição e uso que é feito do Património. É que, há “poderes” que sempre pretendem justificar o injustificável e, no exercício da fidelidade aos interesses que lhes estão subjacentes, tentam perverter o juízo sobre a qualidade do nosso presente mobilizando para isso a visão ou o culto de um passado mítico que se projecta também em futuro. Assim, e na perspectiva de articulação do Património Natural com Desenvolvimento, a História a ser contada não deverá ser uma História Natural onde o Homem é também protagonista? A história da Terra e da Vida, que os Museus de História Natural, como outras instituições, se empenham em investigar e divulgar, não nos fala de qualquer paraíso perdido que o Homem tenha conhecido. Fala-nos sim, como já vimos, de uma longa evolução, resultado de inúmeras e sucessivas adaptações, respostas a diferentes situações; fala-nos de equilíbrios e desequilíbrios, de extinções de espécies isoladas ou em massa e do desenvolvimento de novas formas vivas mais bem adaptadas aos novos meios. No quadro da relação Património Natural / Desenvolvimento, os conceitos de progresso e de decadência, já antes referidos, devem ser aferidos não apenas pelo primado da avaliação do sistema económico e do regime político, mas também, e sobretudo, pela
caracterização e definição do que são recursos naturais, do seu modo de apropriação e gestão tendo em conta as suas implicações ambientais e o reconhecimento de que a Terra é um sistema que se autoregula, com regras e mecanismos mais ou menos conhecidos que devem ser respeitados sob pena de um desastre a prazo para a nossa espécie. O bem estar social, enquanto valor e factor do desenvolvimento, implica a utilização de recursos naturais e o desenvolvimento de processos ambientais. A Terra e a sua vida biológica, o ar, a água, os minerais, enfim os recursos energéticos a que nos temos vindo a referir, estão nas paisagens que nos envolvem. As paisagens do presente contêm as marcas de processos ocorridos no passado geológico, sendo elas próprias protagonistas das inter-relações do presente. Não nos cabe aqui fazer a caracterização e o levantamento dos recursos naturais. Eles devem ser feitos no quadro de um processo de investigação científica direccionada face aos objectivos de desenvolvimento. Cabe-nos sim, propor a utilização de uma maior diversidade de recursos e apontar a necessidade de preservação in-situ dos testemunhos patrimoniais naturais, também eles recursos enquanto referência para a compreensão científica do que é a Natureza e do modo como funciona. É uma outra maneira de olhar e defender o Património natural. Guardar meia dúzia de seixos rolados de um terraço do rio Tejo, umas tantas amostras de água ou de aluviões não poluídos num qualquer arquivo escuro de um Museu como legado aos vindouros, poderá ser sempre uma desculpabilização do presente face à contaminação do Ambiente, à degradação da qualidade de vida e a um modelo civilizacional de futuro duvidoso.
Esta é, sem dúvida, uma das razões para a importância que hoje adquiriu a conservação do Património Natural. E se é crescente a sensibilização para a conservação do património faunístico e florístico, é preciso ter em conta que o património geológico não é menos importante, uma vez que é nas paisagens, nas rochas, nos fósseis que está escrita a história mais antiga do nosso planeta, que estão registadas as convulsões, as mudanças e os períodos de estabilidade por que a Terra e a vida nela contida passaram. Este registo constitui pois, uma imensa reserva de ensinamentos sobre o modo como se processaram e processam os dinamismos do planeta. Mas o Homem está a introduzir, há milhares de anos e, nas últimas décadas a ritmo exponencial preocupante, alterações neste grande sistema que é a Terra. E se até há poucos séculos o comportamento da humanidade na sua relação com o natural se baseava em intervenções relativamente superficiais, à medida que o modelo urbano-industrial se foi tornando dominante, a intervenção sobre tal sistema passou a ser profunda e agressiva, numa óptica de domínio e alheamento face às regras da Natureza. Na vertigem do aumento do lucro imediato e do consumo desenfreado de recursos que pensa serem infinitos, a humanidade enredada nas teias deste modelo de civilização, esquece-se que pode ser ela própria vítima do crescimento exponencial da poluição e da agressão ao planeta. O conhecimento das leis da Natureza, a sensibilização do cidadão para o que é e como funciona a Terra, também são necessidades prementes se quiser favorecer uma maior participação social no debate e na tomada de decisões relativas a problemas vitais, como sejam o da gestão e exploração dos recursos minerais e energéticos ou o de saber encontrar o modelo de desenvolvimento capaz de responder aos desafios da actualidade.
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Decorrente do que foi dito, os sítios geológicos, longe de representarem um estorvo aos naturais anseios do progresso social das populações, podem e devem ser encarados como um factor de desenvolvimento. Nos dias de hoje, em que se procura, ou se deveria procurar, fixar e mobilizar as populações rurais criando experiências alternativas, projectos locais de natureza social e económica, a musealização de um sítio geológico, sobretudo se realizado com o envolvimento das populações, pode ser um pólo num processo global de dinamização local ou regional. Além da sua importância cultural e científica, poderá também trazer benefícios para a economia local, como um factor de atracção turística, pelo emprego de mão-de-obra, e como contribuição para uma perspectiva de desenvolvimento sustentado valorizador das características da região.
