Revista Desigualdade & Diversidade, n. 18

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Revista Desigualdade & Diversidade

APRESENTAÇÃO SOBRE GÊNERO, RAÇA E CONSTRUÇÕES CORPORAIS: ALINHAVANDO CONEXÕES E DESCOSTURANDO DUALIDADES Sonia Maria Giacomini* Olívia Nogueira Hirsch**

*Sonia Giacomini é antropóloga pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS-MN/UFRJ) e socióloga pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PPGCIS/PUC-Rio). Pesquisa gênero, raça, corpo e sexualidade no Brasil, tendo publicado, entre outros livros, Mulher e escrava: uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no Brasil (Vozes, 1988), A alma da festa (Editora UFMG; IUPERJ, 2006) e diversos artigos. ** Olivia Hirsch é doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), onde também atua como docente na área de Antropologia. Pesquisa antropologia da saúde, corpo, gênero e maternidades, e é autora do livro Parto natural, parto humanizado: perspectivas de mulheres de camadas populares e médias, publicado pela editora Fiocruz (2019).

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É notório o interesse (e o aumento em sua quantidade) por pesquisas que vêm discutindo mudanças associadas à implementação de políticas no Brasil que há mais de uma década estão se direcionando para minorias raciais e étnicas, igualdade de gênero e direitos sexuais. Abarcando amplo leque de temas, destacam-se na produção acadêmica contemporânea as contribuições que refletem sobre gênero, raça e sexualidade. O estudo desses temas à luz de novas abordagens tem resultado em aportes que, mais além de aprofundarem discussões acerca de assuntos já consolidados, apontam para a construção de novos temas e objetos. Ressalta-se também que esses novos olhares e abordagens decorrem, em boa parte, da conexão e da sintonia com as dinâmicas de movimentos sociais, feministas, negros, LGBTQ+, focalizando sobretudo interações entre diferentes maneiras de construção da alteridade, na abordagem conjugada de vários marcadores sociais de diferença que, de maneira combinada, interseccional (CREENSHAW, 2002) ou consubstancial (KERGOAT, 2010), convivem em modos de pensar, agir e sentir da vida social. Assim, questões que no passado eram comumente tratadas de maneira isolada ou, quando muito, situadas em mera justaposição, passaram a ganhar novo fôlego e a se enriquecer mutuamente através de abordagens teóricas e categorias que enfatizam as diferentes conexões e formas combinadas de opressão – isto é, de marcas e identificações que, combinadas, registram e produzem as diferenças que de maneira simultânea constroem indivíduos e corpos generificados e racial e sexualmente marcados. De formas específicas e combinadas, as experiências individuais e coletivas de negros(as), brancos(as), pardos(as), homens, mulheres, LGBTQ+ e outras, em todas as suas possíveis feições e recombinações, são referências que permitem explorações que ampliam as possibilidades de compreensão das formas de opressão e discriminação que identificam nas sociedades contemporâneas indivíduos e grupos “marcados”. Trata-se de indivíduos e grupos cuja alteridade é hierarquizada, cuja diferença é transmutada em desigualdade, que, como enfatiza boa parte da produção contemporânea, são construídos através de um contraste com sujeitos considerados referência e padrão, e que, justamente por permanecerem subentendidos e onipresentes, representam de maneira eficiente e emblemática o universal: o homem branco heterossexual das camadas sociais superiores. Nesse sentido, a emergência de conceitos e noções como branquitude (ou witheness), assim como masculinidade hegemônica e heterossexualidade, vem suscitando e alimentando a reflexão crítica acerca de significado e valor sociais do privilégio de ser classificado como universal e não marcado em um mundo altamente inigualitário. Isso coloca em pauta a necessidade de construção de alianças nas lutas pelos direitos humanos contra a desigualdade social, em particular contra o sexismo, o racismo e a heteronormatividade.

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Como se combinam diferentes “marcas” de opressão? Essa questão, como se sabe, estava ausente das primeiras formulações da produção sociológica e antropológica sobre gênero que, sobretudo até os anos 1970, reivindicavam o papel decisivo do sistema de sexo-gênero (RUBIN, 1975) e o da divisão público/privado nas formas de configuração da subordinação das mulheres. Nessas formulações as mulheres apareciam confinadas ao espaço doméstico, ao passo que no espaço investido de poder, o espaço público, estavam os homens.1 Donna Haraway, em denso texto em que reúne diferentes teorizações sobre o conceito de gênero (2004), aponta o influente artigo de Sherry Ortner – sugestivamente intitulado “As mulheres estão para a natureza assim como os homens estão para a cultura”, publicado em uma coletânea em 1974 – como o texto que condensa a teorização mais recorrente na segunda metade dos anos 1970. Com efeito, a oposição natureza-cultura, desdobrada como oposição homemmulher, presente na formulação de Ortner, serviu como um marco e teve largo curso no pensamento feminista da época. Embora a universalidade dessa oposição tenha sido recebida pela antropologia de maneira crítica e tenha conduzido essa disciplina a ricas abordagens transculturais de simbolismos de gênero que a contradiziam, tais ideias, “não obstante, persistiram em muitos discursos fora dos círculos antropológicos, como se as posições de meados dos anos 70 fossem uma teoria feminista antropológica permanentemente autorizada e não um nódulo discursivo num momento específico político-histórico disciplinar” (HARAWAY, 2004, p. 237). Concordando com a autora, é preciso destacar que somente em período bem mais recente a universalidade do dualismo natureza-cultura passou a ser mais ampla e profundamente reconsiderada no pensamento feminista. O que teria contribuído para a revisão dessas oposições e universalidades? Não seria exagero afirmar que as mais agudas críticas políticas às formulações teóricas feministas universalizantes chegaram através da voz de mulheres que simplesmente não se reconheciam nos enquadramentos que postulavam a distinção natureza-cultura que informa a conhecida proposição do sistema de sexo-gênero proposta por Gayle Rubin (1975). A “domesticação das mulheres” era, nessa formulação, o resultado de um “sistema de relações sociais que transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana” (RUBIN, 1975, p. 159). As fêmeas humanas são um material bruto na produção social de mulheres que ocorre através da troca nos sistemas de parentesco controlados por homens na fundação da cultura humana (RUBIN, 1975). Como se situavam, então, as mulheres racializadas e etnicizadas, sobretudo negras, e/ou as

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Destaca-se, por sua importância e grande difusão também no Brasil, a coletânea de ROSALDO, M.; LAMPHERE, L. (Eds). Women, culture and society. Palo Alto: Stanford University Press, 1974 . Essa coletânea foi traduzida e publicada em português sob o título Mulher, cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

