LISBOA CAPITAL REPÚBLICA POPULAR

Page 1

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

ABRIL, 2014

maisabril MEMÓRIA

Maria Manuela Cruzeiro, Júlio Pomar e Gustavo Cardoso

JORNALISMO

Ricardo Costa, Nuno Pacheco, Rui Hortelão, André Macedo e Pedro Camacho

LITERATURA

Bruno Vieira do Amaral, Carlos Monteiro e Luís Leal Miranda

MÚSICA

Ana Markl, Davide Pinheiro, Mário Lopes, Paulo Cecílio e Tiago Pereira

#MAISABRIL#MAISABRIL#MAISABRIL#MAISABRIL#MAISABRIL#MAISABRIL


02 I ABRIL, 2014

03 I ABRIL, 2013

EDITORIAL

No ano em que se assinalam 40 anos de Abril, Lisboa Capital República Popular reclama “Mais Abril”. “Mais Abril” porque lembramos, sem questionar, o heroísmo individual dos que tornam as revoluções ventos de mudança para todos. Um heroísmo sem a natureza do divino, sem força sobre-humana, sem super-poderes. É uma outra espécie de heroísmo: o heroísmo real, anónimo, individual dos valores humanos que reunem, na luta, a força bruta da humanidade e que tornam real o agir pela mudança. A uma voz “Mais Abril”, porque nunca pode ser demais o apelo individual e a força coletiva, existentes nos valores e ideais desse abril de 1974, porque há quarenta anos que todos os anos é abril. E ainda, porque todos os anos que passam tornam Abril mais passado, importa a perceção das memórias para o entendimento do presente e o debate sobre o futuro. Por tudo isto, reclamamos “Mais Abril” e promovemos o diálogo, em diálogo permanente, e o repensar plural sobre a atualidade deste momento central da nossa história contemporânea. Estudantes de Comunicação Social de todo o país responderam ao desafio e escreveram sobre a sua perceção de Abril em artigos de opinião e reportagens. Gustavo Cardoso olhou para estas contribuições e analisou o seu valor interno, as suas memórias não vividas em 1974, a sua perceção de Abril como algo alheio que lhes é um legado. E porque “Lisboa Capital República Popular” invoca o nome de quatro periódicos já desaparecidos e, ao fazê-lo, recupera o pregão revolucionário gritado pelos ardinas da altura, propusemos um olhar crítico e participativo relativamente à imprensa e à livre circulação de informação e opinião. Nuno Pacheco, Ricardo

Costa, Rui Hortelão, André Macedo e Pedro Camacho explicam o que é ser-se jornalista hoje e, num diálogo imaginário com as novas e futuras gerações de jornalistas, refletem, de forma crítica, sobre o papel da imprensa enquanto local de exercício da democracia. Com a investigadora Maria Manuela Cruzeiro, pensamos o direito à memória: o elemento autêntico de uma sociedade democrática. Foi essa memória que permitiu a Bruno Vieira do Amaral escrever sobre a descoberta recente do nome do soldado que alterou o rumo da história. A mesma memória que se quis apagar com a proibição de inúmeros livros, proscritos durante décadas pelo regime, foi aqui resgatada por Carlos Monteiro e Luís Leal Miranda, numa infografia onde o lápis azul fica de fora. Júlio Pomar, incisivo e sem lirismos, diznos que precisamos de um novo Abril para os manda-chuva, algo difícil de encontrar na secção de classificados criada por João Silva. Ana Markl, Davide Pinheiro, Mário Lopes, Paulo Cecílio e Tiago Pereira dão-nos música para acordar, porque, se pudermos acordar, então teremos a nossa revolução. Cada um escolheu uma música marcante para cada década que nos separa de Abril. E se a revolução fosse hoje? Qual a senha e contra-senha da revolução que os radialistas transmitiriam para todo o país? Voltamos a cantar com “O Futuro” de José Carlos Ary dos Santos, embalados pela arte de Paulo Arraiano que, mais uma vez, assina o design editorial do “Lisboa Capital República Popular”. Ao seu lado, a ilustrar, temos Gonçalo Mar, Christina Casnellie, Tiago Albuquerque e Rui Sousa.

Parceiro Estratégico

DIREÇÃO DO PROJETO: Alexandre Cortez e Gonçalo Riscado Direção e coordenação editorial: ágata xavier e marta DINEIA gamito DESIGN: YUP/PAULO ARRAIANO ILUSTRAÇÃO: GONÇALO MAR, CHRISTINA CASNELLIE, TIAGO ALBUQUERQUE, RUI SOUSA .................................................................................. ONLINE: LCRP2014.TUMBLR.COM WWW.MUSICBOXLISBOA.COM

COLABORADORES: GUSTAVO CARDOSO, NUNO PACHECO, RICARDO COSTA, ANDRÉ MACEDO, RUI HORTELÃO, PEDRO CAMACHO, MARIA MANUELA CRUZEIRO, JÚLIO POMAR, BRUNO VIEIRA DO AMARAL, CARLOS MONTEIRO, LUÍS LEAL MIRANDA, DAVIDE PINHEIRO, PAULO CECÍLIO, ANA MARKL, TIAGO PEREIRA, HENRIQUE AMARO, NELSON FERREIRA, ISILDA SANCHES, TIAGO CASTRO, RITA BERNARDO, RUI PORTULEZ, JOÃO PEREIRA E DAVID CORRONHA, joão silva, ana soares, carolina gomes, sandra louro, sérgio dias, jessica rodrigues, maria salomé fernandes, inês marques, ana rita pires, cristiana sousa, lisa

henriques, catarina vilanova, maria judite rodrigues, diana jegundo, bárbara sousa, ysamar lobo, annamaria gaál, fernano marques, andré henriques, filipa de curveira, joão valente, ana lúcia craveiro, mariana machado, sérgio moitas, neuza pardrão, camille lenz da silva, eunice brás, rodrigo rodrigues, mariza pérez, ana teixeira, alberto ferreira, belmiro nunes, mariana figueiras, vanessa trinidad, leonor centeno, gil prazeres, diogo cunha, tânia pinto, cátia esteves, fabiana cruz, milene rogado, maria máximo e cremilde pratas

Equipa CTL: Gonçalo Riscado, Alexandre Cortez, João Torres, João Riscado, Débora Marques, PEDRO Azevedo, Sara Cunha, Sílvia Costa, Marta DINEIA Gamito.

.................................................................................. IMPRESSÃO: GRAFEDISPORT IMPRESSÃO E ARTES GRÁFICAS, S. A. TIRAGEM: 15.000 EXEMPLARES

iNDÍCE 03 04 06 11 15 16 19

20 21 22 23

Editorial

o desafio:abril hoje Recensão: Gustavo Cardoso

ESCREVER ABRIL Reportagem e Opinião: vários autores

um exercício democrático Crónica: vários autores

o futuro

José Carlos Ary dos Santos

QUESTÕES DE MEMÓRIA Ensaio: Maria Manuela Cruzeiro

40 ANOS 10 PERGUNTAS Questionário: Júlio Pomar CLASSIFICADOS João Silva

A REVOLUÇÃO DISCRETA Crónica: Bruno Vieira do Amaral

QUEIMAR ANTES DE LER Infografia: Carlos Monteiro e Luís Leal Miranda

ACORDES PARA ACORDAR A MALTA Playlist por vários

SENHA CONTRA SENHA Playlist por vários

CAPA: GONÇALO MAR


Ilustração . Christina Casnellie

04 I ABRIL, 2014

o desafio: abril hoje GUSTAVO CARDOSO

Porque esta é uma publicação na confluência de quatro diferentes identidades jornalísticas e de quatro culturas críticas diferentes (Lisboa, Capital, República, Popular) quisemos compreender como quem estuda jornalismo falaria numa coluna de opinião ou em notícia sobre essa data longínqua de há quarenta anos. Como veremos, fala-se do 25 de Abril como seria de esperar falar (ou escrever). Fala-se do 25 de Abril como algo formado no passado, fala-se dos eventos e das ações que se transformaram em história, fala-se do primeiro contacto com a revolução através dos programas de televisão ou dos programas de cadeiras. Fala-se da tentativa de não deixar morrer a memória e as histórias dos mais velhos, os quais, apesar de terem vivido o 25 de Abril, não falam dele aos mais novos. Ou, se falam, o fazem apenas quando os mais novos os interrogam sobre “onde estavas tu no 25 de Abril?”. O 25 de abril de 1974 é a data histórica mais referida pelos portugueses quando questionados sobre qual a data de maior importância para si. Para quem viveu o 25 de Abril de 1974 esse é um momento histórico porque algo de novo se iniciou nesse dia e nesse ano. Para quem não viveu o vigésimo quinto dia do mês de abril de 1974, essa data é um momento histórico porque, a dada altura da sua vida, chocou com o 25 de Abril nas páginas dos programas da cadeira de história do segundo ciclo, ou porque viu na televisão algo que o fez perceber a historicidade da data. Para quem não era nascido em 1974, a importância dada ao 25 de Abril cria-se também através das perguntas feitas aos pais e avós sobre por que é esse dia feriado ou porque, um dia, se tropeça na memória social que gravou essa data e que faz parte da nossa identidade partilhada. Ou, ainda, porque a curiosidade é sempre mais forte que o ócio e nos leva a mergulhar na pesquisa na Internet sobre alguma coisa e, em algum momento, o tema, os seus protagonistas e as causas do 25 de Abril surgem numa página da Wikipedia. As atuais futuras gerações de jornalistas escrevem de forma diferente daquela que, em 25 de abril, escreveram os jornalistas que acompanharam os eventos. Escrevem de forma diferente, porque o seu olhar, a sua mente, as suas identidades, as suas visões, os seus sonhos, as suas esperanças, as suas interrogações e as suas nostalgias não vividas no dia 25 de abril de 1974 são diferentes daquelas que inspiraram a escrita dos jornalistas que hoje têm oitenta, setenta ou sessenta anos. A forma como gosto de pensar o 25 de Abril, em cada

ano que passa, é colocando uma questão inconveniente. Ou seja, o que seria necessário para que os jovens militares de dezoito ou vinte e poucos anos quisessem fazer uma revolução que tivesse a larga adesão dos jovens civis? Há quem sugira que essa pergunta não faz sentido. Não fará sentido, dizem, porque a causa maior da revolução de abril de 1974 foi a busca de uma rutura com um regime não democrático. E, como hoje há democracia, então não poderá haver um 25 de Abril no século XXI. Mas, talvez essa visão esteja demasiado certa de si mesma. As pessoas mais jovens, normalmente contra toda a racionalidade apontada pelos mais velhos, fazem coisas conotadas como impossíveis até ao momento em que são realmente concretizadas e criam novas normalidades. Por isso, podem sempre surgir (e surgirão) outros “25 de Abril”, diferentes do de 1974 e que, por isso mesmo, não parecerão um 25 de Abril até que alguém, algum dia, diga que essa semelhança existe, que está lá. Hoje não há uma guerra nos territórios administrados pelo Estado Português, tal como a que existia em 1974 nos denominados territórios ultramarinos, mas há uma forte crise económica, como aquela vivida, então, em 1974. Tal como em abril do ano de 1974, também hoje há forte desemprego e forte emigração dos mais jovens – exceto que hoje não se vai a “salto”, vai-se em “low cost”. Não há hoje censura, mas há desigualdade extrema no acesso à informação. Há hoje uma censura pela quantidade, surgida a partir da impossibilidade de encontrar, entre os milhares de milhões de páginas da Internet, o que se precisaria de saber. Porquê? Porque só os que possuem maiores competências educacionais podem verdadeiramente aspirar a alguma autonomia informativa.Não há polícia política nacional, mas há sistemas globais de escuta aos nossos telemóveis, mensagens de e-mail ou qualquer outro tipo de comunicação que façamos na Internet. Tanto as nossas ideias políticas, quanto a nossa vida do dia a dia podem ser (e serão em algum momento) escrutinadas por diferentes entidades do Estado, em algum lado. Hoje, tal como ontem, a nossa reserva e a nossa privacidade podem ser violadas sem que quem o faz seja devidamente controlado pelo poder judicial ou pelo outro Estado que não aquele Estado que tem como função espiar o cidadão. Há também outra coisa semelhante entre o “ar do tempo” do nosso tempo e o “ar do tempo” do ano de 1974. Hoje, tal como então, os mais jovens aperceberam-se que, no atual sistema, a mobilidade geracional está esgotada. Ou seja, os filhos dificilmente irão viver melhor que os seus pais. Mesmo depois das revoluções feitas, há uma questão que nunca oferece respostas seguras. A pergunta é saber se o que motiva uma revolução é a busca de mais democracia, ou apenas a busca de algo diferente daquilo que se tem, quando o que se tem deixa de ser capaz de fornecer a esperança de uma vida melhor. Poderá hoje ser 25 de Abril? Sinceramente, não tenho a resposta. E a razão para a falta de resposta é simples: já não posso prever o futuro. Porquê? Porque já não tenho vinte e poucos anos, a idade em que se pode prever o futuro. Se têm dúvidas, perguntem a quem viveu o futuro e hoje tem oitenta, setenta ou sessenta anos.

05 I ABRIL, 2014

“Não sei o que será “Liberdade” (...). O que foi esta Liberdade, um dia reprimida e no outro conquistada? E hoje… pelas vozes que me foram chegando, banalizada, eclipsada.” Jéssica Rodrigues, Universidade de Coimbra “Hoje em dia damos por adquiridos direitos que muito suor levaram a conquistar: entre eles as liberdades de expressão e de informação, o direito de associação e, com eles, o direito de reivindicar melhores condições de vida.” Inês Fonseca Marques, Universidade de Coimbra “Antigamente, havia falta de uma liberdade que se escondia na censura. Nos dias de Hoje, vivemos uma liberdade que não passa de ilusão.” Ana Rita Pires, ETIC “Este ano festejam-se os 40 anos do 25 de Abril. 40 anos de Liberdade, dizem eles. E dizemos nós. E dizem todos (até aqueles que não sabem bem aquilo que festejam). E como bons “maria vai com as outras” (...) marchamos cheios de patriotismo, gritando “ VIVA A LIBERDADE!”. Mas, afinal, o que é isto da “liberdade”?” Cristiana da Costa Sousa, Universidade de Coimbra “Abril é sinal de mil honras, de mil palavras de ordem, de um caminho afinal possível. Sem calar a voz, resistir, vencer.” Lisa Henriques, Universidade Nova de Lisboa

esforço que todos os dias suportamos.” João Valente, Universidade Autónoma de Lisboa “Nós, mulheres nascidas após o 25 de abril de 1974, somos reconhecidas como cidadãs de primeira, cidadãs com plenos direitos. Temos acesso a todas as profissões, podemos ter contas bancárias, podemos votar e podemos ter acesso a um passaporte e sair do país sem autorização prévia do marido. Para mim, o 25 de Abril não foi apenas uma revolução florida que libertou o país. Foi também uma homenagem ao sexo feminino.” Ana Lúcia Craveiro, Universidade Autónoma de Lisboa´ “Recordo um tempo que nunca vivi, “esse abril em que abril floriu nas armas”. Essa madrugada que teria sido a mais feliz da minha vida, se a tivesse vivido.” Mariana Machado, ETIC “Portugal está longe de ser um país democraticamente perfeito, mas tenho a esperança que esta nova geração, da qual faço parte e que nunca esteve amarrada, tenha a garra e a coragem de saber construir o país com que todos sonharam na noite de 25 de abril de 1974.” Neuza Padrão, Universidade Lusófona

“​O dia 25 de abril é conhecido como Dia da Liberdade em Portugal. Refere-se à chamada Revolução dos Cravos, ​ que libertou o país de uma ditadura de quase meio século. “Não era nascida há quarenta anos e, em 1974, os meus No Brasil também passamos por isso. (...) Há muitas pais eram ainda crianças que não percebiam o porquê diferenças entre ambas as ditaduras, mas há também da luta. Tanto tempo passou, tudo mudou. Agora eles semelhanças.” Camille Lenz da Silva, Universidade percebem, eu e a minha irmã percebemos. Mas não o Lusófona vivemos.” Catarina Vila Nova, Universidade de Coimbra “ A crise não é só económica e política, é também uma “Queria ter visto Salgueiro Maia morder o lábio “para não crise de valores. A “Grândola Vila Morena”, que ouvimos chorar” (como o próprio revelou mais tarde) e ter-lhe dito ser cantada nos dias de hoje, no parlamento e não só, não “OBRIGADA”. A eles e a todos os outros que, como ele, simboliza a desordem nem a bagunça, como lhe chamam, puseram fim a quase 50 anos de ditadura. (...) Aos nossos mas sim o povo a apelar aos valores que lhes estão a ser governantes, uma nota final: o objetivo era democratizar o retirados.” Eunice Braz, Universidade Lusófona país, não neoliberalizá-lo.” Diana Jegundo, Universidade Coimbra “Todo o caos económico, político e social voltou a por em causa o sistema democrático conseguido com o 25 de “Acrescenta que, ao olhar para os tempos de hoje em que a Abril. A cidade de Lisboa voltou a ser palco de grandes austeridade volta a estar na ordem do dia, devíamos olhar manifestações. Milhares de pessoas voltaram a juntarpara trás e pensarmos que “a esperança é a única coisa que se e as canções do poeta e herói revolucionário Zeca nos move o coração para combatermos o que está mal”. Afonso voltaram a ouvir-se nos lábios dos que viveram Tal como fizemos há 40 anos atrás, em frente às montras a Revolução de Abril e dos que vivem a dura realidade da Sapataria do Carmo.” Ysamar Lobo, Universidade da Troika.” Rodrigo Rodrigues, Universidade Lusófona Nova de Lisboa “Somos sonhadores. (...) Mas não é só de sonhos que “Agora com 70 anos, António Veloso lembra-se com somos feitos: não há dúvida de que somos lutadores. nitidez dos acontecimentos (...) “Ninguém sabia o que Lutámos pelo fim da ditadura, numa guerra vencida pelo iria acontecer. Felizmente correu bem, mas também podia povo, onde “liberdade” foi a palavra de ordem. Com o ter corrido mal. Não se esqueça que estavam militares cá tempo, a palavra é apenas recordada através da Imprensa.” fora, contra militares lá dentro [do quartel].” Annamaria Marisa Pérez, Universidade Autónoma de Lisboa Gaál, Universidade Nova de Lisboa “Somos filhos de abril, um abril que chegou atrasado, e “A verdade é que ninguém está livre de culpas. (...) Temos chega atrasado todos os dias, até entendermos que não de nos unir novamente para combater o que está mal no basta a revolta. Há que revolucionar, há que transformar nosso país e, acima de tudo, temos de ser solidários uns e mudar mentalidades, há que firmar o que tanto com os outros, pois só a união, a solidariedade e a força defendemos como um dado adquirido: a liberdade.” Ana de vontade irão ajudar o povo a renascer das cinzas e a Filipa Ferreira, IADE recuperar o bem-estar social.” Fernando Marques, ETIC “Não foi por este Abril que os capitães arriscaram a vida. “Diz-se que, nesse dia, uma florista de Lisboa, que Não foi por este Abril que o povo anónimo estava ao por ali se encontrava como habitualmente, começou a seu lado. O Abril por que todos lutámos era outro. Um distribuir cravos vermelhos a todos os que passavam (...). Abril de liberdade, igualdade, fraternidade, democracia. Os militares colocaram-nos no cano das armas e elevaram- Este não é o Abril da minha esperança.” Belmiro Nunes, nos para que todos pudessem ver, e sentir, a grandeza e Universidade Nova de Lisboa o respeito que o momento merecia (...). Apesar de todas as dúvidas que pudessem existir, aquelas flores pareciam “A Revolução de Abril de 1974 foi um movimento mostrar que a vida era o bem maior.” André Henriques, de liberdade contra a opressão da ditadura. O ETIC Estado Novo apoiava-se em privilégios e interesses de uma sociedade tradicional, através da corrupção, opressão “Nasci em 1988 e sempre pensei que a dignidade fosse e repressão violenta da liberdade dos cidadãos, arrastando um direito garantido. Hoje, 40 anos depois da Revolução, Portugal para a miséria e para a pobreza.” Vanessa não tenho tanta certeza.” Filipa de Curveira, Universidade Trinidad, Universidade Lusófona Autónoma de Lisboa “Imaginar que, de hoje para amanhã, as minhas atitudes, “Passado tanto tempo, 40 anos depois, devíamos ter palavras ou pensamentos ficariam condicionados, seria acesso livre e universal a tudo isto, acesso igual – porque como acordar e mentir a mim mesma todos os dias.” é de desigualdades que falamos – mais que não seja pelo Leonor Centeno, Universidade Lusófona