Conclusão O conhecimento científico sobre a História da Terra - que é a casa comum da humanidade - constitui um contributo para a identificação do Homem com o seu Meio e a sua condição de filho do Universo. A preservação e valorização in-situ dos documentos que testemunham e simbolizam essa História, inscreve-se também num processo de produção da paisagem - que integra o cultural e o natural nos seus múltiplos aspectos de produção material e imaterial - abrindo novas pistas para o aprofundamento das relações das populações com o seu território e as suas origens mais remotas, tanto que até podem ser anteriores à individualização do grupo biológico a que pertencemos. A emergência dos novos valores sociais (qualidade de vida, ambiente, paisagem, democracia e participação cívica), ditados pelos “becos-sem-saída” das sociedades urbanas e industriais, e a contestação a este modelo civilizacional da produção em massa, da especulação e do lucro, podem ser a oportunidade do futuro às regiões ainda não integradas nesta lógica e em situação de exclusão social e económica. A viabilização desta oportunidade depende evidentemente da importação de energias exteriores, sejam elas capital financeiro ou informação, em função de uma nova dinamização cultural e económica percursora de novos caminhos. É neste quadro de investimento que posicionamos as nossas propostas de novas expressões da museologia.
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Bibliografia
Os autores
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Liliana Póvoas é licenciada em Geologia pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e pós-graduada em Museologia pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia. No Museu Nacional de História Natural tem desenvolvido investigação científica em Paleontologia dos Roedores do Quaternário e é curadora de colecções geológicas. É autora de artigos e publicações sobre Paleontologia de Roedores, Museologia e divulgação da Geologia. É membro dos corpos sociais do MINOM – Movimento Internacional para uma Nova Museologia. César Lopes é licenciado em Geografia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e pós-graduado em Museologia pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia. No quadro do Museu Nacional de História Natural desenvolveu actividades de gestão cultural, programação museológica, produção e avaliação de exposições. Interessa-se por História das Ciências. É autor de artigos e publicações no âmbito da Museologia. É membro do MINOM – Movimento Internacional para uma Nova Museologia.
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Rede Museus Distrito Beja Breve balanço perspetivas futuras de
do
de
e
Lígia Rafael
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A maioria dos municípios do Distrito de Beja possui unidades museológicas, integradas na estrutura organizacional camarária, caraterizadas por uma interessante diversidade temática e museográfica, e com caraterísticas semelhantes no que se relaciona com a gestão e os recursos aos mais diversos níveis. Conhecedores das realidades de cada autarquia e de cada unidade museológica são os técnicos que nelas trabalham e que, no seu quotidiano, se deparam com uma complexidade de problemas que por vezes têm dificuldade em solucionar. As necessidades sentidas nas mais diversas áreas, a dificuldade de comunicação com os colegas de municípios limítrofes e a inexistência de parcerias e colaborações com outras unidades museológicas da mesma região levou a que, em 2008, um grupo de técnicos representativos de algumas Autarquias se reunisse em Almodôvar, com o objetivo de debater as problemáticas comuns e com o interesse de desencadear o processo de criação da Rede de Museus do Distrito de Beja (RMDB). Em Junho de 2009, em reunião realizada no Museu Municipal da Vidigueira, foi reforçada a vontade e necessidade de avançar com a criação da Rede, com o principal objetivo de facilitar o contacto entre os técnicos ligados aos projetos museológicos das Câmaras Municipais e do Museu Regional de Beja, e de incentivar a parceria e colaboração nas mais diversas áreas que permitissem potenciar projetos conjuntos de estudo, formação e divulgação. Em 2011 formalizou-se a RMDB que contou com a adesão das Câmaras Municipais de Aljustrel, Almodôvar, Alvito, Beja, Castro Verde, Cuba, Ferreira do Alentejo, Mértola, Moura, Ourique, Serpa e Vidigueira, e do Museu Regional de Beja. A Rede rege-se por uma Carta de Princípios que define como principais objetivos a qualificação, valorização e divulgação das unidades
museológicas deste Distrito; a cooperação, parceria e articulação entre as unidades museológicas dos concelhos que integram a Rede; a otimização e rentabilização de recursos, principalmente em termos de meios humanos e da realização de projetos comuns; a difusão da informação relativa aos museus da Rede e a promoção do rigor, ética e profissionalismo das práticas museológicas. Após a fase de estruturação e definição de estratégias de atuação, foram levadas a cabo algumas ações com o objetivo de dar a conhecer a RMDB e os museus que a integram. Uma das primeiras ações foi a criação de um logótipo e de uma placa identificativa tendo, posteriormente, sido desenvolvido um folheto que integra todos os museus e que serve de divulgação aos seus acervos e ao património do território onde se inserem, ao mesmo tempo que funciona também de suporte à utilização do Passaporte cuja utilização pelo visitante permite a obtenção de descontos nos ingressos nos museus da Rede. Neste processo de afirmação da Rede é de salientar a importância da criação do blog(1) que, para além de funcionar como meio privilegiado de divulgação dos museus e os seus acervos, constitui também uma importante forma de divulgação das atividades locais e regionais. Por outro lado, inserida na linha de estudo e divulgação patrimonial, a conceção e desenvolvimento da Exposição “Marcas do Território – Testemunhos do Património do Baixo Alentejo”, inaugurada em março de 2013, no Pólo Expositivo do Museu Regional de Beja, foi um importante marco na evolução da Rede, tendo como finalidade principal dar a conhecer o património de cada município através dos seus museus e dos seus
