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Para Ana LĂşcia Nascimento dos Reis e para a Unicamp, minhas duas mĂŁes.
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Para Ana Lúcia Nascimento dos Reis e para a Unicamp, minhas duas mães.
Um trabalho de Luiz Nascimento, orientado por Núbia Bernardi. 4
Índice 0
Abertura ........................................................
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Prefácio: Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade .................................... 08
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Memória em pedaços ....................................
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Uma tragédia à italiana ..................................
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...ou panis et circencis ....................................
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SamPã ............................................................
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Diálogos .........................................................
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Antropofagia-método ..................................... 110
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O olhar ...........................................................
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Proposta de intervenção..................................
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Cenários urbanos ............................................ 209
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Abertura
Esta é uma peça de teatro. Um tfg pandêmico. Uma peça que tem como enredo os conflitos e tensões dos centros urbanos brasileiros. As relações do homem com seus pares nesse estranho ambiente que pertence a todos e a ninguém. É sobre a rua. Sobre o espaço público. De quem é o espaço público? Para quem é? Por quem é? É sobre isso. Através dela, teremos a chance de conhecer ou reconhecer a história de um charmoso bairro do Bixiga. Lugar de música, teatro, cultura de rua, manifestações populares. De Carnaval. Lugar de pessoas reais. Da vida real. Lugar de violência. Lugar de resistência. De arte. Plural. Olharemos para rua. Para as pessoas e sua relação com ela. Olharemos Caldeirão. Ser vivo. Através do Bixiga, quebraremos um paradigma nas artes para consolidar um outro. Diferente. Talvez o avesso. Talvez o avesso do avesso do avesso do avesso do avesso. Mais visceral. Mais antropofágico. Construiremos uma arquitetura palco, praça, pública. Uma arquitetura manifesto. Uma arquitetura que dê vazão pra manifestação daquilo que há de mais belo na cidade: as pessoas. A forma como elas se comportam. A forma como elas se diferenciam, como somam, agregam, desagregam. Como são. As pessoas às vezes parecem até mesmo plurais.
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Um tfg pandêmico. 7
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Prefácio
Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade Em seu calhambeque, Roberto Carlos está a 300 km/h rumo ao topo das paradas e, derrepenguente, perde o controle da direção do veículo que já não responde aos seus movimentos incisivos no volante. Os pneus estão macios, deslizam na pista como se dançassem e balançassem os cabelos. O rei finalmente consegue descer do carro e percebe que, no meio do caminho na BR 67, o calhambeque atropelou uma carambola. RC volta ao carro mas já não é o mesmo rei: está diante do bairro Bixiga, das ruas e palcos da tragicomédia brasileira. Como preparar uma carambola de verdade: 1. A magia e a vida. 2. Em comunicação com o solo. 3. Contra as escleroses urbanas. 4. A experiência pessoal renovada. 5. Contra todos os importadores de consciência enlatada. 6. Só podemos atender ao mundo orecular. 7. A transformação permanente do Tabu em totem. Nas páginas a seguir, abocanhe com cuidado (caso não tenha problemas renais), mesmo que rápida e abruptamente, um pouco do gostinho da carambola que o rei atropelou e que Luiz Nascimento preparou com parcimônia e carinho. Cortou a carambola de verdade do Bixiga, mesmo esmagada, em 5 gomos. Deste corte, fez-se uma estrela verde-amarela.
Sinuhe LP, escritor e bauruense 8
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Memória em pedaços
Hino do Bixiga BIXIGA, AMORE MIO Foram os imigrantes italianos Que construíram este bairro de festas tradicionais Misturando seu folclore Com negros, compositores e artistas teatrais Suas indústrias e comércio Foram crescendo a mais de mil E nas cantinas só seu ouvia Viva o Bixiga! Bixiga, amore mio Bixiga, amore mio Você é o reduto histórico Que a gente construiu Na festa da Querupita A gente come, a gente bebe o que quiser Outra grande tradição Oh! Oh! É a festa de São José Sanfoneiro puxa o fole O povo aplaude e diz no pé
Bixiga, amore mio Bixiga, amore mio Você é o reduto histórico Que a gente construiu Centro turístico italiano Vem gente do estrangeiro De todo o Brasil Nos eventos culturais Do Bixiga amore mio
Bixiga, amore mio Bixiga, amore mio Você é o reduto histórico Que a gente construiu
Letra: Walter Taverna Música e Voz: Gilson de Souza
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Dois povos, gostos, culturas e cores diferentes. Em comum a tragédia: ambos arrancados de suas terras. Uns pelas mãos dos portugueses escravistas, outros pelos sucessivos conflitos e pela instabilidade política que transformaram o distante Brasil em símbolo de esperança. E aqui, do lado de cá do Atlântico, seguiram escrevendo suas histórias. Foi no bairro do Bixiga que negros africanos e italianos de origem pobre se encontraram e ajudaram a construir parte da cultura e da memória da cidade de São Paulo. Não por acaso a rua mais notória do bairro se chama Treze de Maio, a data de assinatura da Lei Áurea. O Educação e Território 1 aponta para a presença de quilombos na região, em provável decorrência de sua mata fechada, topografia acidentada e relativa distância do Vale do Anhangabaú, onde ocorriam os leilões de escravos. “[...] antes de ser ocupada por imigrantes, a Bela Vista, onde se localiza o Bixiga, era utilizada como esconderijo de negros em fuga.” aponta também o Nexo Jornal 2. Depois do processo de abolição, iniciado em 1888, o lugar se tornou palco natural para o desenvolvimento deste povo e de sua cultura.
I. Campos do Bexiga no século XIX. A região, ainda não integrada ao centro da cidade, funcionava como esconderijo de escravos.
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Os italianos, assim como outros povos europeus que ocuparam a capital e o interior paulistas, vieram movidos por esperança: a Itália passava por um extenso processo de independência e unificação que ocupam as páginas da segunda metade do século XIX e se desdobram sobre a primeira grande guerra, no começo do século XX. Ao longo desse processo, as populações mais fragilizadas - em especial os povos do sul do país - viram no Brasil a possibilidade de perpetuação e reconstrução dos próprios costumes, cultura e história.
II. Anúncio no Jornal da Tarde. Recorte que data de 1880 e revela o início da consolidação do bairro.
Esses imigrantes, que a princípio vieram para o trabalho nas lavouras, perceberam boas condições na capital que - a passos lentos - se urbanizava e, na até então fazenda do Bexiga, se instalaram; No fim do século XIX, a cidade de São Paulo já era conhecida como cidade dos italianos: em 1872 a cidade tinha 31 mil habitantes; em 1900 o número já era superior a 240 mil, sendo mais da metade dessa população vinda da Itália. 3 É da comunhão desses dois povos, portanto, que o bairro se desenvolve. E aqui cabe um parêntese linguístico: cultural, portanto. Segundo os registros oficiais do Município de São Paulo, não há bairro algum cujo nome seja Bixiga, ou Bexiga. No mapas da cidade, o que se encontra é o distrito da Bela Vista. Bixiga é uma herança cultural, uma marca identitária dos moradores. Identidade. Apropriação. Pertencimento. E aqui reside a força do nome cuja a própria origem é incerta 12
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e transita por entre as estórias vivas, passadas geração após geração. Não nos cabe aprofundar tais estórias que especulam o nascimento do nome, mas vale a ressalva: em respeito à dimensão patrimonial e histórica do bairro, ele será chamado - nesta singela hipótese arquitetônica - como seus moradores fazem questão que o seja: Bixiga. O desenho das ruas e das casas é um capítulo à parte. Pela sucessão de eventos que se dá, podemos dizer lógica ou natural, a atmosfera sob a qual o bairro respira. As casas e demais construções remontam o sul da Itália: em lotes compridos, de testada reduzida, as cores vivas se espalham pelo cenário urbano e sustentam uma marca estética inconfundível no centro de São Paulo. As frentes eram ocupadas pelas famílias mais abastadas, e os fundos alugados para os moradores mais pobres. E sobre esse desenho de lote especula-se a duradoura resistência do bairro frente ao processo de verticalização que se desenhou em quase todo o centro do município (sobre este tópico retornaremos, essencialmente com um olhar mais atento sobre questões patrimoniais e de preservação); e além de casas, um vasto comércio: o bairro é tradicionalmente lembrado por suas cantinas e belamente decorado por antigas padarias, restaurantes, sapatarias e outros locais de encontro. O estilo é único. “...até que o pessoal daqui começou a apelidar eles [os mestres de obra] de engenheiros de cabo de guarda chuva. Porque eles riscavam o chão com guarda chuva: aqui vai um quarto… e tanto é que se você olhar todas as casas do Bixiga, nenhuma tem um estilo definido, pouquíssimas. Até a turma caçoava: é um estilo macarrônico.” * * Depoimento de Armandinho do Bixiga para Júlio Moreno, presente no documentário Memória em Pedaços: Bixiga. Armandinho foi morador ilustre do bairro e fundou o Museu Memória do Bixiga, onde passou sua vida contando e registrando histórias do bairro. 4
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III. Cenas do documentário Memória em Pedaços: Bixiga. As casas revelam o estilo italiano de construção em lotes compridos.
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Mas não só de pequenas casas foram conformadas as primeiras ruas do bairro: existem também casarões, repletos de mitologias próprias e que ancoram o patrimônio imensurável deste lugar. A Casa de dona Yayá, atual sede do Centro de Preservação Cultural da Universidade de São Paulo, guarda consigo a história de Sebastiana de Melo Freire (1887-1961), tendo a abrigado enquanto residência e, posteriormente, manicômio particular. Mas não só: a edificação remonta a materialidade, a técnica e a história associadas ao bairro e a forma como se construía nele à época: Há no centro da edificação um chalé de madeira que segundo Regina Tirello, trata-se da primeira construção do bairro 5; Outro importante casarão, se é que se pode referi-lo de tal maneira é a Vila Itororó: um grande conjunto de cortiços construídos através de elementos arquitetônicos que a cidade, aos poucos, se desfazia. Trata-se de outro patrimônio cultural de valor incalculável para a cidade que hoje acolhe atividades destinadas à comunidade e opera também como canteiro aberto. O bairro é cheio de personalidades ilustres. Além do já apresentado Armando Pugliese: o Armandinho do Bixiga, outras personalidades traduzem o rico cenário cultural do bairro e, por consequência, da cidade. Um nome cujo destaque é indiscutível é Walter Taverna. Foi o compositor do Hino do Bixiga quem “[...] criou a Festa da Nossa Senhora de Achiropita com o formato que tem hoje.” 6. Foi ele também quem estruturou as primeiras manifestações da feira livre que acontece semanalmente na praça Dom Orione. É história viva do bairro e atende com seus charmosos cabelos brancos uma fiel clientela de sua cantina Conchetta, na rua Treze de Maio; Há aqueles que possam ser lembrados também pelo amor que os levaram a frequentar as ruas do bairro mesmo não tendo nascido por lá: Adoniran Barbosa e Elis Regina, importantes nomes da música popular, foram frequentadores assíduos do Bixiga e deixaram registros da devoção através de canções: 16
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UM SAMBA NO BEXIGA Domingo nois fummo num samba no Bexiga Na Rua Major, na casa do Nicola À mezzanotte o’clock Saiu uma baita duma briga Era só pizza que avuava junto com as braciola Nóis era estranho no lugar E não quisemo se meter Não fummo lá pra briga, nós fummo lá pra come Na hora H se enfiemo de baixo da mesa
Fiquemo ali, que beleza, vendo o Nicola brigar Dali a pouco escuitemo a patrulha chega E o Sargento Oliveira parla Num tem importância Foi chamada as ambulância Carma pessoal A situação aqui está muito cínica Os mais pior vai pras Clínica
Letra: Adoniran Barbosa
Ainda na chave do samba, outro registro de indiscutível valor simbólico: o bairro é sede e as ruas são palco de uma das mais tradicionais escolas de samba da cidade. A Vai-Vai, expressão de primeira grandeza na história do povo negro que habitou e habita a região; a escola é a maior campeã do desfile de carnaval paulistano e teve sua origem de cordões de choro e samba que se multiplicaram ao longo dos anos e são espetáculos à parte celebrados aos fins de semana até o tempo presente, segundo constam os autos digitais da escola. 7 A comunhão entre negros e italianos poderia ser ilustrada através de uma pintura do padre Antônio da Silva. Negro cujas palavras foram sabiamente registradas em Memória Em Pedaços - Bixiga. Sobre Nossa Senhora Achiropita, santa de origem italiana e padroeira do bairro e sua principal igreja, ele diz: 17
“A devoção de Nossa Senhora Achiropita é de origem italiana, mas tem muito de afro também. [...] o rosto é rechonchudo, da mulher calabresa, mas ao mesmo tempo ela é uma figura vaidosa: ela tem os brincos. Ela lembra Oxum, da tradição africana.” * Ainda nas palavras do padre, um relato sobre uma das mais importantes manifestações culturais do bairro: “O mês de Agosto é o momento forte da celebração da festa de Nossa Senhora Achiropita [...] tradição italiana que fazemos questão de manter, pois é tradição do Bixiga. No mês de Agosto, todos nos tornamos italianos.” ** É válida, a este ponto, uma análise clínica dos elementos colecionados até então; O Bixiga é fruto e síntese de uma miscigenação e sobreposição daquilo que 1) negros ex escravos, ainda a margem de um sistema, e 2) italianos expulsos de seu país pela guerra foram capazes de conceber como ideia de cidade. Como esses dois povos se estabeleceram fisicamente e perpetuaram sua cultura que ao longo dos anos foi se confundindo com a cultura da própria cidade. De certo, essa história se amplia e somam-se outros povos e elementos que viriam a se traduzir no Bixiga do hoje, do qual falaremos. Mas num primeiro momento histórico é absolutamente necessário salientar o valor que está associado e expresso pela cultura que se produz coletivamente, nas ruas, dispostas aos múltiplos diálogos. As fontes primárias - seus moradores, por sua vez, filhos de outros moradores -, e os estudiosos apontam com nitidez para elementos essencialmente urbanos: restaurantes, pequenos comércios, exibicionismos patrióticos, criação e preservação de bens que perpetuem a história local, e, sobretudo, manifestações de rua: o samba em roda nos * **
Depoimento para o documentário Memória em Pedaços: Bixiga. 8 Idem
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bares, o carnaval, as festividades religiosas, as feiras livres. O Bixiga representa, em sua gênese, um imenso potencial e expressão de urbanidade que aflora e recobre os anos seguintes.
