Na Cuia #7

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Edição 7

I

I

ARTE E RESISTENCIA


Editorial No último ano do ensino médio, me lembro de uma aula sobre música e resistência, que começou na produção da época da ditadura. Daí seguia mais pra perto da gente, cronologicamente. Cultura do hip hop. Rap. Funk. Conforme a professora afastava suas palavras do Geraldo Vandré e Caetano Veloso, sentia meus colegas desistindo de prestar a pouca atenção guardada para aquelas aulas. Aquilo, apesar de mais próximo, não nos dizia respeito. Errado. A cultura de resistência é marginal e nos diz todo respeito. As matérias dessa edição - curadas com todo o carinho pela redação da Na Cuia, que tinha ideias pra mais mil pautas - mostram esse combate, com artistas que exigem respeito e denunciam o descumprimento dos nossos direitos. Direito da periferia ser vista como cidade, do investimento do governo na cultura, do cidadão de viver com qualidade. A arte, assim como pode transformar um indivíduo, transforma o coletivo... E pode salvá-lo.

Juliana Araujo - Editora-chefe

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NA CUIA REVISTA CULTURAL Para contatar qualquer departamento da revista: nacuiarevistacultural@gmail.com @revistanacuia /nacuia REDAÇÃO Bianca Brandão, Caio Jesus, Juliana Araujo, Louise Lessa, Luciana Vasconcelos, Madylene Barata, Matheus Botelho, Stéfanie Olivier, Vitória Mendes CHEFE DE REDAÇÃO Matheus Botelho

DEPARTAMENTO DE ARTE & DESIGN Diretora de Arte e Diagramação: Lorena Emanuele Arte: Luana Lisboa DEPARTAMENTO DE FOTOGRAFIA Diretora de Fotografia: Bianca Brandão Fotógrafas: Louise Lessa e Madylene Barata REVISÃO E FINALIZAÇÃO Vitória Mendes Madylene Barata

EDITORA-CHEFE DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO Juliana Araujo Coordenação de Mídias Sociais: Ana Luiza Rocha Planejamento de Comunicação: Mariana Guima- FOTO DE CAPA rães Jefferson Oliveira


~ Ediçao

~ 4 - Máquina nao faz ritual por Juliana Araujo

14 - Remando contra a maré... ~ por Bianca Emanuele

Brandao

e

Lorena

~ é vivo 20 - O Casarao por Madylene Barata

28 - Chuva da Tarde por Denise Corrêa

30 - Ainda sem Poesia

por Daniel Chagas e Filipe Santos das Mercês

Jefferson Oliveira


Máquina

~ faz ritual... nao Um dedo de prosa com Tainá Marajoara, do Instituto Iacitatá, nos ajuda a enxergar a indústria alimentícia pelo que ela é: um atentado à sociobiodiversidade brasileira e amazônida. Juliana Araujo

O

Instituto Iacitatá Amazônia Viva inau-

projeto CATA?

gurou a Casa homônima mês passado.

Quando cheguei para a entrevista, dois

projeto CATA (Cultura Alimentar Tra-

dias antes do evento, Carlos Ruffeil - um dos funda-

dicional Amazônica) prova. Os membros

dores do Instituto, chef e coordenador de expedições

Tainá, Carlos, Emiliano Boccato, Marcos

- abriu as portas e foi logo desculpando a bagunça.

Hermes e Rao Godinho percorreram, de

Eles estavam finalizando as obras para a abertura da

acordo com a pesquisadora, “só de carro,

Casa. Tainá Marajoara, a pesquisadora do Núcleo de

em 1 ano - no ano passado, que foi quan-

Estudos em História Oral da USP e coletora de narra-

do nós contamos -, 68.000 quilômetros.

tivas que nos concedeu a entrevista, desceu as escadas

Isso dentro do Pará. E pelo menos 500

logo depois. Ela puxou uma cadeira pra mim, ligou

horas de barco. Tem uma hora que a gen-

um ventilador e foi explicando os espaços da casa. De

te perde a conta.”. Os últimos três men-

trás para frente, a sala onde serão servidas as refei-

cionados são fotógrafos especializados

ções, o quintal onde é cultivada uma horta, a cozinha

em registrar, respectivamente, a comida,

e uma galeria de arte - onde atualmente estão alocadas

as manifestações culturais e o povo ama-

fotografias de parte do projeto CATA. Mas o que é o

zônida. Dividindo o estado em 5 regiões

O Pará é um país. É isso que o


Foto: Juliana Araujo

Tainá servindo caruru na inauguração da Casa Iacitatá

“a partir da divisão em fatores geracionais de cultura, seja pela natureza, seja pelos processos de ocupação”, os olhares dos integrantes se abriram para o Pará.

remoso, sobre a comida da chuva, a da

Em termos de ocupação, foi possível notar que

seca, forte, fraca, a da mulher parida”.

na região do sudeste do estado que o paraense está, nas

Em cima destes argumentos também, o

palavras de Tainá, “rareado”. “No processo de ocupa-

CATA serviu de base para que, em 2013,

ção, existe uma região de conflito de terra demasiado

a comida fosse considerada cultura no

ali. É uma região de genocídio, de devastação, mas a

Brasil. “Até então o que era conside-

nossa cultura alimentar se faz resistência nessa região.

rado como cultura era quando ela tava

Ao mesmo tempo que você passa e tem ali Vaca Ato-

relacionada às praticas culturais. Ou

lada, tu encontras a Vaca Atolada no Tucupi”, explica.

seja, o pato no tucupi só seria cultura

O Iacitatá trabalha com o conceito de “cultu-

quando ele estivesse dentro da festa do

ra alimentar”, não somente no CATA, mas na Casa:

Círio.”, disse Tainá. “Fomos lutar para

“A gente queria falar dessa relação das pessoas com

que isso [o reconhecimento da comida

o alimento”, a ativista diz, “mas do alimento como o

como cultura] acontecesse e aconteceu”.

alimento da encantaria, como o centro de um sistema simbólico, onde estão as nossas crenças sobre o que é


ça

aa d n

te En

en r e dif

Os conceitos abaixo foram extraídos do Dicionário Michaelis da

Língua Portuguesa online e do artigo “Cultura Alimentar: contribuições da antropologia da alimentação”, da antropóloga Vivian Braga. Gastronomia: 1 Arte de cozinhar e preparar as iguarias de modo a tirar-se delas o máximo prazer. 2 Arte de escolher e saborear os melhores pratos. Cultura alimentar: Hábitos alimentares, tanto tradicionais, quanto do dia-a-dia. Refere-se igualmente às identidades sociais. Ou seja, o que é alimento específico de cada região e/ou grupo social.

A comida já é cultura no Brasil?

Já sim. Cultura alimentar, além de tudo, é também a ter-

minologia eleita democraticamente na III Conferência Nacional da Cultura como representação da cultura ligada à comida. Não gastronomia, como sugere o projeto de lei 6.562 - aquele da campanha do Eu Como Cultura -, que foi aprovado no dia 31 do mês passado. Quando perguntei qual o problema maior da campanha, Tainá respondeu: “Não existe uma problemática diretamente relacionada em oposição ao PL 6.562. O que existe é uma análise sistêmica de todo esse processo de dominação simbólica. Esse PL é mais uma jogada de marketing da indústria de alimentos, da indústria cosmética”.

Como assim “dominação simbólica”? O Instituto Iaci-

tatá, como grupo ativista da cultura alimentar, enxerga a PL 6.562 como parte de uma sequência de leis que irão contribuir para a manipulação dos alimentos que consumimos e violentar a cultura dos povos tradicionais e a própria biodiversidade do país. Começando com a lei 13.123, apelidada de Lei da Biopira-

Feijão manteiguinha servido na inauguração da Casa. Foto: Juliana.


taria. “A indústria de alimentos chega na base da cadeia produtiva, que é o manejo, que é o acesso direto ao conhecimento tradicional e o acesso ao patrimônio

tária, a contribuição varia de 1% a 0,1%

genético do país”, começa Tainá.

da receita líquida anual - o dinheiro ar-

recadado no ano, com todas as despesas

Patrimônio genético, nas especificações da pró-

pria lei, é a “informação de origem genética de es-

descontadas.

pécies vegetais, animais, microbianas ou espécies de

outra natureza, incluindo substâncias oriundas do

gica, outro projeto de lei tenta passar,

metabolismo destes seres vivos”. E o conhecimento

agora oficializando a produção trangê-

tradicional acerca da manipulação deste patrimônio

nica sem informar o consumidor das

genético também está incluso na lei. A pesquisado-

condições reais do que ele está ingerin-

ra se preocupa: “E isso tá legalizado”. Na lei, o se-

do. A ativista explica que é uma cadeia.

tor empresarial deve contribuir de forma monetária

“Logo em seguida veio a aprovação do

ou não monetária com as comunidades. A forma não

projeto de lei 4148, que é o projeto que

monetária inclui contribuições como “transferência

desobriga a rotulagem transgênica. En-

de tecnologias, disponibilização em domínio público

tão aí a gente passa para a segunda par-

do produto, licenciamento de produtos livre de ônus”,

te da cadeia produtiva: o abastecimen-

entre outros. E quando escolhida a modalidade mone-

to”. E continua: “Nós já não seremos

Dando continuidade a essa ló-

donos da nossa biodiversidade. E essas mesmas empresas que mantêm esse domínio, que financiaram a aprovação do 7735, elas também estão no 4148, que é a desobrigatoriedade da rotulagem transgênica”.

Além da possibilidade de não

rotulagem dos produtos trangênicos, ainda somos obrigados a comer veneno: “Os financiamentos para lavouras só são liberados a partir de um conjunto de defensivos e fertilizantes”. A preocupação do Iacitatá com a cultura alimentar também toca neste tema. As


monoculturas só podem existir se utilizarem produtos químicos que modificam o alimento. Por isso a rede de agricultura familiar que o Instituto estabeleceu (e continua renovando seus laços) é importante para os membros. “O produto que vem da monocultura, cheio de agrotóxico, faz parte da cadeia dela [da gastronomia]. O arroz que tá destruindo toda a ilha do Marajó. A soja que tá contaminando todo o baixo Amazonas…”, diz Tainá. “Mas também faz parte a cultural, claro que faz parte! Só que quando a gente fala em cultura alimentar, eu também tô falando das pequenas embarcações, dos casquinhos, porque eles são parte da nossa cadeia da cultura alimentar. As próprias técnicas e os cultivos da floresta. Como que você combate uma praga no campo?”

A gastronomia entra no PL 6.562. “Um poti-

nho cheio de veneno e de alimento transgênico, ele vira um produto cultural. Essa é a maior problemática.” A fala de Tainá é enfática: “A campanha Eu Como Cultura, pra a gente, não quer dizer nada. A nossa luta é em defesa da vida, da sociobiodiversidade

mente que a cultura alimentar do Pará, rica como é, não pode ser reduzida ao jambú e o tucupi. E Tainá enfatizou que as nossas palavras precisam resistir. “Eu assisti uma reportagem que eu fiquei revoltada, foi o estopim de tudo isso. Eu tava assistindo televisão e era uma época dessa de São João e tinha alguém da Secretaria de Turismo falando sobre o turista não entender os nomes da Amazônia. Aí foi sugerido durante essa entrevista que, por exemplo, bolo podre poderia se chamar white cake, que seria melhor pra ser traduzido. Eu fiquei impressionada aonde chega a nossa subserviência e o colonialismo paraense”.

Conversando sobre a palavra

gastronomia e seus significados, Tainá voltou ao tema do vocabulário ligados

da Amazônia e do planeta. Esse PL está manipulando uma mídia, se utilizando de uma contra-informação! E obviamente que a gastronomia, como uma cadeia, ela não é sinônimo de cultura. Porque máquina não faz ritual, não transmite conhecimento através de gerações. Quem faz isso é a cultura.”.

O espetáculo gastronômico

Tainá serviu beijú com manteiga do Marajó

pra mim - um subproduto do queijo que tem o gosto dele e uma leveza própria. Pude perceber mais claraQueijo e manteiga do Marajó. Foto: Juliana Araujo


sinto muito pro white cake! Canhapira é canhapira, não é algo que parece uma maniçoba feita com tucumã, são conceitos que remetem diretamente a uma identidade.”

Depois das andanças do CATA, os integrantes

do Iacitatá não só mapearam, como descobriram peà cultura alimentar: “O francês, quando

culiaridades que desenham a culinária paraense com

ele diz queijo Roquefort, não é queijo

outra silhueta. Tainá contou, por exemplo, que o ta-

Paris, é queijo Roquefort. E nós, para-

cacá exportado de Belém para as ruas do interior não

enses, sabemos falar! Mas nós ficamos

tem uma só receita. Sempre tem a goma e os temperos

preocupados com uma aceitação de

- alho, chicória, alfavaca e muita pimenta -, mas em

mercado e vamos deixando de ser quem

cada lugar é uma variação. “Muitas vezes nem leva tu-

nós somos”. A pesquisadora defende

cupi. Tem tacacá de piaba, tem tacacá de caranguejo,

que o respeito que é dado à cultura do

de caranguejo assado de brasa, de peixe seco, de mexi-

outro também deve ser incentivado a

lhão. No final, o que a gente acaba percebendo é que

nossa própria cultura. Ela completa,

o tacacá é um preparo viscoso que utiliza esses ingre-

rindo: “Eu sinto muito pro francês, eu

dientes. Então a base do tacacá sempre é a goma”. Eu brinquei: “Então essa história de pedir sem goma…”. A entrevistada riu, reafirmou que “ele tem primeiro a goma, depois o resto”.

Outra curiosidade é o açaí. “Aonde nós passa-

mos, cada açaí é absolutamente diferente do outro”, conta. “Então esse é o terroir que precisa ser trabalhado como desenvolvimento sustentável do estado”. O terroir é uma definição francesa, sem tradução, que celebra as diferenças de cada vinhedo baseado naturalmente no solo, sua estrutura, sua topografia, sua exposição ao sol, ao vento e à chuva. E voltamos ao estrangeirismo: “Aqui, enquanto se tem essa busca de se identificar com o que é de fora, ao invés de fazer esse arremedo europeu, que se pegue uma experiência de sucesso e se aplique, como o terroir francês. Hoje


Foto: Juliana Araujo

você não briga com um queijo da França, com um vi-

faz com essa população que agora passou

nho francês, porque eles são bens culturais dentro da

a comer corantes, saborizantes e conser-

França”.

vantes que nunca tinham atingido aquele

Tainá Marajoara diz que existem sementes de

local? Não é só a criança que fica enve-

açaí sendo distribuídas dentro do estado, devido à alta

nenada, tem a criança, tem o peixe, tem

produtividade. “Existe açaí manipulado, que está sen-

as plantações”. O Pará, sendo destino de

do deslocada, o açaí de várzea vai pra terra-firme, o

turismo gastronômico, desenvolve uma

de terra-firme vai pra outro tipo de área. E é pra esse

discussão ainda muito rasa sobre a cadeia

cuidado ser tomado, é a nossa biodiversidade que está

alimentar.

em jogo”. A realidade da legislação brasileira também

é preocupante. “Adotamos regras que se assemelham

plexo do que simplesmente você chamar

às dos Estados Unidos e das nações europeias. A gente

50 jornalistas, gastar uma fortuna em um

não tem legislações adequadas à nossa realidade, nem

festival de gastronomia. Onde isso vai re-

uma valorização adequada aos nossos costumes”.

sultar? Em mais matéria de TV?” A pre-

De acordo com a pesquisadora, o que também

ocupação de quem discute comida deve

falta no cenário de pautas culinárias no Pará é o debate

ir além: precisa entender que o alimento

acerca do ecossistema, do que chega dentro da floresta

depende do ecossistema inteiro - que co-

- como um exemplo que ela deu sobre feijoadas enla-

meça na região. “E o que acontece com

tadas que entram através de licitações fraudulentas. “E

quem ta lá no Marajó, debaixo do agro-

o que se faz com esse lixo dessa feijoada? E o que se

“É um problema muito mais com-


tóxico? O rio vai sair cheio de veneno e vai jogar esse agrotóxico na foz do rio Amazonas”, alerta a ativista.

A Casa Iacitatá

não pode ser um souvenir. Não deve-

A Casa Iacitatá é um espaço de inter-

mos trabalhar o melhoramento cultu-

câmbio, com a contribuição de produtores lo-

ral, como muitas vezes nos é colocado.

cais e reafirmação do comércio que os próprios

A cultura precisa ser adequada ao tipo

membros identificaram como agroecológico e

de mercado que ela vai ser consumida”.

cultural. “Essa diversidade de produtos que estão diretamente relacionados ao nosso pa-

A galeria de arte, na parte da frente,

trimônio cultural, eles vão estar presentes na

funcionará sob editais de pauta para a

Casa. A gente tá tentando trabalhar uma outra

ocupação do espaço por artistas. Nos fi-

forma de consumo e inovar quanto ao con-

nais de semana, será celebrado o timiu -

ceito de produto. A gente não trabalha com

comida em Nheengatu. Os mestres vão

mercadoria, mas com bens culturais”, explica Tainá. “Se hoje a cultura significa pelo menos 7% do PIB brasileiro, então que ela se faça valer e que seja respeitada pelo mercado. A gente

Exposição de parte do projeto CATA na entrada da Casa Iacitatá Foto: Juliana Araujo


cozinhar e ministrar rodas de conversa. Tainá desenvolve: “Não é um local onde vai ter um chef de cozinha que foi em uma comunidade, se apropriou de um conhecimento e trouxe esse conhecimento, transformou isso em um produto que ele vende”. Como a proposta é de uma rede de bens culturais, praticamente 100% dos alimentos comercializados na Casa são orgânicos e locais. Tudo vem direto das comunidades. Quem quiser experimentar a comida tradicional precisa ligar para a Casa e especificar a data e a quantidade de pessoas a serem servidas. Tainá explica que as porções podem ser feitas no espaço deles ou entregues na casa de quem as encomendar.

E o cardápio? Não dá pra formar. “Não tem

como saber quais são porque a gente depende da sazonalidade dos nossos alimentos. Daqui até outubro eu vou ter mingau de jerimum. De outubro até fevereiro, consigo ter mingau de mucajá, aí em fevereiro acaba o mucajá. A gente vai ter que fazer outra coisa”. Essa sazonalidade é também um investimento na manutenção da sociobiodiversidade tão querida pelo Iacitatá. Para evitar a produção predadora, o Instituto preza pelo tempo da natureza. Quem já comeu o doce de um cupuaçu apanhado do pé da árvore - bem menos ácido, que não precisa de tanto açúcar - sabe do que os ativistas estão falando. Respeitar a natureza também muda a qualidade do produto.

Carlos Ruffeil preparando pratos da cozinha tradicio


Serviços Telefone: (91) 8721-8184 / (91) 8098-3041/ (11) 970406175 Email: iacitataamazonia@gmail.com Enderço: Tv. Benjamin Constant, entre Ó de Almeida e Aristides Lobo, nº 609.