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mulheres do chamado “terceiro mundo”, ou da periferia do capitalismo? Universalizada, a categoria gênero identificava um sujeito do feminismo no qual eram obscurecidas ou secundarizadas todas as outras alteridades, revelando assim forte impregnação etnocêntrica e imperialista dos feminismos europeu e estadunidense. Dessa maneira, se “a produção social de mulheres” se dá nos marcos da troca no interior dos sistemas de parentesco, como então pensar a posição social das mulheres que se encontram fora dessa instituição do parentesco característica do grupo dominante? Como pensar aquelas cuja posição não decorre do lugar ocupado no próprio sistema de parentesco (RUBIN, 1975), mas sim das formas de funcionamento do sistema de parentesco de outro grupo, o grupo dominante? Tanto a posição social quanto o processo de produção dessas “outras” mulheres permaneceram completamente invisibilizados na teoria feminista, justamente por não se encaixarem no enquadramento conceitual proposto.2 Fora das configurações em que estavam sendo pensadas as opressões de gênero encontravam-se, no entanto, todas aquelas “outras” mulheres que, circulando, convivendo e, sobretudo, trabalhando dentro e fora do espaço privado feminizado, não se encaixavam no modelo. Mais que isso: o não reconhecimento, ou desconhecimento, de certa maneira autorizava questionar, relativizar ou desqualificar até mesmo sua inclusão na categoria mulher modelar assim constituída. Uma importante reflexão do feminismo negro, especialmente norte-americano, investiu na produção de teorias sobre os sistemas de diferenças em que raça, sexo, classe, nacionalidade, no presente e no passado, se entrelaçavam (ver DAVIS, 2016; COLLINS, 2008, entre outras). No Brasil, assim como nos Estados Unidos, ambos países profundamente marcados por um passado escravagista, há que se mencionar uma produção feminista que desde os anos 1980 se debruçou sobre a vida das escravas negras, mulatas, mães-pretas, mucamas e quitandeiras (GONZALEZ, 1984; CARNEIRO, 2011; BAIRROS, 1995; MAGALHÃES; GIACOMINI, 1983; GIACOMINI, 1985, 1988; e outras). Na atualidade, em que se mantêm e se reproduzem diferenças profundas que segundo Spillers (1987) extrapolaram a abolição formal, existem consequências definitivas até o final do século XX e continuarão a existir até que o racismo – uma instituição fundadora do Novo Mundo – tenha acabado. Fora dos vínculos e da gramática do parentesco, as mulheres escravas “marcadas” e racializadas foram constituídas como fêmeas. Animalizadas, sexualizadas, era-lhes negada a condição mesma de “mulher”, socialmente construída como aquela que é humana, posto que esposa e mãe. Assim destituídas dos atributos aos quais se acede

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“Ain’t a woman?”, escreveu bell hooks (1981), retomando a frase histórica e questionando ironicamente a não inclusão de mulheres negras em uma formulação em que o sujeito do feminismo é restringido.

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através do casamento, essas fêmeas não mulheres não participavam da transmissão de um nome por estarem fora das trocas matrimoniais. Foi somente quando a sexualidade, a maternidade, o trabalho, o parentesco e a sociabilidade também dessas “outras” passaram a ser incluídos na reflexão feminista e de gênero, que ganhou impulso a formulação de uma teoria crítica da produção de sistemas de diferenças hierárquicas. O entendimento de que não há uma identidade única, pois a experiência de ser mulher não é indissociada de raça, gênero, classe social, orientação sexual, foi certamente uma contribuição relevante do feminismo negro. A grande novidade trazida por essa perspectiva é a de que a partir daí não seria mais possível falar na/da mulher em geral, pois a experiência da opressão da mulher decorre da posição que ocupa em uma matriz de dominação em que raça, gênero e classe social encontram-se conectadas de múltiplas maneiras e em várias combinações. A experiência de ser mulher se dá, portanto, social e historicamente determinada. No âmbito desse breve comentário a respeito dos aportes que vieram enriquecer a produção sobre gênero, raça e construções corporais nas ciências sociais contemporâneas, não poderia estar ausente a decisiva contribuição trazida pelo pensamento decolonial, sobretudo nos países periféricos. A chamada perspectiva decolonial tem colaborado de maneira ampla e significativa ao oferecer um novo olhar para os temas que aqui nos interessam, ao postular que há corpos, sexualidades, gêneros e raças construídos a partir da colonialidade. Ao identificar na ideia de “raça” um elemento fundante da colonialidade do poder, Quijano (2002) chama a atenção para o fato de que no sistema de poder contemporâneo a “raça” tem lugar central, pois opera como fundamento do padrão universal de classificação social básica e de dominação social. A própria ideia de “raça” e a classificação social que a tem como base, ambas originadas há mais de 500 anos, contemporânea e articuladamente com o nascimento da América e da Europa, da metrópole e da colônia, do centro e da periferia, da modernidade e do capitalismo, são encaradas por essa corrente de pensamento como “a mais perdurável expressão da dominação colonial e [foram] impostas a toda população do planeta no curso da expansão do colonialismo europeu” (QUIJANO, 2002, s. p., grifo nosso). Desde então, o conceito de “raça” e o sistema de classificação racial que lhe é coessencial têm demonstrado uma enorme vitalidade e uma impressionante longevidade, posto que no padrão atual de poder impregnam todas as dimensões da vida social, consistindo na “mais profunda e eficaz forma de dominação social, material e intersubjetiva, e são, por isso mesmo, a base intersubjetiva mais universal de dominação política dentro do atual padrão de poder“ (QUIJANO, 2002, s.p.). Além da indelével presença da “raça” na colonialidade, as inter-relações entre colonialidade e patriarcado vêm sendo exploradas de maneira bastante fértil e sugestiva

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pela reflexão decolonial, provocando importantes debates sobre a existência ou não de nomenclaturas de gênero nas sociedades tribais e afro-americanas,3 sobre o lugar da mulher nessas configurações, e, sobretudo, lançando novas pistas que permitem ampliar a compreensão a respeito da diversidade das relações de gênero e sexualidade que coexistem na contemporaneidade. Destaca-se nessa produção feminista decolonial a contribuição de Rita Segato, antropóloga que confere à reflexão sobre o gênero um real estatuto teórico e epistêmico, ao examiná-lo como uma categoria que ilumina as transformações impostas às comunidades capturadas e submetidas à nova ordem colonial/moderna. Segato problematiza as maneiras pelas quais o colonialismo modificou historicamente as relações de gênero dos povos submetidos à colonização e examina os resultados dessas transformações na atualidade. A colonialidade é “uma matriz que organiza hierarquicamente o mundo de forma estável” (SEGATO, 2012, p. 113), e que apresenta uma forma interna: “uma história que instala uma episteme da colonialidade do poder e da raça como classificadores [...] e também uma história das relações de gênero dentro do cristal do patriarcado” (p. 113). Essas histórias “respondem à expansão dos tentáculos do Estado modernizador no interior das nações [...] desarticulando, rasgando o tecido comunitário, levando o caos e introduzindo uma profunda desordem em todas as estruturas que existem e no próprio cosmos” (p. 113). Um dos efeitos desse processo, o qual provoca um desordenamento das estruturas anteriores do “mundo-aldeia” (pré-intrusão da colonial/modernidade), seria o “agravamento e a intensificação das hierarquias que formavam parte da ordem comunitária pré-intrusão”, isto é, que “exacerbaram e tornaram perversas e muito mais autoritárias as hierarquias que já continham em seu interior – que são basicamente as de status, como casta e gênero” (SEGATO, 2012, p. 114). De acordo com Segato (2012), a infiltração das relações de gênero da ordem colonial moderna nas relações de gênero no “mundo-aldeia” teria redundado em uma espécie de “entroncamento de patriarcados”, de que resultaram profundas alterações na organização das relações de gênero no “mundo-aldeia”. No mundo-aldeia haveria estruturas de gênero reconhecíveis e, à primeira vista, assimiláveis ao que se denominam relações de gênero na modernidade (p. 117), envolvendo hierarquias de prestígio entre a masculinidade e a feminilidade. Mas haveria uma importante diferença, pois no mundo-aldeia “são mais frequentes as aberturas ao trânsito e à circulação entre essas posições que se encontram interditas em seu equivalente moderno ocidental” (p. 117). A heteronormatividade ou a transgenerificação no contexto do mundo-aldeia, ao contrário do que ocorre na

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Ver entre autores para quem o gênero inexiste no mundo pré-colonial (LUGONES, 2007).

