4 minute read

A Arte de-Ser Toda a ---Gente

Next Article
2015 2016

2015 2016

J O O Braga

Conviver durante mais de cinquenta anos com José Pracana foi um privilégio e a oportunidade de apreender as pessoas e o mundo com um olhar irónico, mas isento de maldade, foi partilhar a capacidade de observação aguda e a fonte inesgotável de criatividade e de transfiguração que são os dotes que melhor o caracterizam.

Advertisement

Outrora os alquimistas aludiam a uma alma de diamante que seria a aptidão de prescindir de uma visão pessoal, narcisista e adulterada do real para se identificar e confundir com toda a criação: ano após ano, José Pracana explorou esta arte de ser.

Tal como a dupla espiral de fogo que vai circulando por todos os reinos da natureza e vai irmanando a rocha, a árvore, a couve-flor e o ser humano na mesma aventura ascendente, ele deu inesquecíveis espectáculos de se “converter” em formiguinha atarefada, macaco irrequieto, cavalo de cortesia, criatura anónima afligida por doença insanável, palavroso escritor de sucesso, inumeráveis políticos sem norte, bardos românticos, cançonetistas exaltadas, ou fadistas atormentados. Sobre ele descia esse dom admirável de ser a voz e o gesto de toda a gente; deslumbrava os amigos quando era, entre muitos outros, Vitorino Nemésio, Marcelo Caetano, Tony de Matos, Simone de Oliveira ou Alfredo Marceneiro. Como um vulcão que explode as potencialidades reprimidas, José Pracana prescindiu quase sempre de ser ele mesmo para plasmar uma poderosa personalidade universal que o tornava um ente especial, atraente e inimitável. É a arte de ser toda a gente.

Tinha uma conexão íntima com o som, cultivava a paixão de dedilhar a guitarra portuguesa e perscrutava a génese de cada fado como se fosse o verbo que determina a natureza dos seres.

José Pracana exibiu quase sempre um perfume de felicidade nostálgica e de liberdade reencontrada que lhe permitiram encarar toda a sua vida com uma boa disposição à prova de bala e um sentido de humor desprovido de qualquer compromisso. Dotado de um físico invejável e de um talento transbordante, José Pracana foi um conquistador em série até encontrar o porto por achar, que lhe ofereceu Maria Natália, com quem casou e de quem teve um filho.

“Os deuses vendem quanto dão”. A labareda que alimentava o ímpeto vulcânico que o levava a viver com radical intensidade, foi um dom e também uma maldição; foi motivo de se tornar sinónimo de alegria e de entretenimento para os amigos e para o público, que o aplaudia nos concertos ou se deliciava com os programas de televisão em que participou. Mas foi, igualmente, origem da doença que lhe iria minar a traqueia, e fonte de pesquisa e estudo para os investigadores que em Boston procederam à remoção do órgão afectado pelo cancro para o substituir por um pioneiro instrumento artificial feito à medida.

Durante anos, sem queixas nem arrependimentos, José Pracana submeteu-se e disponibilizou-se nos EUA aos esforços complexos e inovadores da cirurgia de ponta que luta, um pouco por todo o mundo, para entender a causa dos carcinomas e a forma de combater ou minorar a devastação que anualmente provocam. E fez tudo isto sem nunca mostrar angústia, sem se lhe ouvir um queixume, preferindo teimar numa correria pela parte lúdica da vida, fazendo rir e rindo.

Não me parece estulto afirmar-se que José Pracana terá sido o artista açoriano mais benquisto dos portugueses entre as últimas três décadas do século XX e as duas primeiras do século XXI, mormente nos meios fadistas em geral e do Fado tradicional em particular, que ele enalteceu como poucos o fizeram ou farão. Personagem complexa, Pracana cantava o Fado de uma forma muito rara, com uma entrega que simultaneamente comovia ou empolgava quem o escutava, dependendo das características do fado que estivesse interpretando. Mais do que isso parecia imprimir uma heteronímia fadista ao seu estilo, reunindo num só todos os que ele ia assimilando à medida que se embrenhava pelos misteriosos e indecifráveis caminhos do Fado.

Escutá-lo era quase como ler Pessoa a criar muitas pessoas para lá da sua. Convivia visivelmente com alguma ansiedade, numa busca incessante de tudo quanto dissesse respeito ao Fado, que é como quem diz, à Vida, numa infatigável ânsia do que reportasse à música fadista até encontrar a causa que teria levado determinado melodista de fados a crismar cada uma das suas obras com um nome e não com um outro, ou os motivos que teriam alguns guitarristas para disputar a autoria de conhecidos temas, por vezes em tom mais do que enérgico, e até o porquê da cedência de certos versos ao ou à fadista que acabariam por celebrizá-los. Tendo dito que José Pracana foi um exímio cantador de fados, quando perdeu a capacidade de os cantar como estimava, cedo demais, diga-se, transmudou toda a sua emoção fadista para a guitarra portuguesa, que ele já dedilhava com inusitada paixão, sendo mesmo capaz de a tocar horas a fio e isto sem prejuízo da atenção de quem o escutava lhe dedicasse, muito por culpa da versatilidade da sua execução mas, sobretudo, pelo empenho arrepiante que punha em todos os temas do seu repertório.

A contragosto do seu fado mais emblemático, Um Fadista Já Cansado, José foi um incansável fadista e, a partir do momento em que se cruzou mais de perto com o lendário Alfredo Marceneiro, muito cedo na sua vida, passou a pautar a sua conduta nos lugares do Fado por uma espécie de heteronímia que o fazia parecer um outro Alfredo Duarte, com os mesmos termos, o mesmo andar gingão, a mesma gestuália, a mesma mimese, tal era a perfeição com que ele imitava a voz e o gesto do até então inimitável Marceneiro. E não se pense que ele se confinava ao gesto e à fala, porque na sua pracaniana forma de vida, o José personificava Alfredo de tal ordem que quem apenas o ouvisse cantar os seus fados ou contar as suas historietas julgaria estar na presença do Mestre.

Foi essa vertente heteronimista que permitiu a José Pracana trazer consigo o dom da palavra, o sentimento, a acção e demais características de quem decidia personificar, muito para lá do que, repete-se, mimetizar. E por isso quem teve a dita de ser presenteado com tais momentos cria estar a ver e a ouvir António Salazar, Vitorino Nemésio, Pedro Homem de Mello, António Ramalho Eanes, Aníbal Cavaco Silva, Carlos Ramos, Tony de Matos, Francisco José, Simone de Oliveira, Tristão da Silva, Vicente da Câmara, Manuel de Almeida, Vasco Santana ou António Silva, entre outros.

José Pracana, António Luís Gomes, João Braga, Francisco Perez Andión (Paquito), Segismundo Bragança, Nova Iorque, EUA, 1978.

Colecção José Pracana

Por tudo quanto aqui fica dito, o universo fadista terá de mostrar gratidão ao Museu do Fado por em boa hora ter tomado a iniciativa de organizar esta exposição, que visa homenagear uma das mais completas figuras que o Fado já conheceu, perpetuando o trabalho desenvolvido, quase ininterruptamente, por José Pracana, em busca da clarificação de muitos pequenos mistérios do Fado, da intensidade emocional de o cantar, da comovedora plangência de o tocar, numa actividade ímpar em prol da música que Amália celebrizou em todo o mundo.

João Braga

This article is from: