Catálogo Exposição "Doutores e Doutoras da Igreja"

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Detalhe: Santa Catarina de Siena, vide p. 41.

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Doutores e Doutoras da Igreja : A Beleza do Testemunho,da Vida e da Palavra o longo da história da Igreja, muitos homens e mulheres se notabilizaram pelo testemunho da fé e firmeza na interpretação das Sagradas Escrituras, principalmente do Novo Testamento. Trinta e seis deles foram proclamados “doutores universais da Igreja”. Por que eles receberam esse título?

A expressão “doutor” não era usual no seio da Igreja, pois era designada mais comumente a mestres ou docentes, ou seja, quem ensinava teologia. No entanto, por deixarem uma contribuição fundamental para a compreensão de algum ponto da doutrina da Igreja e sua vivência, foram proclamados “mestres” universais da fé com a titulação de “doutor”. Com o Concílio do Vaticano II (1962-1965), a Igreja, buscando renovar-se para adequar-se à contemporaneidade, focou-se em dois “pilares”: o das Sagradas Escrituras e da tradição viva da Igreja para ir às fontes mais perenes da fé cristã. Como consequência, a teologia cristã mergulhou seu saber no “tesouro” deixado por esses homens e mulheres que, ao viverem na radicalidade o mistério de Deus, transcreveram tal experiência de fé. Nesse contexto, também as mulheres receberam tal titulação. Quatro foram proclamadas “doutoras da Igreja”. São elas: • Teresa d’ Ávila (Espanha, 1515-1582) – Proclamada pelo papa Paulo VI em 1970. • Catarina de Siena (Itália, 1347-1380) – Proclamada pelo papa Paulo VI em 1970. • Teresa de Lisieux (França, 1873-1897) – Proclamada pelo papa João Paulo II em 1997. • Hildergada de Bigen (Alemanha, 1089-1179) – Proclamada pelo papa Bento XVI em 2012. No pontificado do papa Francisco (2013), a mulher, cada vez mais, está sendo exaltada como coluna fundamental da fé cristã. Como exemplos, temos a elevação da memória litúrgica de Santa Madalena à categoria de festa litúrgica e as nomeações de mulheres para discatérios e docências nas universidades pontifícias oficiais, bem como o incentivo para a elaboração mais profunda de uma teologia do feminino.

Museu de Arte Sacra de São Paulo José Oswaldo de Paula Santos Presidente do Conselho de Administração

José Carlos Marçal de Barros Diretor Executivo

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Fragmento tumular de Santa Teresinha do Menino Jesus (Teresa de Lisieux) Autor desconhecido; mármore, chumbo e bronze; século XX. Origem: França; Procedência: Carmelo de Lisieux, França; Dimensão: 7 x 6 x 2,5 cm | Acervo Museu de Arte Sacra de São Paulo

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Doutores e Doutoras da Igreja : A Beleza do Testemunho,da Vida e da Palavra

No Caminho da Arte: o Testemunho da Fé!

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ão podemos subestimar o testemunho de vida e de fé que homens e mulheres, no acontecer da história da Igreja de Deus, marcou cada época, não somente o “rebanho de Cristo”, mas também toda a humanidade.

Esse testemunho tornou-se um “tesouro” em favor de um mundo mais próximo da realização do “sonho de Deus” para com toda a humanidade e sua criação. É esse “testemunho” que nos faz contemplar os doutores e doutoras da Igreja nessa esplêndida exposição realizada pelo Museu de Arte Sacra de São Paulo. Por que doutores e doutoras da Igreja? Primeiro, porque viveram intensamente a vida na fé e a fé na vida e tudo comunicaram, em gestos concretos, para que o ser humano rasgue o seu coração à bondade de Deus. Segundo, como consequência, registraram sua experiência de vida e de fé deixando para a Igreja um “patrimônio” espiritual imensurável que se tornou, também, de toda a humanidade. Um exemplo vivo é a obra Confissões de Santo Agostinho de Hipona que é saboreada por todas as gentes de todas as nações, culturas e religiões. Nesse “caminho” aqui realçamos as doutoras da Igreja que, no silêncio de suas vidas, fizeram desabrochar a “ternura” de Deus convidando o mundo a ser não somente “razão”, mas também e sobretudo “coração”. É a sensibilidade do “feminino” que nos mostra o “rosto” amoroso e misericordioso de Deus. Ora, meu convite é de que não apenas passemos pelas obras de arte mostradas nessa exposição, mas que “permaneçamos” diante delas no silêncio contemplativo para que possamos encher nosso “interior pessoal” com o “vinho” da alegria do Evangelho de Jesus testemunhada por esses homens e mulheres proclamados “doutores” e “doutoras” da Igreja. Que a ternura de Deus envolva todos nós! Pe. José Arnaldo Juliano dos Santos

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Detalhe: Santo AntĂ´nio com o menino Jesus , vide p. 32.

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Doutores e Doutoras da Igreja : A Beleza do Testemunho,da Vida e da Palavra

Doutores e Doutoras da Igreja Prof. Dr. Marcos Horácio Gomes Dias

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uando observamos as peças da exposição “Doutores e Doutoras da Igreja: A Beleza do Testemunho, da Vida e da Palavra”, que pertencem ao Museu de Arte Sacra de São Paulo, percebemos que o Concílio de Trento deixou claro o papel dos doutores e doutoras da Igreja. Esses homens e mulheres definiram questões importantes para a cristandade e seriam exemplos de vida e espiritualidade. Usar as imagens desses religiosos, nesse momento histórico, seria reforçar as imagens dos membros do clero, que são herdeiros da tradição de Cristo. Podemos ver, por eles, que a doutrina de sucessão apostólica está relacionada à noção teológica e à tradição, afirmando que a transmissão do ministério é contínua, desde o tempo de Jesus até hoje. No início do povoamento da colônia brasileira, as primeiras igrejas são aquelas capelas que, aos poucos, passam a ser matrizes. Nelas, todas as irmandades se encontravam e construíam seus altares. Nesse início da história do Brasil, as práticas, os cultos e as imagens deveriam divulgar a importância dos valores cristãos num mundo ainda em construção. No Brasil colonial, geralmente nas pinturas de forros do altar-mor, podemos sempre observar que o exemplo mais claro é a identificação do papa como o sucessor direto de São Pedro, aquele que foi escolhido por Jesus Cristo para ser a cabeça de sua Igreja (Mt 16:16-18). Em algumas igrejas podemos ver ainda grandes cruzes construídas em seus adros. Essa prática seria constante com o desenvolvimento das vilas e cidades e reforçada pela construção de mosteiros e conventos. Uma série de personagens retratados nos templos confirmava a convicção que a Igreja tem o direito e o dever de ensinar a doutrina cristã e sua moral, pois, acima de tudo, está garantida pelo Espírito Santo. Para esses propósitos, a arte da época localiza seus modelos na autoridade dos doutores e doutoras da Igreja. Eles são canonizados e, por isso, colocados nos altares para veneração, com o sentido de confirmar a fé e a crença. Bispos, padres, religiosos e religiosas seriam a própria presença de seus ensinamentos em terras coloniais.1

