Na Cuia #5

Page 1

Edição 5

”A MELHOR

CHEF MULHER”

A FICÇÃO DE

DRIKA CHAGAS E O

ROBERTA SPINDLER

MUNDO DO GRAFITE

VACAS PROFANAS: O MOVIMENTO E A ARTE

A VOZ DELAS MULHERES DO CENÁRIO CULTURAL DE BELÉM DISCUTEM SEUS TRABALHOS E A SUA RELAÇÃO COM A ARTE


Editorial A

equipe da Na Cuia é composta por feministas e integrantes prófeminismo. Acreditamos na igualdade de salários e funções – tanto domésticas quanto profissionais -, na mulher como única detentora de posse do próprio corpo, na inserção política e social das mulheres em espaços de visibilidade. Também pensamos que as pautas das outras minorias que transpassam o movimento devem ser discutidas. A gente acredita em um monte de coisa que não temos espaço para listar. O fato é que, de certa forma, não estávamos contribuindo para essa igualdade. Nas últimas quatro edições da Na Cuia, entrevistamos 34 homens e 17 mulheres. É uma disparidade que precisa ser corrigida. A inspiração dessa edição veio do projeto “Entreviste uma mulher”, do site Think Olga, que estimula jornalistas a

produzirem matérias cujas fontes e personagens sejam mulheres. Muito do que é produzido artisticamente não é reconhecido, não pela falta de qualidade, mas pela falta de visibilidade. A segregação das mulheres em espaços relacionados à cultura acontece de diversas maneiras. Essa edição é um termo de compromisso com as artistas: estamos de olho no talento de vocês e vamos ajudar a divulgálo.

Juliana Araujo - Editora-chefe

Expediente

NA CUIA REVISTA CULTURAL Para contatar qualquer departamento da revista: nacuiarevistacultural@gmail.com @revistanacuia /nacuia REDAÇÃO Bianca Brandão, Caio Jesus, Juliana Araujo, Louise Lessa, Luciana Vasconcelos, Madylene Barata, Matheus Botelho, Stéfanie Olivier, Vitória Mendes CHEFE DE REDAÇÃO Matheus Botelho DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO Coordenação de Mídias Sociais: Ana Luiza Rocha Planejamento de Comunicação: Mariana Guimarães

DEPARTAMENTO DE ARTE & DESIGN Diretora de Arte e Diagramação: Lorena Emanuele Arte: Luana Lisboa DEPARTAMENTO DE FOTOGRAFIA Diretora de Fotografia: Bianca Brandão Fotógrafas: Louise Lessa e Madylene Barata REVISÃO E FINALIZAÇÃO Vitória Mendes Madylene Barata EDITORA-CHEFE Juliana Araujo


Edição 5 4 - Tamo Juntas no Pasto

por Bianca Brandao e Madylene Barata

12 - Lugar de mulher é na cozinha (se ela quiser) por Juliana Araujo 18 - A escritora debai~ por Mariana xo da ficçao

~ Guimaraes

26- Drika Chagas

por Matheus Botelho

36 - Feira do Livro Pa~ raense por Bianca Brandao 38 - Feira Internacional do Livro de Buenos Aires Foto: Madylene Barata

por Stefanie Olivier

42 - Agenda Culural

por ~ Bianca Brandao

Errinhos da #4

- A primeira foto da matéria Amor analógico saiu com a legenda errada. O correto é “Workshop de Estúdio Fotográfico 35mm com Faustino Castro” em vez de ““Compartilhando Experiências” com Bob Menezes e Mário Guerrero.” - Também na matéria Amor analógico, escrevemos “empliação” em vez de “ampliação” no parágrafo sobre a mesa de abertura da Semana.


Roda de conversa sobre “feminismos� no Solar das Artes. Foto: Madylene Barata.


Por Bianca Brandão e Madylene Barata

Tamo juntas no pasto Conheça o Vacas Profanas, um grupo de expressão cultural feminista que celebra a liberdade feminina através da arte.

A

Na Cuia é uma revista cultural e sabemos que não existe uma só “cultura paraense”, o que existe é um conjunto de costumes, gostos e identidades que se complementam de maneiras diferentes na individualidade de cada paraense. Assim é

também o feminismo. A palavra “feminismo” é utilizada para designar a luta feminina contra o machismo e o patriarcalismo presentes nas sociedades e pela emancipação da mulher. Mas não existe apenas um feminismo. Ele é múltiplo, diverso e possui várias vertentes.


1

2

1 - Cortejo do Flor de Mururé na Praça do Carmo. Foto: Madylene Barata 2 - Zine 2 do Vacas Profanas 3 - Confecção da vaca-bumbá por integrantes do grupo. Foto Madylene Barata.

O feminismo negro, por exemplo, agrega valores anti -racismo pois a discriminação e opressão sofridas pelas mulheres negras assume aspectos diferentes das sofridas pelas mulheres brancas. E assim por diante vão o feminismo das transsexuais, o das lésbicas, o das mulheres com pensamentos mais radicais, mais liberais, entre tantos outros. É desse modo que o feminismo geral se constrói, agregando diversas lutas dos mais variados tipos de mulheres, respeitando suas diferenças e apoiando as causas de cada mulher com base no respeito mútuo, empatia e sororidade*. O feminismo é a busca da libertação feminina, da não obrigação de seguir regras impostas socialmente, mas também da opção de agir como se quer. O feminismo é não sentir-se coagida a casar, ter filhos *Sororidade: é a união entre as mulheres, o ato de reconhecer-se como irmãs. Faz parte das bases éticas do feminismo.


3 e viver como dona de casa, mas é também ter o direito de escolher ser mãe ou esposa sem ser julgada por isso. Não é queimar sutiãs ou deixar crescer os pelos do corpo, é sentir-se dotada de autonomia para exercer ou não militância e para ter a aparência que desejar. É ter os mesmos direitos que toda e qualquer pessoa e salários condizentes com a função que se desempenha. É não sentir medo de sair sozinha pelas ruas a qualquer hora do dia ou da noite. É sentir-se respeitada, reconhecida e em pé de igualdade com as outras pessoas. É ter autonomia sobre o próprio corpo. É fazer suas próprias escolhas sem cobranças sociais. É viver longe de rótulos e estereótipos. Feminismo é liberdade.