Quintal da Casa Iacitatá. Foto: Juliana Araujo

Para encerrar a reportagem, deixo um

depoimento da própria Tainá: “A nossa cozinha que vai pra mídia se resume em tucupi e jambú, como se no Pará não existisse qualquer

sangue indígena de uma das civili-

outra coisa. É uma falta de informação e uma

zações mais antigas do mundo, que

falta de respeito com quem nós somos. Onde tá

é o sangue marajoara. Mas quando

a sociobiodiversidade da Amazônia? Temos a

eu ia pra aula, eu tinha que aprender

maior do planeta, mas que ela não aparece no

sobre todas as outras civilizações do

prato. E quando ela vem de dentro da flores-

mundo e as pessoas sequer conhe-

ta, do campo ou da água, pra cima da mesa, é

ciam as nossas palavras. Temos que

imediatamente colocado um rótulo de subal-

desconstruir um pouco dessa ima-

terna. Desde criança eu ouvi que eu carrego o

gem da comida do caboclo, a comi-

onal na inauguração. Foto: Juliana Araujo

da do índio, a comida do quilombo ser uma comida subalterna na mesa do Brasil”.


~ e Lorena Emanuele Bianca Brandao

Remando contra a maré...

Pedro Vianna e Narjara Oliveira, da Senda Produções, e Rodrigo Viellas, da AmpliCriativa. Foto: Bianca Brandão.


Sexta-feira, 29 de maio de 2015, 19 horas. Em frente ao Theatro da Paz, herança do Ciclo da Borracha e símbolo das artes cênicas e da música paraense, centenas de pessoas estão reunidas para ver e ouvir grandes nomes da música regional como Dona Onete, Camila Honda, Juliana Sinimbú, Natália Matos, Aeroplano, Meio Amargo e Gang do Eletro. No entanto, aquele evento não era um simples show. Era o I Ato Público em Defesa da Cultura Paraense, organizado por um movimento de nome simples e significativo: PROA, é como se chama a parte frontal de uma embarcação e também a sigla que os Produtores e Artistas Associados escolheram para representar seu movimento. Um dos últimos suspiros de esperança na cultura paraense.

“Vim de quando, vou pra onde”*

N

a obra de Benedicto Monteiro, “O Carro

vou muitas pessoas com cartas de incen-

dos Milagres”, o protagonista busca agra-

tivo – também conhecidas como Certi-

decer, no Círio de Nazaré, um milagre que

ficado de Obtenção de Incentivo Fiscal

o salvou das tortuosas águas no Marajó. Aqui, porém, o

(COIF) –, o seu patrocínio, a ver navios.

milagre ainda espera para ser realizado. A cultura para-

Segundo eles, a Fundação Cultural do

ense vive uma de suas fases mais difíceis e pálidas, mas

Município (Fumbel) emitiu 9 milhões

ao mesmo tempo repleta de cores e sentimentos que

de reais em 100 mil cartas de incentivo,

ainda lutam para se manter vivos na realidade regional.

o que permitia que qualquer artista ou

Na companhia de Pedro Vianna e Narjara Oliveira, da

produtor conseguisse patrocínio com

Senda Produções, e Rodrigo Viellas, da AmpliCriativa, a

empresas privadas. No entanto, a re-

esperança foi tomando forma. Era o PROA, uma associa-

núncia era de 900 mil, o que impediu os

ção de produtores e artistas que surgiu, como disseram,

artistas e produtores de realizar a capta-

a partir de um grupo que alguns produtores culturais

ção de recursos. Foi aí que conseguiram

tinham no Whatsapp.

uma audiência com o então prefeito de

Tudo nasceu quando o teto da renúncia fiscal da

Belém, Zenaldo Coutinho, mobilizan-

lei Tó Teixeira foi atingido muito rapidamente, o que le-

do algumas pessoas a ir também. Eram


pessoas de outros seguimentos, fazedores, criadores e consumidores de cultura, porque acreditam que esse é um assunto que atinge a todos, e não apenas a uma parcela social. “Tudo para que a cultura tivesse uma atenção um pouco melhor, que fossem discutidas políticas públicas de cultura para que os mecanismos de funcionamento da cultura fossem revistos como, por exemplo, as leis Semear e Tó Teixeira. ”

O sarcasmo com o qual a identidade paraen-

se vem sendo tratada reflete na sociedade como um todo, “quando falamos de cultura, faamos também de educação, saúde e segurança pública”, pontuou Rodrigo Viellas. Como cidadãos, fomos ensinados a deglutir avidamente a cultura, muitas vezes massificada, de fora, e esquecemos de nossa própria herança popular. A cultura é plural em todos os senti-

nhecimentos. As gerações que estão surgindo não querem dedicar seu tempo e sua vida ao fazer cultural, a um criar cultural, que faça com que eles no fim da vida vivenciem essa miséria, porque é uma vida miserável você não ter como vender o seu trabalho”, refletiu Narjara Oliveira.

“Rema, meu remo, rema”*

Um dos problemas analisados pelo

PROA foi o de que projetos de cultura, com o passar do tempo, vão morrendo, desfalecendo e se perdendo entre os muitos papéis não

dos, formas e tons. Do folclore aos mestres e grupos populares de cortejo e teatro, ao carimbó dos pés no chão e braços que sibilam no ar. O apagamento dessas marcas não é apenas uma questão regional, mas nacional, que remete à (des)valorização das características de um povo. A identidade paraense, tão exaltada no livro de Benedicto Monteiro, vem se dizimando. “Esses mestres da cultura popular, por exemplo, não têm mais a quem repassar seus co-

Segundo o site Holofote Virtual, cerca de 1000 pessoas estiveram presentes no Ato. Foto: Renato Reis


Foto: Renato Reis

assinados ou postos em prática. Por questões partidárias, políticos não gostam de levar adiante os projetos que seus antecessores começam, a não ser que eles se transformem em algo mais sério. Mesmo assim, nada está livre da extinção. Daí surgiu a ideia de organizar algo que ultrapassasse os limites partidários, uma política que assegure o fomento cultural independentemente do governo vigente. Nasceu então a ideia de criar os Sistemas Municipal e Estadual de Cultura e seus respectivos Conselhos Fundos de Cultura. Sistemas apartidários nos quais a governança seria da cultura, “é criado um Conselho de Cultura formado por representantes dos fóruns setoriais de cultura, como um fórum de música, de teatro, cinema, produção cultural, etc. Esse conselho discute e determina com o governo qual será o plano decenal de cultura, ou seja, se Foto: Renato Reis

cria um plano de 10 anos para a cultura. Ele, independentemente do governo que vier, deverá ser cumprido e cobrado, através da fiscalização. Temse então um sistema com um fundo de cultura e deixa-se essa ideia da carta, onde você ganha um selo fiscal que permite que as empresas decidam


se querem ou não apoiar um projeto”, resumiu Pedro Vianna, “se o dinheiro é público, porque uma empresa privada que tem que determinar para onde ele vai?”