(1)
http://redemuseusbeja.blogspot.com
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Visita a Moura do grupo de trabalho da Rede de Museus do Distrito de Beja
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acervos que, pela sua diversidade e importância, ilustram bem a evolução do homem e a sua relação com o meio ao longo dos tempos. De facto, as unidades museológicas que integram a RMDB constituem um importante instrumento de trabalho e de comunicação com as populações e com aqueles que visitam a região, criando uma dinâmica que contribui de forma inequívoca para o desenvolvimento local. Esta Exposição passou por todos os municípios que integram a Rede, e pela sede da Direção Regional de Cultura do Alentejo, em Évora, tendo tido um retorno muito positivo, tanto em termos do conhecimento que os indivíduos adquirem acerca do que os rodeia, como das dinâmicas das instituições que tutelam unidades museológicas e outros projetos de valorização de divulgação patrimonial. Prosseguindo a sua missão dinâmica formativa e informativa, a Rede organizou dois encontros anuais, em 2014 em Castro Verde e em 2015 em Mértola, sobre temáticas que interessam aos seus membros e às unidades museológicas da região. Estes Encontros constituem importantes momentos de partilha entre os técnicos e colaboradores das unidades museológicas do Distrito, e fora dele, tratando-se de uma experiência participada, ativa e demonstrativa das dinâmicas na área da museologia. O I Encontro teve como momento principal a homenagem a Cláudio Torres, Diretor do Campo Arqueológico de Mértola, cujo trabalho realizado nesta Vila, nas áreas da arqueologia, museologia e valorização patrimonial, muito influenciou, e influencia, os técnicos que atualmente trabalham nos museus que integram a Rede. No II Encontro abordou-se a temática das atividades educativas e da relação com as comunidades locais, tendo sido apresentadas experiências exteriores à Rede e ações desenvolvidas pelos diversos museus, o que propor-
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Cláudio Torres, director e fundador do Campo Arqueológico de Mértola, homenageado no I Encontro da Rede
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cionou um debate muito profícuo de partilha de conhecimentos e experiências que permitirão o desenvolvimento de ações futuras. Pretende-se que as unidades museológicas do Distrito de Beja atinjam um caráter de excelência e cumpram com todas as funções museológicas, ao mesmo tempo que contribuem para a valorização e divulgação do património e para a criação de laços com os membros da comunidade onde se inserem. A RMDB está num momento decisivo. Desde logo se afiguram dois caminhos. No primeiro, mantem a estrutura atual e consolida as relações entre os seus membros através do desenvolvimento de projetos e ações de maior complexidade, que envolvam, por exemplo, a investigação em áreas específicas e o desenvolvimento de produtos de divulgação de qualidade. Ou, por outro lado, aproveita as dinâmicas criadas e fortalece os vínculos através de formas sólidas e bem definidas de trabalho conjunto que podem, e devem, culminar a breve termo com o alargamento a outras unidades museológicas de tutela não municipal, o que certamente abrirá novos caminhos e linhas de ação em termos territoriais, de investigação e de desenvolvimento de projetos. Independentemente do caminho a trilhar, é necessário que os intervenientes se consciencializem da importância que esta Rede pode ter num território tão vasto, com realidades tão diversas e com formas de atuação tão díspares. É por isso imprescindível que o compromisso seja claramente assumido por todos e que o esforço e envolvimento se reforce e se consolide de forma sólida e equitativa. A RMDB pode ser um importante instrumento regional que possibilita a criação de laços e reforço identitário neste território tão vasto, com realidades diversificadas mas com uma herança comum que é necessário preservar e divulgar para e às gerações futuras.
A autora Lígia Rafael é licenciada em História, ramo do Património Cultural e Mestre em Museologia, pela Universidade de Évora. Desempenha funções de Técnica Superior (História) na Câmara Municipal de Mértola, responsável pelo Setor de Informação Turística e Museus.
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Memória Baldios Corte Vicente Anes dos
de
_texto: Adelino Coelho _imagens: José Emília Guerreiro
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Corte Vicente Anes, é uma aldeia situada no concelho de Aljustrel, a 7 quilómetros da sede de concelho.
Embora a presença humana neste sítio seja pré-histórica (III milénio A.C., Idade do cobre) como prova o túmulo megalítico, descoberto em 1961, no Monte do Outeiro, situado nas proximidades da Corte Vicente Anes, no entanto desconhecem-se as origens desta pitoresca aldeia. Provavelmente a sua fundação ascende ao período medieval, pois aparece referida pela primeira vez em documentos da Ordem de Santiago da Espada, resultantes da “Visitação à Vila de Aljustrel em 1482”. À semelhança de muitos povoados alentejanos denominados por “corte”, nome derivado de “curral” ou “arramada”, a formação deste aglomerado terá provavelmente a ver com o desenvolvimento e concentração da pastorícia naquela zona, cujas terras pertenceriam ou estariam aforadas a um senhor de nome Vicente Anes, vindo daí a origem do nome Corte de Vicente Anes. Aparentemente, o antropónimo terá origem em época medieval, no período pós-reconquista, correspondendo ao nome dos primeiros proprietários destas terras, e que segundo a convicção que ainda hoje existe e baseada nalguns documentos, o terreno onde se situa a aldeia e os circundantes (terrenos baldios), terão sido doados posteriormente aos seus habitantes.