sobre seus corpos. Em Belém, foi realizada a “Marcha Paraense em Cidadania pela Vida – Por um Brasil sem aborto” e um grupo de garotas decidiu opor-se a essa opressão realizando a “Marcha das Vacas Profanas pelo Útero Laico” simultaneamente. Nascia assim o Vacas Profanas, grupo que, atráves das diversas artes – dança, música, poesia, teatro -, luta contra a dominação patriarcal ainda existente em nossa sociedade e busca promover a liberdade feminina e a sororidade entre as mulheres, bases do pensamento feminista. Pelo direito de ser mulher como se quer. Mais tarde, em 2014, surgiu a ideia do cortejo junino e da confecção de uma vacá -bumbá em contrapartida aos Pela libertação da vaca cordões de boi-bumbá, geral Para muitos, o machis- mente protagonizados por homo já não existe na sociedade mens. A iniciativa, todavia, não atual. No entanto, quem tem acaba no Cordão Flor de Murude conviver com esses obstácu- ré - nome dado ao cortejo. Há los diariamente sabe que a ver- também um lado político de dade não é bem essa. O ano era discussão do papel feminino 2013 e segmentos da sociedade nas manifestações culturais. A brasileira ligados à religião or- própria ideia da vaca em opoganizavam marchas contra o sição ao boi já faz parte da aborto e o direito das mulheres desconstrução simbólica dos

elementos que caracterizam o patriarcalismo dentro da sociedade. Na metáfora do pasto, o boi é tido como o reprodutor e supervalorizado, enquanto a vaca, sendo quem dá o leite e alimenta, é posta de lado. Essa relação de desvalorização da fêmea é análoga à questão da desigualdade entre os gêneros nas sociedades humanas. E é essa desigualdade que o Vacas Profanas questiona.

Expansões

Expandir-se é direito! O cotidiano nos limita e sufoca. Libertar-se através da arte é vislumbrar-se, reconhecer-se no mundo e reconhecer o mundo em si. É fazer parte dele e agir sobre ele. As vacas profanas querem exercer esse direito de libertação, sem hierarquias e opressões. Daí o próprio coletivo acreditar que juntas, sem delimitações, podem somar muito mais e que construir “algo mais livre, sem o militarismo” pode favorecer a compreensão mútua de e sobre todas nós, mulheres. A relação com a música veio quando o coletivo, que já existia e tinha o mesmo nome,


4

4- Final do cortejo, em que os participantes, simbolicamente, queimam atitudes opressoras. Foto: Divulgação 5 - Zine 1 do Vacas Profanas

percebeu que o boi, símbolo da força masculina, dominava festivais juninos. “E onde está a vaca? (pensaram as vacas), foi ai que, há quase um ano atrás, as vacas fizeram um cortejo, guiando várias mulheres e profanando palavras de coragem sobre seus corpos e mentes. “Ver mulheres batucando já é uma resistência”, disse Inaê Nascimento. Algumas músicas são feitas pelas vacas e outras podem apresentar modificações em algumas estrofes. Tudo vai acontecendo de forma espontânea, e nesse caminho elas já têm músicas de resistência no ritmo de funk, brega, carimbó e outros. Ocupar as ruas e outros espaços, batucando e entoando algumas (quase) orações sobre a força da mulher, assusta e/ou encanta quem vê passar, e ai se cria o espasmo e a notoriedade sobre o lugar que as mulheres adam e devem estar ocupando. Inaê Nascimento conta que elas não querem debater,

discutir e compartilhar apenas entre elas aquele conhecimento: “a gente quer transcender e essa transcendência vem através da nossa subjetividade, através da arte”. As vacas criaram, assim, o fanzine, uma expressão artística do coletivo, resultado dos encontros e trocas de saberes. É uma forma de materializar pensamentos, críticas e dores em forma de poesia, tornando-a acessível as outras mulheres. As vacas também fazem cineclube, ocupam e resistem junto com artistas o Solar da Beira e dialogam com erveiras do vêr-o-pêso. Buscam essa essência do saber natural e tradicional, passado entre gerações de mulheres. O objetivo não é criar algo novo, é, principalmente, resgatar saberes antigos, apagados pela virilidade masculina: “parece que houve um grande genocídio com os saberes femininos, a gente vive num mundo só com o olhar do homem” (Luana Weyl). “A arte é um dos grandes comunicadores; quando a galera vê que tem arte a galera vai resistindo e re-existindo” (Marina Trindade). A busca então é fazer com que a mulher enxer-

gue para dentro dela mesmo e para o conhecimento que vem das outras. Por isso, assuntos como aborto, violência contra a mulher, ginecologia autônoma, autodefesa são sempre colocados em rodas de conversas, que se intercalam com as subjetividades das vacas, resultando em música, poemas e muita energia, ajudando cada uma a mergulhar, espontaneamente, no universo complexo dos feminismos.

Ser mãe, vaca, santa e puta

Cada uma tem uma relação com as vacas, cada uma percebe uma mudança em si depois de compartilhar suas inquietações com as outras, cada uma relata o sentimento de estar em união para desmistificar a fraqueza da mulher inventada e mantida pela sociedade machista. Com pontos de vistas diferentes e, ao mesmo tempo convergentes, as vacas acreditam na proposta de experimentar e se libertar por meio da arte e, assim, concentram uma energia, que faz com que todas se sintam fortalecidas e ouvidas depois dos encontros. “A relação das vacas é a força e a energia feminina na


5


6

7

rua ou onde puder ocupar”, disse Erika Boni. Desde que começou, Inaê Nascimento diz que consegue enxergar melhor as questões de gênero e que a energia do grupo lhe possibilita intervir nos problemas cotidianos com muito mais serenidade e força: “Eu comecei a enxergar coisas que eu não via como machismo. A gente começa a ampliar o foco ou consegue enxergar as sutilezas. E não só enxerga isso, mas percebe que a gente não está só, que tem outras mulheres do nosso lado e que essa união fortalece a gente”. “Algumas meninas que fundaram o coletivo, as vezes não podem participar, mas a gente sente a energia delas”, disse Marina Trindade, que se identificou com o coletivo quando percebeu que seria algo livre e mantido por mulheres, que tinham mais a inteção de compartilhar saberes do que propor relações de subordinação: “não é um grupo fechado, é um grupo de passagem, de transição e de emponderamento, completa. É um espaço espontâneo, sem hierarquias e regras. O coletivo apresenta tanto um fluxo de pessoas, quanto um

fluxo de ideias que, no final, caminha para o mesmo fim: desconstruir todas as formas de opressão.

Vacas, profanem-se!

O editorial do segundo zine das Vacas começa com a seguinte frase: “Todos os dias nos dizem que nossa luta há muito não faz sentido, que o mundo é outro e o machismo foi superado.” E é claro, a luta pela igualdade de diretos entre homens e mulheres avançou de modo extremamente significativo nas últimas décadas e nós, mulheres do século XXI, devemos enorme gratidão àquelas que vieram antes de nós, que lutaram e sofreram pela causa que outrora foi delas e hoje é nossa. Entretanto, a luta não acabou. O machismo ainda se faz presente em nosso dia-a-dia e assumimos o dever de nos opormos a ele sempre. O feminismo é libertador e aceita a diversidade. Assim é também o Vacas Profanas. Qualquer mulher pode ser uma vaca: jovem, velha, negra, branca, indígena. O grupo é aberto e aceita toda e qualquer pessoa disposta a somar-se a essa luta tão necessária.

6 - Integrantes do grupo tocam instrumentos e entoam canções. Foto: Bianca Brandão. 7 - As vacas participam do Solar das Artes, ocupação do Solar da Beira. Foto: Madylene Barata.