Tamanha é a injustiça, que para traçar uma li-

nha de entendimento a fim de capitar melhor a disparidade, “quando a empresa privada fica com essa decisão, é como tentar escolher entre a Claudia Leitte e um mestre, é claro que ele vai priorizar aquele projeto

“A canoa vai de proa e de proa eu chego

que dará visibilidade maior para a marca deles mes-

lá”*

mo. São projetos que tem potencial comercial maior.

É injusto...”, argumentaram.

resiste sem a ajuda do governo. Essa ben-

Há pouco tempo, uma carta de repúdio à po-

gala imaginária ainda hoje é necessária

lítica adotada pela prefeitura para a organização das

para manter vivos projetos como o Ar-

comemorações do aniversário de Belém foi lançada

raial do Pavulagem, símbolo da cultura

pelo PROA. Através de alguns dados públicos, desco-

amazônica com 29 anos de existência e

briu-se que uma empresa de São Paulo seria a respon-

que em 2015 só se apresentou por conta

sável pela consultoria e coordenação do festejo dos

de um financiamento coletivo, o que exi-

400 anos de Belém, o que provocou grande insatisfa-

be com cortinas de aço o teatro da reali-

ção e levantou alguns questionamentos. Por que não

dade bruta que é o descaso e a total indi-

uma empresa do Pará? Por que a lapidação da nossa

ferença dos órgãos superiores.

identidade é delegada outros? Será mesmo que essa

empresa vai empregar paraenses para constituir seu

as imaterialidades que movem paraenses

corpo maior? A prefeitura então, numa tentativa de “acalmar os ânimos”, assegurou que os empregados seriam paraenses e que valorizariam a cultura, mas nem todos acataram. A pulga atrás da orelha ficou.

O mercado cultural paraense não

Entre todos os combustíveis, todas


Os jornalistas Úrsula Vidal e Lúcio Flávio Pinto também participaram do Ato Público. Foto: Renato Reis

E mais... Leia o manifesto PROA no link: https://goo.gl/UvRgom Ajude o PROA a implementar os Sistemas Estadual e Municipal de Cultura assinando as petições: - Sistema Estadual de Cultura: https://goo.gl/Os4zfK - Sistema Municipal de Cultura: https://goo.gl/JZiizr

dia após dia, a cultura é a mais poderosa delas. Se nesse folclore da vida, no imaginário apenas restarem marcas de uma identidade popular que um dia existiu, saberemos que o Pará não mais será o Pará. Paraenses não mais serão paraenses. Então, que os bons ventos levem o PROA, que rema incessantemente contra uma maré de problemas, mas que no final terá um destino tão milagroso quanto o do homem do Marajó nas suas águas. A gente ora. *Trechos retirados da música Indauê Tupã, de Paulo André e Ruy Barata **Até o fechamento da edição a Fumbel não respondeu sobre os dados apresentados.


Falando nisso...

Construindo o Solar das Artes Um dos articuladores do Solar das Artes, nos conta sobre a ideia central do movimento e como o “faça-você-mesmo” é um esforço impressionante, que, contudo, poderia ser evitado.

D

epois de uma temporada fora, o designer e publicitário Filipe Almeida, como um bom filho, a casa tornou. Ao

se juntar com outros ilustradores da cidade para movimentar a cena e mostrar a produção e a pesquisa que havia feito quando estava fora, ele e outros artistas pensaram uma ocupação que juntava arte com outras pautas socioculturais. Assim nascia o Solar das Artes.

NC: Como e a partir do que surgiu a iniciativa do Solar das Artes? FA: Nessa minha volta pra cidade, fiquei muito chocado com o estado de abandono do Solar da Beira e a quantidade de usuários de crack que passaram a se reunir ali, totalmente diferente da atmosfera de anos atrás, na época do Museu do Índio. Foi a partir desta inquietação que eu e o Feli-

Foto: Na Cuia


pe Akácio acabamos inscrevendo o projeto “Solar das Artes” como proposta de atividade durante a Virada Cultural de Belém, que aconteceu em dezembro do ano passado. Se juntaram ao proces-

te a ocupação e como os artistas

so vários amigos nossos que eram músicos, atores,

participantes articularam a mes-

fotógrafos e conseguimos passar de uma simples

ma?

mostra à uma ação multiartística. Foi muito positi-

Durante a ocupação, realizamos

vo. Assim, conhecemos um pouco mais da dinâmi-

diversas atividades que eram volta-

ca do local e nos sentimos seguros pra fazer mais.

das para o público em geral e a co-

Em maio deste ano conseguimos articular várias

munidade do Ver-o-Peso. Foram

pessoas que participaram da primeira edição e es-

oficinas, apresentações musicais,

tendemos a programação inicialmente para uma

teatro, performances, aulas públi-

semana, mas acabou durando 24 dias. Isto porque

cas, vivências, rodas de conversa e

as situações que presenciamos ocupando o Solar,

a exposição permanente, que se-

já que literalmente passamos a dormir e viver ali,

guiu em constante transformação,

nos revoltaram profundamente: o abandono e falta

já que diversos artistas foram con-

de políticas públicas de saúde para as pessoas em

tribuindo e deixando suas produ-

situação de rua, a degradação extrema do Solar e

ções no local por todo o período

a insalubridade infligida aos trabalhadores da fei-

da ocupação. É muito importante

ra. Estas pautas se somaram às nossas e decidimos

frisar que uma das nossas inten-

ocupar o prédio para denunciar tudo isto, tivemos

ções sempre foi organizar uma

um grande apoio não só da feira, mas também da

mostra livre e sem curadoria, já

opinião pública da cidade. Neste segundo processo

que o Solar desde o começo tinha

gostaria de destacar que foi imprescindível a atua-

essa intenção de debater a demo-

ção de pessoas como a Raphíssima, a Larissa Costa,

cratização dos espaços de arte em

João Urubu, Laíla Cardoso, Daniel Leite, Herôn

Belém. Desta forma, podemos di-

Victor, Leandro Haick, Liv Malcher e muitos ou-

zer que a articulação de tudo foi

trxs que pensaram, resistiram e movimentaram do

muito orgânica, já que bastava se

começo ao fim.

comunicar conosco para participar das mostras ou propor ativi-

NC: Quais os tipos de atividades realizadas duran-

dades.


NC: Como enxergas as políticas culturais que vêm sendo aplicadas no Pará? FA: Pessoalmente, eu acredito que vivemos um período muito difícil para a cultura no Pará. Este ano tivemos cortes de 50% na lei Semear, diversos problemas na lei Tó Teixeira, seguimos sem a regulamentação do Sistema Estadual de Cultura e lei Valmir Bispo, testemunhamos a fusão e desordem administrativa do IAP, Fundação Cultural do Pará e Curro Velho. Vejo que não é apenas o período de austeridade, mas também o fato de que o próprio sucateamento do Solar da Beira e tantos outros espaços servem à uma política neoliberal orquestrada pela prefeitura e governo, que tem como premissa uma cidade que afasta os mais pobres para as periferias e prioriza ilhas de conforto para uma minoria da população. Soubemos que o plano da comissão Belém 400 anos era transformar, por exemplo, o Solar da Beira em um restaurante fino.

NC: Achas que esse interesse pelo “faça-vocêmesmo” como forma de driblar a falta de apoio governamental para a cultura é uma tendência entre os artistas? FA: Arregaçar as mangas e construir a cidade que nós queremos, é uma atitude fundamental. Me impressiona o que diversos grupos da cidade realizam sem qualquer tipo de apoio institucional, mas acredito que produzir arte é um traba-

Foto: Na Cuia


do diversas atividades para o segundo semestre e seguimos nossa articulação com diversos setores e artistas. Para lho como qualquer outro e que consumir e produzir cultura é fundamental para que haja uma sociedade empoderada, que sonha, que preza pela sua identidade e consciência crítica. Cultura é costume, se há uma mudança na cultura, há uma mudança de costume, não à toa existem políticas e leis que preservam e fazem a manutenção disto. O acesso à cultura é um direito fundamental, que é abalado pela falta de investimento, já que não há como realizar atividades gratuitas de qualidade, pagar o trabalho dos artistas ou mesmo construir espaços de formação e experimentação. Se há uma tendência “faça-você-mesmo” é por um esforço descomunal dos artistas e produtores, mas que se fosse fomentada pelo estado, poderíamos de fato usufruir da diversidade cultural fantástica que é Belém.

NC: Achas que é possível o Solar das Artes, como movimento, continuar? FA: O Solar das Artes como movimento ainda não se esgotou, estamos organizan-

além, semeamos esse ímpeto e atitude em várias pessoas que participaram e construíram o espaço, bem como proporcionamos o encontro de muita gente talentosa. Não há como mensurar o que pode se desdobrar a partir daí. Continuamos instigados e pretendemos ocupar outros espaços.

NC: Na tua opinião, que mudanças devem ocorrer nas políticas de cultura atuais e na sua aplicação? FA: Acredito que deveria ser realizado um investimento massivo de cultura nas periferias e interior do estado. Precisamos de mais espaços de formação e empoderamento como o Curro Velho e antigo IAP, mais apoio aos grupos e pontos de cultura e uma redistribuição coerente do orçamento, já que não é concebível na minha opinião, sermos testemunhas oculares da morte de cordões de pássaros juninos, quadrilhas, escolas de samba e diversos mestres no ostracismo enquanto temos um suntuoso festival de ópera no Teatro da Paz.


Novas cores na entrada do Casarão, resultado da oficina de Graffiti para Mulheres com Michelle Cunha. Foto: Divulgação


Madylene Barata

O ~ Casarao é Vivo Quem passar pela Rua 16 de novembro vai reparar que a casa de número 815 é diferente de todas as outras. Esse Casarão tem cor, história, magia e vida! Mas se chegar um pouco mais perto (quem sabe entrar), vai perceber que essa residência, datada do ano de 1903, já é quase uma senhora de idade que precisa de cuidados, atenção e apoio para resistir e dar morada à arte e às suas crias: os artistas.


A arte precisa ser item da cesta básica de qualquer cidadão!

A

vida dessa casa começa a partir de outras vidas. Um grupo de amigos, que adoravam criar e moravam no mesmo prédio, expe-

rimentou contar histórias através de bonecos. A brincadeira era fazer bonecos que dublassem músicas. Deu certo e logo a brincadeira virou uma série de pequenos sketch’s musicais, que viraram espetáculos, que viraram outras experimentações, que tomaram novos rumos e grandes proporções. O grupo que hoje conhecemos como In Bust estava nascendo com muita força e com o lema “A arte precisa ser item da cesta básica de qualquer cidadão”.

Registrado em 1996, o nome do grupo foi ins-

pirado no espetáculo noturno que apresentavam no bar chamado Golfs. Como o bar era americanizado, o

depois o grupo entendeu que a dinâmica

grupo resolveu fazer isso também com o seu nome. Se

do ator que dava vida ao boneco podia

reconheceram como “In Bust: Companhia de Anima-

colaborar com a cena, tornando o espetá-

ção”, mas a população não compreendia muito bem o

culo ainda mais dinâmico e surpreenden-

trabalho. Achavam que era um grupo de animação de

te.

festa. Foi então que resolveram modificar o sobreno-

me e incluir o “In Bust: Teatro Com Bonecos”.

Cultura do Pará para o grupo realizar o

A preposição com é fruto da reflexão sobre a

programa Catalendas. O programa se tor-

experimentação de não só personalizar e dar vida aos

nou uma das maiores produções do gru-

bonecos, mas também de trabalhar em cena com eles,

po, por causa da adaptação da linguagem

caracterizados, equilibrando a potência de atuar e ser,

teatral para a televisiva. A produção já es-

simultaneamente, atores e bonecos. No início, os espetáculos eram apresentados no escuro, com os atores escondidos, ficando visíveis apenas os bonecos, mas

Em 1998, surgiu o convite da TV


A fachada do Casarão do Boneco apresenta grandes problemas estruturais e risco de desabamento. Foto: Divulgação

vam projetos para financiar os reparos necessários ou para atrair pessoas para conhecerem o trabalho e a sede dos artistas.

