Revista Desigualdade & Diversidade
APRESENTAÇÃO CONTROVÉRSIAS SOCIOAMBIENTAIS
Felipe Süssekind Professor do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
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O termo socioambiental vem sendo usado em diversos contextos e campos de conhecimento, demarcando áreas tanto de atuação política quanto de pesquisa acadêmica. Como campo de atuação política, o socioambientalismo surgiu no Brasil em meados nos anos 1980 (período da redemocratização), a partir principalmente da articulação entre movimentos ambientais e movimentos sociais, particularmente na Amazônia (SANTILLI, 2005). Nessa época, comunidades indígenas e grupos tradicionais de seringueiros e castanheiros, entre outros, formavam uma coalizão de resistência aos projetos de ocupação promovidos pelo Estado nacional e por setores da iniciativa privada, formando o movimento que ficou conhecido como Aliança dos Povos da Floresta. Ambientalistas e pesquisadores também participaram do movimento, e esse foi o contexto em que se desenvolveram as primeiras iniciativas que ligavam diretamente a preservação dos ecossistemas aos modos de vida das comunidades locais no país (SANTILLI, 2005). A abordagem socioambiental teve um papel importantíssimo na formulação da Constituição de 1988, que recentemente completou 30 anos. Tanto no que se refere aos direitos dos povos indígenas quanto às políticas de demarcação de áreas de proteção ambiental, a Constituinte representou um divisor de águas para a ecologia política no Brasil. Entre os desdobramentos da nova legislação surgiram modelos de preservação como as Reservas Extrativistas e as Reservas de Desenvolvimento Sustentável, alternativas para as modalidades conservacionistas clássicas, tais como Parques Nacionais ou Reservas Ecológicas, baseadas muitas vezes em remoção de populações nativas. Para além dos processos de demarcação de reservas, o termo socioambiental, em seus múltiplos usos desde então, passou a circunscrever domínios específicos da vida social, ligados, entre outros campos, à justiça e à reparação de danos pela implantação de projetos de grande porte. A consolidação do termo, porém, se por um lado reflete uma ampliação legítima da preocupação com temáticas importantes no campo das políticas sociais e dos direitos, por outro implica risco de esvaziamento de sua dimensão conceitual. Tomaria assim o mesmo caminho daqueles que o compõe, o “social” e o “ambiental”. Como chamou atenção Bruno Latour (2005), quando tomado como domínio específico da realidade, o adjetivo “social” foi historicamente perdendo o prazo de validade ao estabelecer de saída um abismo entre a humanidade dos sujeitos e a não humanidade da natureza. Reificado e separado absolutamente do conhecimento das coisas, o social se tornou assim incapaz de definir os processos de associação, isto é, os vínculos entre os elementos humanos e não humanos que compõem os coletivos (LATOUR, 2005). Uma crítica semelhante pode ser aplicada ao termo “ambiental”. Quando designa um campo específico da realidade, o ambiente tende a ser recortado de suas dimensões humanas, purificado e reificado como um domínio apolítico. Exemplos especialmente problemáticos desse tipo de abordagem são as políticas em que a preservação da vida selvagem se baseia na remoção de populações nativas, com ecos da tradição colonialista em D&D [ n.17 | 2019.2 | pp. 1-8 ]
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países como o Brasil ou a Índia (DIEGUES, 2001). Outro exemplo é o processo histórico descrito por Willian Cronon (1995) sobre o apagamento da presença indígena da paisagem norteamericana a partir das políticas conservacionistas implantadas por Theodore Roosevelt nas primeiras décadas do século XX. Como alternativa, Cronon propõe um resgate da noção da natureza selvagem (wilderness) não como uma natureza intocada, purificada da experiência humana, mas sim como uma dimensão da alteridade constitutiva dessa mesma experiência, um antídoto ao antropocentrismo (CRONON, 1995). A crítica da natureza intocada, ligada a certa abordagem da ecologia, pode se articular, nesse sentido, com o tema da crise ambiental contemporânea e com a discussão atual em torno do Antropoceno, diante dos quais torna-se cada vez mais difícil se estabelecer uma separação pertinente entre os processos naturais e os processos sociais (CHAKRABARTY, 2013; HARAWAY, 2016; PÁDUA, 2017). A redução do socioambientalismo ao escopo já desgastado da discussão sobre a “sustentabilidade” pode ser problematizada nesse sentido. O significado mais forte do termo socioambiental, no entendimento que propomos aqui, reside justamente na afirmação de uma inseparabilidade, ou uma articulação necessária, entre a dimensão ambiental e a dimensão social. “Existe uma ecologia das ideias danosas, assim como existe uma ecologia das ervas daninhas”, é a frase de Gregory Bateson que serve de epígrafe a As três ecologias, de Felix Guattari (1990). O livro-manifesto de Guattari apontava, há quase 30 anos, para o enredamento necessário entre o que chamou de uma ecologia do ambiente, uma ecologia da mente (ou da “subjetividade”) e uma ecologia da sociedade. Esse enredamento implicava uma procura por linhas de fuga em relação aos processos de embrutecimento e de mecanização que permeiam as várias instâncias da vida contemporânea. As três ecologias é um ensaio que aponta para o esgotamento de um modelo, tanto no plano político quanto conceitual. O modelo que pensa a sociedade e a política nos termos de acordos ou contratos entre seres humanos tendo como pano de fundo uma natureza regida por leis mecânicas e fixas, passível de apropriação e utilização para a construção dessa mesma sociedade. É contra esse modelo que o autor formula uma “Ecosofia” capaz de evocar a articulação necessária entre a problemática ambiental e a sociopolítica. Trata-se, neste caso, de uma reflexão sobre a reprodução das ações humanas não planejadas ligadas aos modos de vida associados ao capitalismo global, assim como de investigação acerca da associação inescapável entre a degradação dos ambientes e a degradação do tecido social e das relações subjetivas. As linhas de fuga propostas por Guattari, mais atuais do que nunca, envolvem a busca de territórios existenciais capazes de resistir a esses processos, sejam eles relacionados à ascensão de todas as formas de fascismo no campo político ou à degradação dos modos de vida e dos ambientes. No que se refere à reflexão antropológica sobre a questão ambiental, a abordagem na qual o observador científico detém o conhecimento adequado para a conservação do meio ambiente em detrimento dos conhecimentos locais tem sido alvo não só de uma série de críticas no âmbito das ciências humanas, como também de autocríticas no próprio campo da conservação. No que se D&D [ n.17 | 2019.2 | pp. 1-8 ]
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refere aos valores canonizados pela Antropologia ao longo do tempo, a ordem da natureza é definida quase sempre por exclusão, ou seja, como uma espécie de resto em relação à atividade cultural, ou mesmo como o suporte material a partir do qual se constituem as organizações sociais. Em todo caso, é uma categoria em negativo, algo que define por contraste aquilo que é o próprio objeto de interesse da Antropologia. Referindo-se às tensões e às complementaridades entre saberes tradicionais e científicos, Manuela Carneiro da Cunha (2009) mostra como, muitas vezes, o diálogo intercultural é marcado por uma série de impasses. De um lado, a concepção da ciência moderna como um saber acabado e final sobre o mundo tende a desprezar tudo aquilo que provém de protocolos alternativos. De outro, a ideia de que o saber tradicional é um patrimônio homogêneo e parado no tempo, e não um processo dinâmico, tende a reduzi-lo ao campo das representações ou das crenças, neutralizando sua eficácia. A possibilidade do diálogo depende, nesse sentido, de um entendimento dos conceitos e métodos que não seja tributário da divisão entre fatos e valores característica do pensamento moderno. Um dos aspectos mais interessantes da perspectiva socioambiental, nesse contexto, é justamente a aliança que se produziu a partir do encontro entre o modo de conhecimento da ecologia política e as cosmovisões dos povos amazônicos. O conceito de florestania (que amplifica e contrasta com a ideia da cidadania), por exemplo, formulado por seringueiros do Acre e mais tarde incorporado em políticas públicas locais, diz respeito às conexões entre seres humanos e seres da floresta – animais, plantas, espíritos da mata – com os quais os povos da Amazônia se associam e com os quais interagem. O conhecimento dos povos indígenas, da mesma maneira, traz para a ecologia dos “brancos” lições a partir das quais os elementos da natureza não são vistos como objetos ou instrumentos, mas antes como sujeitos plenos de direito com quem os seres humanos se articulam socialmente. Conceitos como agrobiodiversidade e agroecologia, que fazem parte do campo semântico dos estudos socioambientais contemporâneos, demonstram uma preocupação na descrição de práticas que produzem diversidade ecológica, nas quais naturezas e culturas estão entrelaçadas. O fato é que a natureza e os processos ecológicos entraram irremediavelmente na política nesses últimos 30 anos. A ligação intrínseca entre o bem-estar social e os efeitos colaterais dos combustíveis fósseis no sistema capitalista globalizado, a relação entre os modos de vida nas sociedades de consumo e os processos da vida orgânica terrestre são questões incontornáveis atualmente. Disciplinas tão diferentes quanto geologia, microbiologia e climatologia nos mostram o caráter inseparável da política e da ecologia, apontando os limites daquilo que as ciências humanas e sociais sempre deixaram em segundo plano como sendo da ordem da natureza. Ao mesmo tempo, coletivos como grupos indígenas e quilombolas – para os quais o que está em jogo não é a propriedade da terra, mas o pertencimento à terra –, têm incansavelmente alertado aos “brancos” para as consequências das nossas ações nas