...
Nossos próximos mergulhos serão trágicos. Tragédia sob a qual o teatro e sua história no bairro nos conduzirão por entre dois períodos anti democráticos, mas particularmente prolíficos e brilhantes na história das artes no país. Dores e doses de contradição serão lentamente somadas a este texto, não por descuido, mas por preocupação em apresentar um cenário factível. O período é efetivamente marcado pelo contraditório, a medida que a cidade de São Paulo e este singelo bairro se modernizam. As cadeiras não estão mais nas calçadas, o bonde já não passa mais, o “pogresso”, como Adoniran fazia questão de dizer, mudou o Bixiga, mas não deu conta de apagar gestos, cores e fachadas que ainda fazem deste um dos bairros mais charmosos e pulsantes da cidade. 19
referências 1 Portal Educação e Território. Memória e resistência nos bairros negros da cidade de São Paulo. 2020 2 Nexo Jornal. A mudança de nome da Praça da Liberdade. E a memória negra em São Paulo. 2007 3
Portal do Bixiga. História.
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Documentário. Memória em Pedaços: Bixiga. TV Cultura, 2007
5 Artigo. A síntese gráfica no processo de projeto de restauração arquitetônica. Regina Andrade Tirello; Pedro Murilo Gonçalves de Freitas, 2015 6
Jornal Estadão. Seu Walter Taverna é a história viva do Bexiga. 2011
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Portal Vai-Vai. Sobre.
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Documentário. Memória em Pedaços: Bixiga. TV Cultura, 2007
imagens I
Portal do Bixiga. Autor Desconhecido.
II
Portal do Bixiga. Jornal da Tarde.
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Documentário. Memória em Pedaços: Bixiga.
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Uma tragégia à italiana
PRIMEIRO ATO: Recordatório Silêncio no Bixiga. As conversas e brigas políticas, tão ao gosto dos italianos, estavam proibidas. A partir de 1930, o poder no Brasil tinha um nome: Getúlio Vargas. Uma ação supostamente temporária, mas que levou à dissolução do congresso, às assembleias estaduais e câmaras municipais fechadas, em 1937. E assim permaneceram até 1945. O funcionalismo e a dinâmica do cenário público foram alterados, novos costumes foram introduzidos e, sobretudo, a iconografia foi subvertida: a imagem do então ditador - nacionalista auto intitulado - substituiu, nas escolas e outros edifícios públicos e institucionais, antigos símbolos supostamente patrióticos: Santos Dumont, Ruy Barbosa, Dom Pedro I. Até uma das avenidas mais importantes da cidade por pouco não recebeu outro nome: a Avenida 9 de Julho, cuja data comemora a Revolução Constitucionalista de 1932, contrária ao poder varguista, poderia ter a alcunha de alguma simbologia ligada ao governo da época. Sob essa atmosfera, o Bixiga atravessou, bem como nós atravessaremos este capítulo da história. Não sob uma perspectiva diretamente associada ao jogo político, mas através de uma das marcas de maior expressão do bairro e que muito dialoga, produz, reproduz e encena tais tempos de repressão e os seguintes - pelas suas próprias ferramentas: o teatro; Em 1948, três anos após o fim do regime Vargas, é inaugurado o TBC: Teatro Brasileiro de Comédia, na rua Major Diogo, nº 315 1. Idealizado pelo Italiano Franco Zampari, a casa de espetáculos é certamente um dos grandes expoentes das artes 22
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I. Teatro Brasileiro de Comédia. O TBC, grande gerador da cultura teatral no Bixiga.
cênicas de todo o Estado. Revelou ao mundo Cacilda Becker, Paulo Autran, Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Walmor Chagas e outros nomes de grandeza indiscutível. Os primeiros anos são marcados por peças de nomes como Jean Cocteau e Abílio Pereira de Almeida. La Voix Humaine e A Mulher do Próximo, respectivamente. Nomes que a história apresenta como representantes de movimentos de vanguarda, experimentais. Cocteau esteve ligado não só ao teatro, mas também ao cinema, e expressou através de sua obra, em síntese, uma relação estética entre as tecnologias, o modernismo e os paradoxos sociais 2. Abílio, por sua vez, formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo, e na sequência fundou o GTE: Grupo de Teatro Experimental [3]. O teatro formou uma série de atores, muitos dos quais viriam a se desligar do próprio para construir e protagonizar suas companhias, ampliando o valor teatral do bairro. Apesar do valor simbólico desse processo de ramificação, a rotatividade em cena e por trás dela - nos âmbitos jurídico e administrativos - levaram o TBC à altos e baixos. Mesmo com a ajuda financeira do Estado de São Paulo, Zampari entrega em 1960 a direção da casa à Associação Brasileira de Comédia, 23
representada pela figura de Flávio Rangel e que, sobretudo, se traduziria num teatro tido como “nacionalista”. O curto período da gestão de Rangel pode ser representado pela peça O Pagador de Promessas, de Dias Gomes que contrapõe a sociedade desenvolvimentista da época à uma trajetória ecumênica de seu protagonista. Em 62, a direção artística do teatro é reassumida por Maurice Vaneau que introduz temas de cunho e abordagens mais amplos em termos de sociedade representada: Jorge Amado, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e José Lins do Rego para escreverem peças para o Teatro neste período. 4 A arquitetura do prédio decorre de seu uso anterior - uma oficina (segundo consta na Secretaria de Estado da Cultura) - e se dá a partir da garagem, sendo toda ela concebida em alvenaria, Trata-se de um edifício em que se somam ao térreo três pavimentos e um subsolo. O programa se distribuía da seguinte forma, conforme a ArquiCultura, da FAUUSP 5: “os pavimentos térreo e superior abrigam o palco principal, a marcenaria, o salão de ensaios, a platéia superior e inferior, e um par de sanitários destinados ao público, enquanto o primeiro pavimento era composto, basicamente, por uma área descoberta. No segundo ficava localizado outro palco, com projeção de arco, o poço de iluminação e ventilação e outros sanitários. [...] O terceiro pavimento era menor e não tinha acesso do público, já o subsolo abrigava o terceiro palco com plateia da edificação, o hall, uma segunda sala de ensaios, o controle de iluminação do Teatro, o depósito, outro sanitário e a caixa de água subterrânea.” E aqui se destaca o fato de que o TBC foi inovador do ponto de vista das construções teatrais pela existência de uma oficina e marcenaria próprias, ateliês, guarda roupas e, sobretudo, um arquivo que remonta sua história e cuja fonte de informação se apresenta para sustentação desta linha argumentativa.
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Vale-se do destaque do TBC como forma de acentuação de ideias importantes: o teatro foi embrião de iniciativas que viriam em sequência, também no Bixiga, como o Teatro de Arena e o Teatro Oficina, sobretudo neste último, que perpetuou o apreço pela formação do autor em um alto grau de profissionalização e a manutenção de espaços de criação cênico e cenográfico que se sustentam desde a concepção arquitetônica teatral; O valor histórico e patrimonial do TBC é de estima tal que o edifício encontra-se, hoje, tombado pelo CONDEPHAAT e CONPRESP, segundo as resoluções 63/1982 e 5/1991, respectivamente.
...
No próximo ato desta peça, ouviremos a voz dos atores e diretores que viveram, em vida e em cena, todas as transformações sofridas pelos teatros do Bixiga ao passo que o Brasil era mergulhado em dois decênios de sangue e perseguição. Através de suas palavras, conheceremos as grandes peças, momentos, mudanças e perspectivas, sobretudo, de uma nova estética do pensamento teatral que surgia. 25
SEGUNDO ATO: As vozes da memória
II. Cenas de O Rei da Vela e O Balcão. Encenados pelos Teatro Oficina e Teatro Ruth Escobar, respectivamente. [6][7]
Renato Borghi “Eu acho que o Bixiga foi realmente um centro muito importante. Um centro cultural e um centro de resistência política. Eu acho que a coisa que germinava no teatro do ponto de vista de resistência à ditadura, de resistência a revolução de 64 e depois ao AI-5, que foi uma violência total, tudo isso acontecia muito nos limites do Bixiga.” José Celso Martinez Corrêa “A vista do Bixiga é a gente. É a gente da rua. No umbigo de São Paulo, é o lugar onde tradicionalmente tá destinado a ser 26
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o ponto de encontro de todos os guetos: pobres, ricos, tudo. Nós começamos aqui: quem inaugurou foi Cacilda Becker, aliás. [...] E a nossa história tava ligada à história do centro-Bixiga-cultura que começou com a ocupação das cantinas italianas, a escola de samba Vai Vai com a população negra do bairro que dá uma vitalidade enorme ao bairro e com o TBC, que foi encontrar aqui no Bixiga um lugar, um barracão, que foi adaptado pra fazer o TBC. E o TBC girou, formou atores no teatro contemporâneo e gerou vários outros teatros. Gerou teatro Maria Della Costa, na rua Paim, com a Cia. Maria Della Costa; gerou Teatro Sérgio Cardoso com Sérgio Cardoso e Nydia Lícia. [...]” Maria Thereza Vargas “O Teatro Brasileiro de Comédia foi o primeiro teatro ali no Bixiga. E essa geração, pelo menos dos diretores, eles foram formados assistindo espetáculos no TBC. O último espetáculo do TBC, se não me engano, foi em 63. Acabou com Antunes Filho fazendo a Vereda da Salvação.” Antunes Filho “Não poderia haver Vereda da Salvação se não houvesse uma contestação, uma coisa que já começava a existir. Eu não poderia fazer Vereda da Salvação se não tivesse tido o conhecimento técnico, estético dos estrangeiros. Eles mesmos me ensinaram, eles mesmo me deram apoio pra que eu fosse contra. Não à eles, não contra eles, mas contra uma atitude meio congelada da maneira de fazer teatro.” Corta; Aqui se vê as primeiras marcas de uma ruptura. Como em muito do que se construiu de moderno neste país, A necessária expertise europeia, uma vez incorporada, é subvertida e traduzida em leitura de Brasil. A direção e o repertório de forte tradição italiana passam a coexistir e contracenar com perspectivas novas, genuinamente concebidas no aqui e no agora da virada da década de 1950 para a seguinte. 27
Cleyde Yáconis “Aconteceu uma coisa muito engraçada e o Bixiga foi propício pra isso. A gente não pode esquecer que o Bixiga é um bairro temperamental. Eu quase que poderia dizer que eles eram a mesma família como se o TBC fosse a mãe e tivesse dois filhos: Arena e Oficina.” Nydia Lícia “Depois cada um tomou seu rumo. Quando o Arena percebeu que havia dificuldade em encontrar determinadas peças, resolveu dar uma chance aos seus meninos. E estreou a peça do Guarnieri. E foi um separador de águas mesmo.”
III. Cenas de Eles Não Usam Black-Tie. Peça de Gianfrancesco Guarnieri encenada pelo Teatro de Arena. [8]
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Corta; Teatro Oficina e Teatro de Arena, e seus respectivos autores e atores, tornam-se protagonistas. Sábato Magaldi “Eu creio que a estréia de “Eles Usam Black Tie” foi fundamental para uma nova direção do teatro brasileiro. Nós vínhamos de preocupações diversas, mas sempre com relação às classes privilegiadas, e “Eles Usam Black Tie” mudou essa perspectiva levando o povo a figurar em cena.” José Renato “Era uma peça que propunha problemas novos, e principalmente focava em problemas sociais, discussões sociais, políticas. E a gente estava profundamente engajado nas discussões da época, na polêmica da época que era, por exemplo, a reforma agrária, o direito de greve.” Juca de Oliveira “[...] as dificuldades da família, o afeto do homem simples, da pessoa sem recursos. E, sobretudo, o problema relacionado à política, à participação social do operário. O problema do partido comunista, o partido das greves, o problema das reivindicações.” Agora atenção para este nome: Flávio Império. O arquiteto, cenógrafo, artista plástico e figurinista Flávio Império. De uma importância e de grandeza tais que se reconhece na fala dos próprios colegas de formação e profissão, mas não só. Também músicos, atores, alunos. Maria Thereza Vargas “Flávio Império nasceu no Bixiga. E uma coisa muito importante é que o Flávio Império era filho de um ourives. Ele pegava materiais usuais e dali ele transformava. Chegando no Arena, ele vestiu praticamente os atores. E como cenografia poucos elementos. E o mais importante seria um tapete vermelho: vermelho expressa martírio, expressa luta e expressa vitória também.” 29
José Celso Martinez Corrêa ”Um Bonde Chamado Desejo” foi uma direção do Boal maravilhosa. Foi uma produção nossa. Era uma versão do Flávio Império muito bonita que ele usava muito a verticalidade desse teatro (se referindo ao Teatro Oficina). Eram duas platéias, e ele já usava a verticalidade, então tinha a casa da vizinha e era lá em cima. E tinha uma escada. Aquela escada que ele chama “Estela!” e ela vem descendo. Aqui era o banheirinho dela que saía fumaça. Quer dizer, era um cenário que usava a altura toda. [...]” Maria Thereza Vargas “Em 1964, Maria Della Costa e o Sandro Polônio resolveram fazer Depois da Queda.”
IV. Depois da Montagem do Maria Della digirida por Rangel. 9
Queda. Teatro Costa, Flávio
V. Modelo desenvolvido para o cenário. A cenografia é desenvolvida por Flávio Império. 10
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Juca de Oliveira
”Depois da Queda é 1964 e ele vem logo depois da revolução de Abril. Havia uma feroz ditadura no teatro brasileiro. O Teatro de Arena tinha sido, inclusive, fechado.”
Maria Della Costa
“O cenário foi projeto pelo Flávio Império, um cenário moderno, que quando eu mostrei a foto pro Arthur Miller, em Nova York, ele ficou encantado. Ele disse: Poxa vida, é uma coisa fantástica. Ele tava flutuando praticamente no ar. Era uma coisa tão leve, tão linda.”
Sérgio Mamberti “Nesse período a Cacilda Becker, em plena ditadura que ela assumiu então essa grande liderança, ela resolve fazer um ciclo de leitura no apartamento dela. E o Plínio apresenta a Navalha. A Navalha foi um acontecimento. Um marco no teatro brasileiro. Ela é um divisor de águas porque foi exatamente em função da Navalha, por exemplo [...] se o Guarnieri tinha colocado o operário em cena, o Plínio colocava o excluído, o marginal. Era a tragédia da marginalidade.” José Celso Martinez Corrêa “Teve um momento que tava em cartaz nada menos que
Navalha na Carne, O Rei da Vela e Roda Viva. Roda Viva é a maior revolução teatral do meu processo porque, inconscientemente, com Roda Viva subiu no Teatro o coro. O coro grego. [...] O político em Roda Viva era exatamente que ela estabelecia novamente o espaço todo como espaço de teatro. A vida como espaço de teatro. Ela trazia o coletivo, mas o coletivo em que cada indivíduo era um carisma, cada indivíduo era um auto coroado, cada indivíduo era mais importante do que o protagonista da peça. E trazia essa revolução total do corpo. A revolução política do corpo e do corpo coletivo, do corpo conjunto. O que fez 68 no mundo inteiro.”
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Renato Borghi “Todo mundo amava o Chico (Buarque). E o Chico, de repente, escreveu uma peça violentíssima sobre a coisa do ídolo. Do ídolo da música popular. Era uma peça que falava do sistema, da exploração, até o ponto de aquele ídolo virar quase que uma carne crua. [...] Ninguém tinha coragem de proibir o Chico, mas aí eles tiveram de proibir porque entrou mandado de segurança, a peça voltou... O único jeito que eles tiveram foi mandar uma associação paramilitar - que eram militares disfarçados de civis - chamada CCC (Comando de Caça aos Comunistas) que invadiram o teatro e aí massacraram os atores, queimaram o bico do seio das atrizes com cigarro, teve gente até que quebrou a perna, foi uma coisa muito violenta.”
VI. Cenas de Roda Viva. Peça de Chico Buarque montada pelo Teatro Oficina, dirigida por José Celso. 11
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TERCEIRO ATO: Oswald, Antropofagia, Oficina e Tropicalismo Nas palavras de um dos protagonistas da ópera, José Celso Martinez Corrêa: “O “Rei da Vela” veio numa época de turbulência, de insatisfação pela leitura que era feita do Brasil até então. E Oswald Andrade tava esquecido. Ele tava como sempre, e como ainda é hoje: é como Dionísio. Ele morre, renasce, morre, renasce.”
VII. O Rei da Vela no Estado de São Paulo/67. Peça de Oswald Andrad, até então inétida, é montada pelo Teatro Oficina e causa espanto entre a crítica.
VIII. Anúncio de O Rei da Vela. “Atenção: quadrados, festivos, pudicos. Não venham!”
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Em seu depoimento para para o documentário de Inês Cardoso, Bixiga: A Bela Vista do Palco Brasileiro 12, o crítico de teatro Jefferson Del Rios apresenta o Teatro Oficina como uma grande festa. Uma paródia provocativa de Oswald Andrade através de sua peça - até então inédita nos palcos de teatro - O Rei da Vela. Segundo Del Rios, o espetáculo se dividia entre o melodrama, o teatro de revista e a ópera, como linguagem. De maneira igualmente harmoniosa, introduziu uma visão estética que incorporava a música da época e outras expressões populares como o carnaval. Com visualidade forte e agressiva criada pelo cenário de Hélio Eichbauer, e uma canção de Caetano Veloso, a montagem foi dedicada a Glauber Rocha, que havia lançado, pouco antes, Terra em Transe. É de suma importância evidenciar estes nomes: José Celso Martinez, Caetano Veloso e Glauber Rocha. Autores, contadores de histórias, de mídias diferentes - teatro, música e cinema, respectivamente - que em vista das influências que lhes atravessavam e da ambiciosa lucidez crítico-cultural que haviam construído até então, se propuseram a uma verdadeira revolução de forma e de discurso. Da maneira coligada.
IX. O Rei da Vela em cena. E o icônico cenário de Hélio Eichbauer que entraria para a história do teatro brasileiro.
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Ainda nas palavras de José Celso, agora em texto escrito para o jornal Última Hora, em fevereiro de 1968 13: “Nós somos muito desenvolvidos para reconhecer a genialidade da obra de Oswald. Nosso ufanismo vai mais facilmente para a badalação do óbvio sem risco do que para a descoberta de algo que mostre a realidade de nossa cara verdadeira. E é verdade que a peça não foi levada nem até agora, nem a sério. Mas hoje que a cultura internacional se volta para o sentido da arte como linguagem, como leitura da realidade através das próprias expressões de superestrutura que a sociedade espontaneamente cria, sem mediação do intelectual (história em quadrinhos, por exemplo) a arte nacional pode subdesenvolvidamente também, se quiser, e pelo óbvio, redescobrir Oswald. Sua peça está surpreendentemente dentro da estética mais moderna do teatro e da arte visual. A super teatralidade, a superação mesmo do racionalismo brechtiano através de uma arte teatral síntese de todas as artes e não-artes, circo, show, teatro de revista etc. [...] A direção será uma leitura minha do texto de Oswald e vou me utilizar de tudo que Oswald utilizou, principalmente de sua liberdade de criação. [...] Ele deflorou a barreira da criação no teatro e nos mostrou as possibilidades do teatro como forma, isto é, como arte. Como expressão audio-visual. E principalmente como mau gosto. Única forma de expressar o surrealismo brasileiro. O primeiro ato se passa num São Paulo, cidade símbolo da grande urbe subdesenvolvida, coração do capitalismo caboclo onde uma massa enorme, estabelecida ou marginal, procura através da gravata ensebada se ligar ao mundo civilizado europeu. Um São Paulo de dobrado quatrocentão, que somente o olho de Primo Carbonari consegue apanhar sem mistificar. O local da ação é um escritório de usura, que passa a ser a metáfora de todo um país hipotecado ao imperialismo. A burguesia brasileira lá está retratada com sua caricatura – um escritório de usura onde o amor, 36
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os juros, a criação intelectual, as palmeiras, as quedas d’água, cardeais, o socialismo, tudo entra em hipoteca e dívida ao grande patrão ausente em toda ação e que faz no final do ato sua entrada gloriosa. É um mundo kafkiano *, onde impera o sistema da casa. Todo ato tem uma forma pluridimensional, futurista, na base do movimento e da confusão da cidade grande.” Neste exato momento, a antropofagia oswaldiana passa a representar a síntese de um pensamento contestador no teatro. O atravessamento das mídias como estabelecimento de um novo vínculo e diálogo com o público eclode através do Teatro Oficina. Através de um sincretismo absoluto das artes, uma postura política de resistência e contracultura foi alçada a níveis inimagináveis à época. José Celso Martinez Corrêa, então diretor do Oficina, conecta-se ao cinema Novo de Glauber Rocha e aos tropicalistas na música, através de Caetano Veloso. Esses e ainda outros fundaram esse extenso e profundo diálogo sobre o que teria sido até então, o que era, e o que viria a ser Brasil a partir daquele ano de 1967.
* Franz Kafka (1883 - 1924) foi um romancista tcheco habilmente inventivo em se tratando da construção de ambientes e personagens angustiantes, claustrofóbicos, fruto de duras estruturas burocráticas.
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referências * Todas as falas do segundo ato foram retiradas de Bixiga: a Bela Vista do palco brasileiro. 1 Documentário. Bixiga: a Bela Vista do palco brasileiro. Inês Cardoso, 2008. 2
Portal Jean Cocteau. Theatre work.
3
Enciclopédia Itaú Cultural. Teatro Brasileiro de Comédia (TBC).
4
Ibid.
5
Portal ArquiCultura - FAUUSP. Teatro Brasileiro de Comédia.
6
Documentário. Bixiga: a Bela Vista do palco brasileiro. Inês Cardoso, 2008.
7 Ibid. 8 Ibid. 9 Ibid. 10 Ibid. 11 Ibid. 12 Ibid. 13
Jornal A Última Hora. O Rei da Vela: Manifesto Oficina. 1968
imagens I
Valor Folhapress. Daniel Wainstein.
II
Documentário. Bixiga: a Bela Vista do palco brasileiro.
III
Ibid.
IV Ibid. V Ibid. VI Ibid. VII
O Estado de São Paulo. Autor Desconhecido.
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VIII Fonte ausente. IX Documentรกrio. Bixiga: a Bela Vista do palco brasileiro.
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4
...ou panis et circencis
“[...] para que o Tropicalismo se transformasse no braço armado da Segunda Revolução Industrial, o Brasil naquele tempo, sob a sombra de uma ditadura, precisava que a juventude tivesse material mental para se excitar.” O Movimento Tropicalista, ou a Tropicália - como seus criadores e a mídia jornalística gradualmente tornaram comum o uso enquanto expressão - se estabeleceu, na segunda metade da década de 1960, como uma nova concepção musical e que abrigava, sobretudo, um novo entendimento e crítica de Brasil e do respectivo momento político-cultural que o país atravessava. Um tecido musical e cultural que estabeleceu novos parâmetros para aquilo que se pretendia dizer, mas sobretudo para as reações que se pretendia provocar: popular por essência, tinha a ambição de dialogar com todos aqueles do mais pobre ao mais rico, do mais simples ao mais erudito que viviam o contraditório Brasil de 1967. Algo que, segundo seus deflagradores, a música tida como popular já não era capaz de fazer. Trata-se de uma revolução não só musical, mas comportamental, estética e crítica. E como toda revolução, carece da observação do cenário em seus diferentes aspectos para que se possa absorvêla para além da superfície. Valho-me da centralidade do tema enquanto premissa e conceito, e de sua complexidade para ampliá-lo em seus distintos movimentos temáticos: a precedência, a narrativa, o conflito, a grande esfera, e os impactos no tempo presente. 40
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1.
A precedência
A música que melhor representava o Brasil, para os próprios brasileiros e também para o mundo, no início da década de 1960 era, certamente a Bossa Nova. Uma espécie de gênero musical derivado do samba - circunscrito também por outras influências evidentes, como o jazz americano - que se irradiou, no fim da década anterior, a partir da zona sul do Rio de Janeiro e teve como genitores de maior destaque João Gilberto, Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim. Mãe de indiscutíveis sucessos como Chega de Saudade, a Bossa deu vida a uma nova maneira de se interpretar canções, através da voz e do violão, e se tornou, em algum nível, uma espécie de retrato de Brasil, à época. Um Brasil que tinha a “cidade maravilhosa” como capital federal e que exacerbava cada vez mais seu nacionalismo contido na figura do então presidente, Juscelino Kubitschek. E que, sobretudo, se via representado nas letras quase inofensivas, do ponto de vista crítico ou político, cantadas pelas vozes suaves de João, Nara Leão, e tantos outros. Um Brasil virtualmente perfeito, ascendente, ao menos sob o olhar da burguesia carioca que regimentava os limites estéticos, poéticos e líricos dessa música que se fazia. Músicos que, eles próprios, poderiam ser vistos como representação de Brasil, mas que não souberam ou quiseram - se descolar ou, ao mesmo questionar, um padrão estético genuinamente europeu, digno de terno e gravata sob o calor carioca. 1 Essa Bossa Nova, musicalmente hegemônica em larga escala, poderia - certamente - ter pintado os quadros brasis por mais tempo não fosse a sua incapacidade de revelar o que se viu nas ruas, cobertas por sangue, após Abril de 1964. A partir desta data, a mansidão do barquinho e da garota de Ipanema - que já não representavam a violência inerente do Brasil real, notoriamente racista e contraditório - só poderiam ser perpetuados numa leitura de Brasil ingênua. Um otimismo que, 41
antes bobo, tornava-se gritantemente trágico a partir de então. Em virtude do ocorrido - que viria a durar duros vinte e um anos - os herdeiros musicais da voz, do violão e do black tie logo seriam transformados, pelo jornalismo da época em “emepebistas” (em associação ao termo MPB que havia se consolidado), e responsáveis pelas chamadas canções de protesto. Uma temática nova, mais politizada e engajada e, por consequência, menos ingênua que o status anterior. Uma espécie de representação, no âmbito da música, de um projeto de ampliação de valores culturais, encabeçada pela União Nacional dos Estudantes (que, à época, tinha grande representação no cenário político nacional), através dos seus CPCs (Centros Populares de Cultura). Os herdeiros da Bossa Nova, representados por figuras como o jovem Chico Buarque, Edu Lobo e Elis Regina, representavam os ideais de uma esquerda universitária que via na música uma ferramenta de contestação, mas se muniam de um repertório de recursos musicais curiosamente limitado, pouco aberto à mudanças, e que rechaçava movimentos como o da Jovem Guarda, por exemplo, sob acusações de alienação e permissividade para com a “invasão” cultural estadunidense. 2 Aqui uma necessária pausa e destaque: rechaçar, neste momento histórico onde a música se propagava nos grandes programas de televisão, de auditório, e em grandes festivais que aconteciam nos principais teatros de São Paulo e do Rio de Janeiro, significava uma efetiva e, por vezes, física hostilização. Grandes vaias organizadas em grupo, tomates e ovos podres lançados ao palco não eram apenas elementos folclóricos. E o agravamento do momento político tornava as manifestações dessa extrema esquerda universitária, conservadora e nacionalista, cada vez mais radicais e frequentes. As figuras de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, representantes da Jovem Guarda (ou do iê iê iê como o jornalismo da época apelidou carinhosamente, em referência ao rock inglês dos Beatles), tornaram-se símbolo de despolitização. 42
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2.
A narrativa
Caetano Veloso e Gilberto Gil, idealizadores e naturais protagonistas desse movimento que viria a se deflagrar, entraram na mesma década de 1960 no auge de seus respectivos vinte e poucos anos, já se consolidando como compositores e músicos de verve altamente crítica, politizada e, sobretudo, alinhada com um pensamento de vanguarda. Os baianos, como logo ficaram conhecidos em suas primeiras aparições no cenário cultural do eixo Rio-São Paulo, fizeram parte - assim como seus aliados de movimento Gal Costa, Tom Zé, Capinam - do AvantGarde na Bahia 3, como batizou e descreveu Antônio Risério. Em sua obra de mesmo nome, Risério apresenta a capital baiana como um grande cenário de revolução cultural encabeçada por Edgard Santos, reitor da recém unificada Universidade Federal da Bahia, entre 1946 e 1961. Processo que contou com a vinda de Lina Bo Bardi (na direção do Museu de Arte Moderna da Bahia, mas trabalhando em sintonia com a Universidade), o diretor de teatro Martim Gonçalves, o músico e artista plástico suíço Walter Smetak, o afamado maestro alemão Hans J. Koellreuter, o historiador português Agostinho da Silva e a polonesa Yanka Rudzka, professora de dança contemporânea. Todos comprometidos com a concepção de um novo pensamento artístico que desse conta de uma visão universal e, sobretudo social, humanizada, do ensino das artes e da filosofia. E, sobretudo, que se intercambiasse, em alguma medida: fazia parte dessa nova estrutura o estímulo para que esses estudantes frequentassem e interagissem com as faculdades vizinhas. O movimento impulsionou a capital baiana à uma efervescência de companhias de dança, de teatro, grupos musicais e todo tipo de experimentação urbana que pudesse se dar nas imediações dos núcleos da UFBA, e conduziu a construção de um pensamento pluralizado e transgressor 43
na mente desses jovens que ali circularam, dentre os quais estavam Caetano e Gil. O grupo que daria origem a Tropicália, surgiu, inclusive através de experimentações teatrais. Mídia que, no limite, nunca deixou de fazer parte das sucessões artísticas. Através de uma série de eventos cuidadosamente conduzidos pelo destino - e belamente narrados pelo jornalista Carlos Calado em Tropicália: A História de uma Revolução Musical 4 - os baianos chegaram ao eixo RioSão Paulo e rapidamente se inseriram, através de suas composições e interpretações, naquela cena musical pós Bossa Nova que tomava a programação das TVs Globo, Tupi, Excelsior e principalmente da TV Record, responsável pelos grandes festivais de música popular da época. Tomados por essa filosofia vanguardista, experimentalista e antenados com o fazer artístico que se dava no mundo ocidental - que à época vivia a notória aparição dos Beatles, do videoclipe, do concretismo nas artes, do cinema experimental de Fellini, Jean-Luc Godard e dos expressionistas alemães os baianos se viram diante de uma grande dilema: mpb ou iê iê iê? Foi através do encontro de Caetano Veloso com José Celso Martinez (narrado no capítulo anterior) e da evocação do espírito antropofágico de Oswald Andrade, que o cantor compreendeu que seu dilema não se tratava simplesmente da escolha de um ou outro segmento. A música brasileira precisava viver aquilo que o teatro de Zé Celso e o Cinema Novo de Glauber Rocha (cria da mesma geração de artistas do avant-garde baiano) viviam: uma renovação estrutural e estética que partia do entendimento de um outro Brasil, que, afinal de contas, era um novo país dado o cenário. A música brasileira precisava de uma cisão. Uma ruptura, Uma quebra de paradigma. 44
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3.
O Conflito
Em 1928, o ponto colisor desta narrativa, Oswald Andrade, publica Manifesto Antropófago 5. Uma colagem literária, experimental em alto nível, que reinterpretava o conceito de antropofagia, um rito praticado por tribos indígenas no Brasil em que se comia uma ou várias partes do corpo de um adversário ou prisioneiro. Não se tratava de canibalismo simplesmente, porém: numa dimensão espiritual, o ato simbolizava adquirir o poder, as qualidades e conhecimentos daquele que era devorado. (Numa necessária simplificação a não perder de vista as qualidades de fins arquitetônicos deste ensaio), a antropofagia, em Oswald, trazia essa dimensão espiritual do ato para o campo das artes. Para a composição de uma linguagem verdadeiramente moderna (o paradigma artístico da época de Oswald), era preciso que se deglutisse, digerisse tudo que havia de Brasil verdadeiro (a cidade, o campo, o capitalismo, o índio, o negro, o carnaval), tudo que se fazia nas artes de vanguarda ao redor do mundo, os novos pensamentos estéticos e, sobretudo, as novas tecnologias. E da combinação desses elementos se extraísse um discurso qualificadamente moderno. O elo, a cola que uniu os tropicalistas - através de Caetano Veloso - ao Teatro Oficina e ao Cinema Novo, era justamente essa apropriação do discurso oswaldiano. E que, sobretudo, definiu a Tropicália enquanto movimento musical. A natural atualização do conceito se fez necessária de modo que o Brasil, as artes de vanguarda, os novos pensamentos estéticos, e as novas tecnologias foram ressignificados ao paradigma do tempo presente, neste caso, 1967. Na música, aquilo significava se atentar aos estilos, instrumentos, sotaques, ritmos, narrativas e contextos em que se dava tanto a canção popular regional, quanto os gêneros mais universalizados, comercializados. Significava absorver 45
a Banda de Pífanos de Caruaru, a música pop americana, a América Latina, os Beatles, toda a diversidade do cancioneiro brasileiro em seu instinto mais brega, o violão de João Gilberto e sua estabelecida Bossa Nova. Significava empunhar o violão, mas também a guitarra elétrica - o grande horror e símbolo do imperialismo estadunidense, na visão dos emepebistas -, os sintetizadores, ou mesmo os pratos da sala de jantar. Significava reconhecer e acompanhar um caminho - aparentemente sem volta - que o mundo, hoje, chama globalização, e todo o ferramental que se dispunha a partir dela. E que toda essa múltipla e rica linguagem se relacionasse politicamente com as mídias e debates do Brasil que era comandado por militares e massivamente veiculado e debatido na televisão, nos jornais impressos e no rádio. Um Brasil desigual, violento, conservador à esquerda e à direita, e que negava, até então, sua condição enquanto país subdesenvolvido, a margem do sistema estabelecido. Um Brasil de natureza imensamente contraditória, mas tragicamente incapaz de se reconhecer na contradição.
I. Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Talvez a capa de disco mais famosa dos Beatles. Nela, dezenas de figuras da cultura pop mundial.
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Em algum nível, os tropicalistas se preparavam pra fazer no Brasil, aquilo que os Beatles fizeram na Inglaterra, no mesmo ano de 1967. Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band apresentou ao mundo um horizonte experimental, transmidiático, uma nova maneira de se portar artisticamente. Uma leitura plural dos elementos e da atmosfera que os cercava. A própria capa do disco que encantou os olhos de Gilberto Gil já dava noções dessa ampla leitura. A certa altura do filme Terra em Transe 6 (na emblemática cena que marca a transição do segundo para o terceiro ato), seu protagonista Paulo Martins ( Jardel Filho) interrompe o discurso de um homem pobre (simbolizado na figura arquetípica do presidente do sindicato), com as seguintes palavras: “Estão vendo o que é o povo? Um imbecil. Um analfabeto. Um despolitizado.” Glauber, assim, escancarava a hipocrisia das extremas direita e esquerda brasileiras, que abriam fogo cruzado se julgando capazes de conduzir o país, quando na verdade eram incapazes, ambas, de se atentar e dialogar com as pessoas da suposta vida real. A massa de brasileiros pobres que - efetivamente - sustentava (e ainda sustenta) o país através do próprio trabalho. O diretor dá luz ao contraditório, ao absurdo. Ao Brasil. Ao que ele mesmo, o diretor, chama, estética da fome. Este mesmo Brasil foi narrado por Caetano Veloso na música que, simbolicamente, inaugurou o Movimento Tropicalista para o mundo, no Terceiro Festival da Música Popular Brasileira da Rede Record, em 1967. Através da técnica da bricolagem - uma composição em mosaico, livre de estruturas rígidas - vestindo um terno xadrez e uma gola alta laranja e acompanhado do grupo de rock argentino Beat Boys que empunhava, devidamente, seus instrumentos eletrificados, Caetano entoou:
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II. Caetano Veloso apresenta Alegria Alegria. Apresentação acontece no Terceiro Festival da Música Popular Brasileira da Rede Record, no Teatro Paramount.
Caminhando contra o vento/ Sem lenço e sem documento/ No sol de quase dezembro/ Eu vou/ O sol se reparte em crimes/ Espaçonaves, guerrilhas/ Em cardinales bonitas/ Eu vou/ Em caras de presidentes/ Em grandes beijos de amor/ Em dentes, pernas, bandeiras/ Bomba e Brigitte Bardot/ O sol nas bancas de revista/ Me enche de alegria e preguiça/ Quem lê tanta notícia/ Eu vou/ Por entre fotos e nomes/ Os olhos cheios de cores/ O peito cheio de amores vãos/ Eu vou/ Por que não, por que não/ Ela pensa em casamento/ E eu nunca mais fui à escola/ Sem lenço e sem documento/ Eu vou/ Eu tomo uma Coca-Cola/ Ela pensa em casamento/ E uma canção me consola/ Eu vou/Por entre fotos e nomes/ Sem livros e sem fuzil/ Sem fome, sem telefone/ No coração do Brasil/ Ela nem sabe até pensei/ Em cantar na televisão/ O sol é tão bonito/ Eu vou/ Sem lenço, sem documento/ Nada no bolso ou nas mãos/ Eu quero seguir vivendo, amor/ Eu vou/ Por que não, por que não? Por que não, por que não? Por que não, por que não? Alegria, Alegria. Caetano Veloso, 1967 48
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Alegria, Alegria apresentou o tropicalismo ao mundo num misto de vaias, excitação, confusão e choque que tomou conta do Teatro Paramount. Junto com ela veio uma canção de Gilberto Gil que dava conta de apresentar outra importante característica daquele movimento que acabava de nascer: sua capacidade de incorporar diversas mídias e linguagens artísticas em algo que era, supostamente, apenas música. Mas na verdade, tinha muito também do teatro, do cinema, da poesia e do folclore popular e regional. Domingo no Parque veio acompanhada do jovem trio de rock psicodélico paulista Os Mutantes.
O rei da brincadeira (ê, José)/ O rei da confusão (ê, João)/ Um trabalhava na feira (ê, José)/ Outro na construção (ê, João)/ A semana passada, no fim da semana/ João resolveu não brigar/ No domingo de tarde saiu apressado/ E não foi pra Ribeira jogar capoeira/ Não foi pra lá, pra Ribeira, foi namorar/ O José como sempre no fim da semana/ Guardou a barraca e sumiu/ Foi fazer no domingo um passeio no parque/ Lá perto da Boca do Rio]/ Foi no parque que ele avistou Juliana/ Foi que ele viu/ Foi que ele viu Juliana na roda com João/ Uma rosa e um sorvete na mão/ Juliana seu sonho, uma ilusão/ Juliana e o amigo João/ O espinho da rosa feriu Zé/ E o sorvete gelou seu coração/ O sorvete e a rosa (ô, José)/ A rosa e o sorvete (ô, José)/ Foi dançando no peito (ô, José)/ Do José brincalhão (ô, José)/ O sorvete e a rosa (ô, José)/ A rosa e o sorvete (ô, José)/ Oi, girando na mente (ô, José)/ Do José brincalhão (ô, José)
Juliana girando (oi, girando)/ Oi, na roda gigante (oi, girando)/ Oi, na roda gigante (oi, girando)/ O amigo João ( João)/ O sorvete é morango (é vermelho)/ Oi girando e a rosa (é vermelha)/ Oi, girando, girando (é vermelha)/ Oi, girando, girando/ Olha a faca! (olha a faca!)/ Olha o sangue na mão (ê, José)/ Juliana no chão (ê, José)/ Outro corpo caído (ê, José)/ Seu amigo João (ê, José)/ Amanhã não tem feira (ê, José)/ Não tem mais construção (ê, João)/ Não tem mais brincadeira (ê, José)/ Não tem mais confusão (ê, João) Domingo no Parque. Gilberto Gil, 1967
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III. Gilberto Gil se apresenta com Os Mutantes. Domingo no Parque é acompanhada pela jovem banda que à altura já dominava os instrumentos elétricos.
Junto com elas vieram várias outras, de autorias das mais diversas, em modelos e estilos igualmente diversificados, mas que nas palavras de Celso Favaretto, em Tropicália Alegoria, Alegria 7 de 1979, “em nenhum momento perderam seu objetivo básico: desde o simples uso de instrumento eletrônicos, ruídos e vozes [...], o emprego de recursos seriais, a incorporação do grito e até a trituração da melodia mantiveram-se fiéis à linha evolutiva, reinventando e tematizando criticamente a canção”. O autor ainda aponta como objetivo do movimento a crítica dos gêneros, estilos e, mais radicalmente, do próprio veículo, e da pequena burguesia que vivia o mito da arte. A produção musical, a partir daquele momento, se colocava como verdadeiramente popular, pois incorporava uma pluralidade de linguagens e estéticas, e ao mesmo tempo apresentava um novo olhar para o contexto político. Se permitiu às colagens, associações e experimentações livres, ao improviso, o sincretismo de signos e gêneros, para 50
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propor resultados, às vezes até desconfortáveis, mas que se colocavam exatamente desta forma: detratores de uma zona de conforto medíocre. Penetraram a esfera da filosofia através de contestações daquilo que era tido como aceitável, da moral. Questionou os conflitos do consumo, da massificação. Incorporou a discussão da dualidade entre o mundo erudito e o popular, evidenciando a virtualidade de seus limites. Era, em algum nível, a representação daquilo que o mundo chamava de contracultura. Em resposta ao conflito mpb ou iê iê iê, os baianos responderam: nenhum dos dois. E ao mesmo tempo: os dois, e muito mais. A Tropicália, sustentada pela antropofagia oswaldiana, apresentou como possibilidade a síntese. Uma concepção cultural sincrética, por vezes absurda, anárquica. A contradição chamada Brasil, estava pela primeira vez representada sem qualquer constrangimento decorrente de sua desvirtude fruto do subdesenvolvimento. “A tragicomédia Brasil”, nas palavras do próprio Caetano. O auge do movimento se deu através do disco coletivo Tropicália ou Panis et Circensis, lançado em 1968 e assinado por: Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé - acompanhados dos poetas Capinam e Torquato Neto, e do maestro Rogério Duprat. O disco e seus desdobramentos - shows, aparições na TV, no rádio e entrevistas - redefiniram a música e toda a esfera cultural e comportamental da época, através do amadurecimento daquelas ideias que germinaram no ano anterior e haviam se materializado. A Tropicália estabeleceu um novo paradigma para as artes no Brasil e se prolongou, enquanto movimento, até dezembro de 1968, mês do fatídico Ato Institucional nº5, que intensificou a repressão da ditadura e deu cabo da liberdade de Gil e Caetano. Encarcerados compulsoriamente, os artistas viveriam um exílio forçado nos anos subsequentes, muito por conta do rebuliço que haviam provocado. 8
51
4.
A Grande Esfera
“Exibida pela primeira vez no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em abril de 1967, a Tropicália de Hélio Oiticica consistia em um ambiente formado por duas tendas, que o autor chamava de penetráveis. Areia e brita espalhadas pelo chão, araras e vasos com plantas criavam um cenário tropical. Depois de atravessar uma espécie de labirinto, já dentro da tenda principal, quase às escuras, o público encontrava um aparelho de televisão, devidamente ligado.” 9 A instalação que fundou o fatídico nome era, segundo o próprio Hélio “uma tentativa consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente brasileira ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional. [...] Na verdade, quis eu com a Tropicália criar o mito da miscigenação. [...] Para a criação de uma verdadeira cultura brasileira, característica e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita europeia e americana terá de ser absorvida, antropofagicamente, pela negra e índia de nossa terra [...]”. Palavras contidas num ensaio de 1968 também intitulado Tropicália [10] e que trazem à tona uma outra esfera deste debate: o diálogo que se estabeleceu e ancorou a movimentação artística na sua dimensão mais plural. Através de uma releitura daquela potente indumentária oswaldiana, a música estaria conectada com as artes plásticas, com o teatro, com o cinema, com o desenho industrial, com a poesia, e até a arquitetura, em certa medida. Pluralidade que intensificou e aprofundou todo o caráter de espalhamento como cultura de massa, e provocou, através de suas ideias fortes, um verdadeira ponto de inflexão no panorama brasileiro. A linguagem e os veículos da arte em sua compreensão mais geral, eram totalmente outros a partir de 1967. O concretismo na poesia de Décio Pignatari e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, o já citado Cinema Novo de 52
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Glauber Rocha, o Tropicalismo dos baianos, o Teatro Oficina dirigido por Zé Celso - talvez o primeiro e mais importante porta voz da antropofagia enquanto conceito ressignificado - tornaram-se em, de alguma forma, uma única coisa. Mas que, antropofagicamente, eram várias. Acompanhando essa transformação, vieram os veículos de mídia: a TV, o rádio, os jornais. Tudo havia se transformado. Também o desenho industrial, que pode ser apresentado pela figura de Rogério Duarte, responsável pelo design das capas de vários discos dos tropicalistas, também do cartaz de Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme de Glauber Rocha de 1964. A cenografia que se reinventava através do teatro, sob os cuidados de Flávio Império e Lina Bo Bardi. Bem como, através arquiteta italiana radicada no Brasil, a própria arquitetura teatral que sofreu profundas mudanças a partir da nova perspectiva que se dava. Ao fim da ditadura, que praticamente congelou quaisquer aspirações artísticas depois do AI-5, Lina teve a oportunidade de consolidar, arquitetonicamente, o debate que havia se estabelecido em 1967, cujas origens ela havia presenciado em sua passagem pela universidade federal baiana. Lina materializa em 1993, uma nova sede para o Teatro Oficina, do mesmo Zé Celso, e mesmo que tardiamente, amplia o debate tropical também para o fazer arquitetônico.
A esta altura, um necessário parêntese linguístico: o termo Tropicália pode, portanto, representar um movimento musical associado à imagem de Caetano, Gil, Tom Zé e outros, mas pode também representar toda a complexidade dessa conjuntura que se deu através desse intercâmbio de expressões narrado. Não havendo necessidade de distinção, como evidência do próprio êxito enquanto manifestação plural, seguiremos intercambiando estas duas chaves ao passo que se vir necessário. 53
5.
Impactos no presente
A frase que introduz este capítulo-ensaio é da autoria de Tom Zé e foi gravada para o Tropicália 11, documentário de 2012 do cineasta Marcelo Machado. E dela, eu, aqui, me aproprio para introduzir o debate deste nosso tempo presente, propriamente dito. A juventude de hoje segue precisando de material mental para se excitar e se apropriar da própria realidade. Nas palavras de Gilberto Gil, para o Especial Tropicália 50 anos 12, “aqueles postulados tropicalistas tão aí porque eles não são temporais. O Tropicalismo colocava exatamente isso. Uma atemporalidade da dimensão cultural. A cultura tá sempre acima. Fora do tempo, dentro do tempo, dentro de todos os tempos.”
... Debruçado sobre tais postulados, me arrisco em dizer que os maiores ensinamentos dessa trajetória até aqui apresentada se situam na tônica do: 1) fazer coletivamente: o poder de um discurso que se exprime na coletividade, na troca; 2) a abertura para aquilo que está fora, e para aquilo que está dentro. Em outras palavras, a disponibilidade para com o mundo e suas diversas linguagens, recursos e tecnologias, junto com a observação atenta e incorporação dos elementos regionais, locais, da realidade social próxima. Uma vivência plena, ampla e distinta do próprio tempo. Nessa chave o tropicalismo ganha corpo como potencial conceito de um fazer arquitetônico possível para o tempo do agora. Conceito que, no contexto e nas especificidades deste trabalho passará a ser chamado de pluralidade. 54
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referências
Enciclopédia Itaú Cultural. Tropicália.
Portal Tropicália. Várias Sessões.
1 Livro. Tropicália: A História de uma Revolução Musical. Carlos Calado, 1997 2
Ibid.
3
Livro. Avant-garde na Bahia. Antônio Risério, 1995
4
Livro. Tropicália: A História de uma Revolução Musical. Carlos Calado, 1997
5 Livro. Manifesto Antropófago. Oswald Andrade, 1928 6 Filme. Terra em Transe. Glauber Rocha, 1967 7 Livro. Tropicália: Alegoria, Alegria. Celso Favaretto, 1979 8 Livro. Tropicália: A História de uma Revolução Musical. Carlos Calado, 1997 9 Ibid. 10
Instalação. Tropicália. Hélio Oiticica, 1967
11 Documentário. Tropicália. Marcelo Machado, 2012 12 Documentário. Especial Tropicália 50 anos. TV Brasil, 2017
imagens I
The Beatles. Peter Blake.
II
Arquivo Nacional. Autor Desconhecido.
III
Arquivo Nacional. Autor Desconhecido.
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tropicรกlia 59
I. Cercados pela MPB: o jornalista e letrista Nelson Motta (15) com Edu Lobo (1), Tom Jobim (2), Torquato Neto (3), Caetano Veloso (4), Capinan (5), Paulinho da Viola (6), Sidney Miller (7), Zé Kéti (8), Eumir Deodato (9), Olívia Hime (10), Francis Hime (11), Luiz Eça (12), João Araújo (13), Dori Caymmi (14), Linda Batista (17), Chico Buarque (18), Luís Bonfá (19), Tuca (20) e Braguinha (21), na casa de Vinícius de Moraes (16), em agosto de 1967.
III. Tropicalistas em processo de criação.
II. Os Mutantes.
IV. Cartaz de Terra em Transe.
V. Terra em Transe.
VI. Chico Buarque e MPB4. Durante o 2ยบ Festival da Record.
VII. Gal Costa.
VIII. Cartaz de Deus e o Diabo na Terra do Sol.
IX. Beba Coca Cola.
X. Discografia bรกsica tropicalista.
XI. A foto que originou a capa do disco Tropicรกlia.
XII. Tropicalistas durante “interrogatório” dos universitários, na FAUUSP.
XIII. “Seja marginal, seja herói.”
XIV. A instalação de Hélio Oiticica que batizou o movimento.
XV. Gil empunhando sua guitarra elĂŠtrica.
XVI/XVII. Artistas na Passeata dos 100 mil.
XVIII. Os Mutantes e seus instrumentos elĂŠtricos.
... ou panis
fotografias I
Reprodução/Carlos Calado. Autor Desconhecido.
II
Reprodução/Internet. Autor Desconhecido.
III
Ibid.
IV
Reprodução/Enciclopédia Itaú Cultural. Autor Desconhecido.
V
Reprodução/Terra em Transe. Glauber Rocha.
VI
Reprodução/Arquivo Record. Autor Desconhecido.
VII Reprodução. Autor Desconhecido. VIII Reprodução/Glauber Rocha. Rogério Duarte. IX
Décio Pignatari.
X Reprodução: a. A Banda Tropicalista do Duprat. Rogério Duprat, 1968; b. Caetano Veloso. Caetano Veloso, 1968; c. Os Mutantes. Os Mutantes, 1968; d. Gal Costa; Gal Costa, 1968; Gilberto Gil. Gilberto Gil, 1968; Grande Liquidação. Tom Zé, 1968. XI
Reprodução/Tropicália. Manuel Barembein.
XII
Reprodução/Documentário Tropicália 50 anos. TV Brasil.
XIII Hélio Oiticica. XIV Reprodução/Centro de Artes Hélio Oiticica. Autor Desconhecido. XV
Reprodução/Arquivo Nacional. Autor Desconhecido.
XVI Reprodução/Carlos Calado. Evandro Teixeira. XVII Reprodução/Internet. Autor Desconhecido. XVIII Reprodução/Acervo Istoé. Autor Desconhecido.
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SamPã Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Sob o guarda chuva poético de Caetano, voltamos a entoar - fiéis a nossa ambição teatral - os símbolos que compõem o Bixiga do hoje: na chave cidade-cultura, faremos uma aproximação gradual do objeto de estudo e proposição arquitetônicos passando por temas como o patrimônio histórico, o jogo político da especulação imobiliária, as manifestações de cultura que brotam incessantemente nas ruas da cidade, as condições de acesso às centralidades e, em alguma medida, à arte. Passando também por questões que se apresentam numa indumentária técnica, mas que carregam em si uma série de simbolismos que em profundidade - nunca deixaram de refletir a própria condição da existência humana: os rios soterrados do centro de São Paulo, os viadutos que mudaram o cenário paulistano durante o “milagre econômico”, e - por que não? - a própria manifestação da ideia de cenário. Comecemos por ele: Em 1969 entra em cartaz, no Teatro Oficina, Na Selva das Cidades, peça de Bertolt Brecht à ocasião dirigida por ninguém menos que: José Celso Martinez Corrêa. A cenografia ficou a cargo da arquiteto (sim, com “o”, como preferia ser chamada a ìtalo-brasileira) Lina Bo Bardi. 1 O palco era um ringue de boxe, construído com os entulhos das casas que eram demolidas no entorno. Sobre a peça, Zé Celso destaca: 76
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I. Na Selva das Cidades. Peça com cenografia de Lina Bardi feita com escombros do Minhocão. (II)
“Na Selva das Cidades é uma das encenações mais lindas que eu já fiz, e é a origem deste espaço, como está hoje. Foi muito importante porque me pôs em contato com Lina, E a Lina já começou no teatro com o ringue de boxe e a demolição. A peça tem 11 rounds. Em cada round ela destrói uma instituição, até destruir o próprio ringue. No final, os atores estão tirando o chão do teatro e chegando na terra.” 2 Sob os holofotes eram colocadas duas questões. Duas cisões. A da própria companhia de teatro que, em função das perseguições que se intensificaram desde o AI-5, via-se diante da possibilidade do fim. E a cisão física pela qual atravessava o bairro do Bixiga àquela altura: “um bairro cindido”, como coloca Guilherme Wisnik 3. Em janeiro de 1971, o então prefeito, Paulo Maluf inaugura o Elevado Presidente Costa e Silva, o viaduto Júlio de Mesquita Filho e o viaduto Jaceguai, conjunto que seria conhecido como Minhocão, e modificaria concretamente a paisagem daqueles sete quilômetros sob os quais pousava o anelídeo de pedra. O bairro se viu atravessado por um complexo viário que pôs abaixo uma série de edificações para se acomodar e dividilo ao meio. Alocado na discursiva do “pogresso”, cantado por Adoniran, o Minhocão rompeu com a vida, com a moradia, com a paisagem, com a dinâmica daquilo que “[...]Era um 77
III. Inauguração do Viaduto. “Já começou com congestionamento”.
IV. O Minhocão como símbolo de progresso. E o progresso como símbolo de morbidez.
bairro fantástico, marginal. Tinha milhões de bocas, Uma marginália incrível! Um mundo de cortiços, rasgados de repente por esse Minhocão. Esse viaduto que partiu as ruas ao meio e devastou tudo. Me dava a sensação de que o que acontecia com o mundo, com a gente, acontecia também aquele bairro lá, que estava sendo entulhado de lixo. […] Então tinha aquele lixo lá no Bexiga sendo removido, e aliás sendo substituído por um outro: o Minhocão, que passa hoje em frente à porta do teatro. E tinha o lixo de dentro do teatro também: a Lina Bardi, que fazia a cenograf ia da Selva, pegava o lixo do Bexiga e trazia para o palco. Tanto que a gente não pagou quase nada para o cenário. Ela saía feito uma doida no meio da rua: ‘Que bonito! Que maravilha!’ Os maquinistas pensavam que a mulher estava maluca; ela catava o que havia de mais sórdido, tirava e botava no cenário.” 4 78
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Piadas ou tragédias à parte, o que se instaura é uma nova era de violência. Física e simbólica. Pessoas e casas como objeto de descarte e no lugar o carro. A Marginal Tietê, a Radial Leste, a avenida 23 de Maio, Frutos de um projeto rodoviarista que, em alguma medida, delineou o centro do município de São Paulo como nós o conhecemos hoje. E quem vende outro sonho feliz de cidade O Bixiga do hoje não nega seu passado. Formado por uma topografia acidentada, diversa, o bairro - como no quadro que pintamos - formado por negros e italianos, dispostos entre casarões e cortiços, se transformou. Vieram os prédios, os migrantes da região Nordeste do país, o novo modelo de transporte público, o novo comércio agora mais globalizado. Vieram também as novas formas de violência. Há violência maior para uma terra do que o soterramento de seus rios?
V. O contraste. O velho e o novo Bixiga.
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VI. Cenário. A vista do Minhocão para o Teatro Oficina.
Outro curioso aspecto do atual dilema urbano decorre - quem diria? - dos viadutos. O Minhocão figura hoje um debate cuja extensão reflete a própria megalomania: passa pela crise do modelo rodoviarista, pela precariedade dos espaços de fruição pública na cidade, as novas concepções de parque urbano, os impactos ambientais, de salubridade, provocados por esses grandiosos gigantes de concreto e asfalto, as possíveis destinações para o uso do espaço que se configura sob as estruturas suspensas e seus respectivos impasses jurídicos. Um debate que atravessa a concepção de cenário urbano e, portanto, pelos reflexos psicológicos causados por uma ou outra visualidade que se configura. Passa pela figura do morador de rua que encontra nesse não-lugar um lugar. Um debate tão amplo de significado que alimentou uma série de discussões e propostas de natureza arquitetônica na última década. Me valho de algumas para ilustrar este trabalho: 80
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VII. Concursos de ideias para reformulação do Minhocão. Projetos do Triptyque Arquitetura de 2017 apostando na vegetação, na comunicação visual e na abertura para luz natural - e do Frentes Arquitetura, vencedor do concurso de 2006 promovido pela prefeitura que à época considerava a manutenção do tráfego de carros. (VIII)
Com a nova máscara da violência, muda de figurino também a resistência. O Bixiga resistiu e segue resistindo. Se adaptando. Lugares (físicos e virtuais) seguem enfrentando o desafio de contornar o apagamento histórico, o nevoeiro que os envolve. O Centro de Memória do Bixiga, o Portal do Bixiga, a Vila Itororó e seu canteiro aberto são em algum nível exemplos desses lugares de resistência. Bem como a Casa de Dona Yayá, hoje sede do Centro de Preservação Cultural da USP, que segundo Regina Tirello 5, abriga no núcleo de sua estrutura uma das construções mais antigas do bairro. Nas palavras da professora, a casa “tornou-se um dos mais significativos 81
registros remanescentes da história da transformação urbana e estilística do bairro do Bexiga”. E aqui uma válida e necessária ressalva que se estende como interpretação do contexto: o patrimônio associado à Casa de Dona Yayá se apresenta através do valor simbólico, imaterial, imagético, e também no registro tátil, através dos “mais de 100 anos de estratificação material” que revelam técnica, método construtivo, materialidade e a perícia da mão de obra, num recorte social bem definido; revela também fragilidades: a construção, bem como toda a variedade de outros remanescentes históricos - hoje o bairro é inteiramente tombado pelo CONPRESP 6 - poderia ter sua estrutura, sobretudo de fundação, comprometida por eventuais construções vizinhas de maior porte. Hoje o Bixiga conta com um cenário razoavelmente diversificado de gabaritos, diferente de um passado não tão distante. Mas, se comparado com outras áreas centrais da cidade, ao menos não se propôs a talvez absurda ideia de arranhar o céu. A cultura popular segue presente nas ruas do bairro, sendo talvez uma das faces mais pulsantes da resistência local. A Vai-vai é hoje uma das agremiações mais emblemáticas do carnaval paulistano (a que coleciona mais títulos), e dá imensa vivacidade ao Bixiga. A escola desempenha o importante papel de coletivizar e ampliar valores musicais, performáticos e líricos, passando-os de geração em geração. Dissemina também valores de cidadania: se comunica intensamente com a comunidade através das tradicionais rodas de samba e através das redes sociais, onde entoa debates sobre desigualdade racial, de gênero, de classe, e articula periodicamente ações de apoio às famílias mais fragilizadas da região 7. Além da escola de samba, outra manifestação periódica da cultura de rua é a feira da praça Dom Orione (ou apenas Feira do Bixiga). Realizada tradicionalmente aos domingos, reúne interessados principalmente por antiguidades, quinquilharias, mas oferece também um ambiente agradável para quem busca boa comida 82
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de feira. A mesma praça Dom Orione abriga a paróquia de Nossa Senhora de Achiropita, igreja fundada pelas primeiras comunidades italianas do bairro e que realiza ano após ano, no mês de agosto, uma grande celebração que recebe o nome da santa padroeira e atrai interessados de diferentes regiões da cidade.
IX. Vai-Vai. E os ensaios que dominam as ruas do bairro.
X. Feira do Bixiga. A feira dominical que atrai um público bastante generoso.
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É que Narciso acha feio o que não é espelho
XI. Shopping center. O projeto do Brasil Arquitetura para o Grupo Silvio Santos.
Não por acaso o assunto que deixo por último é aquele cujo representante ilustrado nos trará maior e mais profundo deleite. Voltemos à ele, o queridinho da noite e da peça, o Teatro Oficina. Desta vez para tratarmos sobre um delicado fenômeno: a especulação imobiliária. E como cenógrafo, convoco Ítalo Calvino 8: “Quando Quinto subia até sua casa, que noutros tempos dominava toda a extensão dos telhados da cidade nova e os bairros baixos da marina e do porto, mais para cá o monte de casas mofadas e musguentas da cidade velha, entre a encosta oeste da colina onde os olivais se adensavam sobre os hortos e, a leste, um reino de palacetes e hotéis verdes como um bosque, sob o dorso árido dos campos de cravos cintilantes em serras que se estendiam até o Cabo, agora não avistava mais nada, só um sobrepor- se geométrico de paralelepípedos e poliedros, pontas e lados de casas, de cá e de lá, tetos, janelas, muros cegos para servidões contíguas com apenas os basculantes esmerilhados dos banheiros uns sobre os outros. Toda vez que ele chegava a *** (cidade misteriosa), a primeira coisa que sua mãe fazia era levá-lo ao terraço (ele, com uma saudade indolente, distraída e logo inapetente, teria ido embora sem subir até lá): — Agora vou lhe mostrar as novidades 84
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— e indicava as novas construções. — Ali os Sampieri estão levantando mais um andar, aquele lá é o prédio novo de um pessoal de Novara, e as freiras, até as freiras — lembra o jardim com bambus que a gente via lá embaixo? —, agora veja o buraco que elas fizeram, quem sabe quantos andares vão querer erguer com essas fundações! E a araucária da vila Van Moen, a mais linda da Riviera: agora a empresa Baudino comprou toda a área, e uma árvore que devia ter sido tombada pela prefeitura virou madeira de lenha; aliás, seria impossível transplantá-la, quem sabe até onde iam as raízes. Agora venha ver desse lado: a gente já não tinha vista para o nascente, mas veja o novo telhado que apareceu; pois bem, agora o sol da manhã chega meia hora depois.” E assim Calvino nos ambienta neste fenômeno capaz de redesenhar todo o cenário de uma cidade e cuja prática pode se traduzir, então, na aquisição de imóveis à título de aposta. Se espera que o bem seja valorizado financeiramente - por uma série de razões, onde se pode destacar a ampliação da infraestrutura do entorno - e assim possa ser vendido ou alugado por um preço maior do que o inicial. Prática comum na contemporaneidade, ao menos nas grandes cidades, e que se desdobra em um outro fenômeno central dos atuais dilemas urbanos. A gentrificação. Que apesar de atual, já se podia compreender com assombrosa precisão a essência e a tragédia há mais de quinze décadas. Em 1867, Karl Marx versa em O Capital 9: “A melhoria das cidades, acompanhando o crescimento da riqueza, através da demolição de quarteirões mal construídos, a construção de palácios para bancos, grandes depósitos, etc., o alargamento de ruas para o tráfego comercial, para luxuosas carruagens e para a introdução dos bondes, etc., erradicam os pobres para lugares escondidos ainda piores e mais densamente ocupados.” Se a especulação é a aposta no aumento de valor do imóvel, a gentrificação é então, a consequência desse processo quando em êxito. A casa, apartamento, etc., efetivamente se valoriza e com isso 85
o antigo morador é obrigado a se mudar, dando lugar para outro cujo poder aquisitivo é superior. Trata-se, portanto, de uma substituição forçada de moradores, ou ainda em outras palavras a expulsão do povo mais pobre, abrindo assim espaço para o povo mais rico. Feitas as apresentações, voltamos ao Oficina, que protagoniza a talvez mais emblemática disputa de terras do bairro,motivada justamente por processo semelhante ao narrado. Um conflito onde os antagonistas são 1) o próprio teatro, que defende o uso público da terra com finalidade cultural - o que em algum nível significa a sua própria sobrevivência enquanto espaço teatral; e 2) um dos mega empresários mais notáveis do Brasil - curiosamente artista - que tem se empenhado, ao longo dos últimos trinta anos ao menos, na conquista de todo o território onde apostou algumas de suas fichas durante o já agraciado “milagre econômico”: Silvio Santos. O carismático apresentador dos domingos da TV brasileira que parece ver o Teatro Oficina como única e última barreira a ser derrubada para poder lograr definitivamente com as benesses que o bom e velho capitalismo financeiro guardaram para ele com muito carinho ao longo desses anos.
XII. Sede do Grupo Silvio Santos. Alguns lotes ao lado, o vizinho Teatro Oficina.
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Segundo Wisnik 10, ao fim dos anos 1970 enquanto a companhia de teatro retornava do exílio e restabelecia gradualmente sua rotina de leituras e ensaios abertos, o Grupo Silvio Santos (GSS) construía na mesma rua Jaceguai a sede de seu complexo empresarial. Ao longo dos anos seguintes, o grupo comprou uma série de terrenos, tendo em vista futuros empreendimentos imobiliários, de tal modo que o próprio terreno do teatro, dado momento, passou a ser alvo do apresentador. O desenrolar do embate é típica e ironicamente novelesco, e os atores, com o passar dos anos, cada vez mais numerosos. Um dos papéis mais importantes talvez tenha sido desempenhado pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) que, sob a presidência de Aziz Ab’Saber, tombou o Oficina em 82 11. Isto é, declarou o teatro patrimônio histórico e cultural do Estado de São Paulo. Medida que, em certo sentido, protegeu a casa da atual Cia. Uzyna Uzona dos avanços do GSS; Outro fator crucial para a sobrevivência do teatro aconteceu dois anos depois: em 1984 o imóvel da rua Jaceguai, 520 - onde reside a companhia teatral - foi desapropriado pela prefeitura do município que o concedeu então para a companhia por tempo indeterminado, reconhecendo seu valor cultural para a cidade. Foram esses dois eventos, portanto, que permitiram a manutenção do Oficina e sua reconstrução ao longo dos anos 1980. Reconstrução esta que fica sob o encargo de Lina Bo Bardi e Edson Elito. Inaugurado em 3 de Outubro de 1993, o novo Teatro Oficina abre suas portas depois de mais de vinte anos de hibernação. O estreito lote - com seus nove metros de testada por cinquenta de comprimento - passa então a fazer parte do partido da arquitetura proposta por Lina e Elito: o teatro tem sua reestreia com um Hamlet antropofagizado por José 87
Celso, onde a plateia e o palco passam a, definitivamente, se confundir. O palco é transformado numa pista alongada que se acomoda sob o desnível de três metros do terreno, de tal modo que o público assiste à peça em passadiços de estrutura metálica paralelas à esse palco. Passadiços esses por onde passam também os atores que se movimentam, eventualmente, por entre as várias coxias. Uma espécie de releitura cênica de um sambódromo e que permite um teatro total: de onde quer que se assista, para onde quiser que se olhe, haverá cena. De um lado ou de outro, em cima, embaixo, atrás ou à frente. Tudo é palco. Isso, somado ao grandioso pano de vidro e o teto retrátil que se abrem para fora, provocam no espectador um espécie de transe, antes mesmo que qualquer palavra seja dita.
XII. O novo Teatro Oficina. A nova sede inaugurada em 1993 é crua, bem como sua estrutura. O espetáculo acontece em todas as direções.
XIV. Corte transversal. Um desenho que apresenta com clareza a apropriação do aspecto vertical.
Sobre essa nova arquitetura do Oficina, Wisnik cunha o título do ensaio cujo roteiro alicerça este ato de nossa peça. Oficina: Um teatro atravessado pela rua. Essa pista-palco do teatro passa, de algum modo, a ser entendida pelo arquiteto como prolongamento da rua, e a rua também uma extensão 88
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dela. E que, sobretudo, tinha como intenção original de projeto o cruzamento efetivo de todo o edifício chegando novamente à um lugar aberto: o teatro de estádio proposto por Edson Elito. Uma proposição de caráter intensamente urbano, que contempla múltiplos acessos (por diferentes ruas) e redefiniria a relação entre o teatro e o bairro. Projeto esse que estabelece, por definitivo, o conflito entre Oficina e GSS, uma vez que ambos passam a disputar - de pontos de vista minimamente distintos, se não antagônicos - o mesmo espaço. E aqui eu retomo, numa tentativa de síntese, aquilo que motivaria os dois pólos: o teatro vislumbra um horizonte para sua expansão e maior conexão com a rua, bairro, entorno, sob a perspectiva da democratização da cultura; por outro lado, o grupo associado ao apresentador esboçava suas primeiras intenções de construir ali no mesmo terreno um grande complexo comercial, um shopping center (que mais recentemente teve a proposta reformulada para contemplar também torres de condomínios residenciais).