O Casarão do Boneco começou a ganhar

vida. Paulo Ricardo é um integrante do grupo In Bust e contou que uma das prioridades do grupo era chamar a atenção da comunidade ao entorno: “do vendedor de açaí, do funcionário do posto e realizar um trabalho em benefício à cidade”. Queria que vissem e se interessassem pelo movimento “estranho” que se concentrava naquela casa, para saber quem são os vizinhos e levar a arte até eles. tava acontecendo - e o grupo acumulando diversos materiais. Porém, o único atelier

Habitar o Casarão

que tinham para guardar os acessórios de

cada apresentação, era a casa de um dos in-

bia o que era o Casarão do Boneco, como a maio-

tegrantes. Foi o momento em que pensaram

ria dos artistas da cidade também. O Casarão do

em adquirir uma sede, que iria se tornar o

Boneco tornou-se referência para artistas belenen-

atelier do In Bust. Depois de quase um ano,

ses e começou a fazer parte do roteiro turístico dos

o grupo achou o casarão pertencente à fa-

bonequeiros de todo o Brasil. Toda essa potência

mília Mendes, que há muito pensava em

como identidade, se construiu espontaneamente,

vendê-lo para alguém que não o descaracte-

através da convivência de vários artistas que preci-

rizasse.

savam fazer atividades de cena, montar um espetá-

culo ou se hospedarem, porque vinham de outros

O ator e bonequeiro Aníbal Pacha

Em pouco tempo, não só a comunidade sa-

comprou o Casarão. O grupo pensou numa

municípios.

planta que valorizasse o espaço e que não

agredisse a estrutura. Ao longo do tempo,

fluxo proporciona uma experiência ímpar de con-

foram feitas algumas manutenções, realiza-

vivência, criação, aprendizado e produção coletiva

Artistas diversos habitam o Casarão. Esse


de grupos com linguagens artísticas diferenciadas, preservando uma relação que acontece naturalmente e de forma horizontal. Os coletivos cênicos In Bust, Produtores Criativos, Projeto Vertigem, Vida de Circo, Causo Companhia, Coletivo de Animadores de

Foto: Divulgação

Caixas, Grupo de Teatro Universitário, Companhia

de Teatro Madalenas e Coletivo Mia Sombra são al-

dutores Criativos, coletivo que realiza

guns que estão sempre na casa. Além das atividades

projetos a partir das linguagens cênica e

desses coletivos, também tem o Pirão Coletivo, um

audiovisual, diz que o grupo também re-

projeto que agrega outros grupos artísticos que tran-

aliza sua produção no Casarão, mas logo

sitam pelo Casarão.

percebeu que o local estava apresentando

Há mais ou menos 3 anos o Casarão é uma

limitações na estrutura e que, de manei-

alternativa para os coletivos que não têm sede. A

ra colaborativa, os artistas precisavam se

“Companhia de Teatro Madalenas” resiste há 14 anos

unir para manter o espaço funcionando.

sem sede, mas agora pode contar com o espaço do

“Mais do que uma rede de grupos que

Casarão. A Companhia tinha uma enorme admira-

ocupam o espaço, são artistas que lutam

ção pelo trabalho do grupo In Bust e, desde o início

para que o espaço permaneça habitável”,

de 2015, as relações se estreitaram. Hoje o Casarão os

afirma. Muitos artistas e coletivos con-

abriga para ajudá-los a dar conta da produção. “An-

seguiram um espaço, mas agora eles vol-

tes, o grupo ensaiava nas ruas, coreto de praça, na

taram para, junto com os coletivos que

casa de alguém ou em espaços cedidos; ficava, assim,

mantém o local, salvar o Casarão, que

limitado pela vulnerabilidade do tempo e das pesso-

apresenta grandes problemas estruturais.

as”, esclarece Leonel Ferreira, integrante da Companhia.

Andréa Rocha, do grupo Pro-


“A cada ano a gente acha que a fachada vai

cair e ela não cai. O corredor, que a cada passo a gente vê nitidamente ele se partindo”, conta Paulo Nascimento. A companhia In Bust compreende que, mesmo que seja uma residência particular, cedido para o In Bust e mantido por vários coletivos cênicos, é um espaço que serve à cidade. Paulo Nascimento comenta ainda que a cidade é carente disso, “Apesar de a gente estar no final da Batista Campos e da Cidade Velha, que são bairros relativamente bem servidos, a gente também está no Jurunas, que é um bairro relativamente mal servido, no sentido de acesso, de direitos. Eu tenho infinita certeza de que os fazedores de cultura vão salvar a cidade e é por isso que a gente resiste. Por isso o Casarão resiste”.

Leonel Ferreira compreende que o Casarão

acaba suprindo uma necessidade e uma demanda dos grupos que, na verdade, era para o Estado suprir. “O Estado poderia criar uma política pública para os grupos ocuparem esses espaços, mas não faz. Então o Casarão, de forma solidária, concede o espaço”, reitera. O poder público se ausenta, mas poderia estar

Michele Cunha, artista paraense, também contribuiu com o Casarão realizando uma oficina de graffiti só para mulheres. Foto: Divulgação


contribuindo. O que persiste em Belém, no Pará e em muitos lugares do Brasil é uma política de balcão que contribui apenas para escolhidos. Esse tipo de incentivo e política pública quer tornar alguns artistas famosos e outros, como o Casarão do Boneco, invisível.

Visite o Casarão e colabore com quanto e como puder

O Casarão do Boneco nasce de uma potên-

cia de criar e sobrevive da vontade de viver da arte. Se torna esse espaço singular que abriga artistas e alimenta a cultura. “O Casarão não é apenas sede da In Bust, se tornou algo à parte, tem vida própria, aqui é o Casarão do Boneco e a ideia é que ele seja cada vez mais ocupado de forma horizon-

Andréa Rocha é do grupo Produtores Criativos e colab do Casarão. Foto: Divulgação

tal”, afirma Paulo Nascimento. O casarão é a passagem. Muita gente já passou, já deixou acessórios de grandes espetáculos, desenvolveu, de forma independente e colaborativa, ensaios, apresentações, oficinas, exposições, reuniões, encontros de produção artístico-culturais e deixou um pouco de sua vida no Casarão.