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transformações que eles vêm observando no tecido das relações ecológicas e climáticas (VIVEIROS DE CASTRO, 2017). A frase de Anna Tsing, “a natureza humana é uma relação entre espécies” (TSING apud VAN DOOREN et al., 2016, p. 40), é uma provocação que transmite um pouco do espírito que norteia os atualmente os chamados estudos multiespécies (VAN DOOREN et al., 2016). O contato com a alteridade radical do pensamento de povos não ocidentais, de um lado, e os desdobramentos das investigações antropológicas das ciências e das técnicas, de outro, se articularam desde então com os estudos feministas, com o pós-modernismo e com os estudos das relações humanosanimais na constituição da problemática desdobrada no cenário contemporâneo. Esses seriam, em linhas gerais, os campos de problemas que serviram de base para o presente dossiê, em torno de Controvérsias Socioambientais. Empregamos este termo no sentido que ele tem no âmbito das chamadas cartografias de controvérsias, as quais se incluem na proposta teórico-analítica formulada por autores como Bruno Latour, John Law e Anne Marie Moll, entre outros. As controvérsias, no sentido proposto, não poderiam ser reduzidas a conflitos, sejam eles conflitos de interesses ou disputas científicas ou políticas. Tratam-se antes de questões em aberto que conectam séries de atores, ou actantes, em redes materiais-semióticas complexas. Essas redes podem envolver conflitos e disputas, mas também podem produzir alianças insuspeitas. Uma controvérsia é, nesse caso, antes de mais nada, uma questão ainda não estabilizada por uma solução qualquer, na qual elementos culturais, ecológicos e políticos podem ser articulados em novos sentidos. Respondendo a essa provocação – de refletir sobre controvérsias socioambientais – este dossiê temático apresenta autores que trabalham com temas bastante diversos. O trabalho de Graciela Froehlich investiga uma série de estratégias discursivas e práticas utilizadas pela cadeia produtiva da carne no Brasil, apresentando algumas das controvérsias na atividade pecuária no que diz respeito aos seus impactos. A autora reflete sobre as certificações socioambientais que visam atestar a compatibilidade dos métodos empregados na produção de carne com os princípios de sustentabilidade como estratégias de ambientalização da cadeia produtiva da carne. Tematizando também questões ligadas à alimentação, Ana Paula Perrota se volta, por sua vez, para a luta política dos defensores dos animais, associada aos movimentos vegano e abolicionista, que reivindicam a inclusão dos animais na mesma comunidade moral que os humanos e buscam colocar em xeque a percepção vigente sobre a justiça. Ela mostra que a preocupação com os animais, conforme a perspectiva dos defensores, não diz respeito a uma preocupação com a biodiversidade, com o equilíbrio do ecossistema, ou com a extinção de espécies, mas sim com a vida e o sofrimento desses seres. Caetano Sordi analisa, por seu turno, o trabalho de duas agências estatais brasileiras, o ICMBio e a Embrapa, no controle e no manejo de populações de javalis asselvajados e seus
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híbridos em uma Área de Proteção Ambiental localizada em Santa Catarina. Sordi analisa em profundidade de que maneira uma sobreposição de condições fronteiriças – da espécie, da paisagem, das populações humanas e animais aí envolvidas – permeia todo esse contexto etnográfico. Orlando Calheiros traz uma abordagem etnográfica de um contexto ritual dos Aikewara, grupo indígena do sudeste do Pará, diante da tragédia que se abate sobre eles em consequência da extinção dos queixadas (porcos selvagens) em seu território. Calheiros mostra como o desaparecimento dos animais implica a destruição de um mundo subterrâneo que atravessa e constitui a vida desse grupo como um processo permanente de fuga diante da ameaça externa representada pelos brancos. O trabalho de Marina Guzzo e Renzo Taddei investiga experiências estéticas que se posicionam na fronteira entre a performance, a dança e as artes visuais para criar espaços comuns entre a arte e o Antropoceno, problematizando modos de fazer arte diante de um futuro incerto em um planeta em destruição. Os autores partem do pressuposto que as artes, as ciências e as culturas estão intimamente relacionadas com o momento histórico e geopolítico de sua criação, e se voltam para contextos em que artistas e cientistas especulam em conjunto futuros possíveis para os fins de mundos que se apresentam no horizonte. Usando o conceito de racismo ambiental, Virgínia Totti Guimarães e Paula Máximo fazem uma análise comparativa da aplicação da legislação ambiental em casos envolvendo a Comunidade do Horto Florestal e o Condomínio Canto e Mello, na Gávea (RJ). Elas mostram como o racismo ambiental é produzido por uma série de atos e omissões do Poder Público quando a legislação ambiental é aplicada de maneira totalmente diferente em situações a princípio semelhantes. Partindo de uma abordagem ligada à ecologia histórica, Alexandro Solórzano discute caminhos para a interpretação de paisagens contemporâneas a partir do entrelaçamento entre as florestas e a urbe carioca, aprofundando a discussão sobre a dicotomia entre espécies nativas e exóticas. Solórzano toma como caso paradigmático as jaqueiras, entendidas aí como componentes importantes do sistema socioecológico floresta-cidade do Rio de Janeiro, indicando na paisagem florestal os espaços marcados pela história e pela cultura da sociedade carioca. Encerramos este volume com a entrevista com Mauro Almeida, realizada em São Paulo por ocasião da VI Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia, em 2017. Professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele foi um dos criadores da Reserva Extrativista do Alto Juruá (AC), a primeira unidade de conservação desse gênero no Brasil, no início da década de 1990. É também sócio efetivo do Instituto Socioambiental (ISA). As pesquisas de Mauro Almeida sobre reservas extrativistas e diversidade social na Amazônia são
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referências para todos aqueles que trabalham em uma perspectiva socioambiental no Brasil, e acreditamos que a entrevista é uma contribuição importante para o debate que trazemos aqui. A principal proposta desse dossiê temático organizado para a revista Desigualdade & Diversidade da PUC-Rio é, portanto, aprofundar a temática socioambiental apostando em uma perspectiva transdisciplinar. Com isso, pretende-se também contribuir para o debate público em torno de questões que consideramos fundamentais no campo político e acadêmico contemporâneo. Boa leitura!
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A REIVINDICAÇÃO DOS “DIREITOS DOS ANIMAIS” E SUA RELAÇÃO COM A JUSTIÇA E A POLÍTICA THE CLAIM OF "ANIMAL RIGHTS" AND THEIR RELATION TO JUSTICE AND POLITICS
Ana Paula Perrota Professora do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas e do Departamento de Ciências Administrativas e Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
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RESUMO Os chamados defensores dos animais reivindicam a igualdade de direitos entres humanos e não humanos e colocam em questão a perspectiva sobre a justiça e a política como modos de representação exclusivamente dos humanos. Essa problemática se insere nos debates atuais sobre a virada ontológica nas ciências sociais e ao mesmo tempo permite tratar da ação dos defensores como uma controvérsia ambiental na medida em que discute sobre outro entendimento acerca da humanidade e da animalidade. Em diálogo com teorias antropológicas e sociológicas, este trabalho tem como objetivo compreender a relação entre direito dos animais e justiça, conforme as transformações ontológicas colocadas em jogo a partir desse tipo de reivindicação. Para a realização deste trabalho foi utilizada pesquisa bibliográfica, investigação sobre as publicações realizadas pelos defensores e também acompanhamento de “situações críticas” envolvendo animais e nos veículos de comunicação. Foi possível observar que, embora a modernidade seja caracterizada por separar em pares opostos natureza e cultura, os defensores pensam nessa divisão a partir das fronteiras borradas, uma vez que incluem humanos e animais no mesmo modelo de política e representação da justiça. PALAVRAS-CHAVE: direito dos animais; controvérsia ambiental; sociologia e antropologia da moral.