Em 1974, a população de Corte Vicente Anes rondaria os 380 a 400 habitantes, que viviam essencialmente do trabalho na agricultura e nas minas de Aljustrel. Em redor da aldeia viviam vários agricultores (“lavradores”) que eram proprietários das terras circundantes da aldeia, e que, por consequência, asseguravam alguns postos de trabalho para algumas pessoas da aldeia. António Costa, José Banza, Fernando Espada e Manuel de “Vale de Narizes” (tendo este a terra arrendada ao então regedor da aldeia, Lourenço Raimundo) eram os proprietários vizinhos à aldeia, alguns deles descendentes dos antigos proprietários. Num processo que terá decorrido ao longo de muitos anos, os “lavradores” vizinhos da Corte foram, pouco a pouco, apropriando-se arbitrariamente dos terrenos baldios que pertenciam ao povo, mu-
dando sucessivamente os marcos que delimitavam as áreas das suas terras. Não sem que houvesse uma reação do povo a essa ocupação, mas não sendo possível manifestar-se coletivamente e de forma organizada contra aqueles que abusivamente usurpavam o que não lhes pertencia, por força de um regime totalitário que invariavelmente protegia os grandes latifundiários e que não permitia que o povo pudesse exigir a devolução desses terrenos, alguns moradores iam durante a noite, às escondidas para evitar represálias e queixas às autoridades, recolocar os marcos onde antes se encontravam. Apesar disso, os “todos poderosos senhores das terras” voltavam a mudar os ditos marcos e sempre para cada vez mais próximos das paredes da aldeia, registando-as inclusive “legalmente”, como suas.
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Contudo, apesar dessa legalização unilateral e do tempo decorrido até ao 25 de Abril de 1974, a propriedade dos velhos baldios não caiu no esquecimento do povo, e por isso, sobretudo nos mais velhos, nunca se perdeu a esperança de verem devolvidos à população os terrenos baldios, que por direito eram seus! Com a chegada da revolução em 25 de Abril de 1974 e a implantação da democracia, a discussão sobre a posse desses terrenos voltou a ser tema de conversa entre os moradores de Corte Vicente Anes, e o desejo antigo da devolução dessas terras ao povo voltou a manifestar-se, sendo opinião generalizada que a situação não podia manter-se por muito mais tempo.
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Aproveitando o entusiasmo revolucionário da época, e também de alguma forma, influenciados pelo processo da reforma agrária que se desenvolveu no Alentejo, foi-se consolidando a ideia de retirar essas terras aos então “proprietários”, que mantinham de forma já ”legal” a posse dos baldios. António Maria Coelho, resistente antifascista e ex -preso politico durante o antigo regime, pouco tempo após a Revolução foi nomeado pela população “Cabo de Ordens” substituindo o antigo regedor, e desde logo, tendo em conta este desejo antigo do povo, fez disso, uma das suas prioridades. Lidera então o processo de ocupação dos baldios, tendo para tal pedido o apoio às autoridades municipais e ao Movimento das Forças Armadas (MFA). Para dia 3 de Agosto de 1975, foi marcada a ocupação dos terrenos baldios de Corte Vicente Anes, numa acção revolucionária, onde praticamente todo povo esteve presente, num dia marcante para esta população, e que foi mobilizador para outras lutas que visavam a melhoria das condições de vida dos cortevicentinos. Marcando a legitimidade do acto, marcaram presença vários representantes do MFA, que ao mesmo tempo garantiriam a segurança de todos aqueles que participassem na acção de reocupação dos baldios, em caso de haver alguma reação negativa por parte dos proprietários. O início da ocupação começou de manhã junto à Escola Primária, na entrada da aldeia, e só terminou à tarde. Com um tractor agrícola equipado com uma charrua, foi sendo marcado o terreno à distância de 150 metros dos quintais, com um rego que delimitava a área dos baldios que pertenciam ao povo, não correspondendo, no entanto, esta demarcação, àquela que seria a área antiga dos baldios Este foi verdadeiramente um dia histórico, de festa e de grande regozijo, que se viveu nesta pequena al-
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deia do concelho de Aljustrel. Consumada a ocupação e posse destes terrenos, não houve, ao contrário do que se poderia prever, nenhuma reação significativa dos proprietários dos terrenos, podemos mesmo dizer-se que foi uma ocupação pacífica. Esta pacificidade dos antigos “proprietários”, não significa concordância com o retirar dos terrenos. Mas dada a situação pós-revolucionária que se vivia no país, não se manifestaram com grande veemência. A excepção foi de José Banza, um dos proprietários, que não reagiu bem à ocupação das “suas terras”, e apesar não ter tomado qualquer iniciativa no sentido de travar esta acção do povo, manifestou sempre o seu inconformismo às pessoas da aldeia com que conversava. Já António Costa não reagiu mal, mas as terras que lhe diziam respeito não eram terras produtivas, e talvez por essa razão nunca manifestou grande desagrado. Os outros dois proprietários, não eram pessoas que frequentassem aldeia, e da parte desses também não foi conhecida qualquer reacção negativa, havendo mesmo mais tarde da parte de Fernando Espada, a colaboração para desanexar a parcela de terreno para a construção do campo de futebol, que se situava dentro do perímetro das terras ocupadas. Reocupados os baldios da Corte, o período seguinte, foi de alguma forma um pouco decepcionante, para muitos dos moradores, já que os terrenos ocupados não tiveram qualquer uso útil para a população e, ao contrário do que seria de esperar, nada foi feito nesse terreno. Nem a criação de parcelas de terra para hortas, ou para outros fins que servissem a população. Como tal, não foi surpresa que com o início do processo de devolução de terras da Reforma Agrária aos latifundiários, em consequência do golpe de 25 de Novembro e ao abrigo da lei Barreto em 1976, que os terrenos baldios de Corte Vicente Anes voltassem à posse dos agrários a quem ti-
nham sido retiradas, sem qualquer protesto da população, sem qualquer intervenção dos responsáveis autárquicos nem, curiosamente, de António Maria Coelho, cabo de ordens. Provavelmente por o povo sentir que já não teria o apoio, por exemplo das Forças Armadas, por exemplo, como teve no momento da ocupação. Outra razão possível para esta passividade, e talvez a que melhor a enquadra neste caso, é que não tendo havido nenhum benefício prático que servisse a população da aldeia, as pessoas desinteressaram-se deste processo que em 3 de Agosto de 1975 tinha mobilizado a maioria das gentes da Corte, para cumprir o sonho e o desejo de voltar a ter como suas as terras que lhe tinham sido retiradas ao longo de muitos anos.
