CÍRIO
Como as outras manifestações em comunidade, os ritos religiosos são definitivos para a manutenção da cultura de um povo. O Círio de Nazaré é uma procissão que demarca o mês de outubro não só em Belém, como no estado todo, já que muita gente se mobiliza nos interiores para participar da festa. E, lado a lado com a fé católica, andam nossos costumes que são típicos da época do Círio, que fazem parte do espírito dos paraenses - não somente os católicos. Nossas tradições parecem aflorar de tal forma que é impossível pensar nesse início de outubro sem o cheiro da maniçoba cozinhando nos quatro cantos da cidade, com as ruas esvaziadas ou sem os bonecos de miriti enfeitando todos os lugares possíveis. Mas quem faz tudo isso acontecer somos nós. Nós, paraenses de todos os credos, que assimilam esse momento à união e a nossa identidade. Juliana Araujo - Editora-chefe
o a iç
Ed
4
- HOSPEDAGEM FEAT CÍRIO por Denise Corrêa
CAPA: Raíssa Lisboa
8
- PEQUENA MANI... por Juliana Araujo AINDA SEM POESIA:
12
- O PAÍS DOS ARTISTAS por Raphael Santos
15
- RETRATO SÓRDIDO por Victor Pedrosa Paixão
16
- POR TRÁS DO COLORIDO DO MIRITI por Maria Paula Malheiros
20
- SACROTRANS: as filhas devotas de Chiquita por Madylene Barata e Jade Feijó
Erramos! A matéria “Breve História do Teatro Paraense”, da última edição, foi creditada à Luciana Vasconcelos, mas foi escrita pelo repórter Caio Jesus.
Hospedagem
feat
Círio...
“O Círio de Nazaré abrange um leque de oportunidades pra todas as pessoas que têm negócios dentro da região de Belém do Pará, principalmente para quem trabalha com hospedagem”, é o que garante João Marques, proprietário do Amazônia Hostel, que funciona em Belém desde 2011 e faz parte da Hostelling International, uma rede mundial de hospedagem que reúne cerca de noventa países.
Denise Correa
P
ara João, esta é uma das épocas mais significativas do ano, em que a rentabilidade de seu empreendimento chega a crescer
até 95%. “Nessas datas festivas a nossa atividade fica mais intensiva. Os nossos trabalhos ficam mais
rio de Nazaré 2015 é de 85 mil pessoas. E
energéticos porque o grande número de pessoas faz
esta é uma das alternativas de quem chega
com que essa máquina que se chama hospedagem
à Belém para acompanhar a maior festivi-
funcione com mais agilidade, proporcionando con-
dade católica do Brasil. Locais com preços
forto e lazer pra todas as pessoas que vêm conhecer
mais em conta do que os hotéis tradicio-
a região”.
nais estão sendo cada vez mais procurados
Segundo uma pesquisa apresentada pelo De-
e, em meio à crise econômica que o país
partamento Intersindical de Estatísticas Socioeco-
vem enfrentando, saber como economizar
nômicas (Dieese-PA) e a Secretaria de Turismo do
é fundamental para não perder momentos
Estado (Setur), a estimativa de visitantes para o Cí-
como este.
PARENTES E AMIGOS
A pesquisa também mostrou que mais
de 70% dos turistas que vem para o Círio ficam hospedados em casas de familiares ou amigos. Isso mostra que mesmo tendo um crescimento na procura por hostels e hotéis mais em conta, a maioria dos visitantes conseguem se alojar em Belém na casa de alguma pessoa conhecida.
É o caso da mineira Glória Salomão,
de 56 anos, que mora na cidade de Goiânia e que há mais de vinte anos vem para Belém celebrar as festividades do Círio de Nazaré na casa de seus familiares. “Gosto muito do Círio. Pra mim é como um segundo natal onde eu posso viajar pra ver minha família que mora aqui em Belém e passar um tempinho com eles confraternizando e matando a saudade”, conta. Foto: Raíssa lisboa
E sempre que pode, Glória, que é pro-
fessora aposentada, viaja para vários cantos João Marques destaca ainda o desenvolvimento des-
do Brasil conhecendo lugares novos e pessoas
te modelo de hospedagem na capital paraense para
diferentes, mas comenta que poder voltar a
que a oferta consiga atender a grande demanda de
Belém todos os anos e passar um tempo hos-
turistas, especialmente nestas datas comemorativas. “De 2011 pra cá, nós observamos um crescimento de 20% em relação a novos estabelecimentos que abriram e 60% da busca por uma hospedagem mais barata, no caso de hostels, que cada vez mais se intensifica essa busca”, afirma.