06 I ABRIL, 2014

07 I ABRIL, 2014

escrever abril

OPINIÃO

Muitas vezes, encontramos a expressão “cumprir Abril”, normalmente introduzida num processo de crítica ou de debate político. Foi com base nessa expressão que lançámos o desafio aos estudantes de Comunicação Social de todo o país. O que é, hoje, cumprir Abril? Abril são valores como liberdade, igualdade, solidariedade, cidadania. É também um processo para um sistema democrático. Como encontramos estes valores na sociedade atual? Como avaliamos, hoje, a nossa democracia? Como avaliamos a participação do indivíduo na democracia? Como pensamos todas estas questões num sistema cada vez mais global? Como olhamos, hoje, para o futuro? Os estudantes responderam ao repto lançado. O que se lê nestas páginas é uma amostra representativa do conjunto dos artigos recebidos. Os restantes podem ser lidos na íntegra na nossa edição online

ABRIL (RE) VISITADO

Ana Soares, Carolina Gomes, Sandra Louro e Sérgio Dias UNIVERSIDADE DO MINHO

Portugal assinala o 40º aniversário da “Revolução dos Cravos” e a efeméride convida a uma reflexão. Como era Portugal nos anos anteriores ao golpe de Estado? Qual é a situação do país hoje? O que fizeram os atores da revolução e os “filhos de abril” com a Liberdade? Alfredo Cunha, que há 40 anos era fotojornalista de “O Século Ilustrado”, esteve no palco da revolução e registou com a sua máquina fotográfica os vários momentos desse dia. Convidámo-lo a viajar no tempo. Portugal antes do 25 de abril: um país pobre, deprimido e sem liberdade. Antes do 25 de Abril de 1974, o país era dominado pela censura. As pessoas não podiam dizer o que pensavam e não havia liberdade de expressão na imprensa. Tanto os meios de comunicação, como o teatro e o cinema, eram vigiados pormenorizadamente, para que não usassem palavras que não fossem do agrado do regime salazarista. Em seguimento disto, muitos escritores, músicos, jornalistas e cantores foram proibidos de publicar as suas obras. Alfredo Cunha diz-nos que esta noção

estava sempre presente: “Tínhamos muito cuidado com a polícia, estávamos sempre muito atentos.” Comparado com a Europa Ocidental, Portugal apresentava uma taxa de mortalidade infantil muito elevada, poucos médicos e um número reduzido de partos hospitalares. Era um país pobre, pouco escolarizado e sem direitos laborais ou sociais. Nas escolas, o dia começava com o canto do hino da Mocidade Portuguesa (organização miliciana obrigatória para todos os jovens dos 7 aos 14 anos, embora os escalões que a constituíam, se estendessem até aos 25 anos de idade) e terminava com o hino nacional.

“Uma das minhas fotografias mais simbólicas, antes do 25 de Abril, é aquela onde se vê um miúdo junto a um quadro preto com a frase ‘O velho e o rapaz’. Em cima, estava o retrato de Américo Tomás e uma cruz, que era obrigatória na altura. Portugal era um país muito católico, e isto é o retrato do regime”, conta-nos Alfredo Cunha. As escolas eram, portanto, nacionalistas e suportavam uma forte doutrina de carácter moral. As raparigas e os rapazes

encontravam-se em turmas separadas e até o recreio era dividido. Fora da escola, as raparigas aprendiam a bordar e a fazer croché, enquanto as mais abastadas tinham a possibilidade de aprender música. Já os rapazes praticavam desporto. As reformas do ensino foram sobretudo curriculares, com simplificação dos programas e separação entre a via liceal (mais elitista) e o ensino técnico. O perfil elitista do Liceu face à Escola Técnica era nítido: o primeiro configurava-se como uma escola para os filhos das classes mais favorecidas, que pretendiam seguir estudos superiores e eram, assim, separados dos filhos do operariado, que não podiam aspirar a esses estudos. O facto de existirem meios apenas acessíveis às classes mais ricas levou a que, ao nível de educação, não houvesse tantas melhorias como o esperado. Alfredo Cunha teve uma infância privilegiada, e não passou as dificuldades sentidas no país, antes do 25 de Abril. Apesar disso, acompanhou de perto outras crianças que viviam como a maioria dos portugueses, ou seja, com fome, falta de dinheiro e sem condições básicas de vida. “Antes de sair para a escola, que era uma distância de quinhentos metros, tirava os sapatos e as meias para poder ir com os meus colegas que iam descalços”, contanos. Acrescenta, ainda, que: “Todos os dias, um colega diferente ia chamarme a casa e tomava o pequeno-almoço comigo.” O fotógrafo fazia questão de almoçar todos os dias na cantina com os colegas, naquilo que era uma espécie de ritual de integração. Apesar destas recordações, diz que

inicialmente, não tinha noção da pobreza que se vivia em Portugal: “Uma vez fui dar uma volta pela Europa e só quando regressei é que descobri que o país era muito pobre. Quando fui, não tinha essa noção, porque não tinha termo de comparação. Fiquei abismado. Éramos pobres em tudo! Como estávamos impedidos de sair, não tínhamos noção da pobreza em que vivíamos.” Falanos ainda de um assunto que tomou conta das vidas e dos pensamentos dos jovens daquela época — o colonialismo. Conta que: “Para além das angústias de adolescente, que todos nós temos, tinha como horizonte ir para a guerra colonial.” Esta guerra, iniciada em 1961 em Angola, alastrada à Guiné em 1963 e a Moçambique em 1964, era a realidade dos jovens portugueses. Como consequência disso, muitos emigraram clandestinamente para fugir a esse desígnio. Saíram do país “a salto”, como então se dizia. Clandestinos eram também os partidos que existiam para além da União Nacional. Alfredo Cunha nunca foi militante de nenhum, mas apoiava o PCP – Partido Comunista Português. O seu apoio consistia, essencialmente, em fornecer, às escondidas, ao jornal “Notícias da Amadora” as fotografias que fazia para “O Século Ilustrado”. Com a sua participação nestes movimentos, fez amizade com várias personalidades, tais como, José Jorge Letria, Mário Soares, Maria Antónia Palla (que foi sua diretora em “O Século”) e o seu filho, António Costa. Por apoiar os movimentos antirregime,

chegou a ser chamado à atenção pelos inspetores da PIDE. Certo dia, no Chiado, um elemento da polícia política chamou-o e disse: “Oh miúdo, anda cá. Tem cuidado, porque estamos de olho em ti. Partimos-te a cara e partimos-te a máquina.” A luta pela liberdade era feita clandestinamente. Membros da oposição democrática chegaram a participar em eleições, mas os resultados eram sempre falsificados e os candidatos acabavam presos ou mortos. Foi o caso de Humberto Delgado, o “General sem medo” que, em 1958, se candidatou às eleições presidenciais. Com o passar dos anos, Portugal tornouse um país isolado. Na opinião de Alfredo Cunha, “o antigo regime foi vítima dele próprio” e “isolou-se de tal maneira que até a nível internacional ficou completamente só.” Contribuiu, ainda mais, para este isolamento, a condenação da ONU a Portugal, por este se recusar a reconhecer o direito à autodeterminação das colónias. Quando, em 1968, Salazar é substituído por Marcelo Caetano, o governo começa a dar sinais de abertura, mas seria apenas fogo-de-vista. A chamada “Primavera Marcelista” foi uma continuidade da política salazarista. Apenas os nomes mudaram. A PIDE passou a denominar-se DGS (Direção Geral de Segurança), a União Nacional, Ação Nacional Popular, e a censura, exame prévio. Alguns exilados, como Mário Soares, puderam regressar a Portugal, mas por pouco tempo. O descontentamento geral não parava de aumentar e tornou-se, então, imprescindível uma revolução que, para além de restaurar as liberdades cívicas, resolvesse, por fim, a questão colonial.

O dia chegou. O povo saiu à rua “O 25 de Abril não era para ser em abril mas em março.” É neste tom ligeiro que Alfredo Cunha começa a viagem mental pelo dia da revolução. De facto, a 16 de Março de 1974, ocorreu uma tentativa frustrada de golpe de estado, conhecida como Levantamento das Caldas. Quanto à eminência do golpe, afirma: “Eu trabalhava no jornal ”O Século Ilustrado” e o diretor era amigo do Spínola. Sabíamos que ia haver um golpe de estado, só não sabíamos em que momento, e se seria de direita ou se era de esquerda. O regime estava tão podre que havia golpes em preparação dos dois lados.” O fotógrafo destaca ainda o elemento sorte que lhe permitiu efetuar a reportagem do 25 de Abril. “Quando foi o 16 de Março, estava na Beira Alta a fazer uma reportagem sobre o queijo da Serra e pensei: Não acredito que vou perder isto! Depois, aquilo falhou. Eles tiveram o cuidado de garantir que eu estivesse lá e resolveram repetir tudo (ri-se).” A história reza que a operação “Fim do Regime”, comandada pelo major Otelo Saraiva de Carvalho, começou oficialmente às 00h20 com a emissão da música “Grândola Vila Morena”, pela Rádio Renascença. O “Século Ilustrado”, numa das suas primeiras edições pós-25 de Abril, dá conta de diversos movimentos militares iniciados àquela hora. Diz ainda que às 03h00 são ocupados, quase sem resistência diversos pontos vitais de Lisboa, como o aeroporto, a Rádio Clube Português e a emissora Rádio Marconi. Às 04h20, surge o primeiro comunicado

do Movimento Militar, transmitido pelo Rádio Clube Português. Das 4h45 até às 06h00, carros blindados começam a dirigir-se ao Terreiro do Paço. Ainda antes das 07h00, surge a notícia da prisão do primeiro e segundo comandante da região militar do Porto, e da adesão desta cidade ao golpe de Estado. Assim que toma conhecimento do golpe, pelas 6h30 da manhã, Alfredo Cunha dirige-se ao Século. Aí, junta-se ao seu colega de trabalho, Mário Contumélias, e os dois partem em direção ao Terreiro do Paço, para fazer a cobertura da revolução. “Estávamos ansiosos, mas tínhamos medo. As primeiras horas foram difíceis. Havia membros da PIDE, à civil, mas armados. Nós fomos a pé. Pelo caminho, íamos fazendo recomendações um ao outro. Dizíamos coisas como É agora! Vai ser agora! É porreiro a gente apanhar, aos 20 anos, a revolução. Foi uma explosão de alegria”, revela o fotógrafo. Os dois colegas atingem o destino pelas 07h20. A essa hora, já as forças armadas controlavam a RTP. Às 08h00, uma Companhia de Santarém instalava-se no centro da revolução. “Quando cheguei ao Terreiro do Paço, eles [os militares] já lá estavam. Os ministérios estavam todos à volta. O Terreiro do Paço era o símbolo do poder. E era ali que eles o iam tomar”, explica. E continua: “Depois vieram as forças do regime para combater os revoltosos mas [ri-se, divertido] aderiram logo ao golpe!” Às 09h00 há troca de tiros entre forças da PSP e elementos das forças armadas. O MFA coloca carros blindados em volta do Ministério da Marinha e há boatos da prisão do comandante António Spínola. Às 10h15, segundo “O Século Ilustrado”, ouvem-se disparos, quando um tenente recusa aderir ao movimento e alguns ministros “fogem através de um buraco na parede”, relembra Alfredo Cunha.

“os acessos ao Terreiro do Paço são fechados e as ruas Augusta, da Prata e do Ouro são barricadas.”

pediram a rendição, senão disparavam. E dentro do edifício disseram: Ah, não sei quê, não nos rendemos… E houve ali um compasso de espera. Eles não dispararam o tanque. Na Guiné, um tanque praticamente igual foi apontado à casa de um chefe da Segurança. E ele disse a mesma coisa: Ah, não me rendo e tal…. E eles logo: Pumm! Dispararam o tanque. A casa desapareceu. Eu estava lá e disse: Não acredito! E pronto essa é a diferença. No golpe de estado da Guiné vi valas comuns com corpos. Em Portugal não vi.” O tempo destinado à entrevista estava a terminar, mas queríamos que o fotógrafo recordasse algumas fotos tiradas no dia 25 de abril. “Olhe, isto é por trás da PIDE! As pessoas tentaram invadir a PIDE e eu estou no edifício da PIDE, a fotografar. É na rua Vítor Córdon, em Lisboa. Estes carros de polícia eram conhecidos como Creme Nívea porque esta era a cor das embalagens da nívea. A gente dizia: Vem aí o creme nívea! Era uma frase que se ouvia muito na altura.” E esta? Apontamos para a fotografia de Salgueiro Maia, a sua favorita. “É um retrato que eu lhe tirei às três da tarde, no largo do Carmo, em frente ao sítio onde estava o primeiro-ministro. Já tinha tido, de manhã, um encontro com o Salgueiro Maia. Ele tinha olhado para mim e dito: Pá, você se quer fotografar, não ande aí escondido. Esteja visível. Se é contra o regime, somos nós. Se é a favor, são aqueles que estão ali do outro lado. Por isso, veja lá onde é que quer estar. Quero estar aqui!- disse eu. E este foi o nosso diálogo. Depois, às três da tarde, quando estamos frente a frente, ele olha para mim e eu olho para ele. Somos dois miúdos na casa dos 20 anos. Ele olha para mim e eu olho para ele . E ele diz assim: Pá tirame lá um retrato! E eu tirei. Dei-lhe este retrato. E dei-o também, aqui há dias, à viúva dele. Falei muito poucas vezes com ele, para aí dez, doze vezes depois do 25 de Abril. Ou seja, conhecemo-nos naquele dia. Foi o dia perfeito para ele… e para mim”, conclui emocionado.