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Aquele dia, foi um dia de orgulho, de festa e entusiasmo, “e porque não dizer, de esperança”. Um sonho antigo que se cumpriu, mas que na verdade merecia ter tido outro fim. Esta foi no entanto uma causa justa, que merecia que lhe tivesse sido dada mais atenção, mais apoio. Ali deveriam ter chegado mais ideias sobre o que fazer com aquelas terras, para que as pessoas beneficiassem delas e, efectivamente, tivesse valido a pena toda a luta que se travou para recuperar os baldios da Corte Vicente Anes. De forma a dignificar todos aqueles corajosos que, anos a fio, se levantavam de madrugada para, às escondidas, recolocar os marcos de onde nunca deviam ter saído.
Em conclusão: Os terrenos baldios deviam ter sido colocados à disposição dos Cortevicentinos, para que deles pudessem tirar proveito para as suas necessidades, o que afinal e incompreensivelmente, nunca aconteceu. Assim sendo, este foi um processo que se limitou praticamente à iniciativa da ocupação, o que foi muito pouco, para uma causa tão grande. Podemos, no entanto, retirar uma lição de tudo o que envolveu este processo, sobretudo pela apatia geral de “todos” os que tiveram na linha da frente desta iniciativa e que depois baixaram os braços, como se o principal objectivo passasse apenas pela ocupação dessas terras, sem fazer depois o que de mais importante se devia ter feito, de acordo com as expectativas daqueles que participaram e defenderam o retorno dos baldios: Colocá-los à disposição da população para lhe dar o melhor uso. Neste contexto, a lição que devemos retirar é a seguinte: quando as causas não servem as pessoas, as pessoas desistem das causas…
Os autores Adelino António Pereira Coelho, natural de Corte Vicente Anes, nascido em 5 Maio de 1958, casado, tem o 9º ano de escolaridade e iniciou a actividade profissional de mecânico aos 14 anos. Foi emigrante em vários países em vários continentes, nomeadamente na Ásia, África e Europa, até se estabelecer em Castro Verde. É actualmente empresário ligado à reparação de automóveis e serviços de pronto socorro. José Emília Guerreiro é natural de Corte Vicente Anes, onde nasceu a 26 de Julho de 1957. Fez o 6º ano de escolaridade. Trabalhador agrícola entre 1975 e 1988, entrou neste ano para a mina de Neves Corvo, estando neste momento aposentado.
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Caldeireiro A propósito de Carlos Lobo, objectos de uma profissão desaparecida O
Miguel Rego Ao longo de quatro anos, a sala das exposições temporárias do Núcleo da Oralidade do Museu da Ruralidade recebeu quatro exposições, de temas tão diversos como a Feira de Castro e a Viola Campaniça, ou a Maria Linda e a profissão de caldeireiro, a primeira andando à volta do mundo da casa e a segunda de uma profissão que teve em Carlos Lobo o último caldeireiro em actividade no nosso concelho. Desta exposição, “O Caldeireiro – A propósito de Carlos Lobo, objectos de uma profissão desaparecida”, que ficará patente ao público até ao último trimestre de 2015, reproduzimos parte dos textos que compõe a exposição e o desdobrável, contribuindo, desta forma, para divulgar e, porque não, perpetuar, de forma mais eficaz esta arte quase desaparecida e alguns dos seus actores na nossa região.
O que é um caldeireiro
O caldeireiro transforma chapa lisa em objetos e utensílios das mais variadas formas e dimensões. Agarra num bocado de chapa direita, corta-lhe um bocado, enrola a chapa e faz a peça que quer. Primeiro faz dela um canudo, dá-lhe uma costura com solda. Uma solda feita com pequenos pontos de metal cobertos de trincal, para que esta não salte. Depois é bater, repuxar, riscar e voltar a bater até ter a forma que se deseja. Entre os caldeireiros não havia uma especialização de funções. Cada caldeireiro domina todos os passos do processo e quem começava uma peça tinha que a acabar. Aprendia-se vendo os mestres a fazer e, quando se achava com coragem, o ainda aprendiz começava a fazer a sua primeira peça. Ao contrário do que é corrente, e sujeita a grandes confusões que os caldei-
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Carlos Lobo Foi na sua oficina de caldeireiro, a última da nossa região, que às suas mãos se faziam panelas, cafeteiras e caldeiras de cobre e latão.
reiros, diga-se, não achavam graça nenhuma, a profissão de caldeireiro é distinta da de latoeiro. O latoeiro faz todas as suas peças a partir de moldes. Depois, colocam a chapa direita em cima dos moldes, cortam-na, dobram-na e, finalmente, efetuam o acabamento. Ao contrário, o caldeireiro não tem moldes e o que o distingue do latoeiro é o improviso. Bate e risca, a compasso.