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“Os grupos convertidos ao judaísmo (...) seja vivendo na Judéia, Grécia, Ásia ou Egito, tendiam a copiar a estrutura das sinagogas, onde um chefe presidia um grupo de ‘anciãos’, ou em grego presbyteroi, mais tarde traduzido como ‘padres’. Outros convertidos, originalmente gentios, desenvolveram um sistema administrativo diferente adaptado da organização das grandes casas de família, e que consistia de um grupo de criados, em grego diakones, que passou a ‘diáconos’, chefiados por um ‘supervisor’, dito em grego episcopos, o nosso ‘bispo’. Nos três séculos seguintes, estes bispos assumiram a responsabilidade por áreas específicas, ou dioceses, um modelo inspirado na organização do exército romano” (PAGELS, 1992, p. 92).

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Apóstolos e Evangelistas entro deste reforço à fé e à crença, a representação dos evangelistas traz credibilidade aos textos bíblicos, pois esses seriam os primeiros seguidores de Jesus Cristo. No Brasil colonial, a Igreja é a grande portadora e herdeira da voz do Evangelho e, por isso, se esmera na representação desses evangelistas. Esses santos são aqueles que deixaram como legado as escrituras e os textos essenciais para o cristianismo, ocupando lugar de destaque nas pinturas das igrejas. Dentre os personagens representados temos São João, São Lucas, São Marcos e São Mateus. São João sempre traz ao seu lado uma águia que simboliza a ascensão aos céus; São Lucas aparece com um bezerro ou boi simbolizando o sacrifício de Cristo; São Marcos é apresentado ao lado de um leão, que representa a ressurreição; e São Mateus traz consigo um anjo. Aparecem vestidos de túnicas e mantos e, algumas vezes, portam barba. As imagens dos quatros evangelistas podem ser difundidas também em conjunto com as imagens dos outros apóstolos: André, Bartolomeu, Felipe, Judas Tadeu, Paulo, Pedro, Simão, Tiago Maior, Tiago Menor e Tomé. Alguns deles portam barba e aparecem vestidos de túnicas e mantos. Podem trazer como atributos o livro da Nova Lei, a espada, a cruz ou o facão, instrumentos que, geralmente, estão de acordo com sua morte ou suplício: As figuras dos apóstolos eram representadas na pintura inspirando seriedade e circunspecção, ideias que eram acentuadas pelo livro aberto diante deles, a pena na mão, a testa franzida e um olhar de quem pensa e se inspira. Os cabelos brancos e a calvície emprestavam-lhe um ar de maturidade, livros e papiros indicavam sua sagrada missão e a supervisão divina era revelada pela presença de raios de luz iluminando suas cabeças (GALDIERI, 1990, p. 186).

Doutores e Doutoras da Igreja

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ontinuadores e sistematizadores dessa tradição, os doutores da Igreja são grandes mestres cristãos, proclamados pela Igreja para serem merecedores desse título. A partir dessa denominação, a Igreja reconhece a sua contribuição para a compreensão da fé e para o entendimento da própria instituição. Esses personagens ajudaram os cristãos a entender Deus, a sua organização do mundo e os seus objetivos com os poderes terrenos2. Os doutores originais da Igreja foram os santos teólogos da Igreja ocidental, como Santo Ambrósio3, Santo Agostinho, São Jerônimo, Santo Tomás de Aquino e o papa São Gregório I4. As mulheres doutoras são Santa

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FRANGIOTTI, 1992, p. 07- 13.

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Santo Ambrósio de Milão era funcionário do Império Romano e bispo de Milão. Teve uma grande atuação e uma grande influência na época. É representado trajando vestes episcopais. Porta na mão um livro e, na outra, um báculo. Traz ainda como atributo uma pomba, uma colmeia ou abelhas. Cf. VARAZZE, 2003, p. 355 - 364.

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São Gregório Magno foi papa e é considerado um dos doutores da Igreja. Já citado no texto acima, é sempre representado com paramentos de pontífice, tiara e a cruz papal. Cf. VARAZZE, 2003, p. 280 – 295.


Doutores e Doutoras da Igreja : A Beleza do Testemunho,da Vida e da Palavra Catarina de Siena e Santa Teresa d’ Ávila, ambas nomeadas apenas em 1970, mas com presença constante na iconografia brasileira do século XVIII. São personagens importantes, pois são encontrados em pinturas e esculturas, geralmente na capela-mor dos templos coloniais. A alemã Santa Hildegarda de Bingen e a francesa Santa Teresinha do Menino Jesus (Santa Teresa de Lisieux) chegariam aos altares brasileiros com a romanização da Igreja a partir do século XIX, momento esse em que devoções tradicionais da cultura luso-brasileira compartilhariam seu lugar com devoções importantes para o núcleo central da Igreja que entendia a fé acima dos diversos Estados e nações. Esses homens e mulheres vivenciaram a perseguição aos cristãos, e depois, a afirmação do catolicismo como uma religião dos imperadores romanos e das dinastias que se seguiram, após a Idade Média. Os papas e os doutores da Igreja solidificaram, criaram regras e justificaram de maneira profunda e filosófica os preceitos instituídos e a razão de ser da espiritualidade dos indivíduos, da ordem eclesial e da ordem política terrena. Suas biografias e suas teorias seriam lembradas, cultuadas e estudadas pelos membros da Igreja. Posteriormente, vão ser elevados aos altares para servirem de exemplos de conduta e reflexão. São levados às colônias e às diversas partes do globo, onde o catolicismo estivesse em expansão. Seriam personagens modelos, perfeitos para um mundo em construção, como o Brasil e, por isso, é muito significativo encontrá-los nos altares das diversas matrizes, mosteiros, conventos, ordens terceiras e demais igrejas e capelas. Essas imagens compõem, com as outras devoções, um discurso coerente sobre a história da Igreja Católica Romana e sobre a necessidade da inspiração divina e da espiritualidade para o comportamento de homens e mulheres. No Brasil, em relação aos doutores da Igreja, podemos perceber o quanto as suas iconografias se inspiram na imagem de São Pedro. Um dos doze apóstolos, ele é considerado o primeiro papa da Igreja. É sempre representado com barbas e cabelos brancos. Usa vestes pontificais e pode estar sentado no trono ou em pé. Traz como atributo a tiara e a cruz papal.5 Ele é o iniciador dessa tradição que começa com os apóstolos que tiveram contato com o próprio Cristo e continua com aqueles doutores e doutoras que vão se notabilizar pela sua espiritualidade, cultura e intelectualidade.6 Segundo Maria José Assunção da Cunha, dentre eles, temos São Gregório Magno, que é: Considerado “[...] um dos quatro grandes doutores da Igreja ocidental, juntamente com Santo Agostinho, Santo Ambrósio e São Jerônimo. Gregório Magno nasceu em Roma, foi monge beneditino e formou-se papa após a morte de Pelágio II, em 590” (CUNHA,1993, p. 13).