XV. Teatro de Estádio. Projeto de Edson Elito que amplia a potência do Oficina e se abre para o bairro.
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Chegamos ao presente momento e a tal disputa parece ter se apegado ainda mais a sua indumentária novelesca. Os projetos do GSS foram se modificando numa tentativa de se adequar as também mutantes exigências dos órgãos de patrimônio; o projeto de expansão do teatro passou pelas mãos do consagrado arquiteto Paulo Mendes da Rocha e foi também objeto de estudo de uma série de iniciativas de arquitetos como a própria Bienal de Arquitetura, em sua décima edição. No entanto, o terreno segue vazio. A atual proposta defendida pela companhia de teatro é a transformação do espaço num grande parque. Parque do Bixiga, como foi batizado. Proposta essa que assume o formato de projeto de lei a partir de 2017, mas que não foge à essência da tragicomédia prenunciada na simbólica vinda de Shakespeare ao Brasil. Tupi or not tupi? Ser ou não ser? Chegou a ser aprovado em duas instâncias e foi barrado pelo prefeito interino do município (à ocasião da votação) Eduardo Tuma.
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Bibliofagia Bibliofagia
1] Para ver a luz do Sol - 40 anos da luta Teatro Oficina X Grupo Silvio Santos. Documentário: Teatro Oficina Uzyna Uzona TV UZYNA 2] Lina Bo Bardi Arquiteto do Oficina. Registro em vídeo, Atílio Bari 3] Da força da grana que destrói coisas belas. Notícia: Revista Cult
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Deste glorioso imbróglio, repleto de signos, histórias, personagens, significados e que, sobretudo, se ancora na narrativa de resistência de um bairro - o Bixiga - é que farei minha proposta de intervenção arquitetônica. Aos próximos capítulos desta peça está reservado o lugar da síntese. Das principais ideias que nos acompanharam até então e que amadurecem conforme cada palavras dessas é escrita. Somado a isso, uma metodologia de abordagem programática colocada como espécie de hipótese, registro do que um dia se pretendeu. Desenho, fotografia, cartografia como ferramental. E enfim, um projeto possível, crítico, antropofágico. Mas antes, uma última dose de palavras. Seria, no mínimo, ingênuo, aventureiro, se colocar diante deste desafio sem dar voz àqueles que mais do que debatem, vivem no olho deste furacão chamado arte brasileira. As próximas são de uma artista que é também professora e traz consigo um olhar muito próprio e acurado do papel simbólico que a arquitetura pode ocupar enquanto ponte entre a arte e o público: cidade e o cidadão. São palavras ditas no dia 7 de Julho de 2020, num exato momento em que o Brasil e o mundo vivem uma catástrofe pandêmica. Num momento em que a cidade fica reservada à circulação daqueles que não se dispensa sob nenhuma hipótese e aos demais aventureiros que num surto de inquietação resolveram por bem flertar com o imponderável. Às palavras: 97
referências
Revista Digital Culta. Da força da grana que destrói coisas belas. 2018
Portal LabCidade FAUUSP. Concessão dos baixos de viadutos: armadilhas jurídicas. 2016 Portal LabCidade FAUUSP. Bixiga: três tombamentos não bastam para proteger um bairro? 2018 1 Documentário. Lina Bo Bardi Arquiteto do Oficina. Atílio Bari, 2014 2
Entrevista. Zé Celso, o decano do gozo. Karina Lopes; Sérgio Cohn, 2008
3
Ensaio. Oficina: um teatro atravessado pela rua. Guilherme Wisnik, 2019
4
Entrevista. Don José de la Mancha. Hamilton Almeida Filho, 1998
5 Artigo. A síntese gráfica no processo de projeto de restauração arquitetônica. Regina Andrade Tirello; Pedro Murilo Gonçalves de Freitas, 2015 6
Resolução Patrimonial. Resolução nº 22. CONPRESP, 2002
7
Portal Vai-Vai. História.
8 Livro. A Especulação Imobiliária. Ítalo Calvino, 1958 9 Livro. O Capital. Karl Marx, 1867 10
Ensaio. Oficina: um teatro atravessado pela rua. Guilherme Wisnik, 2019
11
Resolução Patrimonial. Resolução nº 6. CONDEPHAAT, 1983
imagens I
Acervo Teatro Oficina. Autor Desconhecido.
II
Acervo Teatro Oficina. Autor Desconhecido.
III
O Estado de São Paulo. Edição de 26/01/1971.
IV
Revista Veja. Edição de 1969.
V
Oficina: um teatro atravessado pela rua. Tuca Vieira.
VI Ibid.
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VII Triptyque. Luiz Trindade; Felipe Alves; Pedro de Mattos; Marcelo Checchia. VIII Frentes Arquitetura. José Alves; Juliana Corradini. IX
Acervo Vai-Vai. Autor Desconhecido.
X
Divulgação Veja/SP. Autor Desconhecido.
XI
Brasil Arquitetura. Marcelo Ferraz
XII
Acervo Teatro Oficina. Autor Desconhecido.
XIII Oficina: um teatro atravessado pela rua. Tuca Vieira. XIV Portal Vitruvius. Autor Desconhecido. XV
Acervo Teatro Oficina. Edson Elito.
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Diálogos
Este trabalho nasce de uma série de experiências. Motivações. Vivências. E talvez o começo dessa gestação tenha sido no momento em que a Unicamp me ofereceu, logo de saída, um mundo de possibilidades e pouca preocupação com uma suposta coerência disciplinar entre elas. Desde muito cedo soube que a minha formação não poderia se restringir à Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo. Que tinha muita coisa a ser descoberta pra além daquela cerca. Nunca fui muito fã da cerca, aliás. Foram sete - longos - anos entre a FEC, o IFCH, o IA, o IG, o IE, A FEF, enfim*. A Unicamp me deu a chance de presidir assembleias, ministrar e participar de oficinas, conduzir palestras, debates. Me deu a chance de me apresentar em uma porção de saraus. Teatro de Arena, Festival do Instituto de Artes, Casa do Lago, PB. Na própria FEC. Viver a fantasia do músico, do ator, do fotógrafo, do escritor, do produtor, diretor. Me deu a chance de conhecer e interagir com muita gente. Muitas realidades diferentes. De viver uma vida imensa aqui dentro. Entender que o melhor conhecimento é aquele que se compartilha - longe da demagogia, e em todos os níveis. Em 2018 lá estava eu metido no tal do “Aluno Artista**” (seria melhor se fosse arteiro) juntando música, poesia, fotografia, atravessando as mídias todas e fazendo música até com aspirador de pó. E talvez naquele momento as coisas tenham ficado claras na minha cabeça. Abro até um parêntese aqui pra agradecer meus parceiros de projeto Antônio Vianna, Sinuhe LP, Marina Kodato e Alu que, de alguma maneira, * FEC - Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo; IFCH - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; IA - Instituto de Artes; IG - Instituto de Geociências; IE - Instituto de Economia; FEF - Faculdade de Educação Física. São unidades de ensino da Unicamp, Universidade Estadual de Campinas ** Programa de incetivo ao fazer artístico promovido pelo Serviço de Apoio ao Estudante da Unicamp
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mais do que me ensinar que o meio é, de fato, a mensagem (e a massagem), me mostraram o que a arte poderia ser e como ela é capaz de mudar a vida das pessoas. Bom. E cá estamos. A arte não larga mais do meu pé. Agora uma confissão: a primeira intenção do projeto de arquitetura que neste momento me atordoa os pensamentos era de uma escola. Uma escola de artes (de nível superior, uma faculdade) que tivesse como proposta uma melhor condição de integração entre os saberes. Que melhor integrasse estudantes de música, teatro, multimeios, enfim. O que de alguma maneira se transformou nessa tecla que tanto eu tenho batido da tal pluralidade. Chegaremos lá. E aí veio a coisa dos tropicalistas. Parecia um sonho usar Caetano como justificativa arquitetônica e fio condutor dessas ideias que mesmo antes dele já faziam algum sentido. Um sonho bastante coerente. Mas as coisas mudam, as ideias amadurecem. A experiência tropicalista segue, a pluralidade de meios, ideias e formas é o grande nó deste projeto. Mas hoje a escola já me parece uma ideia boba, ingênua. A verdadeira experiência integradora das artes tem mais a cara da liberdade, do que da disciplina. E o próprio Bixiga e outras centralidades “culturais” de São Paulo foram me dando pistas disso. E a Unicamp, claro. Por mais que o Instituto de Artes não tenha sequer uma disciplinazinha em comum para seus cursos todos, por mais que os laboratórios sejam todos direcionados pra “individualidade” das carreriras, em paralelo 1, apesar de tudo isso, alunos geniais continuam aflorando e encontrando a linda liberdade de cantar, atuar, pintar, filmar, dirigir, produzir, editar, cooperar e se encontrar como belos artistas que são. Para dar corpo a essa discussão e aproximar todo esse paradigma à realidade da qual tratamos até aqui (Bixiga, Teatro Oficina, vazios urbanos, especulação imobiliária, etc), eu convidei a professora, artista, interventora urbana e doutora em Arquitetura e Urbanismo Sylvia Furegatti para uma entrevista. São essas as suas palavras:
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Essa relação dos vazios urbanos com as grandes metrópoles, com a cidade contemporânea, é um assunto extremamente interessante e híbrido. Me faz lembrar uma frase de uma antiga professora, Maria Cecília França Lourenço que dizia: “a escola precisa aprender a formar cidadãos, antes de formar profissionais”. E essa discussão sobre um terreno, sobre um vazio urbano, sobre a formalização ou não do encontro pedagógico, lúdico, de aprendizado artístico, está inserida na sua provocação, na sua proposição, na maneira com a qual você está enfrentando esse problema, como estudante de arquitetura. O pensamento transdisciplinar é fundamental pra cidadania, pra arte, pra arquitetura, pra sociedade, pra economia. A pandemia, inclusive, nos deixa essa lição. … Você traz alguns elementos na sua fala que são importantes: você fala de escola formal, experiências artísticas ou trocas, você fala de praça, de vazio urbano. Acho muito interessante e instigante pensar um vazio urbano, um terreno baldio que vira praça. Te ponho uma pergunta: o quanto formalizar uma praça, do jeito que a arquitetura está acostumada, seria o equivalente a fazer uma escola e não um processo de trocas e diálogos artísticos? Como a formalidade e a informalidade te atingem no seu projeto arquitetônico? … Vazio urbano: Lara Almarcegui, artista espanhola, mapeou os vazios urbanos de São Paulo (durante a 27a Bienal de Arte) e através de fotografias propõe uma leitura sobre esses buracos. E o projeto dela na Bienal era fazer uma lista na 102
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parede na qual era descrevia quantos quilos de cimento, quantas toneladas de ferro, quantas toneladas de vidro era constituída a Bienal de São Paulo. Ela pondera essa relação de quantificação dos materiais da construção civil com os lugares urbanos vazios e a relação direta com o capitalismo e a exploração do espaço público urbano, etc. Sobre a formalidade da escola: eu fiz, certa vez, uma exposição com intervenção naquela área aberta da Oficina Oswald Andrade. Ocupamos uma galeria e eu fiz uma intervenção no pátio: pararam de por carros estacionados no pátio interno e lá fizemos - eu, um aluno da pós graduação e alguns da graduação - uma intervenção com tijolos baianos e espadas de são jorge e desenhos de botânica. Eles ficaram tão felizes com a participação, especialmente meu aluno de mestrado, e questionaram: “Por que não tem uma disciplina assim? Que alunos acompanhem os artistas a fazer montagens.” A minha resposta: porque no dia em que isso virar uma disciplina não fará mais o mesmo sentido. Ou seja, vamos perder completamente o dado dialógico, experimental, o dado de aprendizagem que tem a potência da experiência artística quando ela não é compulsória, quando ela não é obrigatória, quando ela não é lição de casa. Fora o fato que o perigo de lançar uma escola de arte nesse lugar, se ela não for pública, é de criar uma cena pra galeria, pra colecionistas, que desvirtuariam completamente o seu vislumbre. Já na experiência de entender a ocupação das praças e não dos museus - dos centros culturais, dos teatros - eu acredito ser o tamanho correto que a pedagogia pode se juntar ao fazer artístico e a ideia de comunidade, de sociedade, de troca. Junto disso, te coloco a seguinte observação: cresce o número de artistas interventores do espaço urbano interessados no formato do workshop pra elaborar sua trabalho de arte. Por que será? O artista da arte pública contemporânea, ele quer constituir espectadores que não são só espectadores com “s”. Eles são expectadores com “x”. Ou seja, que sejam interatores do 103
processo todo. Aí se cria uma relação de pertença, que é o que a arte deseja - hoje - desesperadamente. De que adianta não ter acesso? Não democratizar? Só eu ter o dinheiro, a informação. Então não se trata de baixar a guarda da complexidade da arte contemporânea. Ainda é preciso estudar, debater, enfrentar. Se trata de entender como e que mecanismos atingem mais gente e incluem mais. Que impõe autocrítica no processo de construção do trabalho desse sujeito artista. Ele tem que ter outra expertise, ele tem que saber fazer outras coisas que não são da ordem do ateliê ou da escola de belas artes. Tem que ter escola formal de arte? Claro que tem! Óbvio que tem! Mas não acho que pra este caso seria uma boa solução. … Certa vez numa conversa com José Roberto Zan, querido professor de História e Linguagem da Música Popular e ex diretor do IA, falávamos sobre a potência de uma possível escola de artes que instigasse e provocasse o saber coletivo, múltiplo, e que abrisse os caminhos pra que os diferentes meios de expressão se encontrassem. E sobre como as travas burocráticas do ensino superior formal no Brasil levaram o Instituto para um caminho contrário, onde cada caixa é uma caixa e o encontro é igualmente burocratizado. Ele me provocou com as seguintes palavras: “se o seu ponto de saída é a experiência tropicalista, então você precisa projetar um antiIA.” Lá se vão seis ou sete meses desde essa conversa, e a expressão continua latejando na minha cabeça: anti-IA. Levei a tônica à professora Furegatti e o que ela me disse foi o seguinte: Não existe uma matéria única para todos. Mas existe a obrigação se se frequentar cursos dos demais cursos. Se eu sou das artes visuais, por exemplo, eu devo fazer disciplinas na música, na dança, no teatro ou no multimeios. Há esse passeio, essa experimentação e eventualmente de um jeito muito surpreendente 104