Portugal: um país tão O fotógrafo relata-nos ainda o seu triste agora como antes trabalho de fotojornalista, nessas horas do 25 de abril emocionantes. “Até às onze, estive no Terreiro do Paço. Depois saí; fui revelar os filmes. O Século teve sempre edições sucessivas e não havia fotografias digitais, na altura. Tínhamos que ir revelar. Por volta das duas da tarde estava a ir para o Largo do Carmo. Fui assistir à rendição de Marcelo Caetano. Já estava uma multidão muito grande!” Os relatos desse dia mencionam que os militares chegam ao Largo do Carmo às 15h00 e que às 16h00 o quartel que aí se encontra é entregue às Forças Armadas. Às 17h30, o General Spínola chega ao local e é ovacionado pela população. Pelas 18h00 o Dr. Sousa Tavares anuncia a uma multidão em completo delírio, a “libertação do jugo fascista”. A liberdade tinha chegado. Sabendo que o golpe foi visto como “uma revolução pacífica”, não deixámos de nos questionar se Alfredo Cunha pensaria o mesmo. O fotógrafo diz-nos: “Houve oito mortes no dia 25 de abril. Mas isso não foi nada. Quer saber a diferença entre o nosso golpe de estado e outros que fotografei?! Eu digo-lhe. No 25 de Abril, os militares apontaram um tanque de guerra a um edifício e

Após a Revolução de 25 de Abril, muitas foram as mudanças sentidas no país a nível social, político, económico e até cultural. Uma das consequências imediatas foi a descolonização: o golpe de estado constituiu o mecanismo de arranque para as colónias portuguesas exigirem a independência. Segundo Alfredo Cunha, a descolonização ia acontecer de qualquer maneira porque “nós somos um pequeno país e estávamos a ocupar vários países” cuja área global é muito maior. Pedimos para o fotógrafo definir o 25 de Abril numa frase. “O 25 de Abril, para Portugal, significou a Liberdade”, afirma Alfredo Cunha. De facto, com o golpe de Estado, a ditadura caiu dando lugar à democracia. Com o novo regime, novas medidas foram impostas. Assistese à abolição da censura e à eliminação do tão temido lápis azul, que cortava os textos considerados impróprios para divulgação pública. Contudo, apesar de uma evolução aparentemente positiva na imprensa (que passou a publicar sem restrições), Alfredo Cunha acha que a mesma perdeu a qualidade. “Não me interessa a imprensa atual! É

uma imprensa mentirosa, manipulada. Consegue ser pior do que a censura, que eu conhecia antes do 25 de Abril”. Na sua visão: “Há muitas formas de ditadura e muitas formas de condicionar a imprensa. A forma mais sinistra é o condicionamento económico, que é o que vivemos atualmente. A imprensa, agora, é dos bancos. Quiseram-se servir da imprensa para os seus interesses e não percebem que estão a matá-la.” Alfredo Cunha volta a centrar-se nas mudanças trazidas pelo 25 de abril. “A PIDE, bem como as prisões que efetuava chegou ao fim. E recorda, com algum divertimento, um episódio que testemunhou, antes da sua abolição: “Lembro-me que num casamento, a PIDE foi lá e prendeu tudo, incluindo o padre (…) só porque estávamos a cantar canções revolucionárias!” Nem todas as consequências do 25 de Abril foram positivas. Para além da perda de qualidade da imprensa, houve outros pontos negativos, que devido à importância dos positivos, acabaram por entrar no esquecimento. “Talvez não tenhamos visto, de imediato, as consequências negativas porque as mesmas só estão a acontecer atualmente”, defende Alfredo Cunha. E acrescenta: “Não fomos nós, os filhos de abril que não soubemos aproveitar a liberdade; os políticos que estão e estiveram no poder é que não souberam lidar com a nossa liberdade.” Poderá, então, o 25 de Abril explicar a situação que o país atravessa atualmente? Num curto espaço de tempo, o povo passou de um estado de ausência de liberdade, para um estado de total liberdade, e o êxtase geral dificultou a gestão dessa dádiva. Segundo Alfredo Cunha, a situação atual do país também poderá ser explicada, em certa medida, pela adesão à União Europeia. Esta organização passou, segundo o fotógrafo, a estar centrada apenas no lucro. “Não importa quais as medidas a aplicar a um país, desde que este não faça com que a economia europeia desça”, comenta. “A União Europeia é, neste momento, uma organização de malfeitores. O nosso país está a atravessar a crise que atravessa porque estão a ser levados, todos os meses, milhões de euros para fora”, dispara ainda. Poderá o país suportar a saída constante de dinheiro, mês após mês? Muitos afirmam que não. Aliás, essa situação é bem visível. Apesar de, tecnicamente, Portugal já ter abandonado a recessão, os portugueses nunca viveram tão mal como agora. “A nossa tristeza atual está igual à que havia antes do 25 de Abril. É uma tristeza generalizada”, diz Alfredo Cunha. Na sua opinião, a única solução para o país abandonar esta situação, passa por uma nova revolução: “Hoje, precisamos de um 25 ou 26 de Abril.” Tudo aponta para que a situação difícil do país continue a arrastar-se. A geração atual está condenada: dificilmente conseguirá ter uma vida estável, um emprego fixo e um salário capaz de suportar o estilo de vida atual. Neste momento, muitos jovens lutam e procuram esse modo de vida fora de Portugal. É o caso de uma das filhas do nosso entrevistado. Portugal não está a conseguir absorver toda a mãode-obra apta para entrar no mercado de trabalho. Como Alfredo Cunha salienta com alguma tristeza: “Nós lutamos pela liberdade; vocês terão que lutar pela sobrevivência.”


08 I ABRIL, 2014

Um Abril por florir Salomé Fernandes UNIVERSIDADE DE COIMBRA

O que foi a revolução dos cravos de 1974? Receio bem que hoje, nas camadas mais jovens, se responda algo semelhante a: “Não sei bem, ainda não era nascido(a)” ou “História não é o meu forte.” A verdade é que a resposta a esta questão não é tanto do domínio da disciplina de História, mas antes do conhecimento geral sobre a luta, a mudança e a união de um povo. Contudo, a palavra revolução (como todas as palavras) é apenas uma representação de algo real, não o objeto real em si. E parte daqueles que a dizem, sem a terem vivido, esquece-se de tudo o que está escondido nela. Esquece-se das prisões políticas, da violência barata, do medo que se instalava entre conhecidos, amigos e familiares, da concentração da economia portuguesa numa elite, da guerra colonial. Passados 40 anos, Abril está a morrer no coração dos portugueses. E, com ele, morrem os ideais, a força de lutar pelos direitos de toda a sociedade e instalam-se, como ervas daninhas, a passividade e o comodismo. Há um esquecimento geral de tudo o que os “velhotes” passaram para que hoje exista democracia. Poucos são os que se aventuram a conhecer e respeitar um passado que é, afinal, tão recente. Há 40 anos que existe liberdade. Mas não nos devemos esquecer que, além de direitos, a liberdade traz deveres: o dever de a manter. Hoje já não existe censura de informação, mas existe censura de tempo. O jornalismo, idilicamente entendido como uma ferramenta imprescindível para a democracia, tem andado numa montanha-russa desde 74. Com o 25 de Abril, o país abriu-se ao mundo. Houve uma euforia profissional, que se traduziu em nova informação, novas formas de a transmitir e novos meios onde a difundir. Havia filas nas ruas para comprar aquele que era o grande órgão de comunicação: o jornal. Hoje em dia, com o aparecimento das novas tecnologias, o jornalismo tem lutado para manter a cabeça à tona da água. A estratégia para recuperar competitividade está a pôr em causa a manutenção da qualidade. Há cada vez menos jornalistas na redação, a escrever cada vez mais notícias. Mas no tempo em que isto lhes é pedido, como é possível haver distanciamento? Deixa de haver análise da informação para passar a haver apenas o seu relato. O quarto poder está a deixar que a sua liberdade seja roubada quando permite que outros definam a sua agenda. Quem viveu Abril já não se lembra dele. A juventude humilha-se a trabalhar como escrava para pagar a renda. Para onde fugiram os cravos? Plantem mais por favor.

Histórias que ficam MARIA JUDITE RODRIGUES UNIVERSIDADE DO MINHO

As histórias dos pais começam sempre por “ Era uma vez…” São histórias que, já se sabe, acabam com um final feliz. Mas as histórias dos avós, as verdadeiras, são de quem já viveu muito tempo e pode contar, para lá dos dedos das mãos, as alegrias e tristezas de uma vida custosa. No dia em que me apercebi disso, ainda fui a tempo de puxar de uma cadeira e desfrutar da técnica do “porquê” dos mais curiosos. O tema de eleição foi uma manifestação muito importante que tinha ocorrido a 25 de abril de 1974, aqui, em Portugal. O ano não me dizia nada. Tal como todas as histórias que os avós contam e recontam, esta não precisava de livro ilustrado como suporte, só existia a firme memória de um homem desgastado pelo tempo. A conversa prolongou-se e, ao contrário das outras, teve direito a mais pormenores. O rosto do avô abria-se num sorriso permanente, as mãos mexiam-se por força da emoção, era toda uma felicidade que parecia teatral. Fiquei a saber que o governo era mau, uma expressão que o avô ainda utiliza. Ao pacote dos ensinamentos juntouse uma explicação de democracia trauteada em palavras simples, de quem apenas estudou até à quarta classe. Os anos foram passando. O avô tem mais cabelos brancos e rugas que embaraçam o sorriso, antes persistente. As palavras são-lhe proibidas pelo desgaste de quem já não consegue, por cansaço, contar e lembrar o que viveu. Mas os anos não lhe tiram a mania firme de agarrar com ternura num cravo, abrir um buraco e, com cuidado, juntar a flor à terra. Há uns tempos perguntei-lhe porque é que o fazia. Sem pensar muito, respondeu: “Para ver se nasce alguma coisa…”

O que a rádio fez por nós BÁRBARA GODINHO DE SOUSA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

xFez-se História na nação quando o jornalista locutor Joaquim Furtado leu o primeiro comunicado do Movimento das Forças Armadas (MFA), ao microfone do Rádio Clube Português (RCP), às 4h26 do dia 25 de abril de 1974, e ecoou nos rádios: “Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas.” Era irreversível. A revolução estava em marcha, o povo sabia e o povo ia sair à rua. Estava lançado o repto para a construção da democracia num país oprimido e sem liberdade há 41 anos. O número 26 da Rua Sampaio Pina, o RCP, tivera sido tomado às 3h12 e transformado em posto de comando do MFA, tornando-se na “Emissora da Liberdade”, que fez chegar em primeira mão a revolução ao país. Três minutos mais tarde, às 3h15, a confirmação da ocupação da Emissora Nacional chegava ao posto de comando do

09 I ABRIL, 2014 Quartel da Pontinha, comandado por Otelo Saraiva de Carvalho. Ainda antes da ocupação do RCP, a rádio tinha compactuado com a mobilização militar. Às 22h55, do dia 24 de abril, João Paulo Dinis anunciava ao microfone dos Emissores Associados de Lisboa: “Faltam cinco minutos para as 23 horas. Convosco, Paulo de Carvalho com o Eurofestival 74, E Depois do Adeus.” A primeira senha estava lançada e o primeiro passo dado. Começam assim as operações desencadeadas pelo MFA. Também a Rádio Renascença (RR) fez parte dos desígnios do MFA e do triunfo da revolução. Às 00h20 é transmitida a confirmação da senha anterior: a leitura da primeira quadra de Grândola Vila Morena de Zeca Afonso, declamada e gravada por Leite Vasconcelos e colocada no ar por Manuel Tomás. E porque “o povo é quem mais ordena”, a RR, estação de cobertura nacional, levou aos quartéis militares de todos o país que aderiram ao golpe a informação de que a revolução em marcha estava a correr conforme o previsto. A madrugada chegou finalmente e trouxe consigo um sabor a liberdade há muito perdido por entre os duros anos da ditadura. Adelino Gomes, jornalista e colega de liceu do capitão Salgueiro Maia, experimento-a. Durante nove horas, em cima de um Unimog e com um microfone na mão testemunhou os “vivas à liberdade” do Rossio, da Rua Augusta, do Terreiro do Paço. A Revolução dos Cravos estava a acontecer. Até então a rádio, à semelhança dos outros meios de comunicação, estava subjugada a uma censura desmedida. Ouvir rádio durante os anos do Estado Novo poderia ser considerado um ato subversivo à “liberdade”. Apesar de tudo, a rádio não desistiu e no dia 25 de abril de 1974 vingou-se e tornou-se a voz da liberdade. E depois? E depois nada mais fez. Multiplicam-se os textos e os esforços, no entanto, a rádio ainda não fez a sua própria revolução. A Revolução fez-se na rádio, mas a rádio ainda não fez a sua revolução.

Anos de Abril Sérgio Moitas

Universidade Lusófona

Rebeldia entoada num corpo já cansado. 70 Anos de histórias contadas que me fizeram saber mais, muito mais, caso apenas tivesse sido eu a perguntar. Dessas tão distantes, a maioria levava cada um dos ouvintes a Abril, o seu mês predilecto. Nascido no dia 15 é, apesar de tudo, o tão importante dia 25 de Abril que me leva nas recordações de mais uma pessoa que ajudou a causa. Era militar? Não, nem por isso, o “Tavares” não gostava do exército e fez de tudo para não ser alistado. Era um político conhecido que demonstrou toda a sua opinião contra o regime? Nem nada que se pareça, a não ser que esse tipo de pessoas tenha convivido mais na taberna do que em casa. No fundo, era um homem do proletariado que trabalhou maioritariamente na CP e, ao mesmo tempo, era membro do Partido Comunista Português. A minha mãe contou-me histórias do que ele fez nos seus anos de rebeldia, fosse a pintar paredes ou a colocar panfletos alusivos ao seu amado partido. Não era o único que o fazia — mas foi o único que conheci de perto. O dia 25, em si, não me traz memórias de conversas extensas. Posso apenas dizer que a minha mãe o sentiu como a maioria de nós, estudantes, se sente hoje quando não tem aulas: temos o dia todo para não fazer nada. Por outro lado, o “Tavares” nunca falou desse dia como tendo sido muito extenso ou como uma experiência avassaladora que o tivesse marcado para sempre. Obviamente que o marcou, assim como a 80 por cento da população portuguesa (aos outros 20 acredito que não, pois apoiavam Marcelo Caetano). Diria, se respondesse por ele, que para quem aguenta 50 anos de ditadura, e principalmente luta contra ela, ver a sua persistência dar resultado um dia é um acto previsível — e muito aconchegante. É difícil afirmar que foi alguém em particular que permitiu terminar a ditadura no dia 25 de abril. A não ser, obviamente, os tão aclamados militares, com a arma e o cravo na mão, que pelas imagens todos hoje nos identificamos. Mas, no fundo, não é isso que me desperta a faísca sobre este acontecimento tão emblemático — pois se quisesse apenas a narrativa daquele dia específico tinha os filmes que passam todos os anos na televisão e os livros de História. Interessa-me, sim, a história de alguém com quem me identifico. Quando me falam sobre o 25 de Abril isso significa as memórias do meu Avô que, como tantos outros, e através de uma longa luta, fez esse dia acontecer. Seja por acto de rebeldia ou simplesmente loucura.

As liberdades de Abril Neuza Campina Padrão Universidade Lusófona

Nasci 11 anos após a revolução de Abril. Nasci numa altura de prosperidade. Tive essa sorte. Não soube o que era a ditadura nem tão pouco a falta de liberdade de expressão. Confesso que em minha casa pouco se falou da sua importância. Ninguém vivia em Portugal. Recordo-me da primeira vez que abordei o tema em casa, a professora de história do 6º ano pediu-nos que entrevistássemos a família para que nos falassem da sua experiência. Tive zero, não entreguei qualquer trabalho, as histórias dos meus pais não tinham graça, eram demasiado novos para terem memória, e os meus avós nem estavam em Portugal. Tive vergonha de que a minha família, normalmente tão interessante e interessada, não tivesse nada de interessante para me contar de um dia de tamanha importância. Cresci e a minha paixão por História obrigou-me a procurar saber mais sobre o tema, fazer perguntas, procurar testemunhos. E é nessa altura que bato de frente pela primeira vez com a palavra “Liberdade”. Qual o seu verdadeiro significado? Questionava as pessoas, procurava nos livros, mas tudo me parecia tão linear que não podia fazer

sentido, já não tinha idade para acreditar que havia um bom e um mau, isso só acontecia nos contos dos irmãos Grimm. Mas quando falava com alguém a resposta que tinha era: “antes era mau e agora é bom” ou “é graças ao 25 de Abril que temos liberdade.” Estas respostas não me chegavam. Afinal, eu não sei o que é não ter liberdade, não sei o que é a falta de liberdade de expressão. Não me faz sentido imaginar um mundo sem isso. E continuei a procurar. Agora, que pretendo ser jornalista, tenho oportunidade de falar com pessoas que sabem exactamente o que é a falta de liberdade. Mas será que as pessoas sabem ser livres? Essa é a questão que me assola todos os dias e quanto mais pessoas questiono, mais dúvidas surgem. Hoje podemos dizer tudo, hoje podemos fazer tudo. Podemos. Mas será que devemos? Será que foi isso que Abril nos trouxe? Será que não deveria ter trazido também a consciência do tamanho da nossa liberdade? Será que passámos do oito ao oitenta? Sim, eu sou livre, eu nasci num país livre e democrático. Eu sou uma privilegiada. Eu posso estar aqui a fazer passar-vos a minha opinião sobre a revolução — e isso devo aos Capitães de Abril. Mas ser livre dá-me a liberdade de invadir a liberdade dos outros? Ser livre dá-me direitos e não me dá deveres? A liberdade de Abril vulgarizou-se. Hoje as pessoas usam o 25 de Abril como argumento para todas as suas acções. Não estarão as pessoas a deturpar o espírito de Abril? Com o poder vêm também as grandes responsabilidades. Será que o povo português estava preparado para ter nas mãos o poder de uma nação? Abril não pode ser argumento para conquistar a nossa liberdade à custa da liberdade alheia. Criámos nós uma constituição onde apenas exigimos os nossos direitos sem termos em conta os nossos deveres? Abril é liberdade, liberdade é responsabilidade.

Abril Hoje Maria Máximo

IADE - CREATIVE UNIVERSITY

A 25 de Abril de 2014, a Revolução dos Cravos celebrará 40 anos. Serão então 40 anos de democracia, 40 anos de direitos conquistados, 40 anos de Liberdade. Terão sido 40 anos perfeitos? Claro que não! Hoje ainda ouvimos gritos pela justiça, pela igualdade social e proteção da classe baixa. A democracia não é um sistema político perfeito e quando falha todos se apressam a nomear culpados. Mas será só a meiadúzia criticada, a razão das injustiças atuais? Se a Revolução já faz quatro décadas é natural que a maioria da geração jovem não tenha vivido a ditadura; aliás, eu e os meus colegas já só nascemos 20 anos depois desta ter chegado a termo. Tivemos sorte. Quando nascemos alguém já tinha lutado pelos nossos direitos. O pior é o reverso da moeda: não damos valor ao que temos porque nunca tivemos de lutar por nada. Achamo-nos no direito de tudo: de ter todas as liberdades que queremos e como as queremos. O direito ao voto não foi uma conquista mas um capricho que nos caiu no colo. Revolta-me que já ninguém sinta a necessidade de proteger a democracia. Indigna-me que, muitas vezes, nem pareçam saber o que significa a palavra que tanto negligenciam. No fundo, dá mais jeito não saber, porque, se o governo é do povo, cabe ao povo tomar responsabilidade por todas as decisões tomadas e ninguém quer ter uma dor de cabeça desse tamanho. Onde ficam então os valores de Abril nos dias que correm? Se ninguém assume responsabilidades, se continuamos à espera de novos Capitães de Abril ou, quiçá, de D. Sebastião, os valores rapidamente se perderão e restarão apenas como memórias de tempos em que quisemos o melhor para todos. Digo com esperança num futuro mais justo: é urgente uma revolução. É urgente o renascimento do idealismo social e de uma geração moderna e politicamente consciente. É urgente um Abril hoje.

praticar a liberdade Mariana Figueiras

ETIC - ESCOLA DE TECNOLOGIAS INOVAÇÃO E CRIAÇÃO

A minha visão sobre o 25 de Abril de 1974 é a de alguém que não viveu esse tempo. Alguém que não nasceu nessa época, que não esteve presente nessa data e, portanto, que conhece os factos somente através da história, das estórias, do que se escreve e do que se pode ler. Recordo muitas vezes a minha mãe contar que, um dia, um amigo do meu avô que trabalhava numa fábrica de reparação aeronáutica, lhe trouxe um disco do Zeca Afonso escondido num avião que vinha do estrangeiro. Estávamos no início dos anos 70. “Lá em casa”, esperava-se pelo cair da noite. Apagavam-se as luzes, fechava-se a porta e ficavam ali de joelhos no chão à volta do “gira-discos”. E ouviam-no assim… em silêncio. Ela era ainda criança mas lembra-se perfeitamente do que sentiu nesse momento: o medo que alguém os ouvisse e descobrisse o que estavam a fazer. É isto que me fascina. É sobre isto que considero ser importante reflectir. Uma das principais conquistas da Revolução dos Cravos foi, sem dúvida, a liberdade de expressão e de pensamento. A liberdade de imprensa, do direito de informar e de ser informado. Sou de uma geração que nasceu “em liberdade”, que olha para estes valores como um dado adquirido, que não teve que lutar para os conquistar. Mas ainda assim, que consegue compreender a importância e o valor que lhes é concedido. Prezo a sensação de poder escrever o que penso, dizer o que sinto, exercer o meu direito nas urnas ou em manifestações. O dia 25 de Abril não pode ser apenas mais um dia. É preciso celebrar um dos direitos mais importantes da sociedade moderna. Celebrar o fim das represálias, do silêncio imposto, dos textos censurados, manipulados, cortados, proibidos. O fim do “lápis azul”. E esta censura prévia não era só na imprensa mas também na rádio, na televisão, no cinema, no teatro, na música e na escrita.