Mais, mais, mais... Grupo de Discuss達o https://www.facebook.com/groups/742404765773186/ Facebook https://www.facebook.com/vakasprofanas Blog http://vacasprofanas.noblogs.org/ Zine #1 http://issuu.com/rapsodiaboemia/docs/vacas_zine Zine #2 http://issuu.com/luahsampaio/docs/zine_das_vacas_paginas_separadas.do Soundcloud https://soundcloud.com/vacasprofanas/


Sônia mostrando a preparação de um calzone passo-a-passo. Foto: Juliana Araujo


Por Juliana Araujo

Lugar de mulher é na cozinha se ela quiser

Listas com nomes como “A Melhor Chef Mulher do Mundo” precisam parar de acontecer.

A

última lista de “Melhor Chef Mulher” do Maison Veuve Clicquot, que elege uma mulher com destaque na gastronomia, saiu no início de maio. O fato de essa lista ser necessária - pois nas de “chefs” é difícil entrar qualquer mulher - é curioso, justamente por

estarmos acostumados com a expressão “lugar de mulher é na cozinha”. Por que a visibilidade dessas profissionais continua a ser negada na alta gastronomia? E o que a glamourização da profissão tem a ver com poder e desigualdade de gênero?



1 - Pizzas produzidas pela turma de Pizzaiolo do SENAC. Foto: Jualiana Araujo. 2- “Eu me preocupo com isso do glamour que começou a ter. As pessoas não se ligam na responsabilidade que tem você alimentar as pessoas”. Foto: Juliana Araujo.

A sistematização da dita alta gastronomia, pensada por Auguste Escoffier (que fazia apologia clara à sua crença de que homens são melhores cozinheiros) serviu para resignar as mulheres à cozinha da casa. “Escoffier estava ocupado em definir um ofício do qual não participariam as mulheres e, por isso, devia se ocupar do “lugar” da mulher na sociedade, reforçando a ideia de que a ela estava reservada a família, não a indústria hoteleira”, ex-

plica Carlos Alberto Dória, no artigo “Flexionando o gênero: a subsunção do feminino no discurso moderno sobre o trabalho culinário”. A culinarista Sônia Santos, professora do SENAC, começou a amar a cozinha muito cedo. “Eu tinha o olfato muito bom e gostava de estar lá, era o meu ambiente preferido da casa”, declara. “Até mesmo com brinquedos, quando eu ganhava panelas e fogões ficava muito feliz. Não era a mesma coisa de ganhar uma boneca, um bebê”. Sônia foi trabalhar cedo. Com 14 anos pegou o primeiro emprego em casa de família, para cuidar de crianças. Com culinária, ganhou um carrinho de um de seus patrões. Ela vendia doces, salgados, sanduíches e, depois de algum tempo, marmitas. A sua história de profissionalização começou no SENAC mesmo: “Eu vim fazer o exame do meu primeiro filho, passei aqui na frente e as inscrições do curso de cozinheiro estavam abertas. Eu fiz. Quando passei que eu fui ver que a mensalidade era 100 reais, e na época eu não tinha como pagar”. Sônia conseguiu um desconto, mas ia e voltava das aulas à pé. Hoje ministra módulos em todos os cursos de culinária do SENAC e faz parte do programa ProChef, da CIA (Culinary Institute of America). Contudo, a culinarista se recusa a se denominar chef. “Existe uma hierarquia dentro da cozinha. Tem aluno meu que sai daqui, compra uma dólmã [vestes que indicam alta patente na hierarquia da cozinha] e inscreve chef Fulano. E não é assim, você tem que trabalhar”. Para entender a deficiência de mulheres na alta gastronomia é preciso olhar para o outro lado: quando e como os homens entraram na cozinha? De acordo com Carlos Dória: “A condução ideológica da culinária ocidental se torna plenamente masculina quando se recrutam cozinheiros para as cortes ou quando começam a se propagar os restaurantes nas grandes cidades. Mas mesmo

antes disso, os principais livros de difusão da cultura culinária são de autoria masculina”. O que quer dizer que, seja trabalhando fora de casa, seja criando conteúdo sobre o assunto, quem dominava a cozinha era o homem. No restaurante e pizzaria Xícara da Silva, contudo, quem manda na cozinha é a Dona Norma. Norma Oliveira, antiga cozinheira da casa dos pais da proprietária do restaurante, é uma senhora lacônica, que pareceu bem intimidada pela minha presença. Apresentei-me informalmente, tentei fazer com que prolongasse as respostas. Perguntei à dona Norma qual o prato que ela mais gostava de fazer e a cozinheira soltou uma gargalhada, “Todos!”. Essa resposta pode resumir seu trabalho: comida boa é aquela feita com amor. O Xícara precisa de uma gerência na cozinha em harmonia com a pizzaria, para que os pratos cheguem à mesa ao mesmo tempo. Portanto, como o trabalho exige certo comando, dona Norma foi eleita como a chefe da cozinha. Rute Nogueira, a dona do estabelecimento, explica como funciona a relação do restaurante com o título de chef: “Hoje tá muito cheio de glamour. E no Xícara nós começamos com cozinheiros. É uma casa sem chefs, é uma casa de cozinheiros da terra. Não veio ninguém de fora, não veio ninguém pra fazer o cardápio”. O cardápio é uma construção coletiva da cozinha, como diz Rute. Os clientes sugerem a inclusão de pratos, ou a equipe percebe a possibilidade de um novo acompanhamento, e são feitos diversos testes até o prato ser incluído no cardápio. É diferente de como Norma trabalhava na cozinha doméstica:” Aqui é tudo na equipe, é todo mundo entrosado, um ajuda o outro. Pra mim, eu me senti até privilegiada. Eu nunca tinha trabalhado em restaurante, então acho que é ótimo”.

Ambiente hostil

Sônia conta que nenhum dos dois homens com quem


1

2

foi casada aceitou sua inserção no mercado profissional. “Eu trabalhava em buffet, chegava tarde em casa. Eles implicavam, achavam que não estava trabalhando. Sofri até retaliação da família, não me convidavam para as festas, diziam que eu só comia “comida boa”, e não tem nada a ver”, conta. Com as turmas do SENAC e o próprio buffet, a culinarista diz que precisou escolher: “ou eu trabalhava, ou tomava conta de homem”. Além de ser formada pelo SENAC, Sônia estuda nutrição e se preocupa demais com a manipulação dos alimentos. “Eu me preocupo com isso do glamour que começou a ter. Toda a novela agora tem um chef. Mas as pessoas não se ligam na responsabilidade que tem você alimentar as pessoas. As DTA’s [Doenças Transmitidas por Alimentos] tão aí e a gente tem que ensinar os alunos a ter esse cuidado”, explica.