Fotos: Raíssa lisboa
pedada na casa da sua família faz com que o Círio de Nazaré se torne um momento especial e único a cada ano. “Estar com a minha família e ao mesmo tempo presenciar a energia, a fé e a determinação dos paraenses diante de um evento tão belo como esse é muito gratificante. Eu agradeço muito à Nossa Senhora de Nazaré por me proporcionar o prazer e a alegria de acompanhar o Círio mais um ano ao lado de entes queridos”.
COUCHSURFING – Outra alternativa interessante para os 85 mil visitantes que vem para Belém neste Círio é o CouchSurfing, uma rede mundial de hospedagem solidária que já possui mais de três milhões de usuários espalhados em mais de 245 países. A idéia principal do Couchsurfing é fazer com que as pessoas interessadas em viajar pelo mundo afora consigam fazer isto contando especialmente com a solidariedade de pessoas que estejam dispostas a abrir suas casas para hospedar turistas sem receber nenhum dinheiro por isso. O objetivo maior desse sistema de hospedagem é a troca de experiências culturais e estilos de vida. No site da rede (https:// www.couchsurfing.com/) é possível criar um perfil com todas as informações necessárias para poder receber um visitante, assim como saber mais detalhes do futuro hóspede. Em Belém, já é possível encontrar um bom número de “couchsurfers” prontos para receberem novos turistas, seja para apreciar a tradicionalíssima festividade de Nossa Senhora de Nazaré ou para conhecer melhor a cidade das mangueiras em qualquer época do ano.
Juliana Araujo
Pequena Mani...
A folha da mandioca, a maniva, é a matéria-prima da maniçoba, o prato que tem o cheiro e o sabor de outubro.
A
maniva é a planta da mandioca, a raizmãe da culinária paraense. Os produtos que podem ser extraídos da mandioca
são diversos, desde a farinha, do tucupi, até a própria folha. A lenda da mandioca fala da neta de um cacique, Mani, que era uma índia branca. Ela morreu jovem e foi enterrada dentro da oca em que mo-
PLANTAR
rava. Regada pelas lágrimas da mãe de Mani, nasceu
uma planta que alimentou o povo tupi por gerações:
também no Ver-o-Peso, porque me dis-
a mani-oca. Mesmo ela sendo venenosa – tem áci-
seram que ela é a pessoa mais antiga das
do cianídrico na sua composição – e mesmo a folha
barracas de maniva e tucupi. Ela disse que
tendo a maior concentração do ácido, a mandioca e
a feira era a sua casa até antes de nascer.
a maniva são ingredientes indispensáveis no Círio.
“Se eu for contar do tempo do meu pai
Conheci dona Antônia Siqueira
lidade, mas deixou as complicações da roça para trás – assim como as de moer as folhas. “Hoje em dia eu tô até saindo fora disso porque eu já adoeci um pouco da minha coluna”, começa a feirante, “4 anos que eu parei, por causa do movimento que é muito cansativo”. E quando pergunto do solo da roça, ela esclarece que hoje em dia é difícil plantar em Belém, por isso seu produto vem do interior: “O pessoal já não tem nem mais condições de plantar a macaxeira porque não tem mais o terreno apropriado para fazer isso. Se fizer uma roça bem aqui e tocar fogo, aí passa pro quintal do outro”.
MOER
O Ver-o-Peso cheira à maniçoba. Lá
consigo ver a maniva em diversos estágios: as folhas com os talos, as destaladas, moídas e as pré-cozidas. Salomão Alcântara, moedor da maniva, explicou que as folhas vêm e da minha mãe, que eram marreteiros, eu tô aqui
de todo o tipo de mandioca – da brava, da
o tempo todo, porque eu fiquei na barriga da mi-
mansa, da macaxeira – e hoje em dia são moí-
nha mãe. Fui criada e também já criei a minha filha,
das juntas. Os talos acentuam o amargor. Por
neta, tudo aqui. Graças a Deus, tudo na paz”, conta
causa disso, existe uma função no processo de
a vendedora.
Antônia já teve plantação de macaxeira, da
onde ela considera que vem a folha de melhor qua-
preparação que tem como foco tirá-los. A folha cai no moedor só depois de destalada.
A quantidade de ácido cianídrico faz a dis-
tinção entre as mandiocas mansas (doces) e bravas (amargas). A última tem uma concentração altíssima de ácido cianídrico, que é tóxico in natura, e mata por asfixia. Por isso, é indispensável o cozimento da folha por sete longos dias – que são justamente os dias que o cheiro da maniçoba exala na cidade de Belém.