Com sentimento de pertencimento, porque

o Casarão também é a casa de cada um, é que os grupos pensaram no financiamento coletivo e criaram a campanha Salve Salve Casarão do Boneco (https://www.catarse.me/pt/salvecasaraodobone-

Leonel Ferreira é integrante da Companhia de Teatro Madalenas, um grupo que alimenta a cultura local e fornece todo apoio para que o Casarão continue vivo Foto: Divulgação


co), realizada pelo Catarse (plataforma de crowdfunding), que segue até 12 de agosto. A meta é de R$60.000, mas até a finalização dessa matéria a campanha tinha atingido R$1.720 apenas. No mês de julho os artistas Michele Cunha, Lucas Alberto, Luana Peixe, Mateus Moura, Fátima Sobrinho e Paulo Nascimento realizaram, respectivamente, as oficinas de Graffiti para mulheres; Ritmo, rua e a cena; Movimento e olhar; Cinema e Tarô; Elaborando o planejamento, o projeto e sua gestão e Teatro com bonecos para professores, para colaborar com a reforma do Casarão. Mesmo depois da data final, estipulada pelo Catarse, a campanha para salvar o Casarão

bora diretamente na manutenção

continua, através das programações culturais independentes, realizadas em parceria com diversos artistas de Belém-Pa.

Campanha

aumentam e que ameaçam comprometer as atividades regulares da casa.

O Casarão como um todo precisa de ação específica de reforma e restauro, que estamos buscando. São muitas as demandas, mas temos algumas prioridades:

3º O piso dos salões de ensaio e exposições - Salões que já abrigaram ensaio, palestras, exposições, cinema e até espetáculos... hoje estão precisando de reparos principalmente no piso de tábua corrida que está cedendo. Artista sem lugar pra ensaiar não dá!

1º A Fachada - Nossa porta de entrada para atrair o público está correndo risco de desabamento, esta é nossa prioridade. 2º O corredor - Lugar de passagem e de encontros do público e dos artistas que frequentam a casa... agora nosso corredor apresenta rachaduras e buracos que só

4º O anfiteatro - Quintal que respira arte! Este acolhedor espaço da casa já possui cobertura, mas precisa de um melhor sistema de escoamento para água da chuva (que não é pouca) e reforma do piso


Chuva da tarde

COLETIVO CASA PRETA “Vamos fazer o mundo mais do nosso jeito”. A frase dita pelo líder quilombola Zumbi dos Palmares é utilizada hoje pra caracterizar a atuação do Coletivo Casa Preta, existente há cerca de cinco anos na divisa entre as periferias dos bairros de Canudos e Terra Firme. Com a necessidade de trabalhar tecnologia, ancestralidade e a construção da identidade negra e amazônica, o Coletivo Casa Preta se insere na comunidade formulando projetos e atividades que discutam essas temáticas. Hip hop, grafite, artesanato, contação de histórias, oficinas, entre outras ações, são as formas que o Coletivo Casa Preta encontrou de (des)envolver arte, política e negritude na periferia de Belém. Vida longa ao Casa Preta!


Denise Corrêa

OCUPARTE Da inquietação e da vontade de levar um olhar diferente para a periferia, o Coletivo Ocuparte surgiu de forma colaborativa logo após a chacina ocorrida em novembro de 2014, no bairro da Terra Firme, e tem como objetivo retomar o que é da população por direito: as ruas, os bairros, a periferia e a cidade. Muita das vezes tomada por medo, insegurança, violência e preconceito. “Ocupando com arte”, o Coletivo tenta ressignificar os bairros de Belém por meio da disseminação da cultura popular e da ocupação de espaços que pertençam a todos e todas, para que a identidade e o orgulho de fazer parte destas comunidades sejam retomados pela população. Empoderamento cultural também é arte!


OS DECENTES JÁ FORAM ANIQUILADOS (Daniel Chagas) As vezes te crio em ilusões, onde tuas mãos me guiarão para além de intoxicações. Surgirias como um sorriso no leito doce da morte, redimindo o paraíso perdido. Mas ainda há sulcos secos entre a bota e o desgaste, longe da própria verdade. Caminhos oblíquos para lá, arqueados dentro de sonhos que aniquilam os desejos. Em noites de delírio dormias aqui, alegre, envenenando os lençóis. Era tarde, teu beijo trocado, teu corpo deitava perdido nas camas que construímos azuis. Entre luxúrias fugazes, mentes dominadas por mágoas, restam noites de desânimo para a lua.



NOTAS SOBRE O AMOR NA CAMA DE PROCUSTO (Filipe Santos das Mercês)

manto negro sobre a carne de jograis,

Acordei de um bom sonho

indistintamente tidos como tais,

e notei que jovens nuas não são,

estiveram mais pra comédia

como querem alguns,

e menos áptos a funerais.

a esperança na primavera.

Mais uma vez acordar do sonho

Nenhuma delas é igual,

Da noie em claro pra o dia-a-dia

Nem mesmo virá novamente,

E ver que entre as coisas que desejo

e os velhos que verem a jovem,

nada há de suprimir o beijo que não dei

em frente à academia ou à oficina

no homem que poderia ter amado

verão nela nada mais que a carne

sem pensar nas crianças corrompidas

E a moral dilacerada.

frente a anomalia do amor

Sob a sorte das vontades contidas

que cortamos, aparamos cabelos e unhas,

Ou pelo azar da própria vontade amputada

e pernas e braços,

Há, talvez, de continuar nua a primavera

para que possa ser depurado

Sem que dela se faça coisa errada

ao gosto de embustes quase sinceros

Sem que se deturpe o que era

de sujeitos mal amados.

Baseado em uma história mal contada...

É assim que se levanta do sonho

Mas acordar do sonho da poesia

Para sentir a vida simples

e perceber que rimos sem razão

E na saudade da floresta de Neruda,

é mergulhar na prosa em água fria

Que se entende nas copas e raízes,

pra sentir o frêmito da escuridão,

temer que só o homem espere

da pele que recobre a carne, o sangue

ou no inferno ou no paraíso,

Sobre o peito onde bate um coração

compreender que a realidade segue

que não lembra do tempo de glande

além do que vê dois olhos de olhar preciso.

mas já carvalho pulsa sobre os risos indistintos,

Para entender, talvez,

que nem hoje nem ontem,


que há mistérios entre os jovens, entre os homens e mulheres, que falam sobre essências e matizes que não dependem tampouco só da firmeza das raízes, mas de colocar à prova a paciência sob a catástrofe habitual São coisas sobre o amor na cama de Procusto inefável dor dos tempos de hoje, dos tempos de outrora, que por acaso a poesia me permite, num anacronismo bem-intencionado, gritar um grito sem palavras que expresse o quanto a nossa sorte pede a liberdade deste prisioneiro para que cresça o máximo que pode.


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