Carlos Lobo, um dos últimos caldeireiros da nossa região Há muito que se deixaram de se ouvir os sons compassados do martelo, na chapa de cobre, na Travessa da Alegria. Ali funcionou a última oficina de caldeireiro da nossa região, onde às mãos de Carlos Lobo se faziam panelas, cafeteiras, caldeiras de cobre e latão. Desses tempos de 1996, quando a oficina encerra, apenas ficaram os objetos de uma profissão hoje praticamente extinta e de que poucos terão memória. Nascido em Cuba, corria o ano de 1921, Carlos Lobo chegou a Castro Verde com o seu pai, caldeireiro de profissão, que se instalou na Rua dos Fornos. Depressa correu outras oficinas entre Lisboa, Beja, Casto Verde e Almodôvar. É aí que trabalha com a família Pacheco, algarvios de Alte, que aí residiam e tinham oficina aberta. Entretanto, estabelece-se definitivamente em Castro Verde, e durante alguns anos faz objectos e utensílios para António Martins, conhecido por Pacheco, que herdara a oficina de seu pai, localizada em Almodôvar.
António Martins, Caldeireiro em Almodôvar António Martins, nasceu em Almodôvar, a 5 de Outubro de 1940. Começou a aprender a profissão de caldeireiro à volta dos 12 anos na oficina do seu pai (localizada primeiro em S. Pedro e depois próximo da Igreja Matriz de Almodôvar), caldeireiro das terras de Alte, Loulé, que também já tinha aprendido numa oficina da família. O
António Martins Pacheco, como era conhecido, começou por limar asas para os tachos. Depois começou a fazer tachos de arame e cafeteiras. Mas pelas suas mãos passaram milhares de cântaros, alguidares para amassar o pão, cafeteiras de cobre, frigideiras de ferro para fritar carne de porco. Após a morte de seu pai ainda aguentou a oficina três ou quatro anos, até que a encerrou em 1978. Ali trabalharam Carlos Lobo, o seu primo Artur Lobo e um outro jovem de Almodôvar. Para além do fabrico, vendiam as peças nas feiras de toda a região. António Martins tirou a carta de condução com 17 anos e, carrinha cheia, lá ia de feira em feira, enquanto hou-
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A oficina do caldeireiro
vesse para vender. Odemira, Alcácer, Santiago do Cacém, Garvão e, naturalmente, Castro Verde. Era aqui que se vendiam mais, sobretudo na Feira, onde havia encomendas para serem entregues no ano seguinte. Normalmente, trabalhavam durante dois meses para vender na Feira de Castro, que era a feira onde mais se vendia. No ano de 1973 tivera de receita cerca de 65 mil escudos. No ano seguinte, em 1974, as receitas ultrapassaram os setecentos mil escudos. Um número inimaginável para a oficina e para nós.
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Na oficina havia uma forja de fole, com pedal para que o caldeireiro pudesse trabalhar com as duas mãos. Havia a tenaz para levar as peças ao fogo e o ferro de soldar. Vários martelos em madeira e ferro para os vários modelos de utensílios e objetos. Tachos faziam-se até aos 80 centímetros, atingindo alguns a capacidade de 180 litros. As caldeiras de fazer medronho só se faziam por encomenda e essas chegavam a atingir 70 a 80 quilos de peso. As suas dimensões eram tais que os rebites eram cravados com o caldeireiro do lado de dentro, para o rebite ficar bem cravado. Depois de se cortar a chapa para fazer a peça sobravam sempre bocados que se vendiam, em particular, aos chocalheiros. O chocalho é em ferro e, quando está terminado, era colocado no cobre fundido. É sobretudo a quantidade de cobre absorvida e o tempo de banho que dão o toque diferente a cada chocalho. Uma caldeira de cobre, trabalhando duas pessoas, demorava cerca de quinze dias a fazer. Custava entre 100 a 200 escudos. O caldeireiro ganhava 6 ou 7 escudos por dia.
do
Quadras Campo Branco Museu da Ruralidade edita recolha de quadras populares
“Quadras do Campo Branco” é uma recolha de quadras populares efectuada por Maria Vitória Brito Ruas, no Lar da Terceira Idade da Misericórdia da vila de Messejana, no concelho de Aljustrel, entre 1992 e 1995. O Lar da Nossa Senhora da Assunção, foi inaugurado em 1992 e, durante três anos, Maria Vitória Ruas iniciou a recolha de quadras usadas nos bailes de roda e nos despiques, junto dos utentes daquela IPSS. Professora do ensino primário na escola da Messejana, Maria Vitória saía das aulas e conversava, registava, apreendia uma memória que, devagarinho, pressentia que se ia apagando. Uma memória que desde logo sentia que as pessoas gostavam de lembrar. Eram ditos do antigamente, da sua juventude… quadras de amor, de escárnio e mal dizer que se repetiam, e algumas ainda se repetem, sobretudo no cante alentejano, nestas terras campaniças. Foi o desejo que estas memórias se eternizassem, que levou Maria Vitória a registá-las e, durante 24 anos, tivesse procurado editá-las. As portas foram-se sucessivamente fechando até que surgiu o interesse do Museu da Ruralidade em dar corpo a este projecto, por ele representar não apenas um contributo extraordinário para o património cultural da região, mas também um exemplo do trabalho de animação que pode ser desenvolvido dentro de instituições desta natureza.