Ele explicitava, em seus escritos, que Deus criara o mundo para que a humanidade se autogovernasse, mesmo tendo um rei que também cumprisse essa obrigação. Essa seria exatamente a posição desses primeiros cristãos, que assistiam ainda à institucionalização do cristianismo como religião. Esse tipo de pensamento ainda encontra raízes num espírito anterior de liberdade e serve para lembrar a Igreja de suas raízes primeiras. Sua presença nos altares seria importante pela lembrança de uma humanidade criada por

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VARAZZE, 2003, p. 500 – 512.

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LODI, 2001, p.150-152.

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Detalhe: Santo Agostinho , vide p. 34.

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Doutores e Doutoras da Igreja : A Beleza do Testemunho,da Vida e da Palavra Deus e por um governo devoto que o ajudaria nessa missão sobre a terra. São Gregório traz como representação a imagem de um pontífice com tiara, cruz pontifical, livro e um templo; carrega consigo a pomba do Espírito Santo7. Esses personagens pensavam sobre os poderes de Deus e os poderes dos homens. Santo Ambrósio, por exemplo, entendia que os religiosos tinham uma importante atuação nos governos: aconselhando os reis ou ensinando as pessoas a serem leais aos seus governantes devotos.8 Dentre eles, o arquiteto principal de teologia ocidental foi Santo Agostinho de Hipona, cuja produção literária, inclusive as clássicas Confissões e A Cidade de Deus, fez mais contribuições para a compreensão da fé do que qualquer outro corpo de escritas, com exceção da própria Bíblia.9 Filho de Santa Mônica, foi batizado por Santo Ambrósio e foi professor de retórica em Roma e em Milão. Foi bispo de Hipona e fundador da Ordem dos Agostinianos. Ele fundamenta questões essenciais sobre o poder terreno que a Igreja tem desde então. Ele rompe com a ideia de liberdade do ser humano e, segundo Elaine Pagels: Em “[...] vez do livre-arbítrio e da dignidade real da humanidade original, Agostinho enfatiza a escravidão dos homens ao pecado. A humanidade é doente, sofredora e desamparada, irreparavelmente prejudicada pela queda, pois o ‘pecado original’, ele insiste, nada mais foi do que a tentativa orgulhosa de Adão de estabelecer sua própria autonomia de governo” (PAGELS, 1992, p. 138).

Uma pessoa que não controla seus instintos precisa ser guiada e aconselhada.10 O maior benefício de viver sob um governante é o exercício da obediência, assim como acontece com uma vida de sério cunho religioso de obediência a Deus. Sua filosofia torna-se uma importante corrente de pensamento dentro da Igreja cristã e será sempre reivindicada pelas autoridades posteriores, principalmente durante a formação dos reinos medievais e a afirmação do Estado monárquico na Idade Moderna. Sua presença em altares coloniais brasileiros teria que ser a lembrança, para os homens da distante colônia, sobre o que representaria a matriz religiosa católica do reino português. Santo Agostinho é representado na iconografia colonial brasileira como bispo, vestindo capa pluvial e trazendo o báculo e a mitra. Podemos encontrá-lo com o hábito negro agostiniano, mangas largas e cinto.11

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“A maioria dos apologistas cristãos dos primeiros quatro séculos teria concordado com Gregório de Nissa, que seguia a tradição rabínica ao explicar que depois de Deus criar o mundo ‘como uma moradia real para o futuro rei’, ele fez a humanidade ‘pronta para exercitar o governo real criando-a como ‘a imagem viva do Rei universal’. Consequentemente, Gregório conclui, ‘a alma imediatamente mostra o seu caráter real e elevado, bem longe da situação particular, pois não tem um senhor, é autogovernada, dirigida autocraticamente pela própria vontade” (PAGELS, 1992, p. 137).

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Na pintura do teto da nave da Igreja de Santa Luzia em Minas Gerais, por exemplo, na parte inferior, púlpitos com os seguintes doutores da Igreja: São Jerônimo e a trombeta celeste, Santo Ambrósio, portando um báculo, Santo Agostinho com báculo e um coração ardendo em chamas (símbolo da fé) no céu, e São Gregório com a cruz de Lorena e o Espírito Santo. Todos eles representados com livros, penas e tinteiros.

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HAMMAN, 1989, p. 180.

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SANTO AGOSTINHO, 1999, p. 263.

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Traz como atributo um coração transpassado por flechas, pena e um livro aberto. Cf. HAMMAN, 1989, p. 180.

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Museu de Arte Sacra de São Paulo Nessa mesma linha, temos a representação iconográfica de Santo Tomás de Aquino, que buscou fazer justiça ao conhecimento natural de Deus e exaltou, ao mesmo tempo, o conhecimento revelado pelo Evangelho.12 Em seus escritos, podemos encontrar várias referências à lei e à justiça, principalmente na sua obra Summa Theologica13. Aquino sempre fala da inclinação humana para a vida em sociedade e da necessidade de uma autoridade sobre todos para que assim se chegasse ao bem comum. Alguns de seus seguidores, na Idade Média, escrevem sobre o poder soberano do rei e declaram que o papa seria, nesse caso, um ministro de Cristo.14 São Boaventura, Santa Teresa d’ Ávila e São João da Cruz são, ainda, presenças constantes nesses altares. Esses homens e mulheres voltaram sua atenção para a relação entre o conhecimento de Deus e a possibilidade de atingir seus mistérios pela razão ou pela mística. Além desses nomes, São Jerônimo foi um dos mais importantes e um santo bastante representado pela iconografia colonial brasileira. Filho de nobres cristãos, ele viveu no século IV. Foi conselheiro do papa São Damásio e viveu em Belém, onde foi eremita. Traduziu a Bíblia para o latim e foi declarado doutor da Igreja ocidental.15 Sempre esteve ligado à história e ao povo de Portugal. Podemos ver sua importância medida pela construção do Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa. É representado como penitente, seminu e traje de tecido de palmeira. Podemos vê-lo golpeando-se no peito com uma pedra e contemplando um crucifixo. Às vezes, aparece como cardeal ou conselheiro do papa. Seus atributos são as vestes em púrpura, o capelo, um leão, um livro, tinteiro, lentes, uma pena e uma trombeta do juízo final. Outras vezes é apresentado como doutor, levando uma maquete de igreja e com a presença da pomba inspiradora. Comumente é representado com uma longa barba.16 Podemos encontrar, ainda, as representações dos doutores da Igreja grega ou oriental. Quando buscamos a história da Igreja, vemos que um dos atos mais influentes do imperador Constantino foi a decisão de mudar a capital do Império Romano para Constantinopla em 330 d.C. Essa cidade tornou-se um importante foco intelectual e religioso do cristianismo oriental. Enquanto isso, o cristianismo ocidental foi sendo centralizado na figura do papa em Roma. Os principais centros do cristianismo no Oriente eram Constantinopla, Jerusalém, Antioquia e Alexandria. Esses centros tinham uma vida intelectual e espiritual vibrantes, nos quais foram presididos concílios e discussões importantes sobre a fé e os dogmas da religião. A sua maior característica frente ao Ocidente cristão era a falta de uma autoridade centralizada17. Uma importante discussão que esses homens travavam era o tema do imperador como a autoridade máxima de Deus sobre a Terra.18 Com o tempo, esses centros seriam alvo da expansão do islamismo.19