COZINHAR
A União Espírita Paraense vende a maniçoba
o ano inteiro, mas a demanda do Círio com certeza é maior. “Cada promoção desta, são feitas 2 mil maniçobas. Sendo que no mês de outubro nós ven-
Por quê? Se você não tem força para mexer
demos em torno de 5 mil porções. É um mês espe-
um osso no fundo da panela, colou no fundo,
tacular”, conta Luis Lopes, responsável pela venda
ele queima. Aí prejudica o paladar da mani-
da maniçoba. O processo de cozimento da maniva
çoba”. Depois colocam-se as outras carnes na
começa na quinta-feira da semana anterior à distri-
panela, das mais duras até as mais macias.
buição. As panelas de 180kg são colocada no fogo
A história da maniçoba da União é extensa:
somente com a maniva e o toucinho branco, para
começa há 36 anos, quando foi cogitada a ven-
lubrificar a folha.
da do prédio-sede, na Osvaldo Cruz. “Mas tu
O corte das carnes e o ritual de preparo é tra-
sabes”, comentou Luis, “na doutrina espírita,
dicional da época de Tila Caçula, a supervisora da
como tá no nome, nós temos que ter ligação
receita na UEP. Uma das práticas é que a maniçoba
com os espíritos. E esses espíritos mostra-
“não pode levar osso” explica Luis, “nada de osso.
ram-se insatisfeitos com a ideia e sugeriram através dos médiuns que não se vendesse esse prédio. Esse prédio tem uma longa história,
aqui abrigou muita gente importante no Pará”. Apesar disso, a organização ainda precisava de mais espaço para abrigar reuniões e os estudos na área. E foi decidido optar pela venda de comida como fonte de renda. A maniçoba deu certo e se mantém até hoje. Pergunto para Luis como é a interação da doutrina com a manifestação de fé predominantemente católica e uma comida típica inundada pelo conhecimento e pelas crenças indígenas e ele responde tranquilamente bem: “A mãe dos católicos é a mesma mãe da humanidade”.
O país dos
artistas Raphael Santos
O
que venho relatar hoje, meus caros, sequer poderia tangenciar meus pensamentos mais promissores alguns poucos dias
atrás, e quem me conhece há de confirmar que não minto, porquanto, com toda a sinceridade do mundo, asseguro-lhes que não sou nem de longe um homem erudito ou com predisposições à arte. Não, este caso que venho lhes apresentar agora, de tão insólito à mente ordinária, não poderia ter nascido dos meus esquálidos esforços criativos – estes últimos, por sua vez, limitam-se a encontrar soluções para problemas de cunho estritamente matemático. Eis o que sou: operador técnico das abstrações alheias, vulgo professor de matemática, e minha função é enfrentar de peito aberto, como dizem, equações de todos os graus, funções de todos os tipos, observar relações entre lados e ângulos, entre conjuntos, números, quantidades, estruturas, dentre outras coisas irrelevantes para posteriormente ensiná-las a jovens que não querem saber de nada que não conduza por fim ao intercurso sexual. Mas perdoem-me a dureza, não pretendo de
maneira alguma reduzir o valor daqueles bravos seres de minha espécie. Pelo contrário! Há beleza em nosso ofício e só sabe mesmo quem o exerce. Eu é que sou assim: estou sempre de mau humor e gosto muito de reclamar. Também não quis afirmar que minha falta de criatividade é um aspecto compartilhado pelos professores de matemática em geral, e que o diabo carregue minha alma se não existem fabulosos artistas entre nós.