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modernidade, faz parte de linguagens e de práticas nada incomuns ao mundo préintrusão. Segato (2012) chama a atenção para a presença, em uma série de povos indígenas latino-americanos e norte-americanos, além de todos os grupos religiosos afro-americanos, de “linguagens” e “práticas transgenéricas estabilizadas, casamentos entre pessoas que o Ocidente entende como do mesmo sexo e outras transitividades de gênero bloqueadas pelo sistema de gênero absolutamente engessado da colonial/modernidade” (p. 117). No que concerne à masculinidade no mundo-aldeia pré-intrusão, esta constituía status somente adquirido através de provações, inclusive o enfrentamento da morte; o sujeito deve conduzir-se continuamente de modo a fazer prova de habilidades e resistência sob os olhares avaliativos de seus pares, “para poder exibir o pacote de seis potências – sexual, bélica, política, intelectual, econômica e moral – que lhe permitirá ser reconhecido e qualificado como sujeito masculino” (p. 118). Ao intrudir o gênero da aldeia, a modernidade/colonialidade modifica-o perigosamente, intervém na estrutura de relações da aldeia, apreende-as e as reorganiza a partir de dentro, mantendo a aparência de continuidade, mas transformando os sentidos ao introduzir uma ordem agora regida por normas diferentes [...] as nomenclaturas permanecem, mas são reinterpretadas à luz de uma nova ordem moderna. Esse cruzamento é realmente fatal, porque um idioma que era hierárquico em contato com o discurso igualitário da modernidade transforma-se em uma ordem ultra-hierárquica. (SEGATO, 2012, p. 118)

Dessa maneira, ao chamar a atenção para o fato de que no mundo “pré-intrusão” colonial o gênero é regulado como “uma dualidade hierárquica”, isto é, “na qual ambos os termos que a compõem, apesar da sua desigualdade, têm plenitude ontológica e política” (p. 122), Segato (2012) evidencia que, por contraste, no mundo da modernidade não há dualidade, mas binarismo de gênero. Ao passo que na dualidade a relação entre os gêneros é de complementaridade, o mesmo não ocorre no binarismo, uma vez que a relação binária é suplementar, um termo suplementa o outro, e não o complementa. Quando um desses termos se torna “universal”, quer dizer, de representatividade geral, o que era hierarquia se transforma em abismo, e o segundo termo se transforma em resíduo, essa é a estrutura binária, diferente da dual. (SEGATO, 2012, p. 122)

Ainda que o recurso à expressão “patriarcado de baixa intensidade” gere certa ambiguidade, ao sugerir que se estaria diante de graus de intensidade de um mesmo e único fenômeno, e não de sistemas de relações diferenciados, a comparação entre o lugar e as representações da mulher, da feminilidade, do homem e da masculinidade no mundo-

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aldeia e na modernidade oferece desafiadores contrapontos a ser considerados na reflexão sobre a colonialidade das relações de gênero. Suplemento ou complemento, dualismo e binarismo convivem e coexistem na atualidade? São questões que surgem do contato com as reflexões trazidas no bojo do pensamento decolonial. Desse modo, pensar as relações de gênero a partir da perspectiva crítica da decolonialidade abre caminho para refletir não apenas sobre as relações de gênero e suas formas específicas na contemporaneidade, mas também sobre as relações entre as diferentes formas que coexistem e nas maneiras como são explicadas essas mesmas diferenças. Outra chave que tem marcado presença de maneira relativamente constante nos estudos atuais é a da exploração da dimensão corporal dos atores sociais, dimensão esta que tem se mostrado particularmente fecunda ao rever a abordagem biologizante ou biomédica do corpo, quase hegemônica no tratamento do corpo e da corporeidade nas ciências sociais. Como já observou Le Breton (2011), pensar criticamente o lugar do corpo nas sociedades contemporâneas requer a revisão de algo profundamente entranhado na cultura ocidental. Tentar devolver ao corpo sua dimensão social e cultural e pensá-lo não como um alter ego, um outro, mas antes como confundido com o sujeito, exige a reflexão sobre os gêneros, as raças, as gerações, os grupos etários e as classes, compreendendo os corpos e os investimentos corporais dos sujeitos não somente como “naturais” ou construções sociais que incidem sobre os sujeitos e os “marcam”, mas também como parte da agência dos sujeitos incidindo sobre seus corpos e na relação com os outros. Nesse sentido, a proposta de refletir sobre as formas de opressão que imprimem nos corpos o gênero, a raça, a sexualidade, a classe, a geração etc., e que produzem hierarquias combinadas e recombinadas, encontra na revisão crítica de uma concepção biomédica do corpo, que o apresenta como uma máquina, massa de carne, evidência, naturalizado, um fértil ponto de partida para entender e captar formas de agência dos sujeitos em contextos no quais são criados novos sentidos e identificações. Em um empreendimento crítico do estudo da corporalidade no qual são abertos espaços para a análise dos sentidos e nexos das “diferenças” inscritas nos corpos, tem certamente lugar de destaque o exame de sociedades e grupos sociais em que não se verifica uma separação binária entre homens e mulheres e seus corpos, característica e recorrente no mundo ocidental. A esse respeito merece menção o registro do etnólogo e pastor Maurice Leenhardt, que conviveu com os canaque por um longo período – entre 1920 e 1930. Em uma das conversas travadas com o chefe daquele povo da Melanésia, Oceania, Leenhardt comentou que o longo convívio com os missionários ocidentais havia ensinado aos canaque que eles tinham uma alma. Ao que respondeu o chefe: “Não, que temos uma alma nós já sabíamos, vocês nos ensinaram que nós temos um corpo”

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(LEENHARDT, 1971, p. 263).4 De fato, como observou na continuidade o próprio Leenhardt, os canaque não tinham uma palavra para “corpo” antes da chegada dos ocidentais. E teria sido juntamente com a incorporação da noção de que eles tinham um corpo que se abriu a possibilidade de individuação, de fixação de limites que coincidem com os limites do corpo e do “eu”, o que tornou possível o afrouxamento da rede de relações da sociedade tradicional melanésia, na qual a pessoa é sempre um lugar relacional em uma totalidade social (LEENHARDT, 1971). Se a noção de ter um corpo não é universal e esta noção abre, na modernidade, a possibilidade de individuação, surge outra questão: como o processo de individuação e fragmentação percorreu seu longo caminho nas sociedades modernas, ocidentais, centrais? De que modo foi o corpo instaurado lócus de marcação das diferenças, através de que caminhos e dispositivos o corpo teria sido como que convocado para falar cada vez mais a “verdade” do sujeito (BOURDIEU, 1977)? Ora, falar de marcação é falar de gênero, raça e sexualidade, que são as que nos interessam aqui mais de perto, e que encontram na formulação de sociedade disciplinar de Foucault um amplo campo de reflexões em que podem ser percebidas como integrando os dispositivos de poder que constroem os sujeitos modernos e que, dessa maneira, participam dos jogos de poder que marcam a contemporaneidade. Ao problematizar a impregnação genérica da oposição binária corpo e espírito nas sociedades ocidentais, Le Breton (2011) chama a atenção para o fato de que “as concepções do corpo são tributárias das concepções da pessoa” (p. 8). Assim, nas sociedades tradicionais, diferentemente do que ocorre nas sociedades ocidentais modernas, o corpo não se distingue da pessoa, ou seja, os mesmos materiais que compõem a espessura do ser humano encontram-se na composição do cosmos, na natureza, o que certamente não oferece referentes de individuação, mas de pertencimento ao todo, ao cosmos. Este dossiê reúne trabalhos selecionados dentre os apresentados no ST 125 – Intersecções, Transformações e Conexões nas Pesquisas sobre Gênero, Raça e Corporalidade, coordenado por Sonia Maria Giacomini e Angela Figueiredo, no âmbito do 13th Women’s World & Fazendo Gênero 11 – Transformações, Conexões, Deslocamentos, realizado em Florianópolis, de 30 de julho a 4 de agosto de 2017. A expectativa é de que tragam uma contribuição original ao debate e à reflexão sumariamente expostos anteriormente nesta apresentação. O artigo de Joyce Gonçalves Restier da Costa Souza, “Corpos em busca do belo: as mulheres negras e a beleza na eugenia da Era Vargas”, convida a discutir como a dualidade 4

Essa famosa passagem de Leenhardt encontra-se em uma publicação de 1944 e tem sido citada por estudiosos de diferentes gerações, ver Laplantine (1991), Csordas (2009) e Maluf (2002). A reflexão de Leenhardt sobre os melanésios, como observou Thomas Csordas, tem servido de inspiração e chegou a antecipar a reflexão antropológica contemporânea sobre diversos temas, entre eles sobre o corpo e a corporalidade.