Haverá melhor homenagem ao Dia da Liberdade do que colocá-la em prática? Hoje em dia, o mundo vive um momento histórico sem precedentes. A facilidade de acesso a todos os meios de comunicação, a quantidade de informação disponível e a velocidade com que esta é transmitida são as principais características. Seja através dos meios tradicionais (rádio, televisão, jornais) ou através da Internet, podemos até dizer que caímos no extremo oposto. O conteúdo divulgado é livre, mas é preciso definir os limites dessa liberdade para que esta não se transforme numa problemática social. É importante que estejamos conscientes de que a liberdade de expressão precisa de ser praticada com responsabilidade.

OLHAREMOS para trás e pensaremos Gil Prazeres

IADE - CREATIVE UNIVERSITY

Foi há cerca de 40 anos, em 1974, que se sucedeu a famosa Revolução dos Cravos, a revolução de Abril que mudou Portugal e a sua mentalidade. Portugal saiu, então, de uma ditadura para uma democracia, de um terror de privação de liberdade e opinião pública para um autêntico “paraíso”. Hoje, 40 anos depois, em 2014 será que nos encontramos neste suposto paraíso democrático idealizado? Paraíso em que toda a sociedade é cheia de valores éticos e morais, solidária e respeitosa da igualdade e cidadania? Cada vez existem mais dúvidas em relação à teoria de “cumprir Abril”. Nós, hoje em dia, não nos podemos considerar completamente independentes, somos dominados pela Senhora Merkel, Chanceler Alemã, pela Troika, pelos mercados, pelas agências de rating. Todas as decisões que o governo pode tomar estão dependentes de muitas vertentes políticas e económicas. A independência que o país diz ter é completamente teórica porque na prática conseguimos concluir que a mesma não existe. Nem mesmo a própria liberdade de expressão é aquela que todos desejaríamos. Hoje em dia podemos ser despedidos se criticarmos nas redes sociais as instituições em que exercemos funções. Não temos o direito a falar? De ter uma opinião? É mais fácil despedir o crítico e contractar quem consente? O desenvolvimento do capitalismo fez com que os valores que sempre estiveram connosco se deteriorassem perante este novo ciclo, em que as prioridades do governo estão nas receitas das empresas e não na qualidade de vida das pessoas. Deixando o pobre a lutar com outro igual por “pedaços de pão”, ninharias oferecidas pelas empresas empregadoras que se aproveitam da crise para atribuir uma ínfima remuneração aos trabalhadores, que veem o seu poder de compra cada vez mais reduzido. Este ano, no dia 25 de Abril, olhemos para trás e pensemos “será que há 40 anos atrás isto era muito diferente?” Melhorámos muito, crescemos muito, aumentámos a qualidade de vida da população. No entanto, não vivemos no paraíso idealizado.

Um café com História Annamaria Gaál FCSH

Ainda o sol não tinha aparecido quando, por volta das seis horas da manhã, o António Veloso abriu as portas do seu café, no Largo do Carmo. Começava, assim, um dia de trabalho que nunca iria esquecer. Agora com 70 anos, António lembra-se com nitidez dos acontecimentos: “Nos últimos 40 anos dei tantas entrevistas”, diz com ar cansado. “Ninguém sabia o que iria acontecer. Felizmente correu bem, mas tambem podia ter corrido mal. Não se esqueça de que estavam militares cá fora contra militares lá dentro [do quartel]”, explica. Foi um dia complicado para quem tinha negócio no popular largo lisboeta. Entre a preparação de uma tosta mista e o seu pagamento, António conta como foi abordado por um tenente, pouco antes do meio dia, que lhe pediu para fechar a loja. Irritado, ainda tentou pedir explicações, mas teve de se resignar. Nota-se a amargura na voz quando relembra a conversa: “Tive que mandar clientes embora e pagar o prejuízo. Já tinha os almoços feitos e acabei por deitar tudo fora”. Encerrou o café, levou para casa a esposa, a dona Maria que ainda hoje o ajuda no café, mas decidiu voltar para proteger o que era seu. Fechou-se lá dentro e esperou, enquanto o Largo se enchia de “mais de 50 mil pessoas.” Pelo vidro das portas pesadas assistiu, impávido, enquanto multidões desordenadas gritavam “morte ao fascismo”, e milhares de jornalistas transmitiam, em direto, o cerco. Não teve vontade de se juntar a eles, embora observasse atentamente o desenrolar dos acontecimentos. Viu tanques com militares a distribuir cafés aos civis no que “pareciam botijas grandes”. Ouviu Francisco Sousa Tavares a dar ordens pelo megafone, numa imagem que entretanto se tornou histórica. Pouco tempo depois, o Largo esvaziou. Esclarece, bem humorado, que nessa altura Marcello Caetano já devia estar a caminho da Madeira. António deu-se por satisfeito e voltou para casa pelas 18h, evidentemente aliviado, embora incerto sobre o rumo a tomar. Nos três dias seguintes a zona manteve-se fechada aos civis. “A mim deixavam-me passar porque me conheciam, viam-me todos os dias, sabiam que sou daqui”, explica. António conta como os militares, sendo os únicos que por ali passavam, de vez em quando entravam no café para comer. A maioria das vezes pediam-lhe que fizesse almoço para eles, outras “traziam sandes de casa e pediam que as aquecesse.” A maior encomenda surgiu durante esses dias: “Nunca me vou esquecer, recebi uma encomenda de 300 pães com chouriço dos Correios”, recorda. Passados 40 anos mostra-se reticente em partilhar recordações. Quer continuar com a vida dele, com o negócio que está a correr bem, e deixar de ser incomodado. “E onde é que vai sair isso?”, pergunta mal alguém o questiona sobre o 25 de Abril. Desta vez respondeu a tudo e acabou por servir também um café com a sua história.


11 I ABRIL, 2014

um exercício democrático

CRónica

Informar, consciencializar, mobilizar: a imprensa enquanto exercício fundamental de liberdade e instrumento decisivo de uma sociedade democrática foi o mote para iniciar uma reflexão sobre a responsabilidade do jornalismo, enquanto veículo crucial da livre circulação de informação e opinião. Num diálogo imaginário com as gerações mais jovens e com todos os que, hoje, aspiram a um percurso profissional como jornalistas, Ricardo Costa, Nuno Pacheco, Rui Hortelão, André Macedo e Pedro Camacho oferecem um olhar crítico sobre o exercício da sua profissão.

Retrato de uma profissão enquanto a mudamos Nuno Pacheco [diretor-adjunto do JORNAL Público]

Quer ser jornalista? Imaginemos que sim. E escusa de dizer porquê. Talvez influência familiar, ou de amigos, ou o conselho daquele professor que lhe gabou a escrita. Talvez reportagens vibrantes vistas online, talvez um livro aventuroso, talvez um filme, embora já poucos tropecem no Bogart do final de Deadline USA, a explicar pelo telefone ao gangster que o mandara espancar que aquele barulho que ele ouve é o das rotativas e que o espancamento para o calar não resultou: “That’s the press, baby. The press!…” Isto é o jornalismo romântico, a utopia que desde há décadas mantém viva a profissão. O quarto poder. A capacidade de ombrear com os poderes restantes, desvendando-lhes as falhas, apontandolhes erros, pondo-os em causa em nome do interesse público. Mas dificilmente esta utopia assoma nas notícias que livremente correm pelas agências ou nas informações que se atropelam no espaço virtual. Às vezes falsas. “Mandela morreu”. Não, Mandela ainda estava vivo, morreria mais tarde, mas a notícia circulou antes de tempo. George Bush pai, ex-presidente dos EUA, apresentou condolências à família por lapso, no exacto momento em que líder sul-africano saía, mais uma vez, do hospital. Um erro, assumido depois pelo seu assessor. As desculpas vieram ao piar do pássaro, pelo Twitter. Mas já outros, na pressa de não ficar atrás na “notícia”, tinham “morto” o líder ainda vivo. Nada que o próprio

Bush pai não tivesse vivido já. Também ele foi morto prematuramente, quando a alemã Der Spiegel publicou, por erro, o seu obituário no site oficial da revista. Mais um erro, mais desculpas. A moderna pressa? Não será tão moderna assim. Mark Twain (1835-1910), que antes de escritor célebre foi jornalista, teve que esclarecer por duas vezes que estava vivo (em 1897 e em 1907) escrevendo, aquando da primeira, que o relato sobre a sua morte era “um exagero”. E a wikipedia elaborou já uma Lista de obituários prematuros que, embora incompleta, nos dá conta de numerosas “mortes” antecipadas, por pressa ou desleixo jornalístico. A morte é um bom exemplo. Porque é irreversível, não se “mata” ninguém por erro para o “ressuscitar” na notícia seguinte. Se alguém quiser ser jornalista com critério, terá de olhar para o que escreve como se fosse a vida de uma pessoa. Sempre foi assim, por exigência ética, mas agora ainda o é mais, pela velocidade a que circulam as notícias. E se no papel uma mentira era facilmente rebatível, com réplica contraditória nos dias seguintes, na internet uma mentira pode circular durante anos (ou mesmo décadas) sem que o respectivo desmentido lhe surja associado. Um pequeno exemplo: surgiu em 1999 na net um texto atribuído a Gabriel García Márquez. Chamava-se La Marioneta e era um adeus piegas à vida, escrito por alguém que se dizia a morrer. Estranhamente, muita gente lhe bateu palmas, mas o próprio, indignado, negando que estivesse à morte (e não estava, como se viu), renegou a autoria do texto e classificou-o como “subliteratura”. Resultado: resistiram ambos. O pior é que o falso texto vai sobreviver ao escritor. Se olharmos hoje a internet, meio por excelência para a divulgação de notícias mas também de propaganda, de dados seguros mas também de afirmações sem base credível, veremos que o jornalismo pode contribuir de algum modo para “disciplinar” hábitos no que toca à informação. Mas não espere o futuro jornalista que as notícias lhe vão parar às mãos mesmo com a internet, tal como há décadas vinham parar às mãos dos seus antecessores os maços

de telexes das agências noticiosas. A busca pela informação, pela novidade, não só no conteúdo mas também nas formas de abordagem, tendo em conta os meios pelos quais será difundida (papel, rádio, televisões, telemóveis, tablets, etc.), é essencial no seu dia-a-dia. Isso e a criatividade, o gosto pela matéria noticiosa, o cuidado com as fontes, a resistência à manipulação, o respeito pelo leitor. Seja a contrato ou à tarefa, conforme a crise o permita, ser jornalista hoje é muito diferente de ser jornalista há décadas por via das tecnologias, mas não o é nas obrigações éticas, que devem manter-se inabaláveis. E mesmo junto ao entretenimento e a outros serviços veiculados pelas empresas de comunicação (serviços que integram os seus negócios), o jornalismo distinguese pela sua função reguladora nas democracias, pelo seu dever de escrutínio, pela sua busca (por utópica que seja) da verdade. Isto é servir o interesse público e, pela formação de uma opinião livre e informada, a própria democracia. Sem escrutínio permanente, todos os poderes apodrecem, mesmo os democráticos. E o poder dos jornalistas, a que escrutínio é sujeito? Ao das sociedades onde se integram, ao dos seus leitores, ao dos tribunais (nos casos em que haja fundado diferendo judicial) e ao dos que depositam crédito no seu trabalho. Porque esse crédito não é eterno. Empresas definham porque o perderam, outras sobrevivem porque o mantêm, outras, ainda, erguem-se com o objectivo de o virem a conquistar. No meio de tudo isto, o jornalismo vagueia, felizmente com rumo, à procura do seu lugar no futuro. E os que, hoje, saídos das universidades, ambicionam ser jornalistas, devem preparar-se o melhor possível para esse desafio. Encontrarão o seu lugar, se não o tiverem por fácil. E hão-de ser eles a reflectir sobre as novidades das décadas que virão, nesta profissão que vamos mudando para que, no futuro, continue digna de ser um dos pilares da liberdade. P.S.: A frase que titula este texto inspira-se no título de um livro da escritora Eduarda Dionísio, Retrato Dum Amigo Enquanto Falo (1979), do qual Eduardo Lourenço disse, a seu tempo, ser “o verdadeiro texto

de transição entre o tempo antigo de onde arranca e os novos tempos auscultados nas subtis articulações em que o texto da Revolução foi vivido e ao mesmo tempo comentado e criticado.” Eduarda, filha de Mário Dionísio. Conhecem-nos? Um e outro? Pois é um bom passo para o jornalismo: descobrir. E inquirir, sempre; duvidar; até que tudo nos surja claro como se fosse a primeira vez. (Por decisão do autor, este artigo não respeita o acordo ortográfico de 1990)

O que fica do que passa

Ricardo Costa [diretor DO JORNAL Expresso]

O simples título deste jornal mostra a beleza e a dificuldade do jornalismo. Quatro títulos num só, e todos desaparecidos, à vez, numa sucessão que acabou com os vespertinos por bastante tempo. Só não digo «acabou para sempre», porque o hábito, felizmente, manteve-se em vários países e começa a ganhar nova vida com projetos digitais, que tentam recuperar um hábito de leituras vespertinas. Hábito de leitura e necessidade de informar, de contar histórias, de explicar ou enquadrar e opinar. As duas coisas andam a par e é importante não nos esquecermos disso: temos sempre que conseguir conciliar os hábitos dos leitores com a necessidade de informar. Isto era verdade há 40 anos e é verdade hoje. Penso que será verdade amanhã, apesar da extrema aceleração tecnológica, que está a mudar tudo o que conhecemos à nossa volta, a começar pelo jornalismo. Não é a primeira mudança tecnológica nem de hábitos de consumo a que assistimos. Os vespertinos foram vítimas de outra vaga, mais lenta mas igualmente inexorável. A rádio tomou conta do fim da tarde, a televisão da noite, a imprensa ficou com a manhã, onde a rádio já

Ilustração . Paulo Arraiano / Misha

12 I ABRIL, 2014 estava (sempre esteve), a televisão foi noite fora e dia dentro, a rádio recuou, a imprensa acantonou-se, a televisão por cabo avançou por todo o lado e a internet levou-nos a todos. Estou a simplificar, claro. E muito, certamente. Mas não há coisa mais poderosa a alterar hábitos do que a conjugação de três fatores: tecnologia, tempo e preço. Vejam o que foi ficando para trás e o que ainda existe, mais pujante ou menos sólido, com mais jornalismo ou nem por isso. A televisão – odiada por tantos – teve uma capacidade de adaptação notável a estes fatores. Mudou radicalmente, aproveitou a tecnologia, adaptou-se aos nossos tempos e resolveu o preço com extrema facilidade. A imprensa teve (e tem) mais dificuldade em lidar com isso. Sei do que falo. Não porque tenha a verdade no bolso, mas porque andei muitos anos pela televisão e já tinha andado e voltei a andar pela imprensa, que nunca larguei como leitor compulsivo e colaborador ocasional. A imprensa é hoje mais fundamental do que nunca? A pergunta é feita muitas vezes por quem lhe acrescenta de imediato uma resposta afirmativa. Tenho dúvidas sobre a pergunta e sobre a resposta. Sobre a pergunta, porque já houve tempos em que tudo era incrivelmente mais difícil e incerto, a começar pela democracia e a acabar no jornalismo. E sobre a resposta, porque hoje os cidadãos têm à sua disposição instrumentos que permitem fazer muita coisa que antigamente só se faziam pelos jornais. Na minha opinião, é preciso assumir isto para se perceber o papel da imprensa. Não somos mais necessários que nunca, mas somos absolutamente necessários no papel que sempre representámos e em campos em que não nos sentimos particularmente seguros. O jornalismo tem hoje à sua disposição meios tecnológicos nunca vistos. Tem o papel, tem a internet, tem as plataformas digitais. Tem a tecnologia e o tempo a seu favor. Só não tem o preço. Não se pode render a isso, mas também não o pode ignorar. Não pondo em causa modelos fabulosos que estão a surgir por todo o lado, mas quase sempre globais e muitas vezes apoiados em filantropos, fundações e afins – penso que a imprensa portuguesa não vai poder viver desse tipo de modelos. Vai, isso sim, ter que se adaptar a ritmos de consumo diferentes e aprender a fazer algum jornalismo com outros tempos e novas ferramentas, enquanto continua a fazer o que sempre soube. Vai ter que encontrar as suas formas de financiamento, sem abdicar dos seus valores. No fundo, vai fazer o que o jornalismo sempre fez: provocar mudanças e adaptar-se a elas, garantir uma sociedade independente conseguindo ser independente.