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COSTA, 1993, p. 06-19.

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STREFLING, 2002, p. 11.

14

STREFLING, 2002, p. 89-90.

15

RANKE-HEINEMANN, 1996, p. 28.

16

ÁVILA, s.d., p. 49.

17

GOUGH, 1961, p. 100-115.

18

STE-CROIX, 1981, p. 397-400.

19

HOURANI, 2006, p. 121.


Doutores e Doutoras da Igreja : A Beleza do Testemunho,da Vida e da Palavra Temos, na iconografia brasileira, os representantes deste momento da história da Igreja: Santo Atanásio, o Grande20; São Basílio Magno21; São Gregório Nazianzeno22; e São João Crisóstomo23. Foram bispos e participaram de concílios. São representados como bispos gregos e vestidos em trajes episcopais. Têm como atributos o báculo, a mitra, a cruz de três braços, o pálio e a pomba do Espírito Santo. Esses personagens tornam-se colunas que sustentam a imagem da Igreja. Apresentam nas suas biografias a devoção à instituição e podem trazer como atributo igrejas em suas mãos. Em conjunto, esses homens e mulheres representam as fundações do cristianismo, a força da palavra e, muitas vezes, a cultura letrada. Por suas biografias, e por suas vestimentas, trazem a presença da Igreja para os mais distantes territórios. A realidade colonial brasileira, com a qual dialogavam, era o de pessoas com dificuldades de instrução formal, com um grande número de analfabetos ou pessoas que não sabiam ler. Por isso, o poder da história de suas vidas, suas palavras e aquilo que escreveram tornam-se tão significativos.

20 Santo Atanásio, O Grande, foi bispo de Alexandria. É sempre representado como bispo grego e, por isso, não mitrado. Participou do Concílio de Niceia e escreveu a biografia de Santo Antão. Tem como atributos uma barca e o triângulo símbolo da Santíssima Trindade, a cruz de três braços, o pálio e a pomba do Espírito Santo. Cf. CUNHA, 1993, p. 55 21 São Basílio Magno nasceu na Capadócia e foi um grande divulgador da doutrina cristã. É representado usando trajes episcopais. Tem por atributo a cruz de três braços, o pálio e a pomba do Espírito Santo. Cf. VARAZZE, 2003, p. 192 – 197. 22 São Gregório Nazianzeno é nascido na Capadócia, foi Bispo de Constantinopla e possuía o título de Patriarca. É sempre representado com trajes episcopais. Cf. LODI, 2001, p. 40-43. 23 São João Crisóstomo. Nascido em Antioquia na Síria, foi Bispo de Constantinopla e possuía o título de Patriarca. É representado em trajes episcopais ou vestido de dalmática. Sua imagem é retratada com barbas longas, portando báculo e mitra. Como Santo Ambrósio, tem como atributo a colmeia que simboliza a grandeza da pregação e a doçura das palavras. Cf. VARAZZE, 2003, p.798 – 806.

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Fonte: Wikimedia Commons

Santa Catarina de Siena (reprodução) Autor: Giovanni di Paolo (Itália, 1398/99 - 1482); têmpera sobre madeira, século XV (c. 1462), Itália. Dimensão: 108,6 x 53,3 cm | Acervo Harvard Art Museums / Fogg Museum

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Doutores e Doutoras da Igreja : A Beleza do Testemunho,da Vida e da Palavra

As Doutoras da Igreja

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Profª Drª Vanessa Beatriz Bortulucce

história de cada indivíduo é única. Cada homem concentra em si um universo peculiar e íntimo, onde se mesclam suas experiências, crenças, pensamentos e atos. A história da Igreja é construída por nomes extraordinários, cada qual com sua trajetória especial. E, se estamos acostumados a ler e ouvir sobre estas histórias tendo os homens como protagonistas, isso nem sempre é tão frequente quando se trata das mulheres. Contudo, a mulher impõe-se na História, deixa sua marca e sua força, assume seu espaço e imprime-se na memória coletiva, e também na Fé. Como qualquer outro ser humano, toda mulher é única. Mais surpreendente que a diversidade de santas católicas, especialmente considerando o desequilíbrio na educação formal entre os sexos, existem quatro mulheres especiais, nomeadas doutoras da Igreja, um título que eleva os seus escritos como obras fortemente influentes e que são úteis à Igreja. Ao acolher estas mulheres, a Igreja toma-as como corajosas, fortes, perseverantes, dotadas de fé, inteligentes e influenciadoras. Essas mulheres santificadas são completamente diferentes umas das outras, e, ao mesmo tempo, ressoam todas as mulheres do mundo. Cada cristão é convidado para manifestar o amor de Cristo de um modo único e agradável, assim como um belo vitral manifesta a luz divina.

Santa Catarina de Siena (25.03.1347 – 29.04.1380)

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“Construa uma cela em sua mente da qual você jamais possa escapar.”

rimeira leiga declarada doutora da Igreja, teóloga, mística, terciária da ordem dominicana, santa padroeira da Itália, Catarina de Siena nasceu em uma família numerosa, com o nome de Caterina Benincasa, a mais nova de 23 crianças. Seu pai era um tintureiro bem sucedido, e a maioria de seus parentes homens era oficiais públicos ou que haviam escolhido o sacerdócio. Por volta dos sete anos de idade, Catarina começou a ter visões religiosas. A partir destas experiências, iniciou a prática do jejum (algo constante em grande parte de sua vida), bem como fez voto de castidade, sem nem mesmo informar aos seus pais, que nutriam o desejo de arrumar um bom casamento para sua filha (o noivo seria o viúvo da sua irmã mais velha, Boaventura, que falecera). Ao cortar os seus cabelos – algo que era feito pelas noviças ao ingressarem num convento – Catarina é punida pelos pais, revelando, então, seu voto. Esses permitem, finalmente, que a jovem torne-se uma terciária da ordem dominicana, juntando-se, em 1363, às Irmãs da Ordem da Penitência de São Domingos, uma ordem constituída em sua maioria por viúvas. Como não se tratava de uma ordem que defendia o confinamento, Catarina vivia na casa de sua família. Nos seus três primeiros anos na ordem, ela permaneceu isolada em seu quarto, tendo contato apenas com seu confessor. Após esse período de contemplação e prece, ela desenvolveu um rico sistema teológico, incluindo sua teologia do Sangue Precioso de Jesus.