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corpo-espírito se atualiza e se hierarquiza nas oposições homem-mulher, branco-negro, razão-emoção. Ao analisar como se situavam as mulheres negras em meio ao ideal de beleza vigente entre os anos 1930 e 1945, período de disseminação da teoria do branqueamento, a autora chama a atenção para as dinâmicas e estratégias adotadas pela comunidade negra com o intuito de promover a valorização dos atributos físicos dessas mulheres. Destacam-se nesse cenário os esforços empreendidos pela Frente Negra Brasileira (FNB) e, principalmente, pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado em 1940, no Rio de Janeiro. Excluídas dos grandes concursos de rainhas e misses por não se ajustarem aos padrões de beleza da sociedade hegemônica, as mulheres negras encontraram nos eventos promovidos pelo TEN um espaço onde suas qualidades físicas passaram a ser ressignificadas e valorizadas. No artigo “Rainhas do clube e musas do samba-rock: raça e gênero na sociabilidade negra”, Karina Almeida de Sousa também se detém sobre organizações negras e seus respectivos concursos de beleza, a partir de pesquisa sobre clubes sociais negros e bailes da capital e do interior do estado de São Paulo. No passado, teria havido uma tentativa de os membros dos clubes se distanciarem dos estigmas que recaíam sobre a população negra, engendrando uma preocupação com a moralidade e com a reprodução de padrões de classe. A escolha das rainhas dos clubes sintetizava esse esforço de afirmação de uma mobilidade social familiar, e aquelas eleitas para representar a instituição eram as que encarnavam a representação de um feminino gentil, dócil, educado, sensível e servil, o mesmo esperado das mulheres brancas de camadas médias. Nos tempos atuais, destaca a autora, ainda pode ser observada certa moralidade, mas a inclusão do samba-rock como dança de salão, bem como sua difusão em escolas de dança, tem propiciado mudanças no que se refere ao papel e à representatividade das mulheres negras nesses espaços. Os dois artigos seguintes direcionam o foco para a literatura. Em “Literatura e interseccionalidade: A resposta, de Kathryn Stockett, e os lugares de fala subalternos”, Ana Paula Moritz analisa o livro que serviu de base à elaboração do filme Histórias cruzadas, sucesso de bilheteria em 2011. O romance, publicado em 2009, trata das relações entre patroas brancas e empregadas domésticas negras no estado do Mississipi, sul dos Estados Unidos, na década de 1960. Em diálogo com as reflexões acerca da escrita etnográfica, da teoria literária, dos estudos pós-coloniais e da teoria feminista, Moritz denuncia a visão romanceada que Stockett apresenta dessas relações, bem como a exclusão e o silenciamento das vozes marginalizadas, isto é, das personagens negras e pobres. A autora também contrapõe a repercussão de A resposta à pouca visibilidade alcançada por pesquisas de cunho sociológico feitas por mulheres negras e que também descrevem essa realidade. Voltando-se para a América Latina, o artigo “Discursos sobre a democracia racial em Cuba e no Brasil: tramas de gênero, raça e sexualidade na literatura (1933-1978)”, de Giselle

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Cristina dos Anjos Santos, compara as representações presentes nas obras Écue-Yamba-Ó (1933), do escritor cubano Alejo Carpentier; e Gabriela, cravo e canela (1958), de Jorge Amado. A autora discute o alinhamento de ambos os escritores a um discurso positivo sobre o fenômeno da mestiçagem, ignorando os conflitos e as violências que historicamente permearam as relações entre brancos e negros nesses países. A figura da mulata ganhou destaque, segundo a argumentação da autora, por ser mais facilmente aceita do que a da negra, considerada inferior. A aparente positivação da mestiçagem e, em consequência, da mulata, se realiza, porém, através de sua hipersexualização e objetificação. Em consequência, tanto Carpentier quanto Amado teriam reforçado esses estereótipos, e historicamente contribuíram para consolidar o imaginário acerca da “mulata” como símbolo das mulheres cubanas e brasileiras. No artigo seguinte, “Experiências de mulheres negras da favela de Heliópolis (SP) com a violência e suas estratégias de enfrentamento”, Alessandro de Oliveira dos Santos, Jackeline Aparecida Ferreira Romio, Christen Anne Smith e Flávia de Paiva Alves da Silva, apresentam resultados de uma pesquisa qualitativa sobre como mulheres negras moradoras de Heliópolis, uma das maiores favelas de São Paulo, compreendem e sentem a violência, seja ela física ou simbólica – como é o caso daquela derivada do racismo. As narrativas indicam que as experiências com a violência atravessam suas vivências familiares, escolares, conjugais e de trabalho e, para seu enfrentamento, contam com um suporte social e religioso, para além de adotar estratégias individuais, como a busca de informações sobre seus direitos. Por fim, o último artigo, “A importância da política de cotas para o avanço dos estudos de gênero a partir de perspectivas decoloniais no Brasil”, de Amanda Alves da Silva e Janja Araújo, direciona o foco ao ambiente universitário. Tomando como ponto de partida os dados sobre a produção discente desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismos (PPGNEIM), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), as autoras constatam ter havido um aumento dos estudos que focalizam os feminismos pós-coloniais e decoloniais no Brasil, dentre eles o feminismo negro, e procuram avaliar em que medida isso seria reflexo das políticas de reserva de cotas raciais. Para as autoras, a Lei no 12.711, sancionada em 2012 e que ficou conhecida como Lei de Cotas, promoveu a inserção de novos sujeitos(as), o que vem transformando a universidade em um campo de disputa e embate político, bem como um espaço de resistência, o que se reflete na busca por novas epistemologias e perspectivas.

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APRESENTAÇÃO

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Revista Desigualdade & Diversidade

LITERATURA E INTERSECCIONALIDADE: "A RESPOSTA", DE KATHRYN STOCKETT, E OS LUGARES DE FALA SUBALTERNOS LITERATURE AND INTERSECCTIONALITY: KATHRYN STOCKETT’S “THE HELP” AND THE SUBALTERN VOICES

Ana Paula Moritz Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Desenvolveu esta pesquisa ao longo da graduação como parte do Programa de Iniciação Científica A Escrita da Antropologia e o Ensaio, do qual foi integrante entre 2014 e 2015.

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RESUMO O presente trabalho busca, por meio da análise do romance A resposta (2009), de Kathryn Stockett, explorar questões relativas à antropologia e à sociologia, bem como suas relações com a literatura. A temática do livro aborda as relações e tensões entre patroas brancas e empregadas negras do sul dos Estados Unidos nos anos 1960. Intentou-se aqui examinar lugares de fala e de identidade subalternos, a força de sua representatividade e de sua ausência na arte, situando questões dialógicas e de discurso. Com a teoria literária, a etnografia, os estudos póscoloniais e a teoria feminista é possível desconstruir a imagem romantizada dos livros, constatar seu poder de opressão e inferir que estão fortemente imbricados em um processo de silenciamento de vozes marginalizadas, femininas, negras e pobres. PALAVRAS-CHAVE: literatura; antropologia; interseccionalidade; feminismo.

ABSTRACT The present work seeks, through the analysis of the romance The Help (2009) written by Kathryn Stockett, research issues concerning anthropology, sociology, as well as their relation to literature. The book attends to the relations and tensions between white female employers and black female house employees in the South of the United States during the 1960’s. Aiming for the examination of the strength of representation, as well as the lack of it, at the field of the arts and grounding dialogical and discourse matters, in conjunction with subaltern subjects coming to voice. With the assistance of literary theory, ethnography, post-colonial studies and feminist theories, it is possible to deconstruct the romanticized image of books, and realize its power of oppression, inferring that those are strongly connected to the process of silencing marginalized voices that belong to black poor females. KEYWORDS: literature; anthropology; intersectionality; feminism.