Mas, vejam só, perdi-me nestas boba-
gens e quase esqueci do principal. Falarei em curtas palavras, pois o tempo também é curto e encontro-me excessivamente atrasado. Acontece que, uns dias atrás, enquanto caminhava ali pela dezesseis de novembro – seria esse mesmo o nome da rua? – deparei-me com uma situação particularíssima. O céu, bordô ou grená, não
se a chuva não tivesse finalmente caído – ora, não era eu um daqueles desavisados de quem falei anteriormente? Ademais, uma tosse vinha me incomodando havia uns três ou quasaberia descrevê-lo de forma atraente, segurava uma terrível tempestade a fim de soltá-la bem quando o maior número de desavisados caminhasse pelas ruas sem guarda-chuva, ao passo que o vento frio secava o suor em minhas costas, dando-me intensos calafrios, e a escuridão era ainda mais escura do que o normal, de modo que cantos e becos tornavam-se invisíveis até mesmo aos olhos mais treinados nas práticas noturnas. Nessas circunstâncias, uma algazarra de luzes piscando com todas as cores possíveis chamou a minha atenção. Uma fila se organizava disciplinadamente frente ao estabelecimento, o que me fez pensar, nossa, quanta gente decente! Eu nunca tinha visto aquele lugar. Poderia jurar, a julgar pela minha boa memória, que não havia outra coisa ali senão uma daquelas fachadas comuns que não servem de referência a nada, uma daquelas pelas quais passamos indiferentes todos os dias sem nem mesmo notar suas cores. Li num letreiro improvisado numa esteira de palha as palavras “Só por esta noite: venha desfrutar da mais fina arte” e achei aquilo tudo um tanto quanto engraçado. O homem que cuidava da porta notou minha curiosidade e convidou-me a entrar, pois era de graça, mas abanei a mão e dei as costas. Teria ido embora
tro dias, daí que me pareceu sensato buscar abrigo naquele lugarzinho, já que, como dizem, “de graça, até injeção na testa!”.
Entrei e rapidamente procurei espaço
entre os espectadores. Estávamos todos sentados em cadeiras de plástico militarmente enfileiradas. Olhei ao redor e percebi, que estranho!, nunca tinha visto aquelas pessoas – e, por mais que eu não fosse muito de sair de casa, isso não é comum por essas bandas. À nossa frente havia um espaço vazio e umas cortinas pretas, caixas de som, uma mesa com um notebook, uma bateria, um punhado de cabos num canto e luzes cobertas com plásticos coloridos espalhadas pelas paredes. De súbito, ouço uma voz: “Interpretando um clássico de John Cage, com vocês... Josefina!”. As cortinas se abriram solenemente e entrou um sujeitinho raquítico, de cabelos longos e cacheados, de pó branco no rosto e, pasmem, completamente pelado! Eu, que, confesso, sou
sem muita volúpia, enquanto poucos corajosos se levantaram e foram embora resmungando. Aproveitei a deixa e tentei segui-los, mas a ainda meio rude, dei uma risadinha, ao que todos me
chuva ainda castigava impiedosa as ruelas do
fitaram com olhares de reprovação. Foi o suficiente
centro e remexia a baía lá longe.
para que, brutalmente coagido, não mais manifestas-
se meus grunhidos naquela noite.
demorou a que um senhor aparecesse ao meu
Josefina ficou parada com os braços caídos ao
lado. O som pesado de um baixo emanava lá
lado do corpo e o olhar fixo na parede atrás de nós.
de dentro. “Que porcaria”, disse o senhor. Eu,
O silêncio era tão denso que vez ou outra não pude
que não sabia nem mesmo o que pensar sobre
evitar o constrangimento de uma tosse: apenas o ba-
aquilo, apenas sorri e balancei a cabeça. A si-
rulho do ar condicionado nos chegava aos ouvidos –
tuação me perturbava tanto, a despeito da co-
nem a chuva lá fora dava sinal de vida. Isso mesmo,
micidade que de certa forma lhe atribuía, que
meus caros, a performance inteira era simplesmente
as ideias se atropelavam em minha cabeça e eu
aquilo. Mais tarde eu fiquei sabendo que o clássico em
não conseguia prestar atenção em mais nada.
questão também não tratava de outra coisa que não
“Que foi aquilo?”, eu pensava. Para o bem ou
fosse o silêncio. Nunca tinha visto nada do tipo. Olhei
para o mal, aquela apresentação tinha sido
ao redor e as expressões eram as mais variadas possí-
um soco bem no meu estômago: foi então que
veis: havia quem estivesse no mais pleno deleite, com
percebi que realmente precisava sair mais de
os olhinhos brilhantes de paixão, mas também não
casa. De repente, Josefina passou por trás de
faltavam os ansiosos, os raivosos e os inconformados.
nós como um raio. Ela foi andando, ignorando
Um rapaz, desistindo do espetáculo, soltou um estalo
a chuva forte que lhe caía sobre os ombros. O
com a boca e decidiu que era mais vantajoso mexer
senhor não pôde se conter e esbravejou com
no celular. Não sei quanto tempo ficamos ali, talvez
uma mandíbula espumante: “Mas que bela
tenham sido uns quinze minutos, talvez tenham se
merda, seu Zé-ninguém! Não sei que diabos
passado até mesmo anos, até que Josefina de repente
vim fazer aqui, não se tem mais o que inven-
se virou e foi para trás das cortinas. As pessoas aplau-
tar!”. Josefina sequer se virou, apenas ensaiou
diram e assobiaram, algumas de pé, outras sentadas
umadancinha com os braços e gritou de volta:
Fiquei parado embaixo da lona e não
“Zé-ninguém não! Jacques Bonhomme, querido!”, e foi-se embora. Nós ficamos ali com as expressões mais idiotas possíveisaté que a chuva finalmente cessasse.