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Museu de Arte Sacra de São Paulo Foi ao fim deste período de isolamento que Catarina acreditou que possuía uma missão divina, a de andar pelo mundo e servir, como uma forma de salvar almas, bem como trabalhar pela sua própria salvação. Por volta de 1367, ela vivenciou o casamento místico com Cristo, o qual Maria presidiu junto com outros santos, e recebeu um anel como símbolo de seu matrimônio – um anel que Catarina afirmava estar permanentemente em seu dedo, e que era visível somente a ela. Catarina jejuava constantemente, nunca deixando de comungar. A autoflagelação também era uma prática comum. Suas visões atraíram diversos seguidores, tanto no universo eclesiástico quanto no secular, e seus conselheiros apelavam para que ela tornasse ativa nas esferas pública e política. Muitos personagens políticos a procuraram, no desejo de que ela pudesse ser a mediadora de disputas, bem como oferecer conselho e orientação espiritual. Catarina não aprendeu a escrever. Ela não possuía uma educação formal, embora soubesse ler, algo aprendido em seus vinte anos. Ela ditava suas cartas e outros escritos para suas ajudantes. O mais conhecido de seus textos é O Diálogo (também conhecido por Diálogos), uma série de tratados teológicos sobre a doutrina cristã, escritos com um uma precisão lógica que não prescinde da emoção profunda. Em 1375, em uma de suas visões, Catarina é marcada com a stigmata de Cristo. Como o seu anel, as marcas são unicamente visíveis por ela. Neste mesmo ano, a cidade de Florença a procurou para negociar o fim de um conflito com o governo do papado em Roma. O próprio papa estava em Avignon, onde os papas permaneciam já há 70 anos. Nessa cidade, o papa estava sob influência do governo e da Igreja franceses. Muitos temiam que o papa estivesse perdendo o controle da Igreja por estar tão distante de Roma. Os escritos religiosos e demais trabalhos (e também as conexões sociais mantidas pela sua família e por seu tutor e confessor Raimundo de Cápua) fizeram com que seu nome ganhasse a atenção do papa Gregório XI, ainda em Avignon. Ela viajou a esta cidade, mantendo audiências particulares com o papa, convencendo-o de que ele deveria deixar a cidade francesa e retornar a Roma, para atender a vontade de Deus. Os franceses queriam o papa em Avignon, e Gregório, com a saúde precária, provavelmente desejava retornar a Roma, para que o seu sucessor fosse lá escolhido. Em 1377, Gregório finalmente retorna a Roma. Em 1380, em parte para expiar o grande pecado que acreditou testemunhar nesse conflito, Catarina abriu mão de toda água e comida. Já muito debilitada pelos anos de constante jejum – seu confessor nos relata que o único alimento era a hóstia consagrada –, Catarina adoece gravemente. Ela suspendeu o jejum, o que não impediu a sua morte precoce, aos 33 anos. Na hagiografia de Catarina de Siena, realizada por Raimundo de Cápua, publicada em 1398, o autor observa que esta foi a idade de Cristo, ao ser crucificado, bem como da morte de Maria Madalena, considerada um modelo para Catarina. Pio II, também nascido em Siena, canonizou Catarina de Siena em 29 de julho de 1461. A partir de um decreto de 13 de abril de 1866, o papa Pio IX declarou Santa Catarina como padroeira de Roma; em 18 de julho de 1939, Pio XII a declarou padroeira da Itália (juntamente com São Francisco de Assis). Em 1970, ela foi reconhecida como doutora da Igreja pelo papa Paulo VI, o que significa que os seus escritos foram aprovados como ensinamentos dentro da Igreja. Em 1999, o papa João Paulo II proclama Santa Catarina de Siena co-padroeira da Europa, juntamente com Santa Brígida da Suécia e Santa Benedita da Cruz, reconhecendo a importância da santidade do rosto feminino. O Diálogo de Catarina de Siena ainda hoje é uma obra seminal, traduzido e lido em várias línguas. Também existem as 350 cartas que ela ditou. Suas cartas assertivas e


Doutores e Doutoras da Igreja : A Beleza do Testemunho,da Vida e da Palavra incisivas aos bispos e papas, bem como seu compromisso de atender os pobres e os doentes fez de Catarina um modelo de espiritualidade ativa e da Palavra. A Basílica de São Domingos, em Siena, guarda uma das mais importantes relíquias da Igreja católica, a cabeça mumificada de Santa Catarina de Siena, que está exposta em uma redoma de bronze.

Santa Hildegarda de Bingen (1089 – 1179)

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“Todo elemento tem um som, um som original que parte da ordem de Deus; todos estes sons unem-se como a harmonia de harpas e cítaras.”

badessa, polímata, musicista, poeta, filósofa, teóloga: nos tempos injustamente denominados de “idade das trevas”, Hildegarda de Bingen destacou-se com o seu brilhante intelecto, autora de escritos de uma fé vibrante. Conhecida como a “Sibila do Reno”, Hildegarda nasceu no castelo de Böckekheim, a décima filha de uma família abastada. As visões que vivenciava desde a infância determinaram a decisão dos seus pais em enviá-la, no ano de 1106, para um mosteiro que havia recentemente criado uma ala para mulheres. Os pais de Hildegarda colocaram a filha sob os cuidados de uma nobre residente no local, Jutta, que ensinou a jovem a ler e a escrever. Jutta tornou-se a abadessa do convento, que atraía outras mulheres de famílias advindas da nobreza. Naquele tempo, os conventos eram, em sua maioria, locais de ensino e estudo, um espaço receptivo para mulheres que possuíam talentos intelectuais. Hildegarda, como outras mulheres em outros conventos do período, aprendeu o latim, estudou as Sagradas Escrituras, e teve acesso aos vários livros de natureza religiosa e filosófica. A maioria dos estudiosos das obras de Santa Hildegarda constata o alto grau de erudição e saber da autora, leitora e estudiosa incansável. Isso também deve-se a regra beneditina, que valorizava o estudo e a leitura. Quando Jutta morre em 1136, Hildegarda foi unanimemente escolhida como a sua sucessora. Ao invés de permanecer como uma instituição que abrigava unidades para homens e mulheres, a jovem decide modificar o mosteiro, deslocando o convento, em 1148, para Rupertsberg, independente de uma direção masculina. Essa mudança conferiu a Hildegarda uma grande liberdade enquanto administradora, realizando diversas viagens na Alemanha e na França. Ela afirmava que realizava a vontade de Deus, contestando firmemente a oposição do abade. E assim, mantendo-se firme em seus propósitos, obteve, finalmente, a permissão do mosteiro para que a mudança do convento ocorresse. O processo teve fim em 1150. O convento de Rupertsberg cresceu, acolhendo 50 mulheres, tornando-se também um local para os sepultamentos daqueles oriundos das famílias mais abastadas. Assim era com as mulheres acolhidas pelo convento; acostumadas com o conforto material. Inclusive, não eram desencorajadas a abrir mão deste estilo de vida. Hildegarda afirma que usar joias para rezar a Deus significava honrá-lo, e não configurava um ato de egoísmo. Em seus primeiros anos no convento, Hildegarda dedicou-se à enfermagem; já em Rupertsberg, dedicou-se, entre outras atividades, à ilustração de manuscritos (iluminuras). Contudo, não revelou de imediato suas primeiras visões; somente mais tarde passou a escrever e compartilhar o que lhe ocorria. Hildegarda viveu em uma época onde, no interior da ordem beneditina, havia uma tensão sobre o que significavam as ideias de experiência interior, de meditação pessoal, das visões e acerca das experiências