ABSTRACT Those who defend animals claim equal rights between human and nonhuman, and thus call into question the perspective on justice and politics as forms of representation exclusively of humans. This problematic fits into the current debates about the ontological turn in the social sciences and at the same time allows to deal with the action of defenders as a form of environmental controversy insofar as it discusses another understanding about humanity and animality. In dialogue with Anthropological and Sociological theories, this work aims to understand the relationship between animal law and justice and at the same time the ontological transformations brought into play from this form of claim. For the accomplishment of this work was used bibliographical research, investigation on the publications made by the defenders and "critical situations", involving animals, through vehicles of communication. It was possible to observe that, although modernity is characterized by separate poles of nature and culture, defenders think of this division from blurred borders, since they include humans and animals in the same model of politics and representation of justice. KEYWORDS: animal rights; environmental controversy; sociology and anthropology of morality.
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Introdução Nos dias atuais podemos observar no Brasil manifestações contra o uso de animais para experimentos científicos. Manifestações contra o abate de animais para o consumo de carne. Manifestações contra a presença de animais em circos. Manifestações contra rodeios, vaquejadas etc. O que essas ações políticas têm em comum é que são capitaneadas por ativistas que defendem os direitos dos animais. Os militantes que atuam em favor dos animais são contra todas essas atividades porque causam a morte, o sofrimento e a tortura de animais, independentemente das vantagens que essas atividades possam trazer a nós, humanos. O que significa dizer que esses movimentos políticos reivindicam que a vida animal seja tratada nos termos humanistas da vida humana. Como podemos ver, a luta política dos defensores dos animais inaugura uma controvérsia ambiental ao colocar em cheque nossa percepção sobre a justiça, pois reivindica a inclusão dos animais na mesma comunidade moral que os humanos. Essa controvérsia, por sua vez, coloca em cheque também as noções modernas de humanidade e animalidade. A preocupação com os animais, conforme a perspectiva dos defensores, não diz respeito a uma preocupação com a biodiversidade, com o equilíbrio do ecossistema, ou com a extinção de espécies, mas é uma preocupação com a vida e o sofrimento dos animais. E para levar à frente essa preocupação, os defensores questionam, portanto, o regime epistemológico e ontológico que configura o animal na modernidade. Esse tipo de ação política é identificado como abolicionista e vegano. Abolicionista porque luta pelo fim imediato de todos os usos animais, e vegano porque se abstém de todos os produtos e atividades que utilizam animais em sua produção. O abolicionismo e o veganismo marcam sua diferença em relação a outras formas de proteção dos animais, notadamente o bem-estar animal e os protetores de cães e gatos abandonados.1 Outro ponto importante é que a mobilização política desses agentes ocorre também no âmbito acadêmico: pesquisas, produção de seminários, palestras, livros, teses e dissertações se constituem como uma prática militante. Através dessas atividades, os defensores têm o objetivo de garantir, em termos científicos, que o tratamento destinado aos animais não é ético e, portanto, deve ser transformado. O caráter científico atribuído aos fundamentos que dão forma à causa animal é entendido como uma maneira de dar sustentação à argumentação, para que não seja vista nem como uma retórica vazia nem como mero sentimentalismo. Atualmente esse debate ganha as páginas dos jornais, seja em reportagens de opinião sobre o tema, ou a partir de notícias veiculando alguma situação de denúncia, ou conflito envolvendo os animais. Não se pode dizer que o mundo reivindicado pelos defensores dos animais está perto de 1
Sobre esses temas ver mais em: FROEHLICH, G. As regulações jurídicas de bem-estar animal: senciência, produtividade e os direitos dos animais. Revista Vivência, n. 49, p. 33-48, 2017; e também: PINTO, L. Resgatando afetos: uma etnografia sobre o papel da rede solidária de proteção animal no contexto urbano de Porto Alegre/RS. In: REUNIÃO EQUATORIAL DE ANTROPOLOGIA, 5., REUNIÃO DE ANTROPÓLOGOS DO NORTE E NORDESTE: DIREITOS DIFERENCIADOS, CONFLITOS E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTOS, 14., 2015, Maceió, 2015. D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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se concretizar. Mas essa questão já está inserida no debate público em discussões sobre nossa responsabilidade perante outras espécies, ou seja, sobre os modos de coexistência entre humanos e animais, em particular; ou entre natureza e cultura, no geral. Tendo em vista esse tipo de manifestação política, não é minha intenção aderir ou criticar a causa, mas compreender como essa questão se liga às ideias sedimentadas sobre humanidade e animalidade, e à relação com a política e a justiça. Para tratar dessa discussão, investiguei materiais publicados pelos defensores e acompanhei “situações críticas” envolvendo animais através de veículos de comunicação. Em diálogo com teorias antropológicas e sociológicas, pretendo compreender a relação entre direito dos animais e justiça inserida nas transformações ontológicas colocadas em jogo a partir desse tipo de reivindicação.
Sobre a legitimidade de defesa dos direitos dos animais No âmbito dos movimentos sociais, a mobilização política dos chamados defensores dos direitos dos animais se constitui como exemplo de uma atuação política, com implicações morais, que visa problematizar a fronteira entre humanos e não humanos. Ao defender os direitos dos animais, esses movimentos reivindicam o fim da singularidade humana e a inclusão dos animais na mesma comunidade moral. Embora saibamos que essa manifestação política não se caracteriza como a única ou a mais importante situação que coloca em questão o paradigma moderno, esse caso se torna interessante de ser pensando na medida em que confronta o sistema político de representação dos humanos, desafiando a doutrina jurídica e “nossas” formas canônicas de pensar o mundo. Tais desafios produzem enfrentamentos em diferentes âmbitos da sociedade, uma vez que a luta pelos direitos dos animais se caracteriza pela interdição de qualquer uso dos animais para fins humanos. Em 2009/2010, quando escolhi como tema para o projeto de doutorado o estudo sobre os defensores dos direitos dos animais, percebi que esse assunto era tratado como no mínimo ortodoxo pelos meus pares cientistas sociais. Um fato a respeito dessa consideração surgiu a partir de uma conversa que tive no avião com outra antropóloga a caminho da reunião da Associação Brasileira de Antropologia, em 2010. Na ocasião, estávamos dividindo a mesma fileira de assento no avião e, não sei mais explicar o motivo, reconhecemo-nos como antropólogas e por essa razão iniciamos uma conversa. Quando disse que meu tema de pesquisa era estudar agentes que defendem os direitos animais, ela questionou de maneira bem enfática a pertinência do tema, dizendo em primeiro lugar que não era muito próprio da Antropologia, e em segundo, que havia questões mais importantes a serem discutidas, como crianças abandonadas, por exemplo. Esse tipo de reação se repetiu algumas vezes no início da pesquisa. Comecei a pensar que do mesmo modo que o tema demandava de mim um esforço para justificá-lo, esse empenho sem dúvida estava posto para aqueles que fazem dessa questão mais do que um objeto de investigação científica, mas também um projeto político. Em consideração à necessidade de ter de justificar esse tema como um objeto de pesquisa antropológico, comecei a pensá-lo a partir dessa mesma D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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abordagem. O que significa dizer que tomei como ponto de partida deste estudo o questionamento sobre a maneira como os defensores dos animais constroem um universo de justificação para que sua demanda não seja só atendida, mas também para que seja vista como uma luta legítima, e não como um projeto político disparatado. Como pude perceber, então, o tema do direito dos animais, há seis, sete anos, era desconhecido e estranho para muitas pessoas, embora hoje o tema tenha adquirido abrangência no debate público, principalmente no que diz respeito ao vegetarianismo e ao veganismo como modelos dietéticos. Desse modo, se hoje os meios de comunicação tratam do que seria uma “onda vegetariana”, há menos de uma década, defender direitos aos animais, afirmar a abstinência de carne e de qualquer produto de origem animal, além de desconhecido, soava absurdo por completo. O que poderíamos dizer, então, do esforço de promover essas discussões, a partir de um cunho normativo, em meios hegemônicos da ciência, e em áreas como o direito ou a medicina veterinária? Mas era justamente isso que um grupo de pessoas, os defensores de animais, a quem identifiquei como “militantes acadêmicos” (PERROTA, 2015), faziam. Diante desse panorama, comecei a pensar que não bastava a mobilização política para que esse projeto fosse atendido, mas era preciso dar a ele fundamento, legitimidade. Nesse caso, ao fazer da luta em favor dos animais objeto dessa pesquisa, meu interesse foi compreender como esses agentes constituem uma crítica capaz de abolir em termos morais e políticos os marcadores que assinalam a diferença entre humanos e animais, mas também como constroem um conjunto de argumentação que torne ao menos crível a defesa de direito aos animais.