O prêmio do Veuve Cliquot tem a intenção de premiar quem se destaca neste mercado ainda tão (surpreendentemente!) machista. A intenção não é ruim. A mulher que inspirou a categoria, Madame Clicquot Ponsardin, cuidou e fez prosperar a empresa de vinho e espumantes do marido quando ele faleceu. O que choca é que, ainda hoje, listas como esta sejam necessárias para dar destaque ao trabalho de mulheres, por tão poucas aguentarem o “ambiente hostil das cozinhas”. Quando pergunto à Rute se ela gosta de cozinhar, a resposta é afirmativa, mas sem escapar do discurso da maioria das cozinhas de restaurante. “É muito difícil pra mulher, não é? Cozinha é muito quente. Eu cozinho em casa, em um final de semana, mas todo dia é muito desgastante”, explica. Ela também diz que tem duas mulheres, além de Norma, na cozinha, que entram mais cedo

e saem mais cedo, “pra poupar elas mesmo. Mas a Norma, ela é incrível, o paladar é único”. Essa crença permeia o ofício. Dória também comenta sobre o fato, ao dizer que é muito difícil analisar a excelência das mulheres cozinheiras, porque a própria figura do chef - o criativo, o que domina certas técnicas e estilos culinários - é masculina, o que desencadeou a rejeição inicial das mulheres pelo trabalho em restaurantes. “O contra-discurso opressor nesse domínio é também muito claro: trabalho de cozinha é coisa árdua, não é para mulheres”, diz o pesquisador. A inspiração para a personagem Colette do desenho Ratatouille, Hélène Darroze, foi eleita a melhor chef esse ano. Então encerro esta reportagem com uma citação de sua versão animada: “Quantas mulheres tá vendo nesta cozinha? Sou a única! Por que será, hein? Porque gastronomia tem uma


3

hierarquia antiquada de regras escritas por estúpidos e velhos, por homens! Regras criadas para impedir que as mulheres entrem neste mundo! Mas eu ainda tô aqui!”

1 - Norma Oliveira, a Dona Norma, é chefe da cozinha do Xícara. Foto: Juliana Araujo. 2 - Rute Nogueira, proprietária do restaurante e pizzaria Xícara da Silva. Foto: Juliana Araujo. 3 - Rute sobre o Xícara: “É uma casa sem chefs, é uma casa de cozinheiros da terra”. Foto: Juliana Araujo.


Roberta Spindler, autora de A Torre Acima do VĂŠu. Foto: Roberta Spindler.


Por Mariana Guimarães

A escritora debaixo da ~ ficçao

Roberta, que começou suas aventuras em mundos fantásticos desde cedo, diz que é preciso uma maior união dos escritores para fortalecer o universo fantástico nacional e regional, e é otimista em relação aos leitores jovens no Brasil


1

Escritora, blogueira, vlogueira, podcaster e publicitária, Roberta Spindler é apaixonada por literatura desde criança. Quando perguntei que livro ela gostaria de ter escrito, respondeu Jurassic Park: “É um livro genial, já reli umas dez vezes”, sobre o exemplar que ocupava sua cabeceira na infância. Antes de lançar seu primeiro livro, Contos de Meigan - com a amiga Oriana Comesanha em 2011 -, escrevia fanfics (criação baseada em histórias já existentes) de Arquivo X, e em um processo natural, foi sentindo a necessidade de atender à sua voz como escritora e de fazer algo próprio. Roberta contou que queria escrever para jovens, mas não pensava exatamente numa faixa etária. “Me identifico com histórias de aventura e temáticas não necessariamente adultas, mas cada livro fala por si, não tem uma barreira

exatamente”, explica. Uma das coisas mais interessantes na ficção científica é o fato de usar problemas atuais e elevá-los a extremos como maneira de nos fazer notar e refletir sobre nossos problemas. Em A Torre Acima do Véu (2014), seu segundo e mais recente livro, uma névoa venenosa invade o mundo. Nessa distopia, ninguém sabe as causas dessa névoa, mas as poucas pessoas que conseguiram sobreviver viviam em Mega Edifícios – comandados pela Torre - onde uma nova sociedade se reestruturou e tentava lidar com o caos, as doenças e a escassez de alimento, espaço e sonhos. Para a autora a humanidade pode, infelizmente, chegar a esse ponto, “As obras de distopia, um ramo da ficção, são tradicionalmente pessimistas e mostram um futuro ruim, onde as pessoas normalmente

vivem uma realidade opressora. Eu espero que nós não cheguemos a esse ponto, e essas histórias servem justamente para abrir os olhos e fazer os leitores se questionarem sobre de que forma podemos agir para impedir essa realidade.” A autora brincou que não viveria num mundo distópico como os dos livros Jogos Vorazes, Admirável Mundo Novo. “E em Fahrenheit (451) então, que queimam livros, eu quero distância. ” E retomou, “Mas se fosse em um mundo de fantasia, com certeza gostaria de viver na Terra Média”, fazendo referência ao universo de Senhor dos Anéis, um dos títulos preferidos de Roberta, que junto com as Sagas de Fronteiras do Universo, Otori e Guerra dos Tronos, a influenciaram muito. A protagonista de A Torre Acima do Véu, Beca, é uma personagem forte, inde-


1 - Planta da Zona da Torre. Foto: Créditos na Imagem. 2 - Beca. Ilustração: Fábio Nahon. Cores: Andre Ciderfao

pendente, e está se aventurando a todo momento, o que é instigante, já que segundo uma pesquisa da UnB - 2012 - coordenada por Regina Dalcastagnè, apenas 37,8% dos personagens são mulheres. Sendo assim, a autora respondeu ao porquê da escolha de uma protagonista feminina: “A ideia veio de um sonho em que a cena parecia muito com a do início do livro, que era dela procurado alguma coisa em um lugar cheio de sombras... Ali era uma mulher, então era algo que já tinha que ser.”, e completou dizendo que queria uma personagem forte, segura de si e que não se deixasse levar pela opinião dos outros, mesmo num ambiente tão hostil. Apesar da predominância masculina na literatura ficcional, Roberta Splinder enxerga uma mudança positiva no cenário, “Graças às pautas de diversidade e representatividade, muitas mulheres estão conseguindo achar sua voz e espaço”, e acredita que quanto mais essa discussão for abordada e as pessoas forem tomando consciência sobre a questão de igualdade de gênero, as coisas vão melhorar. Se tratando do Norte, o gênero é raro tanto para homens quanto mulheres. A autora diz que conhece muitos jovens que escrevem, e até publicam, mas não levam os projetos adiante. “Falta os escritores se conhecerem mais, se unirem”, diz. Com o avanço das tecnologias de hoje, é possível explorar o mundo literário em diversas plataforma, como os podcasts, blogs e vlogs. Mas como as redes sociais, por exemplo, influenciam nesse consumo de literatura? Roberta afirma que as redes se tornaram