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Detalhe: Hildegarda de Bigen (Hildegardbild) De acordo com o projeto para a igreja paroquial em Eibingen, Alemanha. Autor: P. Paulus Krebs; Aquarela sobre papel; 1912, Alemanha. | Dimensão: 67,5 x 44,5 cm Créditos: KLOFT, Matthias Theodor; MÜLLER, Dominik. Der Maler der Hl. Hildegard”: Frauen und die Beuroner Kunst : eine Ausstellung des Diözesanmuseums Limburg 14. April - 26. Juni 2016. Deutschland: Diözesanmuseums Limburg, 2016. P. 50.

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Doutores e Doutoras da Igreja : A Beleza do Testemunho,da Vida e da Palavra mais diretas com Deus. Na Alemanha, também existia a luta entre a autoridade papal e a autoridade do Sacro Império Romano Germânico. Através de suas várias cartas, Hildegarda de Bingen procurou dialogar com o imperador Frederico Barbarossa e o arcebispo de Main. Ela escreveu para uma série de homens e mulheres importantes, como o rei Henrique II da Inglaterra e sua esposa, Leonor de Aquitânia. Ela também manteve correspondência com indivíduos das mais variadas camadas sociais, que a procuravam por conselhos e preces. Prolífica escritora – superando mulheres e homens de seu tempo – , Hildegarda de Bingen produziu poesia e peças de teatro. Foi também musicista, e muitos dos seus hinos e cânticos são executados até hoje. Ela também escreveu sobre medicina e ciências naturais (textos sobre a natureza). Sua obra mais conhecida é uma trilogia de textos, escritos entre 1141 e 1152, que incluem Scivias, Liber Vitae Meritorum (Livro da Vida dos Méritos), e Liber Divinorum Operum (Livro das Divinas Obras). Estes incluem registros de suas visões – muitas apocalípticas – e suas explicações sobre as Sagradas Escrituras. É importante observar que, para Hildegarda de Bingen, assim como para muitos homens e mulheres da época medieval, teologia, medicina, música, e outros tópicos do saber eram entendidos como um saber único, indissociáveis uns dos outros, e não como esferas separadas de conhecimento. Apesar de jamais ter se rebelado acerca do papel da mulher em sua época, Hildegarda de Bingen exerceu uma autoridade incomum às mulheres de seu tempo. Celebrou a comunidade e a beleza femininas em seus escritos espirituais. Ela utilizava a metáfora do casamento com Deus, embora não fosse a inventora do termo. Em suas visões, estão presentes as figuras femininas: Ecclesia, Caritas, Sapientia, dentre outras. Ao mesmo tempo, manteve um posicionamento firme, de defesa absoluta da Igreja, frente a algumas polêmicas de sua época: defendia a ordem como superior à mudança; e as reformas da Igreja incluíam a superioridade do poder eclesiástico sobre o poder secular, ou seja, a superioridade do papa em relação ao rei. Hildegarda faleceu em 17 de setembro de 1179, aos 90 anos. Em 1324, João XXII autorizou a sua veneração pública. Seu nome foi inscrito como santa em 1584, sob a aprovação do papa Gregório XIII. Em 10 de maio de 2012, o papa Bento XVI proclamou publicamente sua santidade, inserindo o seu nome de forma definitiva na lista dos santos católicos. Ainda no mesmo ano, através de uma carta apostólica, a santa foi honrada com o título de doutora da Igreja, por causa de sua doutrina, a importância de seus tratados e sua influência sobre os demais teólogos.

Santa Teresa d’ Avila (28.03.1515 – 04.10.1582)

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“Senhor, ou me deixe sofrer ou me deixe morrer.” anta Teresa d’ Ávila é considerada um dos maiores gênios que a humanidade já testemunhou. Também conhecida como Santa Teresa de Jesus, foi uma freira carmelita, mística e santa católica, e doutora da Igreja. Foi também uma das reformadoras da ordem carmelita, considerada cofundadora da Ordem das Carmelitas Descalças, juntamente com São João da Cruz.

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Fonte: Wikimedia Commons

Detalhe: Santa Teresa d’ Ávila (reprodução) Autor: Desconhecido baseado na obra de José de Ribera (1591-1652); óleo sobre tela; século XVII, Espanha. Dimensão: 104 x 83 cm | Acervo Museo Nacional del Prado, Madrid