Animais e justiça Este artigo discute a constituição por parte dos defensores dos animais de uma política multiespécie, uma vez que eles têm como objetivo tornar legítima a inclusão dos animais na mesma comunidade moral que os humanos. No entanto, considero que essa discussão deva partir de um entendimento sobre o motivo da reivindicação de direitos aos animais causar estranhamento ou parecer um projeto disparatado. Assim, trazemos as seguintes perguntas: O que há de errado em fazer dos animais seres implicados com os direitos e a justiça? E, ainda, o que entendemos como justiça? Qual o lugar dos animais em nossa percepção sobre o que é justo e o que não é? A reivindicação da inclusão dos animais na mesma comunidade moral que os humanos desestabiliza a filosofia política que, como Bruno Latour (1994) chama atenção, se constituiu nos últimos séculos como uma teoria de representação unicamente do mundo social humano. De acordo com o autor, vivenciamos nos últimos três séculos a ilusão moderna de que seria possível manter em esferas isoladas o domínio da natureza e o domínio da política. Nesses termos, a política se constitui como modo de representação dos humanos em detrimento do resto do mundo. Mas, questionando esses pressupostos, Latour (1994) afirma que “a política sempre foi, de fato, uma política das coisas” (p. 408). Entretanto, a filosofia política no século XVIII teria deixado D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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de lado a democracia das coisas, definindo a política “como um problema de representação dos humanos, de tomadas de posição dos humanos, mas não como uma cosmopolítica” (p. 408). Desse modo, como o próprio autor explica, as sociedades modernas se constituem pela existência de uma “separação completa entre, de um lado, as coisas que são representadas pelos cientistas, mas fora do procedimento político, e a representação dos humanos” (p. 409). Em diálogo com essa discussão, o humanismo, que emergiu como valor triunfante nesse mesmo período, serviu como fundamento para garantir a dignidade exclusiva da natureza humana. E, como explica Levi-Strauss, começou-se a “cortar o homem da natureza e constituí-lo como um reino supremo” (2013, p. 53). O antropólogo desenvolveu uma visão crítica a essas transformações ao afirmar que “nunca antes do termo destes últimos quatro séculos de sua história, o homem ocidental percebeu tão bem que, ao arrogar-se o direito de separar radicalmente a humanidade da animalidade, concedendo a uma tudo o que tirava da outra, abria um ciclo maldito” (2013, p. 53). A perspectiva mais ou menos crítica apresentada por esses dois intelectuais franceses não faz deles defensores dos direitos dos animais, e não é minha intenção tomá-los como militantes dessa causa específica. Mas sim, compreender a partir de seus trabalhos, como se dá atualmente a relação entre humanidade, animalidade e política. Nesses termos, recorro também à sociologia pragmática francesa, notadamente nos trabalhos de Luc Boltanski e Laurent Thévenot (2006), que tratam sobre os regimes de justiça. A partir desses autores podemos compreender também o modo como a política faz apenas dos seres humanos seres implicados com a justiça. O sociólogo Luc Boltanski, em seus trabalhos ao lado de Thévenot, reflete sobre os mecanismos analíticos para constituir como seu objeto as operações críticas dos sujeitos. Sem pretender construir uma teoria normativa, o autor se preocupa em analisar como a situação de justiça é alcançada durante os conflitos, por meio do estabelecimento de equivalências dos seres envolvidos nos momentos críticos. O trabalho de Luc Boltanski e Laurent Thévenot (2006) se baseia no pressuposto da chamada “sociedade crítica”, que é caracterizada pelo fato de que todos os sujeitos dispõem de capacidades para a realização de denúncias, e pelo fato de que todos teriam acesso, ainda que em grau desigual, a recursos críticos, utilizados de modo quase permanente no curso ordinário da vida social. Tomando como pressuposto a recorrência de atividades críticas na vida dos atores, os sociólogos querem, portanto, investigar a denúncia como tal e tomar por objeto o trabalho crítico operado pelos atores. Nesse caso, o autor busca compreender as operações que os sujeitos empreendem para justificar-se em situações de disputa, mas através de um modelo comum caracterizado por princípios de ordens distintos que levariam à justeza da situação. De acordo com a teoria que estamos discutindo, observa-se que a crença na capacidade crítica dos atores vem ado fato de que a denúncia feita é determinada por normas, ideias ou valores que permitem a fuga por parte dos indivíduos de um determinismo materialista, na medida em que podem recorrer a recursos críticos diferenciados de acordo com o contexto de cada conflito. O autor acredita, portanto, na D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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capacidade crítica dos sujeitos, resultante da competência que eles têm para analisar ou julgar um caso em que estão em desacordo e para escolher argumentos que sejam capazes de justificar suas críticas. Dessa maneira, o olhar do sociólogo está focado nas situações e nas interações de ações que denunciam uma injustiça e, para isso, os autores pensaram no modelo da gramática e dos atos de justificação para compreender as operações críticas das pessoas. É importante dizer que esse modelo tem como pressuposto que as operações críticas realizadas pelos sujeitos devem ser legitimadas e, para que isso ocorra, a crítica “deve estar em posição de justificar-se, quer dizer, de clarear os pontos de apoio normativos que a fundamentam [...]” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2002, p. 27). De início, para que a crítica seja formulada, é necessária a vivência de uma experiência desagradável que suscite a queixa. Esse aspecto da crítica é referente à insatisfação individual e está situado no “nível primário”, pois se trata de um movimento emotivo e quase sentimental, mas fundamental. Portanto, é a partir do sofrimento individual, identificado como uma fonte de indignação, que a crítica se estrutura inicialmente. Mas esse âmbito não confere o suporte necessário para que ela seja legitimada. Para o sofrimento individual se tornar legítimo, é preciso que haja tanto um apoio teórico quanto uma retórica argumentativa para traduzir o sofrimento individual que está inicialmente na crítica e remetê-lo a uma noção de bem comum que possa constituir uma ideia de justiça. Esse aspecto se refere ao “nível secundário”, e é caracterizado como reflexivo, teórico e argumentativo. Essa parte da crítica tornaria possível a manutenção da luta ideológica uma vez que constitui a fonte de conceitos e esquemas que possibilitam articular as situações de insatisfação individual aos valores suscetíveis de universalização. No entanto, os autores compreendem que a maneira como a crítica transcende o âmbito da insatisfação individual para alcançar os valores universais tem como pressuposto a existência de uma ordem de generalidade que permitirá que essa operação esteja em posição de justificar-se. Os indivíduos se veem, então, sobre um “imperativo de justificação” quando se envolvem em denúncias ou situações em que se colocam em desacordo. A análise que o autor faz da ordem de generalidade enfatiza seu caráter diverso e traz a hipótese de que essas ordens repousam sobre um modelo comum, incorporando-o, no entanto, de maneira específica, de acordo com o valor no qual são baseadas: riqueza, estima, vontade geral etc. A discussão a respeito desse modelo comum assume grande importância na teoria de Luc Boltanski e Laurent Thévenot, direcionando-se para a elaboração do modelo das cidades, entendidas como os valores gerais pelos quais os indivíduos realizam suas operações críticas, denunciando, acusando ou justificando suas pretensões à justiça. Assim, o dispositivo da cidade está estritamente relacionado à justiça e serve como ponto de apoio normativo para a construção das justificações que sustentam a crítica. Dessa maneira, o autor entende que os atores, quando confrontados a um imperativo de justificação, recorrem a princípios gerais para evocar tipos de orientação que serão empregados D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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para conferir legitimidade à sua crítica, pois esta necessariamente tem regras de aceitabilidade. De acordo com a teoria, não basta que um sujeito diga, por exemplo, que não aceita determinada situação porque ele não gostou. Ao contrário, a pessoa que denuncia precisa produzir formas de generalidade que darão suporte ao seu desacordo. Nesse caso, as cidades atuam como lógicas de justificação acessadas pelas pessoas para conferir generalidade à situação de disputa. Portanto, as cidades são entendidas como dispositivos usados como referentes estáveis nos quais testes de realidade ou provas podem se fundamentar. São, portanto, tipos de convenções marcadas pela generalidade e orientadas em direção à noção de bem comum. Considerando que na sociedade crítica existe um número ilimitado dessas gramáticas que conferem suporte à denúncia de injustiças, a teoria elaborada pelos sociólogos franceses identifica seis cidades que seriam suficientes para descrever as justificações utilizadas na maioria das situações: cidade inspirada, cidade doméstica, cidade de renome, cidade cívica, cidade comercial e cidade industrial2 (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2002, p. 23). Em relação aos trabalhos clássicos da filosofia política, ainda que não sejam de domínio de todos aqueles que os utilizam, eles permitem que os sujeitos sistematizem formas de bem comum a serem utilizadas como dispositivos de justificação para legitimar sua crítica. A construção de um momento crítico se define pela discordância sobre os estados de grandeza dos seres. Quando há a convergência sobre o princípio comum que classifica os seres envolvidos na disputa, chega-se novamente a um acordo que se torna legitimado pelo caráter justo da situação, conquistado através do princípio de equivalência. Dessa maneira, a construção da cidade depende da existência de um bem comum que possa estabelecer a equivalência entre as pessoas de modo justo, sem arbitrariedade. As ordens de generalidade definem o grau de equidade em um momento em que as partes envolvidas no conflito não mais concordam sobre o valor dos diferentes seres que fazem parte da disputa. Observa-se, então, que a concepção de justiça do autor é desenvolvida a partir da reflexão sobre o particular e o geral, de modo que o universo que abandona um eixo particular e oferece lugar a um universo geral se aproxima da concepção do justo. Em diálogo com essa teoria podemos pensar em como os animais aparecem na concepção de justiça no momento em que ocorrem as chamadas situações críticas, especificamente tratando de denúncias empreendidas em seu favor, ou em que figuram como atores ou objetos centrais. Portanto, o que é importante para essa discussão, após a realização desse percurso teórico sobre os pressupostos da sociologia da moral desenvolvida por Luc Boltanski, não diz respeito à afirmação da capacidade crítica dos atores, mas sim ao modo como se dá as questões da justificação e da legitimidade da denúncia vinculadas à noção de bem comum. E, principalmente, sobre como os animais figuram nos dispositivos de justificação.