Retrato Sórdido Não é somente o rasgado, Nem o que se encontra sujo, Mas é o esquecimento que dói. O relento de roupas fustigadas, A vala de oprimidos e desajustados. Imagens de incontroverso sofrimento e angústia.
Mas é por não se ter tal salvação que se chora de verdade, Pois as imagens de sórdido desamor Mostramse, indecentemente, às claras e a todos;
Porém, a dor maior jaz no outro. Sem interrupção. A necessidade é, Mas pode deixar de ser. O verdadeiro ardor é o não ligar. Essa indecência que está no porquê,
Aquele que está esquecido, no relento do mundo, Deveria ser notado e retirado dessa forja de sofrimento, Já que a lágrima cai por ele.
Já que tais imagens não deveriam ser,
Porém, como o cerne é o choro, a raiz do entristecer,
Só que mesmo assim continuam.
O outro, por opção ou deslize, esquece.
Razões conhecidas que, ignoradas,
Assim que se é,
Estendemse por “naturalidade”.
Reticências distorcidas e ausentes de percepção sobre nós,
A lágrima que se chora,
Mal racional de irreconhecível igualdade.
Despejada pela vida em si, O choro é a pena,
Cai de pesar por esse que está debruçado sobre a pedra fria,
Depressão vívida e permanente da falta.
Justamente por este ser, ser o que não se quer.
Vergonha vazia que é o outro.
Do outro lado, distante dessa dor, Temos o outro que, observa aquilo que não deveria ser, E, indiferente à realidade, esquece aquele. É neste outro que temos o choro. A raiz da dor. Essa que está no porquê, Porque é aí que está a salvação que importa.
Victor Pedrosa Paixão
Por trรกs do colorido do Miriti
Eles encantam paraenses e turistas, colorem a festa mais importante da região norte e são um dos símbolos do Círio de Nazaré: o Miriti. Maria Paula Malheiros
E
m formato de araras, barquinhos, casas – para os promesseiros -, os brinquedos de Miriti se tornaram um patrimônio da festa popular, cultural e religiosa. Reunidos du-
rante o período do Círio, em uma feira que atrai crianças, jovens e adultos. Os brinquedos artesanais agradam a todos. Provenientes de Abaetetuba – considerada Capital Mundial do Miriti -, extraído da palmeira Maurita flexuosal, o artesanato é fonte de renda e leva esperança para boa parte dos moradores. O que para os moradores da capital, Belém, parece apenas “coisa de Círio”, para os artesãos que são filiados a associações de artesanato, vai além da feirinha que acontece no mês de outubro. A MiritOng, por exemplo, capacita e educa através do artesanato. Responsável pela ong, Valdeli Costa diz que “o Círio é a grande vitrine, mas tem muito mais por trás”. A organização não-governamental de Miriti, surgiu a partir de uma necessidade de repassar para os jovens da região de Abaetetuba, o conhecimento acerca do Miriti, para que
em meio a tanto descaso governamental, esses indivíduos pudessem ter esperança e um ofício que lhes rendesse frutos financeiros. Valdeli afirma que não são todos os jovens que ingressam na ong e seguem o trabalho de artesãos, mas todos estão encaminhados no mercado de trabalho, em profissões diferentes, porém fora da triste realidade do tráfico. E não para por aí. Carnaval, festa Junina e festividades de final de ano também são incentivos para esses jovens, “a ong é formada por arte-educadores que trabalham na capacitação através do folclore, da música, da literatura e, claro, do artesanato”, relata o artesão. Com uma média de 80 pessoas e dessas, 8 responsáveis, a
MiritOng sobrevive de doações esporádicas e do retorno do seu trabalho: 20% do trabalho dos jovens vai para ong se manter de portas abertas. E será que o Círio é só uma vitrine para eles? Valdeli afirma que não, “é difícil até de explicar o que o Círio significa para todos nós”. Pode-se imaginar. Uma ong composta por quase 80 pessoas que sobrevivem da arte, de uma matéria-prima tão regional e simbólica, só podem ter o Círio como uma grande oportunidade. À margem de políticas públicas efetivas, Valdeli explica que há interesse político (e econômico) na região em datas comemorativas, especialmente no mês do Círio de Nazaré. Fora isso, há um verdadeiro esquecimento da região, que possui um cenário crítico. Sem dúvidas, o miriti possui uma carga valorativa muito mais densa do que de mero artefato decorativo. Junto com barquinhos coloridos, vêm histórias de vida. Junto com casinhas de promesseiros, vão promessas cumpridas e a oportunidade de fazer parte de uma sociedade não só no segundo domingo do mês, mas durante uma vida inteira.