A ventania ibérica

André Macedo (diretor do jornal dinheiro vivo)

Logo que soube, nesse fatídico 1 de fevereiro de 2014, que Pedro J. Ramírez ia deixar a direção do “El Mundo” fiquei com um formigueiro nos dedos. Tinha de escrever esta nota com toda a urgência. O

Pedro J. produz esse efeito de impaciência nos jornalistas: um sentido de missão, responsabilidade e sentido coletivo. Ele põe toda a gente a correr atrás de um assunto. É também por isso que o Pedro J. é o melhor diretor de jornais que conheci nestes 20 anos. É também por isso que digo, sem admitir a menor dúvida, que não há melhor do que ele à frente de um jornal na Península Ibérica. Ninguém teve a inteligência, a coragem, a perseverança e a visão que ele revelou ao longo destes anos todos – duas décadas – num lugar de máxima responsabilidade e total exposição. Não conheço outro diretor de jornais que tenha enfrentado tão frontalmente, tão brutalmente e tão perigosamente os poderes políticos e empresariais mais corruptos de Espanha ou o equivalente em Portugal. A sua folha de serviço inclui cachas e investigações jornalísticas que vão do caso GAL (terrorismo de Estado patrocinado pelo PSOE contra a ETA); ao atentado de 11 de março de 2004 em Madrid, que ainda hoje o “El Mundo” não deixou cair; ao processo Urdangarin, o marido da infanta Cristina, que faz tremer a monarquia; aos casos de corrupção regional e, claro, a tudo o que diz respeito à ETA, que o obriga ainda hoje a andar sempre escoltado. Conheci Pedro J. porque ele foi meu publisher quando fui diretor e, antes, diretor-adjunto do “Diário Económico”, que pertencia à Recoletos. Ele veio um par de vezes a Lisboa e eu fui algumas a Madrid participar em reuniões. O que tive a oportunidade de testemunhar? Um tipo culto, inquieto, direto, teimoso, capaz de ouvir os outros sem os atropelar. Vi um tipo que respirava jornalismo e notícias, notícias de todo o género e feitio – do ciclismo, que ama, ao basquetebol, que o faz vibrar, à política e à literatura. Uma vez, ele disse-me: as pessoas só pagam por exclusivos, os exclusivos são o plasma que nos faz mexer nos jornais, sejam entrevistas ou simples declarações em primeira-mão, fotografias novas, informações que fazem cair os governos. É por isso que temos de lutar todos os dias. Jornalismo é basicamente isto, disse-me ele; e a função de um diretor de jornal é publicar ou não publicar a informação recolhida. “Nisso, um diretor de jornal está sozinho. E à sua frente encontrará quase sempre um pelotão de fuzilamento pronto a disparar, seja a informação verdadeira ou falsa.” Quando há uns anos o “El Mundo” se mudou para as novas instalações, nos arredores de Madrid, Pedro J. mandou pintar em todo o edifício cenas tiradas do “Watergate”, o filme que conta a história da investigação que derrubou Richard Nixon. As imagens, omnipresentes, marcantes, foram escolhidas com um propósito não apenas decorativo, mas para lembrar aos jornalistas do “El Mundo” não o poder que exercem, mas o objetivo principal desse mesmo contrapoder – fiscalizar, verificar, pesquisar, confrontar e, finalmente, publicar as notícias que o statu quo não quer (não quer mesmo) ver conhecidas. Ainda hoje lá estão na edição em papel do “El Mundo” as páginas com o sugestivo antetítulo “políticos sob suspeita”, uma investigação que dura há meses e que junta nas mesmas páginas dezenas de processos e o trabalho que o diário tem vindo a fazer para tentar expor um pouco da corrupção que há por toda a Espanha. É por isso que o “El Mundo” é um jornal feio e duro. Não é sexy, colorido e alegre. Não é um jornal fácil de ler. Não tem coisas giras, como tantas vezes se ouve nas redações: escreve lá isto que é giro! O “El Mundo” não é giro e está obsessivamente

centrado em Espanha, obsessivamente concentrado na vida das instituições e dos protagonistas espanhóis. O dinheiro que o “El Mundo” tem investido todos estes anos, mesmo sabendo que nem sempre consegue resultados, tem sido em grande medida na investigação; e a investigação é o mais caro que há num jornal: é preciso tempo e é preciso muito talento, isto é, jornalistas bons e caros. Pedro J. Ramírez foi o primeiro e único diretor de jornal (dos que eu conheci) que sempre aceitou o risco de construir equipas para investigar assuntos e processos sabendo que no fim, meses e meses depois de cavar, gastar tempo e consumir orçamento, poderia não conseguir publicar uma só linha sobre o assunto. É preciso tomates para fazer isto, tomates ainda maiores em tempos de crise. Um mau gestor, um gestor assustado e burocrata, achará que é dinheiro mal gasto e, como se diz hoje, pouco eficiente. Esse tipo de gestor quer “jornalismo giro”. Eu, se pudesse, bania essa palavra das redações. Dou apenas mais um exemplo deste esforço desencadeado por Pedro J. Ramírez. Há uns anos ele viu-se envolvido num escândalo sexual. Cassetes de vídeo dele foram enviadas para toda a Espanha. As imagens eram, digamos, muito cruas. O que fez Ramírez? Não se demitiu. Chamou as chefias do seu jornal, direção e editores, e mostrou-lhes a gravação inteira. Sentou-se ao lado deles e viu o filme. Por mais embaraçoso que tenha sido, no fim nomeou dois jornalistas top para que investigassem o caso e o noticiassem. Sujeitou-se ao escrutínio jornalístico, deu-lhes carta branca. Ramírez estava convencido que lhe tinha sido montada uma cilada pelos antigos GAL e que o objetivo era desacreditá-lo para que tivesse de demitir-se de uma vez por todas. A vingança servida fria e com perversidade. Pedro J. não se demitiu, mas foi demitido agora que investigava a contabilidade B do partido Popular. É este património jornalístico – a luta contra o crime de colarinho branco e a corrupção – que está em risco com a saída de Pedro J. do “El Mundo”. Veremos. É sabido: o que acontece em Espanha arranja sempre maneira de chegar a Portugal. Não são bons ventos, não

Notícias de lugar nenhum

Rui Hortelão [diretor DA REVISTA Sábado]

William Guest adormece. O cansaço leva-o para longe da reunião da Liga Socialista, de onde acabara de sair, e fá-lo mergulhar num sono profundo. Quando acorda a sensação de mudança é bem mais brutal – para usar uma palavra, atualmente, na moda – do que o despertar do 25 de Abril de 1974. A sociedade mudou: não há propriedade privada nem grandes cidades; não há polícia nem tribunais, não há prisões, divórcios ou sistema monetário. As pessoas tiram o sustento da terra e encontram conforto na Natureza e no trabalho. Todos o fazem pelo prazer de ver nascer objetos de qualidade superior, a seguir oferecidos aos que mais os apreciam.

As aventuras de Guest começaram a ser contadas no dia 11 de Janeiro de 1890, na forma de folhetim, publicado no jornal Commonweal, e que perduraram até aos nossos dias num livro com título igual ao que me apropriei para este texto. É esta a utopia de William Morris (1834-1896), reconhecido escritor e artista, fundador do Movimento de Artes e Ofícios britânico e do movimento socialista em Inglaterra. Neste mundo imaginário criado por Morris – outros houve que inspiraram a saga Nárnia, de C.S. Lewis, e o Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien – os jornalistas só teriam boas histórias para contar, notícias de lugar nenhum, provavelmente sem qualquer interesse associado. Utopia. .Não é, nem nunca foi, o que George Orwell dizia ser: «Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Tudo o resto é publicidade.» O contra poder está na génese dos que escolhem ser jornalistas por vocação, mas nem só de bota-abaixo se faz a profissão. Eça de Queiroz enfatizou-o, apontando a superficialidade como tendência corrosiva do valor do jornalismo na sociedade: «Incontestavelmente foi a imprensa, com a sua maneira superficial e leviana de tudo julgar e decidir, que mais concorreu para dar ao nosso tempo o funesto e já irradicável hábito dos juízos ligeiros. Em todos os séculos se improvisaram estouvadamente opiniões: em nenhum, porém, como o nosso, essa improvisação imprudente se tornou a operação corrente e natural do entendimento.» Hoje, Eça de Queiroz reveria este texto com benevolência para com os que à época faziam jornalismo. O avanço da sociedade e da tecnologia tornou tudo ainda mais instantâneo, diluindo quase por completo o carácter reflexivo do jornalismo. Há, porém, muito mais informação disponível. A toda a hora, acessível a partir de qualquer local, chegando através da rádio, da televisão, do computador, do telemóvel. É este um dos grandes desafios do jornalista de hoje: conseguir preservar o jornalismo como exercício de liberdade, ensombrado que está pela exigência do imediatismo; pelos interesses dos patrões que atualmente o sustentam; pela falência dos tradicionais modelos de negócio; por estar dependente de novas lógicas de distribuição da informação, impostas pela era digital, às quais o jornalismo se entregou sem critério e agora está obrigado a corresponder, se quiser inverter a tendência degenerativa e recuperar o seu valor original. Utopia? Não, enquanto existirem jornalistas leais ao jornalismo. Não, porque como explicou Gabriel García Márquez, «o jornalismo é uma paixão insaciável, que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade». Ao que acrescenta: «Quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia.» William Morris, que experimentou inúmeras atividades (foi poeta, pintor, ensaísta, decorador e político), nunca se aventurou no jornalismo. Mas, atendendo à sua forte tendência para a utopia, tinha tudo para dar um bom jornalista. (CONTINUA PÁG. 14)


14 I ABRIL, 2014

Ilustração . Yup . Visual Studio

15 I ABRIL, 2014

o futuro Isto vai meus amigos isto vai um passo atrás são sempre dois em frente e um povo verdadeiro não se trai não quer gente mais gente que outra gente Isto vai meus amigos isto vai o que é preciso é ter sempre presente que o presente é um tempo que se vai e o futuro é o tempo resistente Depois da tempestade há a bonança que é verde como a cor que tem a esperança quando a água de Abril sobre nós cai. O que é preciso é termos confiança se fizermos de maio a nossa lança isto vai meus amigos isto vai. José Carlos Ary dos Santos


13 I ABRIL, 2014

10 [04]\ reflexões sobre o futuro do jornalismo PEDRO CAMACHO [diretor DA REVISTA VISÃO]

[01]

O jornalismo está a viver um profundo momento de mudança, determinado sobretudo pela revolução tecnológica das plataformas digitais e da transmissão de dados em grande quantidade e a grande velocidade. É fundamental que o jornalismo e os futuros jornalistas se preparem para esta mudança em curso, aproveitando e potenciando as novas linguagens (jornalísticas) e oportunidades (geográficas, culturais, linguísticas) disponibilizadas por esta revolução tecnológica.

[02]\

Um momento de grande mudança tecnológica nunca é inócuo do ponto de vista substancial. O que se está a passar nas tecnologias de informação, embora instrumental face ao jornalismo, não deixa também de colocar novos desafios ao exercício da profissão, não só do ponto de vista técnico mas igualmente do ponto de vista material. E os jornalistas devem, por isso, olhar para esses novos desafios e tentar enquadrá-los dentro das regras e da ética deontológica da profissão. Muito do que se vê na área dos «new media» – por força da novidade dos suportes e das oportunidades tecnológicas, é verdade, mas ainda fruto de uma concorrência medida ao dia ou ao minuto – esquece regras que são essenciais ao jornalismo, seja qual for a plataforma em que este «corre».

[03]\

Na «Era da Informação», convém lembrar que informação não é sinónimo de jornalismo. Temos hoje mais informação que nunca, e temos também, mais que em qualquer outra altura, um jornalismo que vive dias de grande dificuldade. O jornalismo produz informação «certificada» por uma marca, informação que é recolhida, tratada, confirmada, equacionada e difundida por profissionais enquadrados numa estrutura concebida para esta finalidade. Informação que obedece a regras profissionais, éticas e legais. Uma informação que é (deve ser) responsável – e que pode, sempre, ser responsabilizada, porque é informação que chega ao público com uma «cara». Pelo contrário, muita da informação que se confunde, impropriamente, com o jornalismo, circula na net de forma anónima, irresponsável, deturpada, manipulada, muitas vezes sem qualquer relação com a realidade dos factos.

A revolução tecnológica e o crescimento exponencial da informação disponível, tratada ou em bruto, criou alterações profundas no perfil do público consumidor de notícias (e outra informação jornalística). Mas convém não esquecer – o que muitas vezes acontece neste tipo de análises – que não foi apenas a revolução tecnológica que influenciou a relação entre público e jornalismo. Existiu também, desde o pós-guerra – e acelerada, mais tarde, pelas tecnologias de informação –, uma outra enorme revolução, «civilizacional», resultante do enorme salto qualitativo dado por uma percentagem muito significativa de povos e países do planeta, ao nível social, económico e político. Há muito mais gente culta e informada. E muito mais gente interessada em notícias. O tipo de notícias por que se interessam é que não é, necessariamente, o mesmo de há cinco, dez, 20 ou 30 anos.

editorial à evolução dos seus públicos, mas o inverso também aconteceu: a procura de tentar chegar a todos, para alargar a base de leitores, acabou muitas vezes na alienação de um público fiel, que deixou de se reconhecer no seu título de sempre. Uma vez mais, o segredo, e a dificuldade, está em saber acompanhar, de forma prudente, as mudanças de interesse dos leitores – mas sem perder de vista, em primeira linha, os interesses de quem já é nosso leitor.

[07]\

Os «mercados» (os públicos) das notícias são um espelho da evolução constante das sociedades. O interesse pela informação global (planetária), pela informação nacional ou mesmo local (regional) conheceu e continua a conhecer diferentes graus de procura e, correlativamente, de êxito, numa lógica de fluxo e refluxo. Assim como a procura de informação geral «versus» informação especializada, na procura crescente de nichos de mercado segmentados – ou de «comunidades», segundo uma terminologia mais recente e adaptada a novos conceitos – teve já o seu pico e retrocesso. Tudo isto resulta do cruzamento das evoluções «humana» e «tecnológica» das sociedade – ditando diferentes tendências (curvas ascendentes ou descendentes de interesse por determinados assuntos) e/ou diferentes plataformas (em função dos assuntos tratados). Mas nestas evoluções comportamentais dos consumidores de informação há sempre, no limite, um traço comum: a vida, de todos e de cada um, enquanto tal, num determinado momento histórico. Por isso, a vida das pessoas – os sonhos, as angústias, os sofrimentos, os desejos – serão sempre objeto do jornalismo, independentemente de, em determinado momento histórico, essa vida (particular, geral, global) estar concentrada na política, no desporto, na guerra, na ciência, na medicina, no ambiente… O segredo, e também a dificuldade, está em saber acompanhar, a tempo e horas, essas mudanças de agulha.

O jornalismo é uma profissão diferente, com privilégios, regras e exigências particulares. Mas os órgãos de comunicação social têm estrutura e objetivos empresariais, necessitando, desde logo, de ter viabilidade económica – isto é, precisam, como todas as iniciativas empresariais, de receitas que lhe garantam sustentabilidade. Um dos problemas do jornalismo de hoje reside, precisamente, na sua (in)sustentabilidade. De um lado, tem um mercado publicitário (fonte essencial de receitas para a maioria dos órgãos de comunicação social) muito frágil, concentrado em poucas empresas ou grupos económicos. A seguir, sofre a concorrência, recente, de um leque crescente de plataformas de difusão de publicidade – sobretudo a interminável teia de fornecedores de conteúdos digitais que se espalham pela internet. E, por fim, cometeu, ele próprio, o erro de transmitir aos leitores/consumidores a ideia de que o jornalismo não custa dinheiro, de que pode ser obtido gratuitamente – uma perceção que resultou dos noticiários de rádio e televisão, que nunca foram pagos, dos sites noticiosos abertos (que começam agora a dar os primeiros passos para acabar com a gratuitidade no acesso) e dos próprios jornais gratuitos. Tudo isto aconteceu porque se acreditava que a publicidade estaria sempre ao lado da informação, numa relação de ganho mútuo – financiamento dos órgãos de comunicação social em troca de espaço (a publicidade) num «veículo», o único, que garantia visibilidade e comunicação aos anunciantes. Isto já não é assim. A publicidade está cada vez mais dispersa, procurando resolver as suas necessidades noutros suportes. Mas o jornalismo – e sobretudo o bom jornalismo – continua a precisar de dinheiro para realizar a sua missão. E é uma tarefa que sai cada vez mais cara, se olharmos para a relação custo/receita – ou, se quiserem, custo por consumidor final. Esta relação, que é fundamental para a sobrevivência de um jornalismo independente, tem de ser reinventada.

[06]\

[08]\

[05]\

Os tempos mais recentes ensinaramnos que não há temas «importantes» – como a política nacional, o internacional e a economia – e «outros» assuntos normalmente desvalorizados pelas redações – como o crime, a saúde, a família, o desporto. Esse é um quadro mental que mudou. Optar por ter a economia ou a política como tema central de uma publicação é uma opção legítima, mas é fazer uma segunda escolha de base: a de trabalhar para um público reduzido. Mas pode ser o caminho mais racional… Muitos títulos perderam a sua força por não terem sabido adaptar a sua linha

As pressões políticas sobre a comunicação social são tema recorrente do debate público. E elas, como é natural, existem. Assim como também existem, de forma mais ou menos ostensiva e pública, as pressões empresariais. São manifestações «normais» de um conflito de interesses e de poderes. É claro que existirão sempre empresas de comunicação social que darão mais importância à independência editorial dos seus títulos do que outras. Que existirão direções editoriais mais fortes (e mais apoiadas empresarialmente) do que outras. E que a fiscalização interna dos títulos, nomeadamente através dos

Conselhos de Redação, funcionará melhor nuns sítios do que noutros. Mas o assunto das «pressões ilegítimas» não mereceria mais do que duas linhas caso os órgãos de comunicação social gozassem, todos eles, de boa saúde financeira. A questão é que não a têm, e essa é de facto uma fragilidade perigosa. A independência editorial, a independência perante os poderes políticos e económicos, é difícil sem independência financeira. E esta é hoje uma questão crítica. A sociedade dá como definitivamente adquirida a existência de uma comunicação social independente e plural que lhe garanta informação diversificada, isenta e fidedigna. Mas nada disso é seguro num futuro próximo.