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Introdução A discussão proposta neste trabalho se dá a partir da leitura do romance A resposta, de Kathryn Stockett, livro que inspirou o filme Histórias cruzadas (2012). O objetivo aqui é refletir sobre como a arte, no caso, a literatura, é cúmplice de um sistema de representatividade excludente e silenciador. Ao analisar esse sistema com base na crítica feminista interseccional e na crítica pós-colonial, desvelam-se discursos e práticas estéticas em busca da polifonia, mediante a qual se propicia a todos o espaço e o direito de falar por si.

Teoria e contexto A teoria literária propõe diferentes formas de se ler as narrativas através de grandes chaves teóricas. Para explorar as questões propostas neste artigo foram escolhidas as teorias queer e feminista, com o objetivo a priori de pensar a performance de gênero como algo presente também em personagens ficcionais, em seu impacto nas identificações e em sua forma de representar o real. A expansão do contexto das obras literárias evidenciada por Jonathan Culler é fruto da mudança na forma de interpretação desses textos causada pela introdução de “novas” teorias no campo. O conceito de linguagem performativa apresentado pelo autor caracteriza o discurso literário visto que seu vínculo entre sentido e intenção do falante é rompido, posto que os atos são realizados através de palavras e guiados por convenções sociais e linguísticas, e não determinados pela intenção. A linguagem literária tanto diz quanto faz; as obras literárias criam ideias e conceitos que se convertem em prática (CULLER, 1999). A performativa traz para o centro do palco um uso da linguagem anteriormente considerado marginal – um uso ativo, criador do mundo, da linguagem, que se assemelha à linguagem literária – e nos ajuda a conceber a literatura como ato ou acontecimento. A noção de literatura como performática contribui para uma defesa da literatura: a literatura não é uma pseudodeclaração frívola, mas assume seu lugar entre os atos de linguagem que transformam o mundo, criando as coisas que nomeiam. (CULLER, 1999, p. 97)

Ou seja, “a linguagem é performativa no sentido de que não apenas transmite informação, mas realiza atos através de sua repetição de práticas discursivas ou de maneiras de fazer as coisas estabelecidas” (CULLER, 1999, p. 99). O conceito exposto relaciona a performativa com o problema geral dos atos que dão origem e criam algo novo, tanto na esfera política quanto na esfera literária. Em explicação, o autor estabelece que:

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Tanto o ato político quanto o literário dependem de uma combinação complexa, paradoxal, da performativa e da constativa, em que, para ser bem-sucedido, o ato deve convencer, referindo-se a estados de coisas em que o sucesso consiste em criar a condição à qual se refere. As obras literárias afirmam falar-nos sobre o mundo, mas, se são bem-sucedidas, o são através da criação dos personagens e acontecimentos que relatam. Algo semelhante está em ação nos atos inaugurais da esfera política. (CULLER, 1999, p. 99)

O autor faz referência a Judith Butler e seu livro Gender trouble (1990), no qual a autora propõe analisar o gênero como performativo ou como uma condição encenada. O gênero é criado pelos atos, de modo que cada qual se torna homem ou mulher através de atos repetidos, de acordo com a linguagem performativa explicada por Culler. Há maneiras socialmente estabelecidas de ser homem ou mulher. Desse modo, o gênero não é uma escolha, e sim uma condição de inteligibilidade do sujeito, que se dá através de práticas reiterativas e citacionais, normas repetidas compulsoriamente que animam e limitam o sujeito. Contudo também são espaços de resistência, subversão e deslocamento. Pelo fato de os corpos nunca se contentarem por inteiro dentro dessas práticas normativas, as lacunas significam espaços de resistência e possibilidade de mudança. O modelo performativo, segundo Butler, pode ser instrumentalizado para se pensar processos sociais cruciais, como a natureza da identidade e sua produção; o funcionamento das normas sociais; a questão da agência – em que medida e sob quais condições se pode ser um sujeito responsável pelos próprios atos –; e a relação entre o indivíduo e as mudanças sociais (CULLER, 1999). Pode-se considerar uma obra bem-sucedida aquela que não se mantém como ato singular, mas que através da repetição dá vida às formas que repete e que possivelmente muda a história. Culler (1999, p. 106), ao concluir sua explicação sobre a performativa, afirma que: O modelo da performativa oferece uma explicação mais sofisticada de questões que são muitas vezes cruamente afirmadas como um embaçamento das fronteiras entre fato e ficção. E o problema do acontecimento literário, da literatura como ato, pode oferecer um modelo para pensar os acontecimentos culturais, de modo geral.

A materialidade dos corpos literários representa muito mais do que meras personagens. O poder presente no discurso, no que concerne a formação de humanos, através de identidades e identificações daquilo que seria mais humano, menos humano, inumano ou humanamente impensável ilustra as limitações e a exclusão as quais se está sujeito. Os corpos negros são vexados. Eles não se materializam livremente, são frutos de práticas reiterativas

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e citacionais que os colocam incansavelmente em papéis servis. O corpo feminino negro, quando encontrado na literatura, na maior parte das vezes está associado a papéis nos quais atuam como personagens subservientes, e não por sua vontade, obviamente, mas pelo fato de pessoas brancas sempre as escreverem nesse lugar. Desse modo, segundo Judith Butler (2000, p. 167): A performatividade não é, assim, um “ato” singular, pois ela é sempre uma reiteração de uma norma ou de um conjunto de normas. E na medida que ela adquire o status de ato no presente, ela oculta ou dissimula as convenções das quais ela é uma repetição. Além disso, esse ato não é primariamente teatral; de fato, sua aparente teatralidade é produzida na medida em que sua historicidade permanece dissimulada (e, inversamente, sua teatralidade ganha uma certa inevitabilidade, dada a impossibilidade de uma plena revelação de sua historicidade).

A autora, em seguida, propõe o seguinte questionamento: Em que medida o discurso adquire autoridade para produzir o que nomeia através da citação das convenções de autoridade? E um sujeito aparece como autor de seus efeitos discursivos na medida em que a prática citacional pela qual ele ou ela é condicionado e mobilizado permanece não marcada? Poderia ocorrer, na verdade, que a produção do sujeito como capaz de dar origem a seus efeitos é precisamente uma consequência dessa citacionalidade dissimulada? (BUTLER, 2000, p. 167)

O processo de materialização desses corpos será uma espécie de citacionalidade, isto é, a aquisição do ser através da citação do poder, uma citação que estabelece uma cumplicidade originária com o poder (BUTLER, 2000). No entanto, os processos identificatórios exigidos para possibilitar a materialização e a formação do sujeito não representam a todos. Uma preocupação constante na literatura são as questões de identidade, para as quais as obras literárias são capazes de esboçar respostas tanto implícitas quanto explícitas. A influência das teorias de raça, de gênero e de sexualidade no campo literário enriquecem as discussões acerca das diferentes leituras que se tornam possíveis no que concerne à construção da identidade. Jonathan Culler (1999, p. 111) vai além, ao alegar que: A literatura não apenas fez da identidade um tema; ela desempenhou um papel significativo na construção da identidade dos leitores. O valor da literatura há muito tempo foi vinculado às experiências vicárias dos leitores, possibilitando-lhes saber como é estar em situações específicas e desse modo conseguir a disposição para agir e sentir de certas maneiras. As

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obras literárias encorajam a identificação com os personagens, mostrando as coisas do seu ponto de vista. Os poemas e os romances se dirigem a nós de maneira que exigem identificação, e a identificação funciona para criar identidade: nos tornamos quem somos nos identificando com as figuras sobre as quais lemos. [...]