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Doutores e Doutoras da Igreja : A Beleza do Testemunho,da Vida e da Palavra Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada nasceu em 1515 em Gotarrendura, cidade da província de Ávila (Reino de Castela). Foi criada com especial zelo religioso, principalmente por sua mãe, Beatriz. Ainda criança, ficou encantada com a leitura da vida dos santos mártires, a ponto de ter combinado fugir com o irmão mais novo, Rodrigo, para uma região onde muitos cristãos eram martirizados; o projeto foi frustrado graças à interferência dos pais. A morte da mãe quando Teresa tinha catorze anos causou grande e persistente tristeza, e a jovem tornou-se cada vez mais devota à Virgem Maria, como sua mãe espiritual. É por volta desta época que Teresa é enviada como interna ao Convento de Nossa Senhora da Graça, uma escola de freiras agostinianas, na província de Ávila. Antes de professar seus votos adoeceu gravemente, o que fez com que seu pai a retirasse do convento. As diversas leituras realizadas pela convalescente a auxiliaram a recuperar a saúde, após três anos: leu obras devocionais e ascetas, como o Tractatus de Oratione et Meditatione de São Pedro de Alcântara. A partir da leitura da obra, a jovem Teresa iniciou suas meditações. Reestabelecida, retornou ao convento para tomar seu hábito no Carmelo. Teresa entrou para o Convento Carmelita da Encarnação na cidade de Ávila em 2 de novembro de 1535; lá, notou que muitas das práticas religiosas encontravam-se em franco desdém; o enclausuramento, importante no reforço do espírito e na prática da oração – não mais era observado. Tal panorama abalou Teresa que, certo dia, tocada pelo olhar da imagem de um Cristo sofredor, assumiu a missão de retomar o fervor da espiritualidade carmelita, empenhada em criar um modelo de espiritualidade. No ano de 1559, Teresa testemunha muitas visões, e está convencida de que Jesus Cristo teria aparecido a ela de corpo presente, porém de forma invisível. Essas visões continuaram por mais de dois anos ininterruptos e, numa delas, a santa afirmou que um serafim trespassou repetidamente seu coração com a ponta inflamada de uma lança dourada, provocando uma inefável dor espiritual e corporal. Essa visão tornou-se uma das mais emblemáticas na história de Teresa d’ Ávila. A partir deste momento, Teresa passou a receber o incentivo do padre franciscano São Pedro de Alcântara – mais tarde, seu mentor – , que a impulsionava a expressar suas motivações íntimas. Assim, Teresa decidiu fundar um Carmelo reformado, corrigindo toda a não observância às normas do convento. Esse novo Carmelo, batizado de Convento de São José, foi fundado em 1562 e era caracterizado pela pobreza extrema, e quase foi suprimido; poderosos patrocinadores, como o próprio Bispo de Ávila, asseguraram a existência do convento. A partir daí viajou para todas as direções da Espanha, criando novos carmelos e reformando os antigos. Provocou com isso muitos ressentimentos por parte daqueles que não aceitavam a vida austera que propunha para o Carmelo reformado. Chegou a ter temporariamente revogada a licença para reformar outros conventos ou fundar novas casas. Em março de 1563, quando Teresa se mudou para o novo claustro, recebeu a sanção papal em relação ao seu desejo de uma regra de pobreza absoluta no Carmelo, através da renúncia à propriedade. Ela passou seus cinco primeiros anos no convento novo reclusa, dedicando-se à escrita. Teresa defendia firmemente a recuperação das regras antigas, sendo estas observadas com rigor; a elas, juntaram-se novos regulamentos, como as três disciplinas de flagelação cerimonial prescritas para o ofício divino, realizadas todas as semanas e também o abandono do uso de calçados. Teresa ordenou o respeito à mais completa clausura e à observância de um silêncio permanente. As religiosas vestiam hábitos bastante simples, e usavam sandálias em vez de sapatos – daí advém o uso da palavra “descalça”; também deviam renunciar à ingestão de carne.

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Detalhe: Santa Teresa de Lisieux (reprodução) Autor desconhecido, 1986, França Fonte: < http://www.couventsaintetherese.com/therese/photos/photos.asp>

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Doutores e Doutoras da Igreja : A Beleza do Testemunho,da Vida e da Palavra Santa Teresa deixou-nos várias obras grandiosas, que manifestam a vida contemplativa através da oração. Suas práticas meditativas estão detalhadas em o Caminho da Perfeição (Camino de Perfección). Seus livros, Pensamentos sobre o Amor de Deus, A Vida, e sua obra prima, O Castelo Interior (El Castillo Interior), são obras essenciais para o estudo da literatura renascentista da Espanha, bem como para o misticismo cristão. Conseguiu fundar mais de trinta e dois mosteiros, além de recuperar o fervor primitivo de muitas carmelitas, juntamente com São João da Cruz, também doutor da Igreja, místico e reformador da parte masculina da Ordem Carmelita. Morreu em Alba de Tormes na noite de 15 de outubro de 1582 aos 67 anos. Foi canonizada pelo papa Gregório XV em 1622. No dia 27 de setembro de 1970 o papa Paulo VI reconheceu-lhe o título de doutora da Igreja, mesmo ano em que Catarina de Siena recebeu esse reconhecimento. Catarina e Teresa são as duas primeiras doutoras da história da Igreja católica. Sua festa litúrgica é no dia 15 de outubro. Milhares de pessoas até hoje enaltecem a sua perspicaz inteligência e determinação, bem como a força persuasiva de seus argumentos.

Santa Teresa de Lisieux (02.01.1873 – 30.09.1897)

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“Pretendo passar a vida inteira no céu, mas continuar meu bom trabalho na terra.”

onsiderada uma das santas mais queridas da Igreja católica, Santa Teresa de Lisieux, também conhecida como Santa Teresinha do Menino Jesus, nasceu Marie Françoise Thérése Martin em Alençon, na Normandia, em 1873. Filha de Louis Martin, relojoeiro e joalheiro e de Zélie Guérin, uma rendeira. O casal Martin teve ao todo nove filhos, dos quais cinco filhas sobreviveram à infância – quatro morreram ainda crianças. Todas as cinco meninas tornaram-se freiras, uma decisão da mãe, bastante devota, assim como de seu marido. Zélie morre de câncer quando Teresa tinha apenas quatro anos e meio de idade. Seu pai e suas irmãs mais velhas (Marie, Pauline, Leonie e Céline) revezam-se nos cuidados da menina. Pauline, especialmente, tornou-se uma segunda mãe para Teresa, mas isso não foi suficiente para aplacar a profunda tristeza da criança, que chorava constantemente, manifestando uma hipersensibilidade. Nesta época iniciou o seu profundo apego ao Menino Jesus; aos seis anos e meio, ao começar a se preparar para a primeira comunhão, catequizada por sua irmã Pauline, o amor ao Menino Jesus vai aumentando em seu coração. Após a morte de Zélie, Louis Martin mudou-se com sua família para Lisieux para ficar perto da família de sua esposa. Quando Teresa tinha oito anos, matriculou-se na escola da abadia beneditina como estudante; este período na escola não foi particularmente feliz, e a menina sofreu bastante. A essas dificuldades, juntou-se a entrada de Pauline no mosteiro carmelita de Lisieux em 1882, o que abalou Teresa profundamente, ficando doente. Após deixar a escola em 1886, passou a ter aulas particulares, enquanto que, nesse mesmo ano, outras duas irmãs ingressam em conventos: Leonie para os Visitandines e Marie para o Carmelo de Lisieux, onde estava Pauline, já irmã professa.