[09]\

Apesar de todas as dificuldades, é difícil conceber uma sociedade livre e democrática sem a existência do jornalismo. Ele existe para prestar informação rigorosa, objetiva e isenta, ao serviço, exclusivamente, dos leitores, ou seja, da população em geral. Não há, ninguém descobriu ainda, um substituto para este papel fundamental do jornalista. Ninguém mais presta o serviço de separar, desinteressadamente, o que interessa saber do que é acessório, o que é verdadeiro do que é falso, o que é importante conhecer do que é «lixo» informativo. Ninguém mais traduz, com igual mestria, o que é difícil ou inacessível para um discurso que «toda a gente» pode entender. Ninguém mais sabe dar, tão bem, sentido a um drama humano, a um número estatístico ou a um facto político. Ninguém mais está tão focado em fazer apenas uma única coisa: olhar à volta e descobrir o que é importante contar e explicar às pessoas, para que elas saibam o que se passa à sua volta, percebam esses factos e saibam ter uma opinião sobre eles. Seja em que plataforma for, seja para que segmento de público for, o jornalismo será sempre uma mais-valia insubstituível para uma sociedade livre. E deve, por isso, ser preservado a todo o custo.

[10]\

O jornalismo poderá mudar muito no futuro, mas não pode esquecer nunca que existe para dar informação objetiva, isenta e independente, para garantir conhecimento, opinião e capacidade de escolha responsável e esclarecida às pessoas. E para fiscalizar os poderes e denunciar os abusos, em defesa dos cidadãos. Poderá mudar muito, mas só continuará a ser jornalismo, em toda a sua plenitude, enquanto garantir a liberdade de expressão e a liberdade de informar com total independência. Em papel, em digital ou em qualquer outra plataforma, que não imaginamos ainda sequer, estes são valores que nunca mudarão no jornalismo. E que devem ser defendidos por todos, porque são, também, fonte de todas as outras liberdades individuais e da existência da própria democracia.

10 I ABRIL, 2014

Ilustração . Christina Casnellie


Ilustração . Tiago Albuquerque

16 I ABRIL, 2014

17 I ABRIL, 2014

questões de memória Maria Manuela Cruzeiro INVESTIGADORA DO CES - Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

“Bem aventurados os que vivem a história, a eles pertence o reino dos céus que os cobrem. Muito mais do que aos que fazem a história. Esses estão condenados ao limbo onde retocam até ao infinito as imperfeições invencíveis da natureza humana. Nada pode compararse à emoção de um povo que recupera a liberdade. Ele ultrapassa, como vaga alterosa, todos os projectos razoáveis forjados em seu nome!” Álvaro Guerra, “Café 25 de Abril”, p. 35

[01]

Ninguém melhor do que um escritor para traduzir a situação de quem, passados 40 anos, revisita um acontecimento que continua a ser fonte de emoções e reacções apaixonadas e tema das mais variadas investigações e estudos. Como acontecimento global, que rasga de alto a baixo determinada estrutura social, subvertendo valores, crenças, comportamentos e modelos políticos, culturais ou éticos, a revolução sendo história, é muito mais do que isso. Não podendo prescindir dos contributos dos historiadores, eles parecem-nos sempre escassos e limitados para traduzir o pulsar interno dos acontecimentos, a intensidade com que foram vividos, a sua natureza única e irrepetível.

Ligando directamente o passado e o presente, aponta-se uma visão de futuro, neutralizando e pulverizando o processo histórico. A verdade é que não podemos pedir à história o que ela não pode dar. Podemos saber tudo sobre as circunstâncias históricas que possibilitaram a eclosão de uma revolução num país dos confins da Europa, onde ninguém acreditava nessa possibilidade. Mas, como sabemos, a verdade não se reduz àquilo que pode ser explicado e verificado por qualquer sequência lógico-causal. A realidade é diferente da totalidade dos factos verificados. Há uma dimensão humana dos acontecimentos, uma significação ética e política dessas experiências que a memória histórica está longe de poder alcançar. Radica aqui a vasta e complexa problemática da memória e da clássica divisão entre memória individual e memória colectiva. A memória individual de quem viveu a experiência revolucionária caracteriza-

se por uma intensa dimensão afectiva e emocional, situando-se numa linha de proximidade quase osmótica com a realidade vista pelo seu lado interno, mais íntimo e directo, mas necessariamente mais fragmentado e parcelar. Alheia às grandes preocupações interpretativas e integradoras, a memória individual obedece sobretudo à necessidade vital de preservar e transmitir experiências variadas e únicas, projectando luz sobre a diversidade e complexidade daquilo que tantas vezes nos é mostrado como uma sucessão de factos de um sentido único e inquestionável. Neste caso, o comum mecanismo de lembrar/esquecer alimenta uma corrente necessária à sobrevivência de diferentes grupos e indivíduos, e à reestruturação de identidades, de intencionalidades e de valores que podendo não ser dominantes, não podem ser excluídos porque são traços definidores do rosto deste país. Ou seja, descobrir como nasceram e porque morreram tantos e tão ambiciosos projectos de mudança, nesse tempo curto mas exaltante em que o futuro deste país estava nas nossas mãos, é perceber que, apesar de vencidos, tais projectos não são, por isso, menos importantes para o conhecimento do que fomos e, consequentemente, do que poderemos vir a ser. Prescindir desse património é como apagar dos retratos de família alguns rostos mais incómodos. Ao contrário, dar-lhes o seu lugar, ou resgatar as suas vozes é reconhecer a memória individual como um poderoso filão simbólico e compreensivo para diferentes grupos e indivíduos. Ou seja, como fonte de práticas sociais, culturais e políticas mobilizadoras e marca identitária de uma sociedade em busca constante das suas próprias memórias e projectos. Quanto à memória colectiva, e de acordo com a já clássica definição de Maurice Halbwachs, ela é normativa, simbólica e fora do tempo. Antes de mais, porque o referido mecanismo lembrar/esquecer se constitui neste caso não como condição natural da memória (para lembrar é preciso esquecer), mas como eixo vital de permissão discursiva, de verdade social, e de controlo informativo. Neutralizando as contradições históricas e os conflitos sociais, a memória colectiva selecciona do passado o que considera importante para o indivíduo ou para a colectividade e organiza e orienta todo esse material segundo um sistema de valores inquestionável. Daí, a segunda característica: simbólica.

Os acontecimentos escolhidos são idealizados, quando não mesmo sacralizados, e os valores e referências sobrepõem-se à procura da verdade do acontecido. Ligando directamente o passado e o presente, aponta-se uma visão de futuro, neutralizando e pulverizando o processo histórico. Finalmente, a memória colectiva situa-se fora do tempo. Aprisiona as especificidades emocionais e reduz a complexidade das experiências, estabelecendo um deslocamento temporal no vivido, como se fosse recoberta por uma dimensão vazia de tempo. O que significa que se opera um fenómeno de desnaturalização que se traduz na redução do sentido da memória como algo suspenso no tempo.

[02]

Aplicando este quadro teórico, necessariamente esquemático, ao caso concreto da Revolução Portuguesa, parece evidente o desequilíbrio: a memória colectiva domina, obscurece e quase apaga a memória individual, pois as condições de sobrevivência de cada uma delas não podem ser mais desiguais. Percorrendo sumariamente as várias formas de memória colectiva, é fácil concluir que, apesar das óbvias diferenças entre si, um mesmo princípio unificador preside à sua organização, impondo uma leitura hegemónica dos acontecimentos históricos englobados na designação genérica de revolução. Deixando por agora de parte dois casos especiais de memória colectiva (o comemorativismo e a comunicação social), verificamos que, tanto ao nível da divulgação histórica, como nos domínios da produção científica, dos centros de investigação ou dos programas escolares, as leituras propostas obedecem àquilo que Rui Bebiano chama com propriedade operação de desmemória: “desmemoriados, reconhecemos então como passado, apenas o que nos é transmitido por intermédio de uma informação criteriosamente seleccionada, já não tanto aquilo que nos contam ou que, sozinhos ou acompanhados, somos capazes de recuperar.”1Em termos gerais, essa leitura hegemónica veicula versões no mínimo simplistas e redutoras, onde não cabe uma infinidade de memórias individuais discordantes. Exemplos dessas versões: O país democratizou-se automaticamente, com uma revolução sem sangue, ultra-consensual, que não teve uma única reacção negativa (fenómenos como a violência contra-

revolucionária desaparecem para só dar lugar ao bombismo das FP25), e que depois de um breve período de alguma confusão da responsabilidade de perigosos esquerdistas, entrou no eixos da normalidade de uma democracia parlamentar, ocidental, caminho único e óbvio, rumo ao progresso e à paz social. A tendência dominante, quase exclusiva, do poder em Portugal, após o grande susto do PREC (trauma silencioso de que pouco ou nada se fala) tem sido a da naturalização da democracia representativa, ou seja da produção da ideia de que “a democracia representativa é indiscutível, que qualquer outro tipo de regime mais progressivo pertence à categoria das ideias utópicas e inacessíveis, reduzindo o criticismo popular ao interior do regime, sem jamais discutir o regime em si.” 2

o tão celebrado progresso ou evolução, se fez (se vem fazendo) segundo um modelo que não prolonga nem aprofunda os valores de Abril, antes é feito ao arrepio das suas promessas e esperanças. Contrapõe-se assim revolução, diabolizada ou minimizada como crise passageira ou epifenómeno insignificante, e democracia, numa operação puramente ideológica, que legitima um caminho para a sociedade portuguesa que passa pela liquidação de uma parte essencial do património de conquistas políticas sociais e culturais iniciadas em 1974 e consagradas constitucionalmente em 1976. Para saber do que falamos, basta recordar o polémico episódio em torno das Comemorações dos 30 anos do 25 de Abril, que a comissão oficial nomeada para o efeito entendeu submeter ao tema Abril é Evolução. Ao omitir uma simples letra, apaga-se o passado revolucionário, celebrando o presente neo-conservador e neo-liberal, numa complexa operação de marketing, situada algures entre a amnésia e a mentira. Amnésia, porque ignora que a democracia nasceu justamente de uma revolução e não de um qualquer continuismo liberalizante. Que ela não foi outorgada, mas conquistada por um corte brutal e violento com o passado da ditadura. Mentira, porque o tão celebrado progresso ou evolução se fizeram (se vem fazendo) segundo um modelo que

não prolonga nem aprofunda os valores de Abril, antes é feito ao arrepio das suas promessas e esperanças. Em termos psicanalíticos, amnésia e mentira parecem ser afinal os dois pólos que marcam a forma como o regime democrático lida com esse trauma silencioso que é o 25 de Abril. Mesmo que o comemore, ou justamente porque o comemora... para mais facilmente o esquecer!

[03]

O fenómeno do comemorativismo, apesar de pertencer ao vasto e complexo campo da memória colectiva, acrescenta às características comuns outras de tal importância, que frequentemente o autonomizam em relação a manifestações da mesma constelação. Com efeito, para além das características já apontadas para a memória colectiva em geral, na comemoração surgem outras que são, afinal, os seus mecanismos reguladores. Em primeiro lugar, o mecanismo do recalcamento e exaltação. Na comemoração há como que uma organização do esquecimento (melhor: da desmemória), conta-se uma história ficcionada, censurada de acordo com determinados pressupostos ideológicos e políticos. Em segundo lugar, o mecanismo da unificação e síntese. Neutralizando as contradições históricas, a comemoração unifica, organiza e hierarquiza várias memórias em concorrência, que podem unir-se ou excluir-se. Tende-se, assim, a promover o consenso com base numa narrativa coesa, dominante, ou mesmo exclusiva. Compreende-se que comemorar qualquer evento do passado vise gerar os mais amplos consensos, embora o unanimismo total seja mais uma construção ideológico-política, uma

imagem construída, nunca uma imagem real de determinada sociedade. Em resumo, comemora-se sempre o crédito, nunca o débito, comemoram-se sempre conquistas e nunca derrotas, comemorase sempre o presente, ou o que do passado interessa ao presente. Nenhuma comemoração é inocente. Apesar de brevemente expostos, os traços essenciais do fenómeno do comemorativismo são facilmente detectáveis naquilo que entre nós tem sido a comemoração da revolução. Tudo parece ter vindo a cumprir-se de acordo com a norma. Ou quase tudo. Porque há um elemento não estrutural, mas conjuntural, que altera significativamente a situação portuguesa: a baixa intensidade com que a sociedade portuguesa vem cumprindo o ritual da comemoração. A ideia muito difundida de que não há melhor comemoração para a democracia do que a sua vivência diária, se por um lado é uma clara e inequívoca demonstração da superioridade desse regime político sobre qualquer outro, por outro lado, corre o risco de conduzir a uma banalização e até a um esvaziamento do conteúdo da cidadania, no sentido do aprofundamento dessa mesma democracia que, mais do que construção e conquista diária, aparece como dado natural imutável e irreversível. Ora, nada é tão contrário à experiência histórica, que a todo o momento nos prova o difícil equilíbrio em que vivem as sociedades democráticas: a sua força é também a sua fraqueza. Como afirmou José Saramago, nos já longínquos 20 anos da revolução: “A democracia, sendo o melhor de todos os sistemas, concilia-se demasiado facilmente com o paradoxo de nela, por ela, e com ela, se poder fazer democraticamente aquilo

que, de democrático nada tem”. Ou seja: não descriminando, à partida, os cidadãos por convicções políticas, religiosas, ou outras, a democracia trata de igual forma democratas e não democratas. Acreditando no poder da persuasão, do diálogo e do compromisso, recusa meios violentos de se impor e até de se celebrar, como acontece com os regimes ditatoriais, cujo segredo reside, justamente, na sábia gestão dos diferentes graus de violência: ora explícita, ora difusa e subtil, como acontece na utilização do indispensável capital simbólico a que todos os regimes recorrem como forma complementar de legitimação. Ora é esse capital simbólico que também a democracia não pode dispensar. Sobretudo se se trata de sociedades como a nossa de muito recente e frágil tradição democrática.

Um enorme fosso se foi cavando entre estas duas formas de comemorar Abril: a dos discursos sem povo, e a do povo sem discursos. Contudo, a democracia nascida em Abril não pôde ou não soube encontrar forma adequada de se comemorar. Ao longo dos anos, a celebração da data arrasta-se, oscilando entre momentos de baixa intensidade, traduzidos num consensualismo anódino e pacificador, e momentos de alta intensidade em claro paralelismo com as grandes datas de um passado glorioso de séculos. Em ambos, por razões que tentarei expor, Abril se encontra ausente, ou no mínimo, bastante transfigurado. No primeiro caso, incluo os chamados festejos populares, as mais das vezes de iniciativa local, que,

com louváveis excepções, se cumprem repetidamente, sem qualquer inovação ou criatividade, apenas porque se trata de um feriado como qualquer outro. Estamos perante uma versão mínima, quase residual: 25 de Abril, dia da Liberdade! De pouco tem servido o indisfarçável desconforto daqueles que se sentem mais participantes em exéquias do que em comemorações. A comparação do feriado (dia da Liberdade) com outros já muito amarelecidos pelo tempo como o 5 de Outubro, começou cedo e é cada vez mais uma constante a ponto de, com objectivos diferentes, se chegar a defender a extinção pura e simples de tais iniciativas, pela enorme distância a que ficam do verdadeiro espírito de Abril. Na verdade, como disse, o que elas veiculam é uma pálida imagem do 25 de Abril, totalmente expurgada da sua natureza revolucionária e, portanto, de todo e qualquer sinal de conflito e de ruptura. O conflito, a existir, terá que ser contido no lugar que lhe destina a normalidade de uma democracia representativa: o parlamento. Assim, os partidos políticos com representação parlamentar protagonizam a outra vertente das comemorações de baixa intensidade. Apesar da forma diferente com que cada partido lida com a memória da revolução, o certo é que essas diferenças retóricas não chegam para alterar o figurino engravatado e solene com que o 25 de Abril visita uma vez por ano a chamada casa do povo. Sem entusiasmo, sem mobilização das massas, cada vez mais afastadas dos seus representantes. Um enorme fosso se foi cavando entre estas duas formas de comemorar Abril: a dos discursos sem povo, e a do povo sem discursos. Mas há também as comemorações de alta


18 I ABRIL, 2014 intensidade, que pretendem colocar Abril em lugar especial na galeria das glórias nacionais, como momento só comparável ao que de melhor conseguimos no passado. Mas também aqui se descaracteriza e dilui a verdade da revolução, através de uma espécie de reciclagem de velhos símbolos e de uma velha mitologia do antigo Portugal pré-Abril. É assim com a Expo 98, com a mobilização nacional por Timor, com o Campeonato Europeu de Futebol de 2004. Acontecimentos tão diferentes entre si, que só uma imensa operação de mistificação os pode unir. Como se, de repente, num súbito assomo de brio e orgulho nacionais, acordássemos de um estado geral de apatia e indiferença, para dar uma nova lição ao mundo. Como se tudo se resolvesse com milagrosos reforços de orgulho e auto-estima nacional, quando não de desorbitada euforia identitária. O resultado só pode ser um encadeado fatal de equívocos. O principal dos quais é iludir a trágica ausência de um verdadeiro projecto nacional, com uma tão frágil quanto inconsistente galeria de desgarradas propostas, nascidas mais do universo do marketing do que da autêntica realidade nacional. A memória reconfigura-se, assim, através de uma discutível selecção de imagens e símbolos identitários, valorizados apenas em função do seu potencial mobilizador na conjuntura social ou política do momento. Normalmente, esses símbolos e imagens constituem uma espécie de catálogo onde se escolhe o que melhor se adequa a promover uma ideia de Portugal e dos portugueses que pouco ou nada se distingue de um produto comercial. É a marca Portugal de que nos fala essa nova geração de descobridores e visionários, que mais não são do que criativos saídos de empresas de sucesso, agora chamados ao desafio maior de arrastar para esse sucesso a grande empresa nacional. Injecta-se assim auto-estima, orgulho nacional e patriotismo através de acontecimentos que, chamem-se o que se chamarem, mais não são do que campanhas publicitárias públicas ou privadas, servidas pelos ícones que estão na moda nas várias áreas de actividade. Os heróis desportivos são, obviamente, os mais exaltados: José Mourinho, o Special One, Cristiano Ronaldo ou, mais recentemente, Eusébio. Mas não são exclusivos. Também Saramago, Paula Rego, Manuel de Oliveira, Siza Vieira, ou a incontornável Joana Vasconcelos são usados (por vezes de forma abusiva) nessa estratégia de marketing e publicidade, ao mesmo nível do vinho do Porto ou do Mateus Rosé, do fado de Lisboa ou dos pastéis de nata, do computador Magalhães, da gastronomia ou das praias do Algarve. Percebe-se que nesta pobre paisagem nenhum destes símbolos sobrevive para lá do prazo de validade de um gabinete de estudos ou de uma qualquer comissão (é já proverbial a máxima de que em Portugal, quando surge um problema, cria-se uma comissão!) pois nenhum tem a natureza e o poder catalisador, transformador e futurante de um verdadeiro desígnio.