2


3 4

uma importante ferramenta para o autor nacional, principalmente os blogs literários, que apesar de não alcançarem a todos, consegue despertar o interesse dos jovens, sem esquecer que a escola é primordial como agente nesse processo de formação de leitor. “Com as redes, eu posso me comunicar com todo o Brasil; elas fazem o mercado crescer e gerar comentários sobre literatura”. Falando sobre os próximos projetos, Roberta já começou duas outras histórias bem


5

diferentes das dos seus livros anteriores, sendo que uma delas já está engatilhada e talvez saia esse ano. “Todo mundo fica me pedindo ‘pelo amor de deus’ para escrever uma continuação da Torre, por conta do final, e já estou com planos para construir mais uma história nesse universo.” Roberta Spindler, que agora está lendo O Herdeiro do Império, uma trilogia de Star Wars, vai participar da XIX Feira Pan-Amazônica do Livro – no estande dos escritores pa-

raenses -, que começa dia 29 de Maio e do Animazon que ocorrerá no inicio de Julho, com a segunda edição de A Torre Acima do Véu, que terá ilustrações caprichadas dos personagens. Precisamos de mulheres conquistando sua voz, produzindo e representando outras mulheres, e só assim teremos um universo mais diverso. Mostrar que é possível escrever ficção, um ambiente predominantemente masculino, é um dever e uma prova de que podemos todas nos arriscar sobre o véu.

3 - Nevoa Y. Ilustração: Fábio Nahon. Cores: Andre Ciderfao 4 - Roberta Spindler no lançamento de A Torre Acima do Véu. Foto: Divulgação. 5 - Capa do livro de Roberta. Foto: Divulgação


Por Luciana Vasconcelos

~ Casa de botao pro amor morar

Uma tentativa sincera de converter em palavras o feminismo de uma mulher que nunca se achou t達o feminista assim


Eu tô bonita?”, quer saber vovó. Hoje é aniversário dela. Me viro e olho. Bem atentamente. Na verdade, passo meio segundo contemplando. Mas não quero que ela perceba, então disfarço. “O batom tá borrado aqui no cantinho”, aponto, envergonhada. Ela ri, os cantos dos olhos se enrugando daquele jeito bonito dela. E sinto saudades de um tempo que ainda não vivi. Vovó casou cedo. Teve minha mãe, a filha mais velha, logo aos quinze anos. Só algum tempo depois, criando quatro filhos, foi que ela decidiu muitas coisas de uma vez: terminaria o ensino médio, se formaria em universidade pública, trabalharia e descobriria mais coisas para fazer. E ela fez. Tudo isso. Tudo o que quis. E mais. Vovó escolheu ser professora e hoje eu entendo, pelo menos parcialmente, o porquê: ela sempre quis ser parte de algo maior. Talvez ela tenha conservado esse tempo todo um desejo - inexplicável e inalcançavelmente atávico - de se juntar à estranha mecânica do mundo e fazer rodar, pelas próprias mãos de mulher, muitas engrenagens já enferrujadas. Durante esse momento epifânico, ela também resolveu aprender tudo aquilo que queria saber. Vovó, determinada, ansiava ganhar o próprio dinheiro e, consequentemente, a própria independência. Ela se matriculou em aulas de confeitaria doce e salgada, crochê, corte e costura. Numa dessas, aprendeu a fazer casa de botão. Eu a observava habilidosa, com o olhar atento de menina arteira, e descobri que, de alguma forma, sempre quis saber fazer casinha para botão morar. Mas queria fazer igualzinho ela. Vovó preparava comidinhas para festas. Quando ti-

nha encomenda, como ela chamava, eu ficava toda felizinha. “Encomenda” significava muitas coisas: massa e cobertura de bolo para raspar, docinhos para moldar (e roubar alguns no processo), afinar massa de pastelzinho na máquina de prensa (o que rendia alguns acidentes com trigo por toda a casa), torcer para a coxinha sobrar (e comer uma ou duas assim que saíssem quentes), abrir forminhas de papel (arrumando cada uma metodicamente para receber o doce), apertar o botão da batedeira, despejar leite condensado na panela. A festa começava já dentro de mim. Houve uma época em que vovó vendia “chopp” de frutas. Mamãe os carregava em grandes sacolas de pano, produzidas e enfeitadas com desenhos e pinturas também feitos com capricho por vovó. Só descobri isso dia desses. Mamãe me contou. Fiquei pensando se há alguma coisa boa nessa vida que vovó ainda não fez. Talvez não. Mas vovó não parou. E acredito que é muito cedo para ela. Continua descobrindo e fazendo coisas: yoga, pilates, teatro, viagens, frequenta academia, dirige e cuida da alimentação. Já está nos planos dela se inscrever em um curso de informática assim que abrir uma vaga. Vovó é muito sociável. Conversa com todo mundo em qualquer lugar: na fila do banco, no elevador, no estacionamento, no supermercado, no consultório médico, nas lojas, no restaurante. E gosta de todo mundo. Uma vez, quando teve oportunidade, vovó alugou o prefeito da cidade por vários minutos quando o encontrou na rua. Deu conselhos, sugestões, puxões de orelha e tudo. É uma história muito engraçada. Talvez ela te conte um dia. Ainda hoje, vovó faz bo-

los e tortas nos almoços em família, mas ela aposentou a venda. Na verdade, o que ela gosta mesmo de fazer é costurar. Essa arte ela nunca vendeu. Vovó faz vestidos para ela mesma e veste as crianças da família com roupinhas de princesas - até as bonecas posam nas estantes com peças nascidas direto na imaginação e dos dedos mágicos de vovó. As casas dos filhos são cheias de roupas feitas ou melhoradas por ela, tapetes de sala e de quarto, roupa de cama, panos de prato e de estante. Essas casas também são repletas de conselhos. Lembro de como, numa tarde fria de domingo, me encolhi ao lado dela na cama como um feto e me enrolei toda no lençol, soluçando. E chorei muito, de fazer da vista cachoeira. Chorava por um cara. Ela olhou para mim com aqueles olhos de águas profundas e - nem lembro se fez cafuné - me disse as coisas mais tranquilas que já ouvi. Me fez perceber que cara nenhum deve ter esse poder sobre mim. Me senti burra. E me senti muito sábia. Dia desses vovó disse, a cara fechada igual tempo de chuva e a voz irritada que nem bronca de mãe: “Esse mundo é muito machista!”. E é verdade, vó. Mas também por isso o mundo precisa de gente - e não só mulheres - assim, mais como a senhora. Pessoas que acreditem na “igualdade social, política e econômica dos sexos”. Pessoas irritadas com as injustiças e que reconheçam que as mulheres são “tão humanas quanto os homens”. E devemos ser respeitadas por isso. Obrigada, vó, por nunca ter capitulado. Obrigada por nunca se desculpar ou sentir vergonha por ser mulher e ser forte. E por continuar.


Drika Chagas. Foto: Louise Lessa


Por Matheus Botelho

Com a lata na ~ mao: Drika Chagas

Drika Chagas é uma artista plástica, graduada pela Universidade Federal do Pará. Uma grafiteira, uma mulher. Que levas nos traços e cores dos seus grafites, delicadeza e feminilidade. Num meio dominado por homens, a presença feminina é fundamental para a igualdade de gêneros nas profissões e nas artes.