Michael Foucault sugere que em toda sociedade a produção do discurso é controlada e, por meio de diversos procedimentos, cumpre sua função de disseminar seus poderes. Em uma sociedade como a norte-americana dos anos 1960 os negros não tinham direito à voz, apesar do lema: “separados, mas iguais”. Desse modo, nas palavras do próprio Foucault, “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 2012, p. 10). No entanto é mister refletir acerca de certas normas que perduram e dão continuidade a processos e práticas performativas – reiterativas e citacionais. Por que ainda existe pouquíssimo espaço para vozes vindas das margens? Por que a representatividade de inúmeros grupos beira a inexistência? Por que sempre se busca a história única para se contar? Por que certas vozes são mais autorizadas para contar histórias do que outras?

Enredo e análise de A resposta, de Kathryn Stockett O romance se passa na cidade de Jackson, no Mississippi (EUA), em 1962, momento em que a segregação racial e os movimentos sociais de luta pelos direitos civis estão no auge. É narrado por três mulheres: Eugenia “Skeeter” Phelan, Aibileen Clark e Minny Jackson. Skeeter é uma jovem branca de 22 anos que acaba de voltar para casa após terminar seus estudos na Universidade Ole Miss. Ao chegar, ela pergunta por Constantine, a empregada negra que a criou. No entanto seus pais se recusam a contar-lhe a verdade sobre o que aconteceu com a mulher e o motivo de sua partida. Com isso, Skeeter inicia uma busca por informações, conversando com as empregadas domésticas que trabalhavam para suas amigas. À medida que vai se aproximando delas, se sente cada vez mais impelida a questionar a segregação racial, até que decide escrever um livro com o depoimento dessas mulheres sobre suas vivências trabalhando na casa de famílias brancas. A autora de A resposta, após receber muitas críticas, adicionou ao fim do livro um pequeno capítulo chamado “Muito pouco, muito tarde – Kathryn Stockett, por ela mesma”, no qual narra sua experiência de mulher branca que teve uma empregada negra no Mississippi.

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A Resposta é, na maior parte, ficção. Ainda assim, enquanto escrevia me questionei muito sobre o que minha família pensaria do livro, e sobre o que Demetrie pensaria, também, apesar de que ela já havia morrido. Tive medo, uma grande parte do tempo, de estar ultrapassando um limite, ao escrever na voz de uma mulher negra. Eu tinha medo de falhar ao tentar descrever uma relação que era tão intensamente influente na minha vida, tão amorosa, tão grosseiramente estereotipada na história e na literatura americanas.

No que concerne à forma do romance estudado, é possível notar que se trata do que Bakhtin chama de um “romance polifônico”. Ao investigar as obras de Dostoiévski nas quais o autor se relaciona com a própria criação da personagem, observa-se que a estrutura de seus romances consiste em uma polifonia de vozes independentes em que cada uma pode ser entendida a partir do interior da própria visão de mundo, e não arbitrariamente fundida em uma única posição dominante (monológica) do autor (FRANK, 1992). Ademais Dostoiévski foi pioneiro em um estilo de escrita que faz com que as vozes das personagens estejam profundamente interligadas, bem como a voz do autor tenha tanto peso quanto a de qualquer uma das personagens. O “discurso de dupla voz” merece especial atenção, pois é o uso linguístico afetado e deflectido pela consciência do discurso do outro (FRANK, 1992). Joseph Frank (1992, p. 32-33), comentador da obra de Bakhtin, afirma que: Nesta análise, Bakhtin está primeiramente interessado em ilustrar as várias maneiras pelas quais as figuras centrais de Dostoiévski reagem contra todas as tentativas de restringir e confinar a liberdade de suas personalidades, e também em analisar vários tipos de discurso de voz dupla pelos quais elas assimilam as vozes de outros e respondem a elas de forma fortemente afetada por tal assimilação.

Compreende-se, então, que essa forma de discurso abarca o dito e o não dito. Os discursos e os silêncios estão deliberadamente postos nas palavras daqueles que convém ouvir e daqueles que convém calar. O discurso hegemônico encontra-se presente em todos os discursos construídos. No entanto a liberdade descrita por Bakhtin nos romances de Dostoiévski mostra o início de um deslocamento das vozes. No que se refere ao romance A resposta, é possível perceber ao longo da narrativa o nascimento e o crescimento da voz das personagens principais, até o momento em que essas vozes transbordam a oralidade e se transformam em narrativa escrita. A questão da autoridade etnográfica pode ser utilizada para discutir e ilustrar essa problemática que envolve as diversas vozes, tanto na literatura quanto na antropologia e na etnografia. James Clifford (2008), ao escrever sobre a autoridade etnográfica, questiona os

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paradigmas desse tipo de escrita. O autor, em referência a Bakhtin, ressalta que uma condição fundamental do romance polifônico é que ele representa sujeitos falantes em um campo de múltiplos discursos. O romance luta com, e encena, a heteroglossia. Para Bakhtin, preocupado com a representação de todos não homogêneos, não há nenhum mundo cultural ou linguagem integrados. Todas as tentativas de propor tais unidades abstratas são constructos do poder monológico. Uma “cultura” é concretamente um diálogo em aberto, criativo, de subculturas, de membros e não membros, de diversas facções. (CLIFFORD, 2008, p. 47)

Assim, ainda nas palavras de James Clifford (2008, p. 47-48): A etnografia, como o romance, debate-se entre essas alternativas. Será que o escritor etnográfico retrata o que os nativos pensam à maneira do flaubertiano “estilo indireto livre”, um estilo que suprime a citação direta em favor de um discurso controlador que é sempre, mais ou menos, o do autor? Ou será que o retrato de outras subjetividades requer uma versão estilisticamente menos homogênea, cheia das “vozes diferentes” de Dickens?

A questão levantada por Clifford é de grande importância, pois se aplica tanto a um problema do fazer etnográfico/antropológico quanto do fazer literário. O autor reconhece que o estilo indireto vem sendo usado pela etnografia e pelo romance em diferentes níveis de abstração, quando, por exemplo, não podemos nos perguntar como Flaubert sabe o que Emma Bovary está pensando (CLIFFORD, 2008). No entanto, na escrita etnográfica, antropólogos/etnógrafos vêm atribuindo valores subjetivos às culturas. Tais declarações não têm “nenhum falante específico” (SPERBER, 1981 apud CLIFFORD, 2008, p. 48) e são literalmente equivocadas, combinando de maneira contínua as informações do etnógrafo e/ou dos informantes. O autor ainda critica aquelas etnografias que fazem assunções na voz de ninguém e dessa maneira acabam por assumir a voz da cultura. Tendo em vista tais argumentos é possível pensar que a autora de A resposta, ao produzir nessa obra um romance anônimo, tentava se desvencilhar dessas “armadilhas” do estilo indireto, porém, por se tratar de um romance dentro de outro romance do qual ela é a autora, a voz que se manifesta será sempre a dela. Sua voz sempre será a que controla os discursos ali produzidos e enunciados, acabando por roubar o protagonismo das outras vozes que deveriam estar presentes mais fortemente em seu romance: das mulheres negras que trabalhavam como empregadas domésticas em casas de famílias brancas no Mississippi, em 1962. A ausência do outro, a dupla alteridade e a abjeção dessas mulheres em relação aos seus corpos e às suas vozes nos remetem à pergunta de Gayatri Spivak (2010): Pode o subalterno

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falar? A autora constrói seus argumentos com base em uma crítica de Gramsci e sugere resgatar e retomar o significado do termo “subalterno”, que se refere ao “proletariado”, ou seja, aquele cuja voz não pode ser ouvida. Argumenta que o termo “descreve as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante” (ALMEIDA, 2010 apud SPIVAK, 2010, p. 13). A mulher subalterna não pode falar e quando se arrisca fazê-lo não encontra meios de se fazer ouvir. O agenciamento que ocorre de maneira validada institucionalmente impossibilita uma representação efetiva e significativa que impede a articulação de discursos e atos de resistência fora daqueles que são hegemônicos (ALMEIDA, 2010 apud SPIVAK, 2010). Para corroborar com os argumentos tecidos até então, apresento um exemplo dos dados quantitativos encontrados ao longo da pesquisa que ilustram a falta de representatividade da mulher no campo literário. O Gráfico 1 divide os ganhadores do prêmio Pulitzer, principal prêmio literário do mundo, do ano 2000 até 2015, por gênero do autor e gênero das personagens.