SacroTrans:
as Filhas devotas de Chiquita Por Madylene Barata e Jade Feijó
Q
uem se aproxima da praça da República em Belém do Pará na noite do segundo sábado do mês de outubro, vê uma grande multidão,
mento coletivo eupatrocino.com.br, mas o valor
unida, em harmonia e atenta a quem, cheia de luz, toma
estimado não foi atingido e a festa continua sendo
conta do palco. Não é Nazaré, tampouco outra imagem na
sustentada pelos próprios produtores.
trasladação do maior Círio do Brasil, é apenas mais uma
das filhas da chiquita em mais uma noite de resistência,
se expressem a sua maneira. E por que não ser
devoção e alegria!
Chiquita? Sempre que a santa passa, os pedidos
Na celebração que chamam de Natal dos paraen-
são feitos e a festa começa. As filhas da chiquita
ses há uma festa paralela que mais se parece com o car-
anunciam o hino com fervor. No decorrer da festa
naval, cheia de cor, música e harmonia, se realiza. A festa
são entregues troféus para diferentes personalida-
da Chiquita, que se impõe há 37 anos e que faz parte da
des merecedoras, estes são: “Veado de Ouro”, Rai-
programação cultural do Círio de Nazaré, sofre, até hoje,
nha do Círio”, Amigo da Chiquita”, Veado Tomba-
com o fundamentalismo religioso e a falta de apoio públi-
do”, “Mário Faustino” e “Walter Bandeira”.
co. Acreditando em outros caminhos e possíveis alternativas, os produtores buscaram a plataforma de financia-
O clima do Círio dá vazão para que todos
a ocupação de mais um espaço na cidade. Conheça mais sobre a festa através da vivência de Eloi Iglesias, que há 25 anos faz acontecer esse evento que no final só quer exercitar o respeito pela diferença.
Na Cuia: O que é a festa da Chiquita? Eloi Iglesias: Antes de mais nada a festa da Chiquita é uma referência de resistência, não só pra o movimento LGBT, mas pra todos os movimentos revolucionários de negros, prostitutas, enfim, da minoria. A festa da chiquita tem o seu valor na resistência, junto à pessoas que combatem as desiFoto: Evna Moura, da série “Translouca” (2011 - 2014)
gualdades sociais. Na Cuia: Como foi a evolução da festa da Chiquita? Eloi Iglesias: Bem, Quando nós começamos na década de 70 nós não tínhamos força, até porque tava começando nos Estados Unidos a parada gay. Então a Chiquita foi se atrelando aos movimentos.
Aquém de transgredir, a transviadação é o espaço
de existir como se quer. Muito mais que um bem associado ao Círio, essa festa formou-se e manteve-se sempre de forma independente. A Festa da Chiquita faz parte da construção simbólica já estabelecida e a disparidade entre o sagrado e o profano torna-se secundária diante de tanta expressão cultural, artística e social que a festa envolve.