1

2

3

E

la já participou de 17 exposições, coletivas e individuais. Em 2010, foi contemplada com o Prêmio Cultura Hip Hop 2010 – Edição Preto Ghóez pelo Ministério da Cultura e neste ano foi a única artista paraense convidada para a 3ª edição da Bienal Internacional Graffiti Fine Art. Conheça um pouco mais a realidade e a visão de uma mulher, uma profissional e uma artista que vive num meio predominantemente masculino. Com a lata na mão: Drika Chagas.

estilos de letras entrelaçadas. E na mesma hora eu falei: “eu quero aprender a fazer isso”. Na época eu falei com um amigo: “Pô, grafite, vamos fazer e tal?” e ele: “Tá! Vamos”. E a gente foi procurando os movimentos, os encontros, as oficinas e a gente foi se inteirando, mas muita coisa veio de uma maneira muito independente de você descobrir o estilo, descobrir como é que funciona o manuseio do spray, de como é que você vai usar esse espaço, de como é que você vai interagir, onde você vai interagir. Na NC: Quando e como começou época, quando eu comecei, era o teu interesse pelo grafite? como hobby, final de semana, brincar, conversar com os amiDK: Esse interesse veio com gos e pintar, então era um neuma revista. Na época eu tinha gócio bem tranquilo. 14 para 15 anos. Foi quando eu peguei pela primeira vez a NC: Quando tu decidiste ser revista chamada Grafite Mun- grafiteira, trabalhar com isso do Bomb, que era uma revista mesmo, tiveste o apoio da tua produzida pela editora Abril na família e amigos? época e tinha a curadoria pelo Binho Ribeiro, que é um dos DK: Eu nunca tive nada que precursores do grafite no Bra- me desanimasse, que me botassil. Então a primeira vez que eu se para trás e falasse: “Não, isso vi a revista eu me encantei logo não é para fazer”. Pelo contrápelo wild style, que são aqueles rio, acho que a minha família

sempre me apoiou em qualquer decisão minha, até porque meu pai pintava quando era mais novo e eu fiz o curso de artes, então a minha família nunca foi um empecilho para isso, os amigos muito menos. NC: Como é pra ti, sendo mulher, participar de um meio dominado por homens? Como é essa tua relação? DK: Tem a relação da atitude, porque não são todas as mulheres que tem a atitude de subir num andaime de tantos metros e ficar na rua pintando até tarde. Por exemplo, eu estava pintado nesse final de semana, eu e a menina que me ajuda, que é a Cris. Estávamos só nós duas na rua pintando e isso já era quase nove horas da noite. É normal a gente ficar até tarde. Aí veio um cara, morador de rua, e começou a brigar, essas coisas todas! Se fosse outra mulher ia surtar ali, ficar com medo. Então a gente passa por várias situações, mas eu acho que isso é muito pouco do que a gente consegue como


4

1 - Grafitagem. Foto: Louise Lessa 2 - Latas de spray de Drika. Foto: Louise Lessa 3 - Entrevista com Drika Chagas. Foto: Louise Lessa 4- Parede feita com latas de spray. Foto: Louise Lessa

um todo. É bom ser mulher, eu adoro! Porque você está na rua ali e as pessoas se preocupam: “Ah, e aí? O que você está fazendo?”. Então, já vêm com outra abordagem pra cima de você, né. Como os meninos falam, às vezes, eles estão pintando na rua e vem um segurança, já vem como uma abordagem mais agressiva. E pelo fato deu ser mulher a abordagem já é mais tranquila, já olha com outros olhos. NC: E tu já sofreste algum preconceito? DK: Nunca senti algo que, como eu te falei que, me botasse para baixo, que eu visse como algo preconceituoso. Nunca passei por um momento desses. O preconceito que, às vezes, eu sinto é o estranhamento das pessoas de ver uma mulher na rua com uma lata de spray na mão. De a pessoa olhar e di-


1 - Grafitagem de Drika Chagas na parede. Foto: Louise Lessa 2 - Drika Chagas grafitando. Foto: Divulgação

zer: “o que aquela menina está fazendo na frente do muro?”. Mas nada muito agressivo. Até porque eu acho que a gente está vivendo um movimento, está passando por uma fase onde as coisas estão mais abertas, as pessoas discutem mais. A internet está ai para mostrar isso, então eu acredito que o momento que a gente está vivendo é um momento muito interessante para quem está produzindo qualquer tipo de arte. NC: Quais são as tuas influências, como artista, no trabalho que tu fazes? DK: Eu sempre comento que a minha influencia é o meu cotidiano, o meu dia-a-dia. Então, às vezes, eu andando na rua, eu pego uma referência de alguém, uma expressão de


alguém que está na parada de ônibus, às vezes, eu conversando com outra pessoa. Às vezes você está vendo um filme, está conversando um assunto com os amigos e é impressionante como quem trabalha com arte não para nunca de pensar. É um negócio muito frenético! Eu sempre falo que eu gosto de usar muita coisa da nossa região, muita coisa que eu falo é no sentido desse misticismo, desse sincretismo que a gente carrega, dessa magia que tem aqui, nessa parte da Amazônia. Então, eu gosto muito de pegar um pouco dessa referência. NC: Quando foi que tu começaste de verdade nessa profissão? DK: Ah! Foi em 2009 quando eu recebi um convite para fazer uma exposição. Na verdade era para fazer parte de uma exposição, só para dar um take na exposição de dois amigos, que era do Ulisses e do Diogo Parente, que estavam trabalhando com fotografia. Eles estavam com um trabalho bem interessan-

te. Eles saíram viajando pelo Brasil e fora do Brasil e foram fotografando várias paisagens, que falavam do ambiente natural. Aí eles me convidaram para fazer uns grafites em cima dessas fotografias, uma releitura. Ai eu acabei interferindo na galeria, pintei toda galeria. Eu tive um resultado muito positivo, porque foi a primeira vez que eu estava expondo um trabalho, estava desenvolvendo uma técnica, que eu era muito nova. Na época era um estilo meio despixelizado que eu estava fazendo, uma coisa meio fragmentada e eu tive que me perguntar se realmente era isso que eu queria, porque estava meio que entrando em conflito com o meu trabalho. Na época eu era concursada da prefeitura de Belém. Ai foi o momento que eu falei: “ou eu vivo de uma coisa ou de vivo de outra, porque senão eu não vou conseguir fazer os dois”. E foi a época que resolvi me dedicar a isso e seguir em frente. Então eu digo que foi em 2009. Final de 2009 para 2010 que eu realmente me entreguei.