[04]

Na ausência de uma grande causa mobilizadora nacional que seria, por exemplo, o combate pela liberdade contra a ditadura fascista, já que o valor da liberdade parece ser o único denominador

19 I ABRIL, 2014 comum para o 25 de Abril (daí o dia da Liberdade), a nova democracia parece preencher esse vazio com um outro combate que é ao mesmo tempo a sua certidão de nascimento e o seu manual de sobrevivência: o combate contra a memória de 1974/76, obsessão e trauma da nova classe política. “A política portuguesa tem sido um mero exorcismo destinado a libertar-nos dos demónios e das maldições que nos possuíram nesses anos descabelados e os sacrifícios que regularmente nos são pedidos tomam o ar de expiação das terríveis culpas que nos são imputadas por termos posto este país no caos e na anarquia.”3

A comemoração de Abril por este regime será sempre uma comemoração ressentida e complexada, uma comemoração mais pela negativa do que pela positiva. Neste contexto, percebe-se como a comemoração de Abril ao longo dos anos mais não tem sido do que a autocomemoração de uma “normalidade democrática” reduzida à autoproclamação das virtudes do jogo partidário. De partidos que, por sua vez, mais não são do que meras agências de colocação. E percebe-se como este programa mínimo (por mais e mais variadas que sejam as iniciativas em que se desdobre) não chegue para alimentar e mobilizar energias colectivas. A comemoração de Abril por este regime será sempre uma comemoração ressentida e complexada, uma comemoração mais pela negativa do que pela positiva.

[05]\

Por detrás de uma visão de consenso ou mesmo de unanimismo e manipulação (no caso do comemorativismo) a memória colectiva esconde, segundo Pollack, uma dimensão de violência. Antes de mais sobre uma quantidade de memórias concorrentes, as mais das vezes anatemizadas com o rótulo da subjectividade (sinónimo para muitos historiadores de falsidade e pura invenção) ou então arrumadas com condescendência numa zona promíscua entre a história e a ficção. O testemunho pessoal, quer oral, quer escrito, é ainda olhado com desconfiança pelas instituições da memória (incluindo a própria história). Na maior parte dos casos preenche o espaço afectivo da memória nostálgica, feita de ternura e desencanto e alimentada por pequenas estórias, peripécias, curiosidades, episódios mais ou menos saborosos pelo seu ineditismo, bizarria e excentricidade, tão ao gosto da devoradora galáxia mediática. (Onde é que tu estavas no 25 de Abril?) . Os media são, na verdade, o seu veículo ideal, não só pela liberdade formal que possibilitam (ausência de qualquer metodologia específica) mas também pelo manancial inesgotável de temas, de personagens e de situações fortemente apelativas. São inúmeros os exemplos de trabalhos, em jornais, rádio ou televisão, inspirados numa leitura da revolução como momento acima de tudo lúdico ou folclórico. A festa (por vezes confundida com espectáculo), que não deixa de ser

uma componente essencial do fenómeno revolucionário, assume aqui uma centralidade exclusiva e é, justamente, essa perspectiva redutora que compromete em definitivo a recuperação do grau de intensidade com que se viveram aqueles meses de brasa. Meses de exaltação e de vertigem, mas também de incerteza e de angústia, porque neles se jogava a própria vida. Ora essa experiência limite não se recupera com leituras que ilustram a pragmática máxima: “quem aos 20 anos não é de esquerda, é porque não tem coração! Quem aos quarenta ainda o é, é porque não tem juízo!”. Os tempos correm de feição a esses trabalhos, quase sempre êxitos editoriais garantidos junto do grande público, porque não exigem grande esforço intelectual, e sobretudo não o desafia para qualquer tomada de posição clara, de apoio ou condenação. Apenas convida a uma viagem pelo passado, com a mesma terna bonomia com que folheamos velhos álbuns de família, lançando um olhar condescendente aos inevitáveis excessos de juventude. Sendo certo que muitos desses aspectos (de jovens e menos jovens) não são estranhos à experiência revolucionária, ela própria mistura explosiva e por vezes incontrolável de ideias e paixões contraditórias, o que mais perturba é que, regra geral, são os mais eufóricos de ontem os mais desencantados de hoje, os mais apressados em encerrar a experiência revolucionária num passado definitivo, revisitando-o como quem contempla uma fotografia amarelecida, contentando-se em exclamar : ‘eu estive lá!’

A festa (...) que não deixa de ser uma componente essencial do fenómeno revolucionário, assume aqui uma centralidade exclusiva e é, justamente, essa perspectiva redutora que compromete em definitivo a recuperação do grau de intensidade com que se viveram aqueles meses de brasa. Por isso, e paradoxalmente, sob a capa de aproximação vivencial e afectiva, essa leitura de dentro acaba também por instaurar um certo grau de estranheza e de distanciação (por vezes mesmo de falsidade) quanto ao espírito do tempo. O que parece estar próximo está afinal suspenso num tempo longínquo, estranho, irrecuperável. O passado evocado como uma espécie de reserva arqueológica, habitada por seres, gestos e vozes anacrónicos e definitivamente arquivados. Mas obviamente revisitados em período de comemoração. Então se calha em data redonda (como acontece agora com os 40 anos) as iniciativas multiplicam-se, os títulos atropelam-se nas bancas, reeditam-se velhos materiais com roupagem nova, e novos com sabor a velho, anunciam-se descobertas, revelações inéditas, mesmo bombásticas, verdadeiros furos editoriais. Tudo numa sequencia vertiginosa, porque Abril tem 30 dias e para Maio outras agendas nos esperam.

[06]

Fazendo a justiça de pensar que motivações muito variadas (das mais nobres às mais utilitárias) estão na base desta recuperação de vozes, ideias e mundividências desvalorizadas pelos paradigmas dominantes, não posso deixar de concluir que tal não chega para resgatar Abril da omissão estatal, da adulteração historiográfica, da amnésia da sociedade civil. Daí a necessidade de fortalecimento de uma memória que, se por um lado integra o conflito e a competição, por outro tenta reverter o fluxo incontido da memória, no sentido de preencher o vazio que se instala sempre que esta é reduzida a simples e ténue lembrança a que se não volta mais.

Alargar e enriquecer essa memória, aprender o valor de negociar e de lutar pela sua integridade, representa uma garantia ética e democrática do direito à memória. Esta memória, superadora do conflito entre memória colectiva e memória individual, será assim uma memória sócio/cultural. Por ela se pretende reduzir a distância entre as duas, reconhecendo o papel da sociedade civil, cuja vitalidade afinal, depende da capacidade de lançar luz sobre zonas silenciadas ou reprimidas do seu passado. Sendo que essa mesma capacidade se deve alargar à preservação do seu significado e à garantia da sua transmissão no espaço público, contra a construção de um quadro hegemónico de referências que não faça sentido para os seus actores e da qual se sentem violentamente excluídos. Só uma sociedade autenticamente democrática pode alargar e aprofundar esta memória sócio/cultural. Só ela pode gerar forças de dinâmica social que vigiem e controlem os processos de exclusão, de ocultação ou censura. Alargar e enriquecer essa memória, aprender o valor de negociar e de lutar pela sua integridade, representa uma garantia ética e democrática do direito à memória.Este direito à memória é o que menos preocupa o actual poder político, cujo programa é em tudo contrário ao 25 de Abril. Em coerência não devia comemorá-lo, e erradicálo o mais cedo possível do calendário dos feriados nacionais. Não o fará, por puro cinismo e hipocrisia. Pela mentira monumental em que se transformou a política em Portugal. Pelo ar irrespirável de medo, de desencanto, de frustração de desespero. Eduardo Lourenço o nosso maior pensador disse-o melhor que ninguém: “Dá a impressão de que, de repente, fomos invadidos não por uns castelhanos arcaicos, mas por uma espécie de vampiros como aqueles que o cinema de Hollywood ilustra. Não é por acaso que o tema dos vampiros se tornou um tema da moda. Os vampiros são emissários da morte, é como se estivéssemos a viver uma espécie de apocalipse em directo.” (Por decisão da autora, este artigo não respeita o acordo ortográfico de 1990) 1. Bebiano, Rui. “Anos Inquietos - Vozes do Movimento Estudantil em Coimbra”. c/ Maria Manuela Cruzeiro. Porto, Edições Afrontamento, 2006, p.9 2. Silva,Tiago Matos. “Pais de Abril, Filhos de NovembroMemória do 25 de Abril”. Lisboa, Edições Dinossauro, 2002, p.146 3. Pereira, João Martins. “No Reino dos Falsos Avestruzes”, 1983, p.49

40 ANOS 10 PERGUNTAS Júlio Pomar

QUESTIONÁRIO

Mais Abril ou menos chuva? Outro Abril para os manda-chuva 40 anos de liberdade ou de libertinagem? Averiguar o significado das palavras A cantiga é uma arma ou um tratado de paz? Não ir na cantiga é a arma da paz Terreiro do Paço ou Largo do Carmo? Cada um segundo as suas necessidades Piano ou cravo? Cravos vermelhos, não pianinho 25 de Abril sempre. O que não quer nunca mais? Não acreditar que nunca mais Uma resolução de Abril que se perdeu? Nada se perde tudo se transforma O futuro é um quadro branco ou negro? O futuro é uma criança Orgulhosamente só ou mal acompanhado? Gostosamente bem acompanhado Portugal tem futuro ou medo de existir? Nada se conserva tudo se transforma, cuidado com as conservas fora de prazo

classificados EMPREGO

Explicações de matemática, todos os níveis com exceção do nível de negação, necessário para calcular razões que justifiquem impostos, sanções, cortes, ajustes e reduções. Preço especial à hora para grupos até 2 x √4 x ¼ pessoas.

Massagista de egos

realizo a sua fantasia: eleitora, assessora, empregada, admiradora incondicional, digo que sim a tudo. Discrição e sigilo profissional. 950 148 209 Estágio profissional para Ministro de Tudo o Que Der Jeito. Possibilidades de carreira em empresas públicas, bancos ou qualquer coisa na União Europeia, consoante o desempenho. Não é necessária experiência. Recomenda-se cor política adequada. Contactar alguém influente para mais informações. Contrata-se Precisa-se de afiador de lápis de censura azuis. Regime a tempo inteiro part-time variável, à experiência, dependendo a contratação do humor do chefe das capacidades demonstradas. Necessário sentido de oportunismo responsabilidade e capacidade de concentração para que os lápis não deixem nada por censurar rasurar riscar sublinhar.

Troca-se amizade de Facebook por relação complexa real. Inclui likes, smiles, lols, rotfls e memes da internet, com ocasionais pedidos de ajuda (like) para os golfinhos da Suíça, para as focas bebés do Camboja ou outros, igualmente urgentes. A relação complexa deve obedecer aos mínimos exigidos por lei de interação não-virtual, e ser capaz de resistir ao apelo apático dos ecrãs modernos.

IMOBILIÁRIO

Arrendo sótão assombrado por fantasmas políticos e poltergeists que desmontam discursos e aparatos partidários, mas muito acolhedor. Áreas amplas para guardar boas e más memórias, ou para armazenar coisas importantes de antigamente, para as quais não há espaço nos dias de hoje. Partilho coração vibrante em corpo saudável, ventrículos arejados, aurículos espaçosos, aorta com vista para a beleza interior. As despesas e as alegrias serão divididas de forma justa com o novo inquilino ou inquilina. Aberto a propostas de poliamor, mas vedado a taquicardíacos indecisos. Enviar proposta em carta de amor escrita à luz da vela. Horta Comunitária. Partilho canteiro com sementes de cravos enérgicos e viçosos,

POR JOÃO SILVA

resistentes ao sol, à chuva e ao bom senso. São necessárias algumas obras, eliminação e controle de ervas-daninhas.

VEÍCULOS

Aluga-se carrinha Renault de caixa aberta, com altifalantes, megafones e faixas instalados. Inclui grupo de até 6 manifestantes com autonomia de 7 horas, com pausas para recarga de Sagres e idas ao wc. Excelente para atividades sindicais e batizados. 952 575 817

Vendo chaimite de 1974

como nova, pronta para as curvas e para enfrentar estradas e vidas tortas e cheias de buracos. Ideal para quem quer marcar uma posição, sem rodeios mas também sem sangue. Abrantes. -------------------------------------------------

DIVERSOS

Vendo dicionário de palavras de ordem, gritos de revolta, incitações ao pensamento crítico, onomatopeias de bravura. Volumoso mas leve, ligeiramente deteriorado com o uso mas sem um grão de pó. Vendo poleiro em mogno para pássaros de grandes dimensões, que gostem de lá permanecer. Instalar longe de poleiros similares. Manter abrigado de críticas e reclamações. averara@piu.com

Vende-se salazar de silicone

com cabo em inox, excelente para rapar tachos, panelas e tudo até ao fim. Manter fora do alcance de dinheiro, joias ou quaisquer outros objetos de valor. Vende-se calendário de pin-ups dos meses de abril, de 1974 a 2014, com belas ilustrações de senhoras tão magníficas e ilustres como a Liberdade, República, Revolução, Esperança, entre outras. Vendo livro “As 100 Melhores Promessas Eleitorais”, extremamente divertido e prestes a ser adaptado a espetáculo de revista. Edição limitada de luxo, capa dura forrada a pele. O texto não cumpre tudo mas promete que tudo será melhor numa segunda edição. Ou numa terceira. Troco Velho do Restelo por Padeira de Aljubarrota, ou outra figura de pelo na venta. O Velho está em boas condições. Líder de mercado em serviços de automanutenção, excelente para manter fixas coisas que teimam em mudar. Forte capacidade de resistência à implacável passagem do tempo.


21 I ABRIL, 2013

20 I ABRIL, 2014

A revolução discreta BRUNO VIEIRA DO AMARAL

Uma das muitas histórias que me ficaram de um curso de História no qual caí por manifesta falta de imaginação foi a de um agricultor francês que, no dia 14 de Julho de 1789, terá escrito no seu diário um

comentário anódino sobre o desenvolvimento das couves, acrescentando que não havia mais nada a registar. Desconheço se a história é apócrifa. Talvez esta seja uma versão totalmente corrompida pela minha fraca memória. No entanto, o sentido é claro e não depende da veracidade dos factos: podemos estar ao lado de

um acontecimento histórico e não dar por ele. Dirão que o agricultor francês, se é que existiu, vivia numa época em que a informação circulava a um ritmo mais humano e que as pessoas ainda não viviam esmagadas pela tirania mediática que faz de qualquer incidente de trânsito a Batalha de Waterloo, de qualquer padeiro

de Esposende um Napoleão efémero. É verdade. A ideia ingénua de “fazer história”, um tempo mediático que faz com que todas as notícias sejam apresentadas num invólucro eufórico de excecionalidade e a

noção democrática, ainda que idiota, de que todos temos alguma coisa para dizer, criaram distorções e enganos. A fatídica pergunta “Onde estava no 25 de Abril?”é filha dessa auto-importância dos narradores

de acontecimentos e da auto-importância dos indivíduos, que se veem como personagens decisivas de um esplêndido romance de que eles próprios também são autores.

Dizer onde se estava no 25 de Abril de 1974 é o bilhete memorialístico para a grande orgia histórica. Muitas

vezes, o interesse do testemunho não vai além do de uma declaração em que se afirmasse: “Naquele dia,

eu estava vivo.” Pelos vistos, no Portugal de então, ninguém cuidava das couves. Em contraste com este

frenesim que anualmente varre todos os jornais, surgiu há pouco tempo a modesta história do cabo José Alves Costa, o homem que na manhã de 25 de abril de 1974 desobedeceu a ordens superiores e se recusou

a disparar contra Salgueiro Maia. A história era muito conhecida, mas a identidade do homem permanecia

um mistério. O jornalista Adelino Gomes e o fotógrafo Alfredo Cunha revelaram-na no livro “Os Rapazes

Dizer onde se estava no 25 de abril de 1974 é o bilhete memorialístico para a grande orgia histórica. Muitas vezes, o interesse do testemunho não vai além do de uma declaração em que se afirmasse: “Naquele dia, eu estava vivo.”

do Tanque”. Foram trinta e nove anos à procura de um dos homens a quem valia mesmo a pena perguntar

onde é que estava no 25 de Abril. Sem a sua recatada contribuição talvez a história tivesse sido diferente.

Talvez estivéssemos a comemorar outra data. Talvez nem houvesse nada para comemorar. E o que fez este homem depois disso? Na lógica contemporânea da exposição contínua, desapareceu, eclipsou-se. Na verdade, foi viver a sua vida. Regressou à sua aldeia, perto da Póvoa de Varzim. Teve filhos. Teve netos.

Até agora nunca tinha dado entrevistas e, mesmo em casa, pouco tinha falado sobre o que fizera naquele dia onde toda a gente sabe onde estava.