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Respectivamente, essas cidades foram inspiradas nas obras dos seguintes pensadores: Santo Agostinho, Bossuet, Thomas Hobbes, Rousseau, Adam Smith e Saint-Simon. D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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Para discutir sobre esse ponto, farei uma breve apresentação de um caso que teve repercussão no começo de 2018, que diz respeito ao transporte de gado em pé. Em fevereiro do referido ano estava em operação no porto de Santos a saída de 28 mil bovinos que seriam exportados para a Turquia. Toda a movimentação envolvendo a chegada dos animais na cidade foi acompanhada por ativistas ligados aos direitos dos animais que, contrários ao embarque do navio, fizeram denúncias ao Ministério Público para suspender as exportações. Tendo em vista que as atividades econômicas ligadas à pecuária, diversamente do que os defensores reivindicam, são práticas legais, as denúncias apontaram para o fato de que os animais estariam sofrendo maus tratos. O transporte de gado em pé, nome técnico para se referir à venda de animais que serão exportados vivos a outros países para abate e produção de carne, tem regulamentação específica através da Instrução Normativa no 46, de 28 de agosto de 2018. O documento estabelece procedimentos básicos para a preparação de animais vivos à exportação, sendo eles bovinos, bubalinos, ovinos e caprinos. A questão referida ao bem-estar é tratada nessa Instrução ao estabelecer que: “Os animais selecionados devem estar adequadamente preparados para o transporte e, adicionalmente, não devem apresentar qualquer condição que possa comprometer a sua saúde e bem-estar no trajeto até o Estabelecimento Pré Embarque (EPE) e deste até o local de embarque”. Portanto, amparados por esse regulamento, os defensores, por meio do laudo assinado por uma médica veterinária, declararam que os animais estariam sofrendo maus-tratos, e que, portanto, a saída do navio deveria ser suspensa. Conforme reportagem jornalística, a médica veterinária que realizou a vistoria da embarcação identificou que: Os animais, uma vez aprisionados dentro dos caminhões, enfrentaram viagens entre 8 a 14 horas de trajeto. Muitos caminhões e suas caçambas dispunham de varetas com pontas metálicas conectadas ao sistema elétrico do veículo, cujo objetivo é impedir mediante descargas elétricas que os animais se deitem no assoalho do veículo. A imensa quantidade de urina e excrementos produzida e acumulada nesse período propiciou impressionante deposição no assoalho de uma camada de dejetos lamacenta. 3
Em outra reportagem sobre esse caso, o biólogo e ativista pelos animais Frank Alarcón é citado, pois também teria conseguido acessar o navio. Conforme suas declarações, a reportagem relata: “Posso resumir o que vi em uma frase: um inferno na terra”. E complementa: "Cada animal tinha 1 m² de espaço, e você sabe que um boi tem mais do que isso. Eles estavam mergulhados nas fezes, no vômito, na urina. Alguns se deitavam em cima de outros”.4 Diante de denúncias como
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Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43116666>. Acesso em: 7 mar. 2018.
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Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/exportacao-de-animais-vivos-para-abate-dispara-e-vira-alvo-de-batalhas-najustica-no-brasil,c493e2193184a8efe1fd9b9e330a6f8cmg7nin9c.html>. Acesso em: 7 mar. 2018. D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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essas, explicitadas aqui em resumo, a Justiça Federal proibiu o embarque de novos animais e suspendeu a exportação por via marítima de bovinos em todo o território nacional. Além disso, foi decretado o desembarque e o retorno dos animais que já estavam no navio aos lugares de onde vieram. As questões em torno do embarque de animais no porto de Santos, tal como citado até aqui, envolvem o ponto de vista daqueles que atuam em favor dos animais e, que, portanto, o situam politicamente como sujeitos que merecem ter a vida protegida. Todavia essa não é a visão hegemônica que se tem sobre o conflito em questão. Diante da ação tomada pela Justiça Federal, os agentes econômicos e do Estado, implicados com as diferentes atividades que envolvem a pecuária, se manifestaram sobre esse caso e se organizaram para reverter a decisão da corte. Conforme as declarações desses agentes e que foram veiculadas nos meios de comunicação, a questão do bem-estar, que é a que permitiu a realização do pedido à Justiça para suspender o embarque, foi rapidamente refutada. As denúncias foram negadas, alegando-se que há regulamentações que incidem sobre criadores e exportadores de animais: Diferentemente daquilo que é pregado por ambientalistas fanáticos, não só as viagens de navios respeitam os protocolos de bem-estar animal, ditados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA, o órgão brasileiro competente para tanto, quanto o deslocamento rodoviário é realizado nos mesmos caminhões inspecionados que transportam os 40 milhões de bovinos para abate doméstico, obedecendo ao Código Sanitário de Animais Terrestres, prescrito pela Organização Mundial da Saúde Animal, também conhecida pela sigla OIE! Para que um produtor rural possa vender animais para exportação, sua fazenda é auditada. Os novilhos exportados são rastreados individualmente. São inspecionados previamente, recebem brinco próprio, com chip, que servirá para informar sua procedência (fazenda de origem), sua alimentação (qual o tipo ingerido e por quanto tempo), o peso, a idade e a raça (ou cruzamento) de cada um! Passam por quarentena impecável. Os caminhões têm piso antiestresse, são inspecionados, pesados e lacrados após a conferência de carregamento, e no navio há acompanhamento de fiscais e veterinários desde o embarque, durante a viagem, até o descarregamento no destino, para assegurar a qualidade da exportação brasileira.5
Sem se referir especificamente ao caso em questão, observamos no trecho citado a existência de um discurso genérico, que busca dissolver as denúncias recorrendo ao fato de que existem leis e fiscalizações sobre as atividades ligadas à pecuária no país. E uma vez respondida as denúncias nesses termos, o foco sobre essa situação de conflito recaiu sobre aspectos econômicos: positivos, envolvendo o crescente número de animais exportados nessa modalidade e a exitosa
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Disponível em: <http://www.beefpoint.com.br/a-verdade-sobre-a-exportacao-de-gado-vivo-por-alexandre-valente-selistre/>. Acesso em: 7 mar. 2018 D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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movimentação financeira que ela gera; e negativos, envolvendo os prejuízos, também financeiros, trazidos pela possibilidade de que as denúncias dos defensores dos animais pudessem levar ao impedimento da concretização dessa transação de mercado. Da perspectiva dos agentes envolvidos, e da tomada de posição institucional, observamos que esse conflito foi entendido como um problema mercantil, em que o principal dilema consistia no fracasso ou no sucesso financeiro da atividade. Em matéria jornalística veiculada após uma ação que recorreu da determinação da Justiça Federal e deu ganho de causa para a saída do navio, a reportagem identificou o caso como uma “Uma guerra por um mercado de mais de R$ 800 milhões”.6 Observamos que a situação crítica envolvendo o transporte dos animais foi denunciada como uma ameaça à credibilidade e à situação financeira do país: “quebra de contratos de comércio internacional reflete na imagem e economia de todo o país, e no bolso dos cidadãos”. O caso, após a decisão da Justiça de suspender a saída do navio, mobilizou o ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que se reuniu com o presidente da república para tratar do assunto. Na ocasião, o ministro deu a seguinte declaração para os jornalistas: “Há um mercado livre bem competitivo no mundo. E o Brasil participa muito fortemente. Infelizmente, nesse embarque por Santos, houve interferência da Justiça, por ação de ONGs que afirmam que os animais não estão sendo bem tratados”, disse o ministro, confirmando que o recurso da AGU foi discutido com outras esferas do governo.