As filhas devotas de Chiquita permanecem exis-
tindo e ocupando as ruas, as praças e as bocas das pessoas. Com o tema Chiquita Elétrica, a festa esse ano conta com
As pessoas foram colando naquele lugar com vontade de juntar, como uma forma de se expressar, de encontrar os amigos, já que era numa época de
limitações. E pela influência do movimento Hippie, libertação das mulheres, o movimento gay começou a aparecer e a coisa foi crescendo de uma forma, que a gente não sabe explicar. E como a gente também dá o prêmio do “Veado de Ouro”, o público LGBT foi incorporando mais. Então, o encontro foi tomando força e hoje conta com uma multidão todas as vésperas de Círio, fica um palco armado na Praça da República, em frente ao teatro da Paz, no centro da cidade. Na Cuia: A Festa tem recurso externo? Eloi Iglesias: Eu estou na organização da festa há mais ou menos 25 anos e eu ainda vejo que festa está no meio de um jogo, entre a diretoria da festa e interesses políticos. Quando a gente fala da igreja, a gente não fala da religiosidade, e sim das pessoas que estão em volta, que estão comendo a carne do povo, cobrando pra você colocar uma barraca de tacacá, um carrinho de pipoca e etc. A Festa da Chiquita também vem pros ambulantes poderem circular livremente, vender suas mercadorias e aproveitar os benefícios dessa época. Na Cuia: Quais os principais problemas que as filhas da Chiquita enfrentam? Eloi Iglesias: Nós continuamos a passar pelos mesmos problemas que há 40 anos nós passávamos, porque a festa da Chiquita foi criada no auge da ditadura militar, do AI5, na década de 70, mas até hoje você vê, mesmo com o reconhecimento pelo IPHAN e reconhecida no mundo inteiro
como a festa mais antiga ao ar livre e gratuita pro segmento LGBT, a gente sofre todas as pressões, como preconceito da diferença, como a hipocrisia e a ditadura da fé. As pessoas acham que os LGBT’s não podem dedicar homenagem à santa. Chega a ser um desrespeito ao nosso espaço, porque 40 anos você resistindo num espaço é muito complicado. E você, até hoje, ter que confrontar, sair do seu centro. Antigamente nós iríamos até mais
a Chiquita começa na Praça da República logo depois que a Trasladação passa e termina 1h ou 1:30h e elas (chiquitas) vêm em carnaval pro Fuxico. Nós vamos fazer uma transviadaçao, que aconteceu no primeiro ano, que vinha da cidade Velha pra praça da República e agora vai sair da Praça da República com música e muito brilho e segue pro Fuxico . Na Chiquita não tem nada ensaiado, tudo vai acontecendo, a gente só monta o palco, porque a gente acha que pela quantidade de pessoas que dá o evento Foto: Evna Moura, da série “Translouca” (2011 - 2014)
hoje, é preciso ter uma organização melhor. Na Cuia: Por que acontecer no Círio?
tarde, 6 horas da manhã, depois diminuiu pra 4 horas, 3
Eloi Iglesias: Por que num lugar que tem brancos,
horas, e agora vamos até 1 hora. Mas a gente é tão criati-
negros, candomblecistas e outras correntes, e tu
vo - porque é nesses momentos que o ser humano acaba
vês a igreja católica tomando conta de tudo. E ain-
criando outras formas de se expressar- exploramos ao má-
da existe uma diretoria que acha que tudo é dela e
ximo a visibilidade que essa época tem, do que essa época
que tudo que sai da igreja é profano não sabe que a
pode proporcionar e criamos coisas novas. Por exemplo,
festa do Círio vem de uma feira popular. Mas a cor-
se não podemos ficar na praça a partir de 1 hora, pode-
da é profana; quem olha de fora, vê um ato de pro-
mos ir pra Jiboia no Tucupi, que vai acontecer no espaço
fanação. É muito sutil, essa linha é tênue ainda, do
Fuxico.
profano e do sagrado, o que é sagrado é profano e
Na Cuia: O que é a Jiboia no Tucupi?
o que é profano é sagrado. Então as vezes o sagrado
Eloi Iglesias: É a continuação da Chiquita. As pessoas aqui
está mais no profano do que no sagrado. Quase to-
vão ficar até a manhã do domingo. Quem compra o Kit da
dos os LGBT’s são religiosos, eles têm uma religião,
Chiquita, tem direito de participar de toda a programação
eles acreditam em Deus, eles gostam da Nazaré, que-
da Chiquita, que é a escolha do garoto chiquito, o show da
rem o manto da Nazaré. Ou eles são católicos ou são
Leona e outras atrações. Vai acontecer da seguinte forma:
evangélicos, a maioria ou é católico ou é candomblecista. Ou então de alguma religião muito evoluída
tem dentro da corda, garrafa tem no caminho da corda, gente bêbada tem no caminho da corda. É um momento que todo mundo bebe horrores, as que é o caso da mescelânica, dos Hare Krishna, que é uma religião mais aberta, que você cultua a natureza e você tem uma noção de natureza diferenciada da igreja cristã. Não tem essa coisa do dogma que tu tens que ser bom e mal, na verdade, está tudo muito acima disso, de ser bom e ser mal. Enquanto o Papa está vindo, perdoando as mulheres que fizeram aborto, dando um direcionamento, se aliando