O apagamento natural, de um heroísmo inconsciente e fundado na reserva, de José Alves Costa é a antítese

de quarenta anos de comemorações oficiais que nunca dispensaram os discursos pomposos de fato, gravata

e clorofórmio, as exaltações municipais, a poesia sincera e – não é outro o efeito da sinceridade na arte –

indigente, os monumentos incompreensíveis, os cartazes horrendos, as brigadas de intervenção do ativismo musical. É assim desde a minha infância. Nos manuais escolares, eram duas páginas míticas de cravos e sorrisos, infância e futuro, de armas feitas relhas de arado. Contavam-nos a história da senha na rádio, uma

canção a dar o tiro metafórico de partida, e depois a madrugada a anunciar uma nova era, o povo na rua, a alegria, o país ébrio de liberdade a carregar em ombros os heróis regressados à Pátria. Pouco mudou. No dia

indispensável, continuam a juntar-se as individualidades numa manhã de província e lá vêm os discursos moribundos declamados por vozinhas reumáticas. Sempre a mesma cantiga. Alguns capitães ainda rosnam

ameaças, lembram que são os militares que têm as armas, só que falam com aquele tremor senil, como

se o quartel fosse anexo de um manicómio geral e as patentes e os galões fantasias de traças. São como velhinhos num lar a recriarem as danças dos seus tempos de juventude, numa inocência velha de dentes

postiços. Perante a inércia geral, a gente que os ouve com caridade e com a dorida gratidão que, tantos anos depois, ainda sobeja, regressa aos quartinhos, à vidinha. Quando o dia chega ao fim, ao Estado não

lhe pesa a consciência, a Nação pode voltar ao seu sono dos justos e acordar no ano seguinte com o barulho dos foguetes de sempre. Nestes cenários recorrentes de festejos caquéticos, a dignidade sem enfeites daquele homem, cabo apontador, ainda me parece mais admirável. José Alves Costa confessou que o 25

de Abril é uma data muito importante para ele, sobretudo porque coincide com “o dia em que o Papa João

Paulo II beatificou aqui a irmã Alexandrina, que é considerada santa por nós.” Proclamações excessivas, retóricas, foguetes municipais, cantorias e corridas, desfiles e exposições, tudo isso é fácil, tão fácil que já não nos provoca qualquer reação. Difícil é chegar às palavras sem vaidade, aos pequenos gestos cheios de

significado, à vida simples, sabendo que essa revolução adiada e discreta não encontrará trovadores, não

conhecerá monumentos em rotundas nem terá a data assinalada nos calendários, e que nenhum jornal nos perguntará onde estávamos quando a nossa vida mudou.

QUEIMAR ANTES DE LER Carlos Monteiro e Luís Leal Miranda

A Constituição Portuguesa de 1933 veio “regular o exercício da liberdade de pensamento” e inaugurar 41 anos de regabofe. Ao todo, 900 livros foram proibidos em defesa dos “princípios fundamentais da organização da sociedade”. A lista, reunida pelo investigador José Brandão e publicada pela primeira vez em 2012, revela-nos uma censura parecida com um pai austero ou uma governanta beata que não nos deixa sair de casa com a saia por cima do joelho. E um casaquinho, que à noite arrefece.


22 I ABRIL, 2014

1974-1984 portugal na cee GNR

Um oráculo do contexto político que se seguiria e da melhor banda pop portuguesa pré-séc. XXI. Os GNR, ainda sem Rui Reininho, mas todas as cartas na mesa a prever futuro. DAVIDE PINHEIRO (DISCO DIGITAL EMESA DE MISTURA).

kayatronic Corpo Diplomático

Demasiado à frente no seu tempo para que pudessem sequer ser entendidos como “revolucionários”, os Corpo Diplomático foram algo esquecidos no pós-boom do rock português, mas para a história fica “Kayatronic”, a síntese do punk que então eclodia numa simples frase: “a liberdade é tua quando quiseres”. Para sempre escondida no vinil (ainda hoje tarda a reedição), teria dado o mote para nova revolta. PAULO CECÍLIO (BODYSPACE)

Pois Canté Grupo de Acção Cultural

GAC: agitador das raízes da música popular portuguesa e voz cantada da revolução. “Pois Canté”, o disco obraprima, abre com a canção que lhe dá título. Escreveu José Mário Branco, que também cantou: “Quando a máquina do lucro se atrofia / a reparação é sempre uma carestia / E o povo é que lhes paga a avaria / mas o Capital / fica sempre igual / Isto inté qu’há-de mudar um dia / Ah pois canté!”. Portugal 1976. Portugal 2014, país adiado. MÁRIO LOPES (PÚBLICO)

FMI José Mário Branco

Podia dizer-se que é uma belíssima ode revolucionária circunscrita a uma época (em que a minha única preocupação era que me mudassem a fralda), mas a verdade é que acabei por reencontrá-la atualizada, infelizmente, pelo meu tempo. Além da ferocidade política, torna-se ainda mais transversal pelo facto de José Mário Branco se deixar levar a um ponto em que a canção se torna qualquer coisa maior que a vida. “Mãe, quero desnascer”? Arrepiam-se-me os pelos só de me lembrar desta frase. ANA MARKL (CANAL Q).

Estou Além António Variações

Cantar a pressa de chegar para não chegar tarde. Variações veio ao mundo para fazer a revolução dançar, mas numa coreografia que nunca está terminada, que só tem tendência para ser maior à medida que a pista vai enchendo. O homem deu lugar ao artista, o tal que conquistou um lugar único e que ainda hoje permanece como símbolo do arrojo e do desafio, criativo e pessoal. TIAGO PEREIRA (JORNAL I)

querelle Pop Dell’Arte

A seguir à vaga do rock português, a primeira geração do Rock Rendez-Vous personificada nos Pop Dell’Arte, Mler Ife Dada e Mão Morta. “Querelle” é um planeta distante mas próximo de uma cena artística nascente em Lisboa. DAVIDE PINHEIRO (DISCO DIGITAL E MESA DE MISTURA).

Charles Manson Mão Morta

Ninguém na música portuguesa levou a bandeira libertária tão longe quanto os Mão Morta. Liberdade essa que ao mesmo tempo é gozo e seriedade, revolução enquanto passatempo e emprego: “Charles Manson” não só é um hino Situacionista como, ao mesmo tempo, captura o zeitgeist da época de noventa, após a queda do muro de Berlim e a primeira guerra do Iraque. Só lhe faltou parar realmente relógios PAULO CECÍLIO (BODYSPACE).

Anarquista Duval Mão Morta

Canções fúria e canções pesadelo. Rock’n’roll, certamente, mas rock’n’roll enquanto existência visceral, enquanto atitude provocadora, enquanto ação consequente: olhem bem, olhemos de perto as misérias do mundo e celebremos poder ainda celebrar. Os Mão Morta, literatos enraivecidos, rock’n’rollers insaciáveis, homens que ambicionam mais. “Sou uma miragem / dizem que semeio o caos e a destruição / como o vento semeia papoilas / o meu nome é... liberdade”. Agitar é preciso. MÁRIO LOPES (PÚBLICO)

Canção de Engate António Variações

No ano em que viria a morrer, António Variações edita o álbum “Dar & Receber”. Nele encontramos a “Canção de Engate” que, numa altura em que muito se cantava sobre o amor para sempre, se revela revolucionária pelo elogio do efémero. É um chavão dizer que Variações era todo ele revolucionário, mas não há como escapar: não só era um compositor audaz como se atreveu a ter glamour num país onde a música não arriscava muito mais do que uma camisa de quadrados ou, vá, um casaquito de cabedal. ANA MARKL (CANAL Q).

Pós Modernos GNR

Uma nova música para um país novo. A primeira geração a herdar Abril na sua criatividade fazia a pop dar a volta a tudo o que lhe aparecesse pela frente, vestindo fardas futuristas com orgulho. Os GNR atiravam-nos à cara que, naquele momento, a meio de uma década em ebulição, cada canção era aquilo que o ouvinte quisesse, nada de lógicas nem de regras, tudo menos isso. TIAGO PEREIRA (JORNAL I)

1994-2004 Não posso mais Pedro Abrunhosa

1994 foi um ano de transformação na música portuguesa com EPs de General D e Da Weasel e a coletânea “República” mas foi “Viagens” a profetizar a mudança. “Não posso mais” abre o álbum e conquista de imediato para uma jornada de sexo, metais e groove. DAVIDE PINHEIRO (DISCO DIGITAL EMESA DE MISTURA).

Nossos Tempos Valete

O rap em Portugal é a revolução que teima em não aparecer. De todos quantos emprestam a sua voz ao beat, Valete é o mais feérico no sentimento de revolta. “Educação Visual” e, especificamente, “Nossos Tempos” são bem exemplo disso. Um retrato da sociedade do novo milénio que tinha a obrigação de despertar mais consciências do que aquelas que o escutaram. PAULO CECÍLIO (BODYSPACE)

Pacheco Dead Combo

E inesperadamente, deparámo-nos com isto. Dois homens, um guitarrista do rock, um multifunções do jazz, a inscreverem-se no nosso imaginário, totalmente

Sign of the Crimes Belle Chase Hotel

Lisboa, passa-se alguma coisa. Uma cidade em mutação, aberta ao multiculturalismo, e uma banda a dar corpo a essa mudança com uma música de dança do mundo entre África e Londres. ANA MARKL (CANAL Q).

Velocidade Escaldante Mão Morta

A meio dos noventas, a caminho de uma espécie de “isto nunca esteve tão bom”, este foi um aviso sussurrado, que só não ouvia quem não queria. Uma vertiginosa descida ao abismo, à perdição urbana que teimava em não abandonar, em nunca abrandar. Os Mão Morta sempre por lá andaram, a musicar relatos a bordo de uma tenebrosa beleza. Este parecia estender-nos o braço, a querer puxar-nos para o lado certo (ou errado) das coisas. TIAGO PEREIRA (JORNAL I)

2004-2014 Yah Buraka Som Sistema

Um oráculo do contexto político que se seguiria e da melhor banda pop portuguesa pré-séc. XXI. Os GNR, ainda sem Rui Reininho, mas todas as cartas na mesa a prever futuro. DAVIDE PINHEIRO (DISCO DIGITAL EMESA DE MISTURA).

SantosPop Os Passos Em Volta

As revoluções têm sempre a mão da juventude – novas ideias, novos talentos, novas ânsias e desejos e gritos contestatários. “SantosPop” é a revolução que há de vir, naïf, desapegada a toda e qualquer ideologia, sonhando com algo melhor mas não fazendo muito por isso, escondendo-se numa publicação no Facebook ou num vídeo tornado viral. Esta não é a geração do presente; é a do futuro. Revoltemo-nos. PAULO CECÍLIO (BODYSPACE)

Zé B Fachada

A língua e a música mudaram pela boca de B Fachada. A tradição é um campo em aberto e B Fachada, que o sabe bem, ri-se, desdenhoso, de moralidades de pacotilha. Nele descobrimo-nos novos, de novo. Como neste intemporal arquétipo português que é o “Zé”: o pato-bravo parolo e deslumbrado que atropela tudo à sua passagem enquanto troca a sola do sapato por um Cadillac. E que é igualzinho, assinale-se, ao parolo com pedrigree que tem Cadillac e chofer à porta à várias gerações. Porque ali, ao contrário de em Fachada, a tradição ainda é o que era. MÁRIO LOPES (PÚBLICO)

SENHA CONTRA SENHA E SE A REVOLUÇÃO FOSSE HOJE?

22:55

00:20

A Ronda do Soldadinho José Mário Branco

When the Levee Breaks Led Zeppelin

a pele que há em mim márcia

Medo do medo Capicua

muda de vida antónio variações

Chegou a Hora 5/30

Tiago Castro (Rádio Radar)

Henrique Amaro (Antena 3)

David Corronha (RFM)

David Corronha (RFM)

Viva! Sam the Kid

Hoje é Festa! Throes + The Shine

Nelson Ferreira (Rádio Meo Sudoeste)

Nelson Ferreira (Rádio Meo Sudoeste)

Transition Underground Resistence

What’s Going On Marvin Gaye

Isilda Sanches (Rádio Oxigénio)

Isilda Sanches (Rádio Oxigénio)

Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades José Mário Branco

The revolution won’t be televised Gil-Scott Heron

Exporto TriSteza Virgem Suta

Eu vi o Sol Ermo

RUI PORTULEZ (VOICE TALENT)

João Pereira (RUM – Rádio Universitária do Minho)

heróis capicua

Rita Bernardo (Rádio Radar)

PALAVRAS CRUZADAS

Sereia Louca Capicua

Escolho esta música da Capicua para chamar a atenção para a lentidão de algumas revoluções. Orgulho-me de ver uma mulher de pelo na venta a fazer hip-hop com rasgo, mas logo a seguir questiono-me porque é que isto ainda é uma razão de orgulho, porque é que a Capicua representa uma espécie de revolução e não apenas mais uma tipa com talento. Fico ainda mais irritada quando a condescendência elogia o facto de a Capicua ser uma maria-rapaz que gosta de sapatos. Se isto ainda é considerado uma peculiaridade, vou ali revolucionar e já venho. ANA MARKL (CANAL Q).

RUI PORTULEZ (VOICE TALENT)

João Pereira (RUM – Rádio Universitária do Minho)

Ahhhhh Bruno Pernadas

Rita Bernardo (Rádio Radar)

Horizontais

1 - Interjeição designativa de dor ou espanto; apelido, de origem toponímica, muito comum em Portugal; reunião de pessoas com poder deliberativo (sigla); 2 – exposição máxima a um agente físico ou químico permitida num dia de trabalho de 8 horas (med.); funcionário militarizado da antiga instituição, com o mesmo nome, que fiscalizava as mercadorias importadas e exportadas para combater o contrabando (sigla); expressão usada para mandar alguém embora; 3 – indivíduo que se destaca por um ato de extraordinária coragem ou força de carácter; forma de tratamento usada como incitamento ou vocativo; 4 – itinerário principal (sigla); subalimentação, miséria (inv.); 5 – grito de protesto, direito de exprimir uma opinião; interrupção entre dois acontecimentos; período de 24 horas; 6 – José Mourinho; utensílio de cozinha, pouco fundo e com asas, usado para cozinhar ao lume; 7 – Schutzstaffel: org. paralimitar do partido nazista, comandada por Heinrich Himmler; Elemento que significa sobre, depois, por (pref.); fornecedor de acesso à internet dos Estados Unidos da América (sigla); 8 – conversa amena e prolongada; 9 – fórmula de saudação; indivíduo de grande valor e preponderância (fig.); aparência, aspeto; 10 – prefixo que exprime a ideia de separação, afastamento, negação; líquido de certos moluscos cefalópodes, utilizado em pintura; passar de um local para outro, afastando-se; 11 – elemento que exprime a ideia de vinho (pref.); sigla de olho esquero (oculus laevus); desgosto profundo, dificuldade, aflição; 12 – tolo, que não tem arrojo; um, em numeração romana; ausência de guerra; 13 – elemento que exprime a ideia de ar (pref.); abertura que permite a constante entrada e saída (pl.)

Verticais

Abstenção Sam The Kid

A história a dar a volta e a pedir nova contagem de votos. Este é o espelho de uma ressaca social que Samuel Mira multiplica por todas as palavras em que põe a mão. A revolta urbana a convocar amigos e conhecidos, com a linguagem que melhor lhe serve os propósitos, o hip hop franco e decidido. Não há mensagens nas entrelinhas, está tudo em maiúsculas como poucas vezes se lê. TIAGO PEREIRA (JORNAL I)

Tiago Castro (Rádio Radar)

Henrique Amaro (Antena 3)

Horizontais: 1 - au; cunha; ag ; 2 – cma; gf; rua ; 3 – herói; pa ; 4 – ic; emof ; 5 voz; hiato; dia ; 6 – one; tacho ;7 – ss;epi;aol;8 –cavaqueira;9 – oi;ás;ar;10- des;sépia;ir;11 – eno;ol;agrura;12 – tanso;i;paz; 13 – aero ; portas

década que nos separa de abril. as escolhas de davide pinheiro, paulo cecílio, ana markl, mário lopes e tiago pereira.

1984-1994

nossos e totalmente abertos ao mundo. Por nem um momento se pressentiu no gesto foleirada fusionista ou o folclore da autenticidade (o que quer que isso seja). Esta música são eles e, talento deles, sentimo-la nossa. Sem cedências. Revolução também é isso. Ser fiel a si próprio. Não ceder. MÁRIO LOPES (PÚBLICO)

Verticais: 1 – activos; ode; a ; 2 – um; consciente ; 3 – zé; soar; 4 – ha; eva; no; 5 – une; passos; 6 – rei; iq; elo; 7 – omat; 8 – agiota; ia; 9 – focai; agir; 10 – hora; 11 – grandolar; upa; 12 – iras; 13 – palhaço; traz

acordes para acordar a malta uma música por cada

23 I ABRIL, 2014

1 – conjunto dos bens, valores ou direitos negociáveis, pertencentes a uma pessoa ou empresa (pl.); composição poética laudativa, constituída por estrofes simétricas; artigo definido feminino; 2 – o primeiro dos números inteiros; que tem a perceção de si próprio e do mundo exterior; 3 – nome próprio da caricatura do povo português, da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro; repercutir; 4 – terceira letra do alfabeto; exclamação que exprime interrogação; nome da primeira mulher que comeu o fruto proíbido; contração da preposição «em» com o artigo definido «o»; 5 – tornar um, confundir num só (3a pessoa sing. Presente Indicativo); ato de mover o pé para andar, andamento mais lento do cavalo e de outros quadrúpedes (pl.); 6 – soberano de um reino; quoficiente de inteligência (inv.); ligação, laço; 7 – planta purgativa e diurética (inv.); 8 – avaro; ..... mas já não vai; 9 – concentrai; atuar; 10 – ocasião favorável; 11 – entoar canções como forma de protesto pacífico, com o objetivo de impedir discursos ou comunicações de representantes de um governo; usa-se para incitar uma pessoa ou um animal a levantar-se ou a subir (interj.); 12 – sentimento que nos estimula contra quem nos ofende ou injuria; 13 – personagem cómica e burlesca; transportar para cá (imperativo informal)


DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

ABRIL, 2014

QUINTA.24

MUSICBOX . CONCERTO . 00h00 . Acesso Livre

SKIP&DIE

SEXTA.25

MUSICBOX . INSTALAÇÃO . 23h00 . Acesso Livre

MAISMENOS±

“PALAVRAS LEVA-AS O CÊNTIMO”± EMUSICBOX ”± GRÂNDOLA VILA MODERNA±” . POESIA / SPOKEN WORD . 00h30 . Acesso Livre

“SMS”

ESPECTÁCULO DE A.F. DIAPHRA (BIRU)

SÁBADO.26

MUSICBOX . CONCERTO . 23h00 . Acesso Livre

SMILEY FACE ÉME

MUSICBOXLISBOA.COM INFORMAÇÕES: OFFICE@MUSICBOXLISBOA.COM 213430107

CARTOON: RUI RODRIGUES SOUSA

#MAISABRIL#MAISABRIL#MAISABRIL#MAISABRIL#MAISABRIL#MAISABRIL #MAISABRIL#MAISABRIL#MAISABRIL#MAISABRIL#MAISABRIL#MAISABRIL


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.