NC: Como é que tu fazes a transposição do grafite para as galerias? Como tu vês essa relação? DK: A maioria dos grafiteiros que eu conheço está nessa transição: rua e galeria. Agora sim, eu reconheço que o grafite vem das ruas, surgiu com os guetos, e o mais importante quando ele surge, naquela época final de 70, início de 80, ele já vem com essa carga de ativismo político né, principalmente aqui no Brasil, com a época da ditadura a gente teve vários manifestações, várias coisas usando o spray e a parede para se manifestar e botar os seus ideais ali. A essência do grafite é a rua, é de você ocupar um espaço que está vazio, ocioso, e você dar uma cor, dar uma vida e tentar sensibilizar as pessoas com isso. Esse é o papel principal do grafite hoje. Mas o que acontece? As pessoas que fazem grafite estão com uma criatividade aí né, aflorando e botando para fora. Então por que não botar isso numa galeria também? Só que existe a diferença: existe a


arte que está ali na rua acessível para todo mundo e existe a arte da galeria. Passarinho na gaiola deixa de ser passarinho? Não deixa, então é quase que o mesmo sentido. Você está ali delimitado a um espaço? Você está né, porque na rua você tem “n” possibilidades de explorar e botar sua ideia, mas na galeria você tem um espaço definido, você tem um período certo para acontecer aquilo. Enfim, a gente está num país e numa cidade onde a cultura não é muito cultivada, apesar de a galeria ser aberta ao público, as pessoas ainda tem um receio de entrar na galeria. Ai você tem aquele limite. Ela também não deixa de ser uma arte efêmera, porque vai chegar um momento que ela vai se apagar. Se você pinta a parede, vai chegar um momento que ela vai sumir. São duas coisas completamente diferentes. Hoje o grafite não está mais preso a essa coisa só do ativismo político. Ele atingiu vários suportes. Na verdade você puxa vários conceitos. Tem vários estilos de grafite. Você tem desde o style até o de personagens. Você tem um universo visual de referencias, como cada artista tem um estilo completamente diferente um do outro, por causa da sua cultura, da sua história. Se você pegar o grafite do Brasil, só do Brasil, você vai ter ai vários estilos completamente diferentes um do outro. Então eu acho que os dois meio que se complementam, mas eu vejo que o grafite é da rua, a essência verdadeira dele é essa, é a rua, é o público. É de você interagir com as pessoas que estão passando ali; da pessoa se sensibilizar, parar ou não. Pode puxar uma raiva, mas pode puxar algo bom da pessoa, mas ele movimentou a pessoas ali naquele curto momento que ela passou e viu. Então acho que os dois são essenciais.

mulher”. Eu acho que quando você tem um trabalho, você acaba refletindo nele o que você é. E eu fui criada no meio de várias mulheres. Eu tenho cerca de 7 tias que eu sempre convivi, que eu sempre estive ali perto. Então acho que vem dessa referencia da família, do convívio com esse universo que, eu acho que precisa também ser mostrado, pelo fato do grafite ser algo muito masculino né. Acho que é legal você ter algo também delicado, algo que você faz com mais cuidado, com feminilidade mesmo. Acho que é legal para dar esse contraste nesse universo que tem vários estilos. NC: Qual é a tua relação com esses coletivos de grafite que nascem na periferia? DK: Eu nunca fiz parte de nenhum coletivo, na verdade. Eu gosto mais assim: de interagir com a pessoa e fazer uma pintura e depois fazer com outro, porque quando você fica num coletivo, às vezes, você fica muito preso a só pintar com esse coletivo. Acho que pelo fato deu estar viajando, fazendo vários trabalhos, acaba que eu gosto de pintar com vários tipos de pessoas diferentes. Então, por exemplo, esse final de semana eu pintei com o Ed que é do Cosptinta, mas daqui a uma semana eu posso estar pintado com outro coletivo de meninas da periferia tal. Então, como eu posso dizer... Eu não gosto de me prender, de me rotular. Eu gosto de botar o meu trabalho para fluir e interagir com vários tipos de pessoa e vários tipos de estilo. Eu prefiro ficar interagindo com todos esses coletivos do que me prender a um só. Acho mais interessante.

e coloque ali o seu sentimento, as cores que você quer usar. A pessoa tem que acreditar nela. Não deixar com que outras pessoas... “Não faz isso, porque não dá futuro”. Acho que a pessoa não tem que se prender a isso. Ela tem que se prender no que ela gosta de fazer, porque, às vezes, a pessoa se tranca. Ela não desenvolve um trabalho porque tem medo. Acha que não vai ganhar dinheiro, acha que não dá para viver disso e acaba desistindo. Tenho vários amigos que começaram comigo, mas não botaram fé, não acreditaram no potencial deles e acabaram largando e fazendo coisas hoje que não gostam. Então eu sempre digo para as pessoas acreditarem mesmo até NC: O que tu tens a dizer a es- o final. A pior coisa é você está ses jovens que estão começando fazendo um negócio que você com o grafite? gosta e a pessoa está te desesNC: Explica o porquê dessa intimulando, te colocando para fluência feminina nas tuas ar- DK: Eu acho que a galera que baixo, que é o que acontece tes? está começando, viva ali aque- às vezes, né. Pai não quer tio, DK: Todo mundo pergunta as- le momento. Sempre que você amigo, namorado... Então não sim: “ah! Por quê?” e eu falo: for fazer um trabalho imagina deixa. Vai, segue em frente que “gente, primeiro porque eu sou que ele é o último da sua vida o negocio vai fluir lá na frente.


Fotos: Divulgação



Fotos: Divulgação


A feira do livro, no ano de 2015, no Hangar, Centro de Convenções da Amazônia. Foto: Bianca Brandão

XIX Feira Pan-Amazônica do Livro


Por Bianca Brandão

Entre os dias 29 de maio e 7 de junho, Belém recebe a XIX Feira Pan-Amazônica do Livro. Com o tema “A certeza milenar de quem sabe vencer os desafios”, a Feira deste ano celebra os 120 anos de Amizade entre o Brasil e o Japão e homenageia o escritor paraibano Ariano Suassuna, morto no ano passado e autor de grandes obras da literatura brasileira como O auto da compadecida. Com realização da Secretaria de Estado de Cultura do Pará, a tradicional Feira faz parte do calendário de todo apaixonado pela literatura. Em 2015, o Hangar recebe stands de 144 editoras e livrarias do Pará e do Brasil inteiro. Durante os 10 dias de feira, a organização espera que circulem pelo evento cerca de 400 mil pessoas, mesmo público do ano passado. Em termos de vendagem, a Feira de 2014 fez circular 16 milhões de reais na forma de 880 mil livros, marca que deve ser superada em 2015. O ano de 2014 também trouxe outro dado importante: com o aumento da segurança, houve que-

da de 70% no número de ocorrências dentro do evento.