pessoas comem horrores, ninguém vai pra corda de jejum. Não é só na Festa da Chiquita que isso acontece, todo esse lixo é acumulado em cada parte da programação do Círio. Eloi Iglesias A gente não tem problema com ninguém porque a gente vai e faz. Até porque a diretoria todo ano muda, a Chiquita já virou um fato
de qualquer maneira, falando bem do movimento LGBT, a igreja aqui no nosso estado está indo contra tudo isso. Na Cuia Então é muito claro a falta de respeito com vocês, com a diferença? Eloi Iglesias Existe o respeito, mas de respeito da gente com eles, porque na verdade não rola respeito mútuo. A gente vê que tudo que acontece não é a nosso favor, mas a gente quer respeitar porque a gente gosta disso, é clima especial, é uma coisa do paraense, é uma coisa típica da gente. Na Cuia: Tem muita gente que também critica as garrafas e lixo que são deixadas depois da festa. Eloi Iglesias É, mas isso deixam sempre. Na verdade, eles querem sempre achar um motivo pra te fechar. Porque assalto Foto: Rafael Bequeer, “Alice - o chá dos loucos” (2014)
Foto: Nailana Thiely (2008)
social. Eu estando lá vivo ou morto, vai uma bixa dessas daqui que nasceu lá e vai pra lá e vai fazer. Por exemplo, a Festa da Chiquita é mais velha que você, então tu já nasceste, já está no teu inconsciente. Quando chega o Círio falam assim “égua, meu Deus, tomara que eu me encontre com alguém lá na Chiquita”, “com quem que eu vou me encontrar?”, “eu vou pegar alguém, não vou pegar?”, “na última Chiquita eu fui roubado”, “na última Chiquita eu ganhei um bofe”, “na última Chiquita eu peguei um filho”, “na última Chiquita eu arranjei meu marido”. Então, na verdade todo mundo tem história na Chiquita. E isso incomoda eles, a gente não se incomoda, o que nos incomoda realmente é o papel que a igreja deveria fazer que era fomentar o amor, e ao contrário, ela fomenta o ódio pelas pessoas que são boas, porque os LGBT’s são bons, os LGBT’s cuidam das mães deles, os LGBT’s cuidam das famílias deles, os LGBT’s cuidam dos amigos que sofrem. As vezes os LGBT’s estão sofridos, estão mal, mas eles estão dando apoio pro amigo que está mal. As vezes ele está sofrendo e as pessoas estão tirando sarro do sofrimento deles. É meio complicado porque isso faz parte das pessoas que querem mudar alguma coisa, e é bom sempre você fazer alguma coisa diferente para você se sentir livre, você não pode se acomodar. Ao mesmo tempo que eu sofro, eu também vou ser avô
Foto: Renata Aguiar (2014)
esse ano, sou pai solteiro, tenho filho biológico. As pessoas perguntam tudo isso, se ele é heterossexual; então, tu contas “tenho um filho” e sabe que isso não é compreendido fácil. Mas o certo é ser do teu jeito. Eu pareço mais novo do que eu sou porque eu continuo com essa sensação de liberdade muito grande. Eu sempre estou fazendo alguma coisa, que parece que é alguma coisa fora do padrão. Essas coisas, de você sempre ser um pouco fora do padrão, te mantem livre, te mantem puro, te mantem feliz e te dá um pouco esse status de meio de santo, como a Santa Chiquita de Nazaré. Acho que é essa a grande icógnita que tem. Na Cuia: Então, o que a Festa da Chiquita representa na comunidade LGBT e na cultura paraense? Eloi Iglésias: Olha, na verdade, eu não posso falar pelo movimento LGBT até porque o movimento LGBT acha que nós não lutamos pelo movimento. Porque nós somos uma festa, nós queremos nos divertir, nós queremos celebrar, nós queremos fazer parte do backing vocal e cantar. Agora, assim, eu acho que faz parte como se fosse uma das alas, porque a gente sabe que o Círio é um grande carnaval devoto, e uma dessas alas, você pode ter certeza, é a Festa das Filhas da Chiquita.
CONEXÕES Há quase uma semana da Festa a Chiquita, houve a abertura da exposição intitulada Transviadação: Chiquita Profana, no Casulo Cultural. O objetivo não é diferente da própria festa: dar visibilidade às diversas formas de existir e resistir ao comportamento e pensamento reacionário que se perpetua em todo o Brasil. A exposição conta com registros dos fotógrafos: Renata Aguiar, Evna Moura, Maurício Franco, Pedro Sampaio, Nayana Thiely, Tiago Arraes e Rafael Bqueer. Para além da exposição, o espaço também vai sediar a festa da Noite Suja, pré Chiquita, uma manifestação contra todo tipo de discriminaçao da comunidade LGBT, que acontece no dia 10, a partir das 17h e que vai ate as 22h, culminando com um cortejo até a Praça da República. No dia 24 de outubro também acontece um debate sobre a marginalização da chiquita e a discriminação LGBTT, a partir das 17h.
Foto: Tiago Arrais, “Águas de Oxum” (2015)