O debate, tal como se deu, mobilizou os valores da cidade comercial, em conformidade com o modelo desenvolvido por Luc Boltanski e Laurent Thévenot (2006), pois a ideia geral de injustiça presente no caso foi entendida como o fracasso dessa transação de mercado e os prejuízos financeiros decorrentes disso. Conforme esses valores gerais, não são os animais que aparecem na concepção de justiça dos atores, mas o sucesso desse mercado. E é justamente a importância dessa atividade, na qualidade de mercado promissor e de alto rendimento, que se constituiu como argumento para solucionar essa situação de conflito. Observamos, então, que ativistas e agentes ligados a essa atividade econômica, igualmente sujeitos a um imperativo de justificação, não acionaram os mesmos valores em seus trabalhos de operação crítica. E, uma vez que os animais, a partir do seu valor em si, não são representados pela filosofia política, não se constituem como um valor associado ao bem comum que poderia levar à justeza da situação. Desse modo, a reivindicação da solução do conflito em favor dos animais significou falar contra os interesses econômicos presentes nessa situação. E esses valores são um critério legítimo a ser acionado para colocar fim a uma situação de conflito. Os ativistas foram então desconsiderados ao serem reconhecidos como “fanáticos” por requerer que os animais estivessem no centro dessa situação crítica na qualidade de seres implicados com a justiça.
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Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43116666>. Acesso em: 7 mar. 2018
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Os fatos de que o bem-estar dos animais aparece na Instrução Normativa, conforme foi citado anteriormente, e de que em um primeiro momento esse princípio deu ganho de causa aos ativistas demonstram uma mudança no modo como animais são tratados em situações classificadas como injustas. Mas dentro das regras de aceitabilidade que conformam o imperativo de justificação ao qual os sujeitos estão submetidos para ter sua denúncia levada a sério, essa mudança não permitiu a associação dos animais ao bem comum. Tendo como elemento central os interesses econômicos, o que se deu foi que a possibilidade de suspender a exportação foi entendida como uma violação do bem comum, em termos financeiros, não só dos interessados diretos na venda e na compra dos animais, mas do país. Embora os ativistas forcem a entrada dos animais na vida pública como seres representados pela política, colocar seus interesses em detrimento dos múltiplos interesses humanos fez com que essa causa fosse vista como irrelevante. E o esforço dos ativistas consiste justamente em fazer dos interesses dos animais uma reivindicação legítima, ainda que signifique prejuízos de diferentes ordens aos interesses de humanos.
Críticas ao antropocentrismo Para defender que animais façam parte da mesma comunidade moral que os humanos e, então, incluí-los nos valores gerais que remetem ao bem comum, esses agentes buscam fundamentalmente criticar e desconstruir o antropocentrismo como um paradigma civilizatório, que é, segundo suas perspectivas, denunciado, uma vez que considera apenas humanos como sujeitos morais. Como discutido em trabalho anterior (PERROTA, 2015), o principal aspecto para criticar o antropocentrismo é demonstrar que a tese sobre a singularidade humana se constitui por um lado como um engano epistemológico e, por outro, como um projeto de dominação dos humanos sobre as demais espécies. A “moralidade ocidental antropocêntrica” teria sido, então, responsável por excluir os animais da esfera pública e nos tornado insensíveis a eles, ao fazer deles seres que existem para atender às nossas necessidades. Nesses termos, o antropocentrismo é reelaborado pelos defensores como uma categoria acusatória, com implicações morais na medida em que passa a nomear um tipo de relação que seria baseada na dominação dos homens sobre os animais. O antropocentrismo é denunciado, então, como “especista", que ao lado do machismo e do racismo, seria outro tipo de preconceito, agora contra os animais, que são entendidos e tratados como seres inferiores aos humanos. A ideia de superioridade humana e inferioridade animal é entendida como uma noção arbitrária, que engendra uma relação com os animais que é fruto de uma relação discriminatória. Desse modo, assim como mulheres, negros e crianças já tiveram seus direitos restringidos, a ideia é que os animais se encontram na mesma situação, e para superar essa injustiça devem ser incluídos no âmbito da proteção jurídica, uma vez que são, assim como os humanos, merecedores de consideração moral. Os defensores reivindicam então um deslocamento do lugar ocupado pelos animais no mundo do direito, passando do polo das coisas para o polo das pessoas, de modo a ser coberto pelas proteções correspondentes a esse tipo de existência jurídica. De maneira D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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fundamental, os defensores justificam o fim de todos os usos animais considerando que não é ético nos alimentarmos, por exemplo, de carne. E não sendo ético, não pode, em termos jurídicos, ser legal. A reivindicação de direito aos animais coloca em jogo o universo em torno da consideração moral do “outro”, que se desdobra não apenas em um diálogo intercultural, mas interespécie. E, por sua vez, como veremos a seguir, pensar no animal como “outro” nos leva a uma reviravolta sobre as noções de humanidade e animalidade que guiam o direito, a moral e a justiça.
Animais como “o outro” a quem devemos também ter respeito O pensamento ocidental sobre a relação entre humanos e animais é caracterizado por uma fronteira fixa entre ambos. Diferentes atributos são destacados a fim de marcar a condição humana, e, portanto, a especificidade e o privilégio do ser humano em face de outras espécies. Como afirma Descola (2010), os animais são considerados seres “puramente materiais, pois eles não podem a priori participar dessa substância que nós entendemos como alma” (p. 176). Além disso, os humanos se distinguem dos não humanos, segundo Descola, também pela consciência reflexiva, pela subjetividade, pelo poder de significar e pelo controle dos símbolos e da linguagem, que é o meio através do qual essas faculdades se exprimem. Essa noção de humanidade torna os seres humanos sujeitos morais em vez de coisas, e permite, de acordo com Ingold (1994), que homens e mulheres sejam considerados “pessoas”. Todavia, contrário a essa tendência marcada pelo processo de definição da fronteira que distingue e hierarquiza seres humanos e animais, observa-se nas últimas décadas um esforço no sentido de questionar as diferenças entre humanos e não humanos, e não é uma atividade apenas dos defensores dos animais. No âmbito das Ciências Sociais, os estudos sobre as relações dos homens com a natureza buscam identificar que essa diferença nunca existiu ou, pelo menos, deixou de existir (LATOUR, 1994). Os questionamentos acerca da dualidade natureza-cultura se fazem também a partir de estudos que problematizam a universalidade desse paradigma. Em face de outras sociedades em que a dualidade natureza-cultura não encontra sentido, autores como Eduardo Viveiros de Castro, Philippe Descola, Tim Ingold, se dedicaram a compreender formas alternativas de identificação do mundo. Observa-se, então, que embora a modernidade seja caracterizada pela afirmação da condição humana e sua singularidade, o que está sendo colocado em jogo atualmente é o questionamento sobre as representações de humanidade e animalidade. No âmbito dos movimentos sociais, a mobilização política dos ativistas ligados à reivindicação de direitos animais se constitui como exemplo dessa situação atual marcada pela tentativa de problematizar a fronteira entre humanos e não humanos. Portanto, defender os direitos dos animais pode ser entendido como o questionamento de alguns postulados centrais da lógica ocidental uma vez que essas questões mobilizam domínios como a filosofia, a ética e a política. Nesse sentido, trata-se de um caso limite de luta por direitos, no qual os esforços de sensibilização e as formulações éticas têm como objetivo último “dar voz” aos animais e fazer das questões dos direitos animais um tema político. D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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Essa situação é limite porque esses movimentos rejeitam uma perspectiva utilitarista e antropocêntrica, mas precisam dialogar com os princípios de uma “humanidade em comum” e de “bem comum”, como discutido a partir do trabalho de Luc Boltanski (2002; 2006). Portanto, essa manifestação política, embora pareça despropositada, se torna interessante de ser pensada na medida em que confronta o sistema político de representação dos humanos, desafiando a doutrina jurídica e “nossas” formas canônicas de pensar o mundo. Tais desafios produzem enfrentamentos em diferentes âmbitos da sociedade, uma vez que a luta pelos direitos dos animais se caracteriza pela interdição de qualquer uso dos animais para fins humanos. Tendo em vista o que foi dito, esse desafio não diz respeito apenas às práticas jurídicas, mas exemplifica um dos dilemas postos para as Ciências Sociais no que se refere à crítica ao paradigma dualista que marca a cosmologia ocidental. Os abalos recentes provocados sobre a fronteira moderna que separa humanos e não humanos produz uma inquietação sobre a concepção de natureza e sobre o próprio saber antropológico. Os não humanos são deslocados para o centro da filosofia política, tornando explícito o que já foi dito anteriormente: que a política sempre foi, embora manifeste o contrário: uma política das coisas (LATOUR, 1994). Seja através da perspectiva de que nunca fomos modernos ou segundo a perspectiva de que a natureza está em “crise”, as Ciências Sociais têm problematizado a maneira como os sistemas de qualidade são expressos nos objetos do mundo, e, por conseguinte, a complexidade das formas de relação entre os viventes. Assim, compreendemos que a humanidade na qualidade de princípio moral não é uma constatação lógica que decorre da espécie humana. O entendimento da relação humano-ambiental através da distribuição dos humanos e não humanos em dois domínios ontológicos separados deve ser entendido, portanto, como um dos diferentes modelos culturais que produz a distribuição dos seres no mundo. Os antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Philippe Descola relativizaram em seus trabalhos a relação entre humanos e animais. A partir das etnografias realizadas em sociedades ameríndias, que demonstraram esse cenário de múltiplas representações da “natureza”, Viveiros de Castro (1996) afirma que: Em particular, como muitos antropólogos já concluíram (embora por outros motivos), a distinção clássica entre Natureza e Cultura não pode ser utilizada para descrever dimensões ou domínios internos a cosmologias não-ocidentais sem passar antes por uma crítica etnológica rigorosa. (p. 115).