Atrações Entre os convidados para a Feira deste ano estão a escritora Thalita Rebouças e o jornalista Julio Maria, repórter do jornal O Estado de S. Paulo e autor do livro “Elis Regina - Nada Será Como Antes”. Em 2015, a poesia feminina terá destaque através das escritoras paraenses Giselle Ribeiro e Luciana Brandão Carreira, que participarão de um Encontro Literário especial sobre o tema. Além disso, também participarão dos Encontros Literários a vencedora do Prêmio Jabuti Stella Maris Rezende e os escritores Daniel Munduruku, Ignácio de Loyola Brandão e Oscar Nakasato, que durante o evento lançará seu livro “Nihonjin”, romance que trata da imigração japonesa para o Brasil.

Serviço XIX Feira Pan-Amazônica do Livro Quando? De 29/05/15 à 07/06/2015 Onde? Hangar – Centro de Convenções e Feiras da Amazônia Av. Dr. Freitas s/n - Marco - Belém – Pará


Um Snoopy e um Woodstock bem grandes e aleatórios na área livre. E o patriotismo argentino pra fazer mershan. Foto: Stéfanie Olivier

Feira Internacional do Livro de Buenos Aires


Por Stefanie Olivier

De 23 de abril até 11 de maio, Buenos Aires ficou repleta de letras e cultura. Uma fila de três (ou mais) quarteirões é o que se espera quando vamos a uma noite de autógrafos com alguém bem famoso ou para algum show, mas a verdade é que tive que enfrentar isso só para poder comprar meu ingresso e depois conseguir entrar na 41ª edição desta feirinha


Zona de Poesia. Com muitas obras. Obras cheias de poesias. Foto Stéfanie Olivier Aliás, feirinha é modo de falar. A Feira Internacional do Livro de Buenos Aires é uma das mais importantes do mundo, tem 45 mil metros quadrados de muitas palavras, personalidades da literatura, poesia e cultura. Só para ter uma ideia da dimensão, o espaço que a Feira Pan Amazônica do livro que ocorre todo ano no nosso lindíssimo Hangar tem 8.500 m². Falando nisso, a entrada só é grátis durante a semana para idosos, aposentados, estudantes universitários e crianças até 12 anos (quando um universitário tem tempo de ir numa feira enorme durante a semana? Nunca, pois é). Durante os finais de semana e feriados é preciso pagar $50,00 (pesos),

como se fossem R$13,00. E dão um “chequelivro” junto com a nossa entrada, que são $35,00 (quase 10 reais) de desconto por pessoa pra usar em qualquer livraria. Quando a feira acaba, ele ainda vale por mais um mês para ser usado nas livrarias/editoras participantes, vê que legal! Todo ano a organização escolhe alguma personalidade famosa da cultura argentina para fazer um discurso inaugural e depois cortar a “fita” que abre oficialmente o evento. Ano passado foi o aniversário de 40 anos da Feira e quem foi escolhido pra fazer esse discurso foi ninguém mais, ninguém menos que o Quino (paizinho e criador da Mafalda que mora no coração da Na Cuia)! Esse

ano o eleito foi Roberto “Tito” Cossa, um dramaturgo que é referência do teatro argentino. A parte que a gente vê logo de cara é uma área grandinha com stands de vários países e cidades da Argentina, normalmente lá estão expostas obras de autores importantes de cada lugar. E é um mais fofo que o outro, uns tem espelhos que nos emagrecem e engordam, outros com esculturas que representam o lugar ou tendas escuras com video-poemas de autores do país/cidade. Eu não fui a única paraense a ir lá nesse ano, então com quem já conversei, percebi que a sensação é a mesma: a gente entra e pensa “Ah, é isso? Só isso? Nada mais? Todo esse auê pra


Stand da cidade Terra do Fogo, que fica ao Sul da Argentina. Foto Stéfanie Olivier Stand da cidade argentina de San Juan. Muitas cores, muita felicidade, muita literatura e muita cultura. Foto Stéfanie Olivier

isso?”. Que nada, tem um corredor branco enorme que nos leva até uma área livre cheia stands do Snoopy e Mafalda pras crianças-e-turistas tirarem fotos, stands lindos que fazem propaganda pra ajudar o meio ambiente e apresentações musicais. Nessa área livre, tem mais outras três entradas que dão pra áreas distintas com muitos, mas muitos stands de editoras que vendem os livros mais comuns, tipo os da feira que rola em Belém. Como qualquer outra pessoa em sã consciência que vai numa feira de livros, acabei me comprando três livros só pra não perder o costume e usar os meus descontos.


Agenda BoulevArt No próximo dia 7 de junho, os arredores da Praça dos Estivadores, na Avenida Boulevard Castilhos França, estarão cheios de arte, música, gastronomia, moda e esportes. Será a primeira edição do BoulevArte, ocupação que pretende resgatar a história de Belém através da arte e criar nos belenenses o hábito de passear pelos pontos turísticos dos bairros antigos da cidade. Entre as 6 e as 18 horas do domingo, o público verá diversos shows musicais, apresentações de teatro e dança e terá a oportunidade de provar o melhor da culinária e das cervejas paraenses e participar de oficinas e passeios. Além de tudo isso, os skatistas e patinadores terão uma das pistas da avenida fechada para seu uso e diversas marcas e lojas locais estarão com seus produtos à venda. Na ocasião também será inaugurado o Hermanos Food Truck, de Renan Barata e Roberto Hundertmark, sobre o qual a Na Cuia falou na segunda edição.

Serviço O que? 1º BoulevArte Quando? 07/06/2015 (domingo), das 6h às 18h Onde? Av. Boulevard Castilhos França (corredor da Rua Marechal Hermes, que vai da Avenida Presidente Vargas até o prédio da Alfândega, passando pela Praça dos Estivadores) Belém - PA


Cultural

Por Bianca Brandão

Programaçao Cine Líbero Junho será um mês de grandes destaques no Cine Líbero Luxardo. O documentário indicado ao Oscar “O Sal da Terra”, sobre a vida e a obra do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado e dirigido pelo filho dele, estreou no último dia 27 e estará em cartaz até o próximo dia 7 de junho. Também neste mês, o Líbero receberá o Festival Varilux de Cinema Francês. Entre os dias 10 e 17 de junho, o público verá diversas produções cinematográficas francesas dentre as quais está o filme de abertura do Festival de Cannes: “La Tête Haute” (De Cabeça Erguida), da diretora Emmanuelle Bercot.

Serviço O que? “O Sal da Terra”, de Juliano Salgado e Wim Wenders Onde? Cine Líbero Luxardo, Fundação Cultural do Pará. Av. Gentil Bittencourt, 650. Belém - PA Quando? Até o dia 07/06/15, domingo. 03 a 05/06 (quarta a sexta) - 19h 06/06 (sábado) - 19h e 21h 07/06 (domingo) - 17h e 19h

O Que? Festival Varilux de Cinema Francês Onde? Cine Líbero Luxardo, Fundação Cultural do Pará. Av. Gentil Bittencourt, 650. Belém - PA Quando? De 10 à 17/05/15. Programação completa disponível na fanpage do Cine Líbero https://www.facebook.com/cineliberoluxardoI



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.