Gráfico 1. Prêmios Pulitzer 2000-2015: autores e autoras ganhadores e sobre quem são suas histórias.

Fonte: <http://nicolagriffith.com/2015/05/26/books-about-women-tend-not-to-win-awards/>. Acesso em: 13 jun. 2015.

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A representação e a representatividade feminina e a presença da mulher tanto nas temáticas quanto na enunciação e na escrita de livros ainda acontecem de maneira tímida, principalmente nos livros premiados. Esse dado reforça a afirmação de Spivak (2010) de que o subalterno como sujeito feminino não pode ser ouvido ou lido.

Interseccionalidade e a mulher negra na literatura Interseccionalidade é o estudo das intersecções entre formas ou sistemas de opressão, dominação ou discriminação. Tem como principal exemplo o feminismo negro, que disserta sobre as experiências de ser mulher e negra, e o quão interligadas essas experiências estão, de modo que não é possível considerá-las individualmente pelo fato de estarem sobrepostas na hierarquia marginalizante da sociedade. Questionar essas estruturas para que os sujeitos do feminismo não sejam novamente excluídos dentro da universalização da categoria mulher é de extrema relevância, pois, se de acordo com Beauvoir (2009), não se nasce mulher, mas torna-se; e conforme a teoria de Judith Butler (2014), ser mulher é um constructo, e o gênero, performance, é impreterível que se faça representar a todas as mulheres em sua especificidade, tanto na teoria quanto na prática. Pensar as intersecções é desafiar as estruturas de poder e lutar contra o silenciamento de vozes. A teoria social crítica contida no feminismo negro norte-americano emerge como um movimento contra as injustiças sociais que ocorriam/ocorrem tanto contra mulheres negras quanto com outros grupos oprimidos. Um fator estimulante para a formulação dessa teoria reside no fato de as mulheres negras terem sido consistentemente guetizadas no trabalho doméstico, o que contribuiu largamente para sua exploração econômica. No entanto essas mulheres puderam ver de uma perspectiva única aquilo que acontecia dentro das casas de “suas famílias brancas”, sem nunca fazer parte delas. Assim, continuavam em seu lugar de outsiders economicamente exploradas, recebendo a nomenclatura de outsider within, termo que designa um tipo peculiar de marginalidade àquelas que se encontram em um espaço limiar. Falar por si, encontrar a própria voz e se autodefinir é essencial para o empoderamento, sendo um meio de romper com hierarquias de poder que antes falavam por essas mulheres e definiam aos seus moldes o lugar a que deviam pertencer. Audre Lorde (1984 apud COLLINS, 2000, p. 36, tradução nossa) ressalta que “é axiomático que se não formos definidos por nós mesmos, seremos definidos pelos outros – para seu uso e em nosso detrimento”.1 As experiências vividas e narradas pelas mulheres negras permitem criar uma interlocução

1

“It is axiomatic that if we do not define ourselves for ourselves, we will be defined by others – for their use and to our detriment” (LORDE 1984 apud COLLINS, 2000, p. 36).

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repleta de diferentes vozes sobre diferentes versões da verdade, afim de remontar coletivamente uma história. Alice Walker, autora vastamente citada por Patricia Hill Collins, comenta:2 Eu acredito que a verdade acerca de qualquer temática só vem à tona quando todos os lados da história são remontados e, em todos os seus sentidos, criam algo novo. Cada escritor escreve a parte que falta nas histórias de outros escritores. Eu estou atrás da história completa.3 (WALKER, 1983 apud COLLINS, 2000, p. 38, tradução nossa)

Havia tradição escrita entre as mulheres negras, porém apenas para aquelas que tiveram acesso à educação. O tempo, que também lhes era escasso por conta das longas jornadas de trabalho, as impedia de ter qualquer contato aprofundado com livros e romances. Por conseguinte encontrar textos de mulheres negras e pobres que transcendem as divisões entre as tradições orais e escritas é de extremo valor, como, por exemplo, a autora Alice Childress e a personagem ficcional Mildred, uma mulher negra e trabalhadora doméstica que fala sobre os mais diversos tópicos em 62 monólogos provocativos. No excerto de um de seus monólogos, a autora alega: Eu não sou nada como um membro da família! A família come na sala de jantar, eu como na cozinha. Sua mãe pega emprestado sua toalha de mesa de renda para as visitas e você e seu filho entretêm seus amigos no salão, sua filha tira seu cochilo da tarde no sofá da sala de estar e o cachorro dorme nos seus lençóis de cetim... como você pode ver, eu não sou como um membro da família.4 (CHILDRESS, 1956 apud COLLINS, 2000, p. 109, tradução nossa)

Nessa passagem, Childress cria uma versão ficcional, porém verossímil, das relações entre empregadas domésticas e seus patrões, elucubrando uma fala que tais empregadas vez ou outra gostariam de dizer aos seus empregadores. Em contraposição a Kathryn Stockett, autora de A resposta, Childress é uma mulher negra, que está familiarizada com esse universo e, portanto, é capaz de representá-lo de maneira mais contundente. À época que foram escritos, os monólogos de Mildred tinham como propósito alcançar mulheres negras de diversas classes sociais e comunidades.

2

Nota metodológica: optei por traduzir algumas das citações que estavam em inglês para que o texto pudesse ser acessível a todos, no entanto, também considerei importante manter suas versões originais pelo fato de acreditar que as vozes que devem ser ouvidas e lidas são aquelas que estão na versão original do texto e na língua que foram escritas por suas autoras, sem a traição da tradução. 3

“I believe that the truth about any subject only comes when all sides of the story are put together, and all their meanings make one new one. Each writer writes the missing parts to the other writer’s story. And the whole story is what I’m after” (WALKER, 1983 apud COLLINS, 2000, p. 38). 4

“I am not just like one of the Family at all! The family eats in the dining room and I eat in the kitchen. Your mama borrows your lace tablecloth for her company and your son entertains his friends in your parlour, your daughter takes her afternoon nap on the living room couch and the puppy sleeps on your satin spread… so you can see I am not just like one of the family” (CHILDRESS, 1956 apud COLLINS, 2000, p. 109).

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Suas asserções estavam em consonância com as vozes silenciadas de seus leitores. Ademais a identidade de mulher negra, doméstica e working class não era do tipo que as pessoas estavam acostumadas a ver ilustrado em publicações. Patricia Hill Collins (2000) aborda o tema do poder da autodefinição e, para ilustrá-lo, conta com depoimentos de mulheres negras que trabalhavam como domésticas, bem como estudos feitos por mulheres negras sobre essas mesmas trabalhadoras. O lugar de outsider within ocupado por elas fazia com que se familiarizassem com o modo de agir e com a linguagem do opressor. A empregada doméstica idosa Ella Surrey sumariza esse processo: Nós sempre fomos as melhores atrizes do mundo… eu penso que somos muito mais espertas do que eles porque sabemos que temos que jogar o jogo. Nós sempre tivemos que viver duas vidas – uma para eles e outra para nós mesmas.5 (GWALTNEY, 1980 apud COLLINS, 2000, p. 97, tradução nossa)

Judith Rollins, intelectual negra, escreveu um livro no qual discorre sobre as tensões do trabalho doméstico e das relações nele envolvidas, reitera que as empregadas por ela entrevistadas apresentavam um notável senso do próprio valor ao habilmente desviar desses ataques psicológicos em sua humanidade, sua maturidade e sua dignidade, presentes nas tentativas de seus empregadores a convencê-las de aceitar ser definidas como inferiores (ROLLINS apud COLLINS, 2000). Bonnie Thorton Dill, outra intelectual negra que por sua vez também escreveu sobre trabalhadoras domésticas negras, constatou que muitas dessas mulheres não se permitiam subjugar. Uma delas dá a seguinte declaração: Quando eu saí para trabalhar… minha mãe me disse: “Não deixe ninguém tirar vantagem de você. Defenda seus direitos, mas faça o trabalho corretamente. Se eles não lhe derem seus direitos, demande que eles a tratem direito. E se eles não o fizerem, peça demissão”. (DILL apud COLLINS, 2000, p. 97, tradução nossa)6

Ao ler esses relatos de mulheres reais que viveram experiências reais, é fundamental colocar em xeque a versão romanceada de Kathryn Stockett. As mulheres descritas pelas autoras negras são mostradas como guerreiras, sobreviventes de uma época em que a escravidão ainda era uma realidade próxima, e a total ausência de direitos era seu cotidiano.