Nesse sentido, o antropólogo afirma ainda que: As categorias de Natureza e Cultura, no pensamento ameríndio, não só não subsumem os mesmos conteúdos, como não possuem o mesmo estatuto de seus análogos ocidentais – elas não designam províncias ontológicas, mas apontam para contextos relacionais, perspectivas móveis, em suma, pontos de vista. (p. 116). D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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A problematização realizada pelo antropólogo vai além da concepção de que a humanidade e a animalidade se constituem como estados naturais, na medida em que o autor contrasta o princípio relacional do pensamento ameríndio com a concepção moderna que designa o mundo a partir de estados ontológicos. O que está sendo discutido, portanto, é que não só a natureza da fronteira entre humanos e animais deve ser relativizada, mas também o princípio que define essa fronteira. Embora o pensamento ocidental se afirme como portador da objetividade científica, tal pressuposto se constitui de fato como uma forma de conhecimento que pode ser inquirida diante de outras sociedades. De acordo com esses estudos, compreende-se que nossa definição convencional de pessoa como uma prerrogativa dos seres humanos é dependente da visão de mundo ocidental. Como Ingold (1994) afirma, ao levar a sério a expressão de outros mundos possíveis, a Antropologia passou a entender, então, que há tantos padrões de humanidade quanto diferentes maneiras humanas de existir. Atentas às diversidades culturais, as Ciências Sociais partem do pressuposto de que não há fundamento algum para atribuir autoridade universal ao paradigma da dualidade natureza-cultura. Tendo em vista essa discussão, o antropólogo francês Philippe Descola (2001) tem mostrado que há diferentes modelos culturais da natureza que não podem ser compreendidos à luz da concepção moderna. Nesse sentido, o antropólogo coloca em questão não só a universalidade do modo como os modernos identificam a fronteira entre humanos e não humanos, mas também a abordagem antropológica sobre a natureza. Ocorre, então, que o problema da insuficiência do paradigma moderno para pensar outros povos aponta também para a insuficiência de nossos modos de representação e, sobretudo, dos aparatos conceituais da Antropologia. A retomada dos estudos sobre a natureza, realizada pelas Ciências Sociais, tem, então, como objetivo reconhecer a relação humano-ambiental como uma construção social, e, por conseguinte, considerar que as conceitualizações do ambiente são produtos de contextos históricos em perpétua mudança. Desse modo, a revisão da Antropologia se faz necessária, segundo a perspectiva do autor, uma vez que seja através da concepção materialista em que a natureza conforma a cultura, ou através da perspectiva da antropologia simbólica em que a cultura impõe significado à natureza, “ambas compartilham a mesma concepção universalista da natureza” (DESCOLA, 2001, p. 13). Essas duas definições foram sintetizadas por Descola a fim de traçar o panorama da abordagem antropológica sobre a natureza. Em sua análise, o autor nos mostra que elas deixam claro que o relativismo cultural até então nunca questionou a aceitação de uma concepção universal de natureza. Portanto, com a Antropologia da Natureza, Descola busca abandonar a dualidade naturezacultura como um dogma das Ciências Sociais. A ideia é compreender as diferentes maneiras de identificação do mundo, tendo em vista que não se trata simplesmente de determinar o lugar exato das fronteiras da pessoa, da tecnologia e do meio ambiente, mas de “chamar atenção sobre a existência de distintos campos de significação” (DESCOLA, 2001, p. 30). Trata-se de pensar que o mundo natural é objeto de inúmeras atividades de atribuição de significados que conferem D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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sentido e ordenamento ao espaço biofísico, além de comandar atos e práticas referentes a esse espaço. Essa perspectiva, no entanto, não se atém à dimensão simbólica exclusivamente. O objetivo é pensar a relação entre os homens e o mundo natural como uma relação social plena e real. Nessa crítica à Antropologia, mais do que abandonar a noção de uma natureza separada dos humanos, há igualmente um desafio colocado, que é entendido como fundamental para a exploração de novos caminhos acerca da conexão natureza-cultura. De acordo com Descola (2001), “desconstruir o paradigma dualista pode aparecer simplesmente como um exemplo da mais saudável autocrítica que hoje permeia a teoria antropológica” (p. 23). Diante dos ataques com argumentos teóricos e empíricos às tradições antropológicas e biológicas “que insistem em separar ambas as coisas” (p. 30), a Antropologia teria que repensar o paradigma dualista a fim de torna-se capaz de compreender os sistemas locais de entendimento do mundo. Uma vez que essa dicotomia dificulta uma compreensão verdadeiramente ecológica, abandonar o paradigma dualista permitiria que outros modos de identificação fossem entendidos de maneira adequada: Ir além do dualismo abre uma paisagem intelectual completamente diferente, uma paisagem em que os estados e substâncias são substituídos por processos e relações; a questão mais importante já não é como objetificar sistemas fechados, mas como explicar os próprios processos de objetificação. (DESCOLA, 2001, p. 23).
Observa-se, então, que o paradigma dualista, como categoria analítica das Ciências Sociais e fundamento chave da epistemologia moderna, demonstra o despreparo da Antropologia para analisar as diferentes formas de saber ecológico (DESCOLA, 2001, p. 14). Ao serem objetivados de acordo com as pautas ocidentais, os conceitos de relações particulares entre a pessoa e o ambiente escapariam de uma compreensão antropológica. Ignorar os critérios de classificação locais, como Descola aponta, leva a Antropologia a restringir a conceitualização dos seres às classes de objetos que são identificados como pertencentes à categoria ocidental de natureza. Nesse sentido, repensar a maneira como a modernidade pressupõe a conexão natureza e sociedade significa repensar a própria abordagem antropológica sobre a relação entre humanos e não humanos. De acordo com essa revisão, “nossa” visão dualista do mundo deve deixar de ser projetada como um paradigma ontológico sobre as muitas sociedades estudadas. A análise sobre os sistemas de objetivação do mundo onde essa distinção formal está ausente deve ser realizada tendo em vista os modos de entendimento locais. Segundo Descola (2001), admitir essa premissa significa levar a sério a evidência que oferecem muitas sociedades e que o reino das relações humanas abarca um domínio mais amplo que a mera sociedade dos humanos. Essa abordagem revela, portanto, a possibilidade de existência de diferentes modos segundo os quais as “coisas” (seres e objetos) são distribuídas no mundo. Refutar a universalidade do paradigma dualista e, por conseguinte, a perspectiva de que esse paradigma poderia ser projetado sobre as cosmologias não ocidentais permitem o estudo das D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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diferentes maneiras de pensar a natureza. Ao levar a sério outras concepções sobre a relação natureza-cultura, Philippe Descola realizou um esforço para sistematizar as maneiras como as sociedades distribuem identidades relacionais específicas dentro da coletividade de humanos e não humanos. A partir da crítica à universalidade da tradição do pensamento moderno, o autor delineou, portanto, diferentes modos de identificação do mundo. Seus trabalhos resultaram na construção de um modelo com quatro modos de identificação: animismo, totemismo, analogismo e naturalismo. Conforme o autor, tais modos de identificação refletem a variedade de estilo e de valores que se encontram na vida cotidiana dos grupos sociais e que se constituem como princípios que organizam a relação entre os seres. O modelo elaborado pelo autor procura abranger o modo como as sociedades organizam a relação cultura-natureza e produzem ontologias específicas. O autor busca, então, estabelecer padrões gerais sobre a maneira como as pessoas constroem representações de seu ambiente físico e social. Embora não seja válido que esse modelo seja tratado de modo abrangente, é importante abordá-lo ainda que sucintamente para discutirmos os diferentes padrões em que o pensamento opera. Nesse sentido, será possível contrastar a “nossa” cosmologia com as cosmologias ameríndias e evidenciar as diferentes maneiras em que humanos e não humanos são distribuídos conforme os sistemas culturais. Proponho, pois, que sejam discutidas e contrastadas as definições de animismo e naturalismo, pois esses dois modelos ontológicos permitem a discussão sobre as noções de humanidade e de ser humano mais especificamente. Descola (2001) caracteriza o animismo como uma maneira de identificação em que os humanos e a natureza não são distribuídos em lugares distintos e opostos. Segundo esse modo de identificação, as categorias elementares que estruturam a vida social são utilizadas “para organizar em termos conceituais as relações entre os seres humanos e as espécies naturais” (p. 108). Os sistemas anímicos consistem em um modo de identificação em que humanos e não humanos têm uma interioridade compartilhada através da alma. Como exemplo, Descola (1997) afirma que os Achuar, que vivem na Amazônia peruana, classificam os animais e as plantas como “pessoas”, assim como os humanos, pois o fato de ter alma garante a eles a capacidade de refletir e de ter