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Museu de Arte Sacra de São Paulo Aos 14 anos, Teresa decidiu ingressar no convento das carmelitas descalças de Lisieux. A jovem foi aceita pelas carmelitas, mas com algumas condições: o eclesiástico superior que supervisionava o convento decidiu que seria melhor que Teresa completasse 21 anos para poder ingressar no convento. Porém, Teresa insistiu em ingressar imediatamente: após uma tentativa, sem sucesso, de angariar o apoio do bispo local, ela decidiu encontrar-se pessoalmente com o papa Leão XIII. Teresa, juntamente com seu pai e a irmã Céline, fizeram uma viagem a Roma, e na audiência com o papa, ela pediu-lhe para deixá-la entrar para o Carmelo. O papa Leão XIII respondeu: “Você entrará se Deus quiser”. Logo depois Teresa entrou para o Carmelo, e passou a ter uma existência de humildade, de uma simplicidade repleta da pureza infantil, marcada pela sólida confiança em Deus. Pela palavra e pelo exemplo, ela compartilhou estes aspectos com as outras noviças. Aos 23 anos, já priora, Teresa começou a escrever sua autobiografia, A História de uma Alma, obra que testemunha a sua profunda espiritualidade. Próximo à sexta-feira santa do ano de 1896, Teresa começou a tossir sangue, indício da tuberculose que muito piorou sua saúde nos dezoitos meses seguintes. Em 30 de setembro de 1897, Teresa morreu de tuberculose aos 24 anos de idade. Dois anos mais tarde, sua autobiografia foi publicada, e hoje sua obra está traduzida em várias línguas. O corpo de Teresa foi exumado no cemitério em 6 de setembro de 1910, na presença do bispo e de muitas outras pessoas. Seus restos mortais foram colocados em um caixão de chumbo e transferidos para outro túmulo. Após uma segunda exumação, ocorrida em 1917, começaram os preparativos para a transferência solene do caixão do cemitério para a capela do Carmelo, que ocorreu somente em 1923, no dia 26 de março. Teresa foi beatificada pelo papa Pio XI em 29 de abril de 1923. Ela foi canonizada em Roma pelo papa Pio XI em 17 de maio de 1925; estavam presentes 500 peregrinos na ocasião. O mesmo papa a proclamou Padroeira Universal das Missões, juntamente com São Francisco Xavier, em 14 de dezembro de 1927. Em 17 de outubro de 1997 ela foi nomeada doutora da Igreja pelo papa João Paulo II. Seu dia de festa é 1º de Outubro. Nos meses que antecederam sua morte, Teresa rezou para que pudesse passar para o céu e continuar a fazer o bem na terra. Também prometeu que enviaria uma “chuva de rosas” do céu, assim que tivesse falecido. É desta forma que as rosas, presentes na maioria das imagens da santa, simbolizam seu carinho, sua doçura e seu cuidado com todas as pessoas.


GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO Geraldo Alckmin Governador do Estado José Luiz Penna Secretário de Estado da Cultura Regina Célia Pousa Ponte Coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer Arcebispo Metropolitano de São Paulo ASSOCIAÇÃO MUSEU DE ARTE SACRA DE SÃO PAULO – SAMAS Conselho Administrativo José Oswaldo de Paula Santos Presidente do Conselho de Administração Rodrigo Mindlin Loeb Vice - Presidente Arnoldo Wald Filho Cesar Giobbi Demosthenes Madureira de Pinho Neto Dom Carlos Lema Garcia Dom Edmar Peron Haron Cohen Luiz Arena Maria Elisa Pimenta Camargo Araujo Pe. Fernando José Carneiro Cardoso Pe. José Rodolpho Perazzolo Pe. Valeriano Santos Costa Renato de Almeida Whitaker Ricardo Almeida Mendes Ricardo Nogueira do Nascimento Ricardo Von Brusky Roberta Maria Rangel

Rosimeire dos Santos Conselheiros Conselho Fiscal José Emídio Teixeira Jussara Delphino Pe. José João da Silva Conselheiros Conselho Consultivo José Roberto Marcellino dos Santos Presidente Ary Casagrande Filho Beatriz Vicente de Azevedo Cônego Celso Pedro da Silva Marcos Mendonça Maria Alice Milliet Mari Marino Ricardo I. Ohtake Silvia Aquino Tito Enrique da Silva Neto Conselheiros MUSEU DE ARTE SACRA DE SÃO PAULO José Oswaldo de Paula Santos Presidente do Conselho de Administração - SAMAS José Carlos Marçal de Barros Diretor Executivo Maria Inês Lopes Coutinho Diretora Técnica Luiz Henrique Marcon Neves Diretor de Planejamento e Gestão EXPOSIÇÃO Marcos Horácio Gomes Dias Vanessa Beatriz Bortulucce Curadoria


João Rossi Colaboração Genisvan Barbosa da Conceição Jose Mauri Vieira Marcelo Batista Oliveira Montagem e iluminação Wermeson Teixeira Soares Segurança e manutenção – coordenação Pedro Paulo de Sena Madureira Consultoria editorial Iran Monteiro Leandro Fonseca Fotografia de acervo Roseane Sobral Comunicação visual, capa, projeto gráfico, tratamento de imagem e diagramação Claudio S. de Oliveira CRB 8-8831 Ficha Catalográfica

Carmen Luiza Valeriano Batista Conservação Preventiva Alana Iria Augusto Célia Maria Bezerra Cupertino Elaine Bueno Prado Elisa Carvalho Lia de Oliveira Ravaglia Strini Rosimeire dos Santos Acervo - Catalogação e Exposição Ligia Diniz Assistente - Equipe Técnica Vanessa Costa Ribeiro – coordenação César Orte Novelli Rodrigues – supervisão Ação Educativa RR Donnelley Impressão Compulaser Impressão Plotagem Silvia Balady Assessoria de Imprensa

Agradecimentos Os curadores agradecem a: Pe. José Arnaldo Juliano dos Santos, João Rossi, Fátima Paulino, Carmen Luiza Valeriano Batista, Alana Iria Augusto, Elaine Bueno Prado, Elisa Carvalho, Lia de Oliveira Ravaglia Strini, Rosimeire dos Santos, Roseane Sobral e toda a equipe de montagem, segurança e manutenção do Museu de Arte Sacra de São Paulo, cujos esforços e dedicação foram fundamentais para a realização dessa mostra.


Ficha catalografica_doutores.pdf

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Doutores e doutoras da Igreja: A beleza do testemunho da vida e da palavra:/ curadoria: Marcos Horácio Gomes Dias, Vanessa Beatriz Bortulucce – São Paulo: Museu de Arte Sacra de São Paulo, 2017. 48p. : il. ISBN 978-85-67787-22-0 Exposição realizada de 06 de maio a 09 de julho de 2017 no Museu de Arte Sacra de São Paulo. 1. Exposição 2. Santo 3. Igreja 4. Museu de Arte Sacra de São Paulo I. Título. II. Autor.

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