Quadras de amor, de escárnio e mal dizer que se repetiam, e algumas ainda se repetem, sobretudo no cante alentejano, nestas terras campaniças.
Professora primária desde os 23 anos, leccionou durante 32 anos. Três anos na Fornalha, concelho de Odemira, 2 anos em S. Romão, Santiago do Cacém, e 27 anos na Messejana, fizeram a vida de pedagoga de Maria Vitória Ruas. Deixamos aqui algumas destas quadras, de um livro de poesia popular que dá continuidade ao projecto de edição do Museu da Ruralidade, em torno do tema “poesia popular”.
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Eu fui ao mar à laranja É fruta que o mar não tem Veio de lá uma onda e disse Muito sofre quem quer bem.
Tua ausência é minha morte Tuas cartas meu viver Se não queres que eu morra ainda Não me deixes de escrever.
O meu amor é do campo É do campo é camponês Mais vale um amor do campo Que da vila dois ou três
Quanto meu amor partir Se veste meu coração Com manto de seda preta Bordado pela paixão.
Chapéu preto à lavrador Usa meu bem na cabeça Já não há moda nenhuma Que o meu amor não mereça.
Oliveira pequenina Que azeitona pode dar Dará uma dará duas Dará três se lá chegar
Desprezaste–me por ser pobre Queres a rica por ter A rica te há-de deixar E eu depois já não te querer.
Tenho tantas saudades Como folhas tem o trigo Eu não as digo a ninguém Todas consumo comigo.
Oliveira pequenina Também dá pequena assombra Também eu sou pequenina Mas comigo ninguém zomba
Eu joguei o cravo ao tanque Fechado, saiu-me aberto Andava desconfiada Agora já sei de certo.
Adeus ó Monte de Além Feito de ouro batido Antes que eu queira não posso Tirar de ti o sentido
A mocidade é alegre É alegre e vaidosa Viver do amor ausente Não há coisa mais custosa
Onde estará meu amor Onde estará ele agora Tão perto de quem o vê Longe de quem o adora.
Da minha janela à tua É uma vara medida Do meu coração ao teu É uma estrada seguida
Eu ausente, tu ausente Eu de ti e tu de mim Eu peço a Nossa Senhora Que esta ausência tenha fim
Anda amor vem ver arder A chama da saudade Abrasada no ciúme Pela tua falsidade.
Não olhes para a laranjeira Que as laranjas estão pendendo Olha aqui para os meus olhos Que de amor estão morrendo
Menina que sabe tanto Faça-me esta conta bem Um moio de trigo limpo Quantas meias quartas tem
Ó meu amor vê se tomas Juízo nessa cabeça Desengana uma das duas Essa que menos mereça.
Linda letra é o J Para quem lhe dá valor Com o J é que se escreve O nome do meu amor
Um moio de trigo limpo Veja bem não tenha jóio Quatrocentas e oitenta Meias quartas tem o moio
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Borboletas Portugal de
no Museu da Ruralidade Alexandra Contreiras A 23 de abril, o Museu da Ruralidade abriu ao público a exposição de ilustração científica “Borboletas de Portugal”, da autoria do castrense António José Contente. Uma mostra que apresenta, com todo o rigor científico, a diversidade e a beleza das borboletas existentes no nosso país. Desde cedo que o gosto de António José Contente pelo desenho se manifestou. Gosto esse a partir do qual desenvolveu a sua atividade profissional, durante mais de três décadas, e que lhe valeu reconhecimento e alguns prémios nas áreas do desenho e da ilustração científica. A expor pela segunda vez em Entradas, desta feita, através da exposição de Ilustração “Borboletas de Portugal”, patente no Museu da Ruralidade, António revelou ao “Campaniço” que o interesse pela Entomologia, ciência que estuda os insetos, se desenvolveu por mero acaso. “Ao procurar emprego, descobri que havia uma vaga para desenhador no setor da Entomologia do Instituto de Investigação Agronómica de Angola, em Nova Lisboa, onde prestei provas na execução de dois desenhos de insetos. Ficaram impressionados com a rapidez e o pormenor na execução do trabalho e fui logo admitido. Foi uma atividade que me despertou muito interesse e que fui aperfeiçoando e aprofundando”. As borboletas vieram por acréscimo, na sequência do desempenho da sua atividade profissional. “O estudo dos insetos é muito variado e as borboletas, devido à sua beleza, despertaram-me o gosto de as representar,
BORBOLETA-DA-URTIGA | Aglais-urticae (L.)
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António José Contente no Museu da Ruralidade
quer em selos, quer em ilustrações de livros e catálogos científicos. No entanto, desenhei todo o tipo de insetos e as pragas que alguns provocam”. O trabalho de António José Contente no campo da ilustração científica tem tido algum reconhecimento e projeção a nível nacional, mas também além-fronteiras. Nestas três décadas de trabalho na área, ilustrou um número incontornável de espécies que chegaram, inclusive, a ser publicados pelos Correios de Angola, de Cabo Verde e de Portugal, em selos que estiveram em circulação e que integraram coleções temáticas editadas pelos CTT. Um trabalho minucioso, que exige uma grande capacidade de concentração, rigor, paciência e, acima de tudo, muita perseverança pois “é um trabalho feito ao microscópio e que exige muitas horas de pesquisa na biblioteca”. O trabalho de campo também era aliciante para o desenhador. “Passávamos noites a capturar insetos à luz de um gerador portátil. Fizemos capturas diurnas e noturnas em Portugal continental, Açores, Madeira e Cabo Verde. Durante uma dessas capturas, junto de Ferreira do Alentejo, apanhei uma pequena cigarra que veio a ser identificada pelos especialistas como uma espécie nova para a ciência. Deram-lhe o nome de euryphara contentei, n. sp. e pode ser vista no Museu Nacional de História Natural de Paris”. Atualmente, António José Contente encontra-se aposentado e divide o seu tempo entre Entradas e Oeiras. Depois de se reformar, ainda desenvolveu um trabalho de desenho mas questões de saúde fizeram com que deixasse o desenho, passando a dedicar-se ao vídeo.
A exposição “Borboletas de Portugal” pode ser visitada até ao final do mês de setembro, no Museu da Ruralidade, em Entradas.
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Museu da Ruralidade na exposição
“A vontade Memória” da
Organização da Universidade do Minho
Imagens da jornada de reocupação das terras dos Aivados, realizada a 20 de Abril de 1975, e que fazem dos Cadernos do Museu, nº1, ilustram o painel “Alentejo”, realizado por Miguel Rego (Museu da Ruralidade) e Ema Pires (Universidade de Évora), da exposição “A vontade da Memória – 40 anos do Verão quente de 75”, organizada pelo Conselho Cultural da Universidade do Minho e pela Biblioteca Pública de Braga, com a curadoria de Francisco Azevedo Mendes, professor da Universidade do Minho. Mobilizando livros, jornais, revistas e fotografias, com o objetivo claro de afirmar a vontade da memória, alguns dos principais acontecimentos da conjuntura são revisitados a partir do caleidoscópio de sentidos e planos que emergia quotidianamente da radicalização do processo revolucionário. O choque das ideologias e das personalidades, elas próprias em construção, desdobrou ações de tal modo marcantes que o mesmo acontecimento parecia tratar-se de acontecimentos diferentes, desenhando movimentos amplos, intensos e determinantes, nas vidas do Povo e do País. Aquele Presente continha vários futuros, em aberto e em confronto. Uma exposição para ver.
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Painel presente na exposição “A vontade da Memória – 40 anos do Verão quente de 75” na Galeria do Salão Medieval, em Braga, de 17 a 31 de Julho de 2015
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Museu da Ruralidade assinalou
de
Dia Internacional Monumentos Sítios em Aivados e
A aldeia-comunitária dos Aivados foi palco da evocação do dia Internacional dos Monumentos e Sítios, organizada pelo Museu da Ruralidade, no passado dia 18 de Abril. A iniciativa que decorreu desde as 10 horas da manhã até ao fim da tarde, contou com três iniciativas de carácter diferente, procurando-se desta forma mostrar a diversidade e complementaridade dos vários conceitos de “património” e o papel das populações na valorização e salvaguarda da memória das comunidades. O Núcleo do Museu da Ruralidade “Aivados-Aldeia Comunitária” foi o espaço de concentração dos cerca de 70 participantes na caminhada que, logo pela manhã, ligaram a aldeia dos Aivados ao Cerro Ruivo, com passagem pela Pedreira e pela Estação de Ourique, evocando os 40 anos da reocupação da Herdade dos Aivados, realizada no dia 20 de Abril de 1975. À altura, a população dos Aivados reocupou os quase 200 hectares que tinham sido ocupados durante quase meia centena de anos por alguns proprietários vizinhos do Carrascal e do Monte Novo. A caminhada, teve o seu momento alto com a colocação de uma placa alusiva ao dia 20 de Abril de 1975, no Cerro Ruivo, junto aos atuais depósitos da água. O descerrar desta placa é o primeiro passo num programa museográfico que o Museu da Ruralidade pretende
desenvolver nos terrenos da propriedade, marcando alguns dos episódios e espaços “simbólicos” da aldeiacomunitária que ajudem a construir a memória do sítio. Um almoço de confraternização em que participaram mais de uma centena de pessoas foi o passo seguinte deste dia de confraternização e evocação da memória, cuja confeção esteve a cargo de várias mulheres da aldeia.
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Manuel Mira, poeta popular de Castro Verde durante o I Encontro de Poesia Popular em Aivados
A tarde deste dia Internacional de Monumentos e Sítios ficou ainda marcada pela realização do I Encontro de Poetas Populares. Esta iniciativa, que se pretende tenha uma periodicidade anual, é a continuação do trabalho que o Museu da Ruralidade pretende dar às manifestações patrimoniais de carácter imaterial que marcam a nossa região e, em particular, à poesia popular. Neste I Encontro de Poesia Popular para além da leitura de poemas dos já falecidos poetas populares António Matos e Zé Painhas, ambos naturais dos Aivados, efetuada por alguns dos presentes na sala, participaram os poetas Manuel Mira (Castro Verde), António Gavião (Cuba), Manuel Faria Bento e Cacilda Vale, de Aivados.
Almoço de confraternização
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