intencionalidade. Torna-os capazes de sentir emoções e de trocar mensagens com seus pares e com membros de outras espécies, inclusive os humanos. A floresta é para os Achuar palco de relações sociais. A maior parte das plantas e dos animais está incluída em uma comunidade de “pessoas” que partilham total ou parcialmente as mesmas capacidades atribuídas aos humanos. O animismo pode ser definido, portanto, “como uma ontologia que postula o caráter social das relações entre as séries humana e não-humana: o intervalo entre natureza e sociedade é ele próprio social” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 121). Segundo esse modelo de representação, as disposições humanas e as características sociais são atribuídas igualmente aos seres naturais. Por outro lado, o naturalismo, que marca a tradição do pensamento ocidental, é caracterizado pelo dualismo ontológico natureza-cultura e pela noção de que as relações entre sociedade e natureza são “naturais”. A partir dessa perspectiva, acreditamos que a natureza efetivamente D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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existe como um domínio autônomo. Desse modo, o naturalismo cria um domínio ontológico específico, “um lugar de ordem e de necessidade, onde nada ocorre sem uma razão e sem uma causa” (DESCOLA, 2001, p. 109). A respeito desse assunto, Descola (2001) afirma, então, que como o naturalismo é o nosso modo de identificação, que permeia o senso comum assim como a prática científica que realizamos, a pressuposição de que esse modelo é “natural” estrutura nossa epistemologia e a percepção de outros modos de identificação. Somos levados a pensar que o animismo, o analogismo e o totemismo são falsos, ou manifestações simbólicas do que chamamos de natureza, mas sem levar em consideração que a natureza como um domínio autônomo está igualmente longe de ser um dado primário da experiência. Em linhas gerais trata-se de pensar que as relações sociais, que são as relações contratuais ou instituídas entre sujeitos, só têm possibilidade de existência no interior da sociedade humana. Já o animismo, tem a “sociedade” como polo não marcado, o que faz com que os atributos humanos sejam estendidos para além da espécie humana. Conforme Viveiros de Castro (1996), esse sistema não denota a humanidade como espécie natural, mas a condição social de “pessoa”. O que significa dizer que é atribuído aos não humanos as capacidades de intencionalidade consciente e de agência que definem a posição de sujeito. O costume de dividir o universo entre os domínios cultura e natureza não corresponde, pois, a uma expressão espontânea da experiência humana, uma vez que as sociedades ameríndias identificam como “pessoa” animais, plantas, paisagens e pedras. Viveiros de Castro (1996) assinala a diferença em relação ao naturalismo, afirmando que na ontologia animista: A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. A grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos. Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos: os animais são exhumanos, e não os humanos ex-animais. (p. 126).
Nos sistemas anímicos, a condição humana não se constitui apenas como um estado de existência aberto aos membros da espécie humana. Diferentemente da ontologia naturalista, não existe uma fusão entre o conceito biológico da espécie humana com o de “pessoa”. Ao contrário, o modo como o animismo distribui e organiza seres e coisas no mundo parte do pressuposto de que há entre eles um estado de indefinição originário em que todos são “pessoas”. Nesse sentido, a condição comum entre humanos e animais é a humanidade, o que difere do pensamento ocidental que considera a animalidade como condição comum. Evocando a noção de animismo recuperada e reelaborada por Descola (2001), o antropólogo Viveiros de Castro (1996) trata do que chamou de perspectivismo ameríndio. Trata-se do esforço do autor para refletir sobre as noções de humanidade e animalidade, tendo em vista os modos alternativos ao pensamento ocidental de representações do ambiente físico e social. Podemos entender essa noção como complemento à ideia de animismo, pois se este fala da continuidade D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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entre humanos e não humanos, a ideia de perspectivismo ocupa-se do que diferencia os seres e as coisas no mundo. Diferentemente de Descola (2001), que buscou identificar os modos de objetivação da natureza, mas ao mesmo tempo, partindo desse modelo dos modos de identificação, Viveiros de Castro trouxe uma importante contribuição para a Antropologia da Natureza. Ao procurar compreender não o ponto de vista nativo, mas “o que é um ‘ponto de vista’ para o nativo” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 122), o autor trouxe outros elementos que apontam para a necessidade de criticar a universalidade da dualidade natureza–cultura. Em diálogo com a ontologia animista, o antropólogo identificou em conjunto com Tânia Stolze Lima (2005), que em diferentes sociedades ameríndias o modo como os seres humanos veem os animais e outros seres e coisas que compõem o universo é diferente do modo como esses seres os veem e se veem. De maneira geral, o perspectivismo ameríndio é entendido como a “concepção, comum a muitos povos do continente, segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 115). Assim, o autor afirma que seu objeto de estudo não é o modo de pensar indígena, mas os objetos desse pensar, ou seja, o mundo possível que seus conceitos projetam. Tendo em vista a noção de animismo assim como a de perspectivismo cosmológico, Viveiros de Castro (1996) vislumbrou uma nova concepção que contrasta com um dos princípios norteadores da Antropologia. Trata-se do conceito de multinaturalismo, como uma maneira de identificação do mundo das sociedades ameríndias (VIVEIROS DE CASTRO, 1996). O reembaralhamento dos domínios identificados como natureza e cultura, ordenado através da noção de que humanos e não humanos compartilham uma “humanidade” comum, mas têm pontos de vistas diferentes, levou o autor a propor esse conceito para caracterizar uma das formas constituintes do pensamento ameríndio. Assim, o conceito moderno de multiculturalismo, que diz respeito à unicidade na natureza e à multiplicidade das culturas dá lugar no pensamento ameríndio à suposição de uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos. Nesse sentido, “a cultura ou o sujeito seriam aqui a forma do universal, a ‘natureza’ ou o objeto a forma do particular” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 117). No sistema de significados das sociedades ameríndias, a natureza não é una, externa e total. Ao contrário do modo de objetivação naturalista, a natureza deixou de ser um cenário comum. Nessa situação o que existe é uma “cultura” e múltiplas “naturezas” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, 2002). Segundo o autor, os diferentes seres têm uma “essência” comum, mas diferentes corpos. Na medida em que os seres do mundo compartilham a humanidade comum, é através dos corpos que se faz a diferença entre humanos e não humanos. Mas, como Viveiros de Castro ressalta, essa diferença dos corpos não diz respeito a sua realidade biológica. Os conceitos é que são diferentes. Portanto, não é outra visão de um mesmo corpo, mas “outro conceito de corpo” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002) que está colocado em questão ao comparar o pensamento ameríndio com “nossa” ontologia naturalista. D &D [ n.17 | 2019.2 | pp. 25- 45 ]
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Considerações finais A suposição de que a natureza é um domínio de realidade trans-histórica e transcultural (DESCOLA, 2001) foi abandonada na medida em que Antropologia levou a sério não só a “crise” da natureza, mas os trabalhos etnográficos que mostravam diferentes maneiras de representação do mundo. Em uma crítica à epistemologia moderna, a Antropologia deixou de se pautar pela ideia de existência de ontologias reais e levou em considerações as diferentes representações do mundo. A abordagem antropológica, a partir da perspectiva dos autores discutidos, passou a ser orientada através do entendimento de que cada sociedade objetiva tipos específicos de relação com seu ambiente, mas que não são menos reais uma vez que são vividos plenamente. Portanto, ao perguntar, por exemplo, o que são os animais, não se trata de pensar na qualidade que resulta da natureza dos seres, mas se trata de pensar nas formas ontológicas que são recebidas como verdadeiras na cultura em que se nasce. Essa discussão permite, em primeiro lugar, entender por que o projeto político dos defensores dos animais parece uma ação inadequada e, em segundo lugar, situarmos a reivindicação de direito aos animais no âmbito de uma discussão que leva em consideração os aspectos filosóficos e socioantropológicos que tratam da percepção que temos sobre humanidade e animalidade. Observamos que o esforço dos defensores dos animais consiste em agrupar humanos e não humanos. No entanto, essa perspectiva entra em contradição com os esforços da modernidade, que nos últimos séculos atuam justamente para separar humanos de todo o resto. Assim, entendemos porque soa absurdo tratar o que seriam os interesses animais de maneira equivalente ao que entendemos como interesse humanos. E, ao mesmo tempo, compreendemos também como o debate sobre os direitos dos animais pressiona as fronteiras entre humanidade e animalidade, trazendo implicações sobre as noções de justiça, moral e direito resultantes disso.
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