5

“We have always been the best actors in the world... I think that we are much more clever than they are because we know that we have to play the game. We’ve always had to live two lives – one for them and one for ourselves” (GWALTNEY, 1980 apud COLLINS, 2000, p. 97). 6

“When I went out to work... my mother told me, ‘Don’t let anybody take advantage of you. Speak up for your rights, but do the work right. If they don’t give you your rights, you demand that they treat you right. And if they don’t, then you quit. (DILL apud COLLINS, 2000, p. 97).

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O que Stockett oferece a elas em sua narrativa é uma vingança mesquinha contra a vilã da história e um livro escrito em parceria com uma jovem branca. As pesquisas que de fato tinham cunho sociológico feitas quase exclusivamente por mulheres negras nunca chegaram perto de ter a repercussão que seu romance teve. Talvez porque seja mais fácil acreditar que todo esse passado tenebroso foi apenas uma história inventada, e não a verdade. O feminismo negro representa uma mudança paradigmática na maneira de pensar as relações de poder injustas. Assim, ao abarcar as opressões interseccionais (raça, gênero, classe, sexualidade e nacionalidade), essa teoria muda os contornos das relações de dominação e resistência. A poeta negra Audre Lorde, em The transformation of silence into language and action, tece a seguinte reflexão: Cada uma de nós está aqui agora porque de uma maneira ou de outra compartilhamos um comprometimento com a linguagem, com o poder da linguagem e em reclamá-la após ela ter sido instrumentalizada para trabalhar contra nós. Na transformação do silêncio em ação, é fundamentalmente necessário para cada uma de nós estabelecer ou examinar sua função nessa transformação e reconhecer dentro dela seu papel como vital. Para aquelas que escrevem, é necessário escrutinar não apenas a verdade da qual falamos, como também a verdade daquela linguagem com a qual falamos. Para os outros, é compartilhar e disseminar essas palavras que são importantes para nós. Mas, primeiramente, para todas nós, é necessário ensinar aquelas verdades nas quais acreditamos e as quais conhecemos além de qualquer entendimento. Porque, apenas desse modo, poderemos sobreviver sendo parte de um processo de vida que é criativo e contínuo, que é crescimento. [...] E onde as palavras das mulheres pranteiam para ser escutadas, cada uma de nós deve reconhecer sua responsabilidade de buscá-las, de lê-las, de compartilhá-las e de examiná-las em toda a sua pertinência para nossas vidas. Que não nos escondamos atrás de escárnios de separação que nos foram impostos e nós constantemente os aceitamos como nossos.7 (LORDE, 1984, p. 43, tradução nossa)

7

“Each of us in here now because in one way or another we share a commitment to language and the power of language and to the reclaiming of that language which has been made to work against us. In the transformation of silence into language and action, it is vitally necessary for each one of us to establish or examine her function in that transformation and to recognize her role as vital within that transformation.”

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Portanto compreende-se a importância do protagonismo das mulheres negras tanto em suas histórias quanto em suas teorias e epistemologias. Certamente outras vozes dissonantes e consonantes não seriam excluídas, dado que enriquecem o debate e fortalecem a resistência contra a matriz dominante de pensamento, de discurso e de poder. Todavia existe um longo caminho a ser percorrido no que concerne ao entrelaçamento entre teoria e prática, pois, segundo Patricia Hill Collins (2000), teoria e prática devem caminhar juntas, com vistas a construir uma nova realidade social mais justa de forma coletiva e representativa para todas.

Conclusão A autoridade e o lugar de fala subalternos se desvelam com a presença de inúmeras vozes no romance A resposta, que, no entanto, emanam de uma única narradora que não faz parte do grupo que descreve, de modo que sua posição e seu ponto de vista ao contar essa história está impregnado de subjetividades e interpretações pessoais outras, absolutamente desiguais daquelas desempenhadas pelas personagens negras. A desvalorização do trabalho de intelectuais e autoras negras sobre o tema é preocupante, pois invisibiliza pesquisas, saberes e formas de ver que são mais próximas daquela realidade e que a relatam de maneira representativa. O feminismo interseccional é determinante para o protagonismo. A representatividade é fundamental para o processo de desconstrução de papéis sociais opressivos previamente atribuídos a grupos marginalizados. No que tange à ruptura do silêncio, Audre Lorde (1984, p. 44) conclui sua obra com a seguinte afirmação: O fato de estarmos aqui e de proferirmos essas palavras em uma tentativa de quebrar o silêncio e a ponte daquelas diferenças que se impõem entre nós, porque não é apenas a diferença que nos imobiliza, mas o silêncio. E ainda há muitos silêncios a serem quebrados.8 (tradução nossa)

Para que esses silêncios sejam quebrados é necessário que os meios literários e acadêmicos sejam cada vez mais povoados de mulheres negras. No que tange ao meio editorial, seria crucial a publicação, a divulgação e a disseminação dos trabalhos dessas mulheres para que a sociedade tenha acesso às suas histórias e às suas vozes; à sua maneira

“For those of us who write, it is necessary to scrutinize not only the truth of what we speak, but the truth of that language by which we speak. For others, it is share and spread those words that are meaningful to us. But primarily for us all it is necessary to teach those truths which we believe and know beyond understanding. Because in this way alone we can survive by taking part in a process of life that is creative and continuing, that is growth. […]” “And where the words of women are crying to be heard, we must each of us recognize our responsibility to seek those words out, to read them and share them and examine them in their pertinence to our lives. That we not hide behind the mockeries of separations that have been imposed upon us and which so often we accept as our own” (LORDE, 1984, p. 43). 8

“The fact that we are here and that I speak these words is an attempt to break that silence and bridge some of those differences between us, for it is not only difference which immobilizes us, but silence. And there are so many silences to be broken” (LORDE, 1984, p. 44).

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de ver, de criar e de narrar. Não apenas no que concerne a papéis subalternos históricos, como também todo o seu potencial criativo e criador como produtoras ativas de conhecimento artístico e acadêmico.

Referências BEAUVOIR, S. de. O segundo sexo. Tradução Sérgio Miliet. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v. BUTLER, J. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, G. L. (Org.). O corpo educado – pedagogias da sexualidade. Tradução Tomaz Tadeu da Sila. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. CLIFFORD, J. A experiência etnográfica – antropologia e literatura no século XX. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. COLLINS, P. H. Black feminist thought: knowledge consciousness, and the politics of empowerment. 2. ed. New York: Routledge, 2000. (Col. Perspectives on Gender) CULLER, J. Teoria literária: uma introdução. Tradução Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca Produções Culturais, 1999. FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. 22. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012. (Col. Leituras Filosóficas) FRANK, J. Pelo prisma russo: ensaios sobre literatura e cultura. Tradução Paula Cox Rolim, Francisco Achcar. São Paulo: EdUSP, 1992. LORDE, A. Sister outsider: essays and speeches. Trumansburg, NY: Crossing Press, 1984. (Col. Crossing Press Feminist) SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Tradução Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. STOCKETT, K. A resposta. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

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