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alguns alunos vêm espontaneamente nos procurar pra fazer nossas disciplinas. Essa é a condição de interdisciplinaridade que tem sido discutida desde sempre no Instituto de Artes. Em 2012, o então diretor professor Esdras desenvolveu um projeto no qual professores de todos os cursos foram contemplados com uma viagem para América do Sul e Estados Unidos - e depois eu fiz um outro projeto nesse modelo, na Europa - para estudar cursos de excelência e ajustar situações do IA. E o principal ponto nevrálgico foi a transdisciplinaridade. Não só pela dificuldade do número de alunos vs. docentes - um trabalho cotidiano, em função do espaço que se tem para trabalhar e da impossibilidade de se ter cinquenta alunos numa sala de artes para que se possa acompanhar, discutir a poética, praticar, etc -, mas nosso principal diagnóstico foi de que o prédio precisava ser modificado porque quando comparado com a CALArts, por exemplo, onde eu visitei, notou-se que havia espaços de integração. O IA não tem lugares de convivência. O projeto dos pinotinhos - como se chama carinhosamente o prédio - eles não viabilizaram esse tipo de acomodação e nós temos um problema de espaço sensível. E de brigas internas por conta disso. Existe uma relação: a profissão, a cidadania, a relação com o Estado, a maneira como se consegue construir, que é um grande dilema da arquitetura contemporânea no Brasil. Acredito que precisamos compreender a expressão Anti-IA a partir da clareza que se pode ter das dificuldades dos processos de mudança em setores públicos democráticos, aliados, certamente, à observação de quem esteve presente nas últimas décadas a tentar arduamente operar esta máquina com suas oportunidades e dificuldades. … Não é do jeito formal, não é do jeito compulsório. Tem que ter construção democrática. E a universidade não tem vivido bons momentos. Por razões diversas. para além da nossa 105
pouca mobilidade, temos outros problemas maiores pra resolver. O que tem dificultado soluções mais inteligentes nesse sentido. Rapidamente a conversa se deslocou para a rua. Sobre como as experiências urbanas, populares, poderiam contribuir para novos olhares sobre o ensino, a pedagogia nas artes. Sobre como a cidade, em certa medida, tem muito mais a contribuir para a Universidade, do que o contrário. Uma das conclusões que nós trouxemos do Porto, em Portugal, foi a seguinte: os métodos, os espaços, as abordagens são muito parecidas. Tirando o fato de que a Escola de Arte do Porto é do séc. XVIII, e tem o Porto ao redor dela. A Unicamp não tem o Porto, a Unicamp tem Campinas. Quando ela é implantada, ela é implantada como uma grande inovação pra região. Uma promessa política de inovação tecnológica que modifica a paisagem da cidade a partir da vinda de estrangeiros, doutores, professores já formados, e que passam a morar aqui. A habitar esse lugar, a usar os recursos desse lugar e dinamizar uma vida muito diferente. Contudo, nós sabemos que ao invés dessas pessoas se relacionarem com a cidade, eles resolveram criar um feudo dentro de Barão Geraldo. E esse comportamento, eu ousaria dizer que é replicado pelos estudantes também. Quantos estudantes conhecem a cidade de Campinas ou se relacionam com ela? Como transeuntes, visitantes, espectadores. Não há o que aprender nesse modelo de operação. Nesse modelo de relacionamento e reconhecimento. [...] eu venho me dedicando a pensar o que é o espaço do trabalho desse artista, interventor urbano. O artista da arte pública, da arte urbana, como se relacionar com essas dinâmicas, o que a arte contemporânea tem a dizer sobre isso, quem são seus protagonistas e que exemplos podemos tirar desses supostos protagonistas. E a ideia de contaminação é muito importante pra arte contemporânea. Hibridação e contaminação. Então quando você vê a universidade só 106
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recentemente voltando-se para a cidade, transbordando para a cidade, o entorno, é que nós entendemos que somos obrigados a isso. A quem interessa denunciar a gentrificação? Eu vou ensinar a quem na escola a denunciar a gentrificação? Esse interesse é o interesse do intelectual. E quando ele faz a denúncia, ele faz de onde sabe fazer: do nível intelectual. Na atualidade, nós professores estamos sendo convocados a repensar a nossa participação nisso tudo que está acontecendo, mas temos as nossas dificuldades. Geracionais. Profissionais. Nossas filiações, de maneira geral. E tem muito pra ser feito! A Unicamp, hoje, é muito mais conhecida como um hospital do que como um centro de aprendizagem e formação. Ela é, por vezes, confundida com uma escola particular, e não pública. A pergunta é anterior: onde está o sujeito público no século XXI? Que modelos de percepção nós temos do espaço público? E de que maneira isso afeta a universidade? De modo geral, eu acho que nós estamos engatinhando no sentido de tentar aproximações com o público de fora seja pelos meios formais, seja por inclusão de outros saberes que a comunidade de Campinas poderia nos oferecer. A UNICAMP tem uma Pró Reitoria dedicada à Cultura somente há três anos.. Eu sou diretora do Museu de Artes Visuais, nós estamos tentando construir um prédio. Este prédio tem total apoio e interesse da reitoria. Mas mesmo assim, enfrentamos dificuldades do processo. Toda uma organização que a universidade não tem ainda coloca a cultura num segundo plano. [...] são dilemas. E esse exercício da liberdade que conversávamos há pouco não existe sem o dilema. … Nada de certezas, apenas dilemas. Dilemas que trago comigo e carrego para dentro daquilo que pode vir a ser o espaço que se pretende fazer público. 107
referências 1 Catálogo. Cursos de Graduação Unicamp 2020.
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Antropofagia -método
E agora? Pois bem, à atuação. Arquitetura. Manifestação de um conjunto de peças (estruturantes, não teatrais) que, somadas, mimetizam da perspectiva do indivíduo, ator, sua relação com o cenário e os demais atores da peça (esta sim, teatral). Peça cidade. Peça Bixiga. Uma ação de valor simbólico tal que a própria natureza da palavra entrega duplamente, através de uma livre interpretação fonética, ao que se propõe. Ato. Ação. E que, sobretudo, é espelho de quem a conduz. O motor: ator. Arquiteto. Urbanista. E, por natural consequência, de sua cultura. Bom. Sobre esta, pego emprestadas as palavras de Gil, à ocasião de sua passagem 1 pelo extinto (!) Ministério da Cultura, em 2003. “[...] precisa acabar com essa história de achar que cultura é uma coisa extraordinária. Cultura é ordinária. Cultura é igual a feijão com arroz, é necessidade básica. Tem que estar na mesa. Tem que estar na cesta básica de todo mundo. E, pra isso, é preciso que haja sim ainda uma mobilização muito grande porque muita gente, inclusive muitos dos governantes, acham que cultura é uma coisa excepcional. [...] a responsabilidade com a cultura é a responsabilidade com a sua própria vida porque tudo é cultura. Toda a acumulação de um povo, toda acumulação de realizações múltiplas de um povo. Tudo isso é cultura.” 110
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E dessa perspectiva justifico a trajetória até o presente momento de nossa peça. Seria impossível chegarmos até aqui (onde, por aqui entenda observação direta, pragmática do objeto de intervenção) sem que sobre ele se delineasse certa cultura. Certa atmosfera. Certa vocação. Sem que se pudesse compreender, ainda que minimamente, quais os fatores sociais, históricos, humanos foram responsáveis pela construção simbólica do Bixiga e do Oficina do hoje. A partir de uma abordagem antropofágica, aberta às possibilidades todas, crítica e politicamente, faremos uma aproximação ao contexto urbano que cerca o objeto, levando em consideração os elementos apresentados no capítulo anterior a este. As tensões políticas, os diferentes cenários urbanos possíveis, as questões viárias, hidrográficas e sobretudo, as atividades humanas ali presentes e seus respectivos potenciais. E para isso, me aproprio de duas ideias fundamentais que destaco desde já como norteadoras; conceitos do projeto que virá: a pluralidade, enquanto síntese máxima da experiência tropicalista; e o tratamento do espaço como público, democrático, reiteradamente plural. Nessa aproximação, a metodologia adotada será uma reinterpretação do trabalho desenvolvido pelo professor Sun Alex, em Projeto da Praça: convívio e exclusão no espaço público 2. Trabalho onde o autor trilha uma profunda reflexão e análise de seis praças da capital paulista, através daquilo que ele entende como seus genitores: as praças e parques norte americanos, sobretudo, herdeiros do pensamento de Frederick Olmsted, arquitetopaisagista responsável pelo Central Park, de Nova York. Para Alex, o parque estadunidense é fruto de um pensamento anti cidade, isto é, parte de uma lógica de frear, antagonizar ao que se verifica nos núcleos essencialmente urbanos nos Estados Unidos. Um pensamento ancorado na higiene, na saúde e até certo bom gosto, mas que remonta em grande medida uma 111
bolha surrealista, romântica, completamente contrária ao que se verifica no entorno imediato. Quadros pastoris em meio ao caos inerente a cidade. Negacionistas. E cujos reflexos se verificam numa relação homem-natureza quase ficcional, inexpressiva. Praças que não se prestam a atender às demandas de uma comunidade e tornam-se, em vários casos, repositórios de vegetação ou equipamentos de recreação disfuncionais. Algo que se nota, sem grande esforço, em grande semelhança à realidade das praças brasileiras. Para o professor, o verdadeiro espaço público é aquele que garante o direito ao acesso e ao uso, as apropriações físicas e simbólicas e eventuais modificações. Espaços verdadeiramente flexíveis e possíveis de acordo com a atividade humana que os cerca. Nas palavras do autor: “Estudar praças como espaços públicos da vida pública representa, portanto, um duplo desafio: a adoção de conceitos de cidadania e democracia desenvolvidos por outros campos de estudos sociais e a ruptura de paradigmas consagrados da disciplina de paisagismo, derivados da experiência de parques “rurais” e atitudes antiurbanas, assim como da prática pautada por espaços privados e semipúblicos. Estudar as praças modernas de São Paulo acrescenta à consideração ampla do tema mais dois aspectos: a responsabilidade do projeto pela ampliação dos direitos de acesso e uso do espaço público pela população e, especialmente, o cuidado com a preservação da praça como elemento singular na formação da paisagem de nossa cidade e de nossa cultura urbana. [...] Simultaneamente a uma construção e um vazio, a praça não é apenas um espaço físico aberto, mas também um centro social integrado ao tecido urbano.” Pragmaticamente, a estrutura de análise considera cinco escalas de observação, em dois momentos. Aproximação e afastamento (observação e proposição, respectivamente). Onde cada escala se atém a diferentes fatores. São eles:
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1:5000 | Contexto: Observação da estrutura viária, do padrão de parcelamento e dos respectivos espaços públicos vizinhos. Acrescento nesta escala de observação também os demais equipamentos culturais, capazes de amplificar as vozes da proposição narrativa 1:2000 | Tecido urbano: Relações entre o objeto e o entorno próximo que denotem as condições de permeabilidade e acessibilidade. Delimitação e Convergência de ruas, respectivamente. 1:1000 | Entorno: Procura-se observar a relação entre o objeto e seus vizinhos imediatos: ocupação e uso do solo, altura das edificações, estado de conservação dos espaços e edifícios, travessias de pedestres e as atividades desenvolvidas a nível do solo. 1:500 | Análise do projeto: Nesta escala, Alex observa a situação próxima, as atividades humanas e eventuais inconformidades do projeto. Como no caso deste trabalho, o terreno se encontra vazio, farei uso desta escala para avaliar as potenciais relações entre o projeto e seu vizinho, Teatro Oficina. Também nesta escala analisarei os eventuais desafios propostos pela topografia do lugar. 1:200 | Cortes: Procuram ressaltar as relações entre o objeto, a calçada e a arquitetura do entorno. Eventuais barreiras físicas, simbólicas ou visuais. Para além das perspectivas de análise apresentadas, acrescento uma sexta, onde na escala 1:10.000 o Bixiga poderá ser observado amplamente e sobre ele, observados os palcos que ajudaram a contar a história que nos trouxe até aqui. ...à ela! 113
referências 1 Entrevista. Gilberto Gil para FLIP. 2003 2
Livro. Projeto da Praça: convívio e exclusão do espaço público. Sun Alex, 2008
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O olhar
As próximas páginas guardam mapas: mapas que nos ajudarão a compreender e localizar - através da geometria, da plástica e dos símbolos - os cenários e personagens que foram apresentados até aqui. Como quem rola o scroll do mouse na tela do Google Maps, vamos nos aproximar gradualmente da área de intervenção (a.i.), deixando com que cada escala conte um pouco da história e da dimensão do objeto; O quadro emoldurado pelas ruas do Bixiga, Jaceguai, Abolição e Santo Amaro assume o protagonismo desta peça e se revela como quem tira a própria roupa e a coloca sobre a mesa diante de uma expressiva plateia - a região, segundo os dados mais recentes do GeoSampa 1, flutua entre 350 e 500 habitantes por hectare, uma densidade que se pode dizer consideravelmente alta. Mas antes disso, algumas considerações necessárias, a título de apresentações: o polígono do qual tratamos, do ponto de vista jurídico, tem as seguintes características: 1) segundo a Lei de Zoneamento 16.402/16, de 2016 2, está enquadrado como ZOE (Zona de Ocupação Espacial), isto é, está destinada a abrigar predominantemente atividades que, por sua características únicas, estão submetidas a condições especiais - excepcionais - de uso e ocupação do solo, ou seja, não há definição prévia de parâmetros indicativos. Eventuais propostas são avaliadas, caso a caso, através de Projetos de Intervenção Urbana (PIU), aprovadas mediante decreto, e devem compactuar com as diretrizes indicadas por Macroárea do Plano Diretor Estratégico (PDE); 2) a a.i. encontra-se, assim como todos 116
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seus vizinhos a norte do Minhocão, segundo o PDE, na Macroárea de Estruturação Metropolitana, o que lhe confere coeficiente de aproveitamento mínimo de 0,7 e máximo de 2; 3) inúmeros (INÚMEROS!) vizinhos de bairro são enquadrados pelo PDE como ZEPECs (Zonas Especiais de Preservação Cultural), isto é, “porções do território destinadas à preservação, valorização e salvaguarda dos bens de valor histórico, artístico, arquitetônico, arqueológico e paisagístico, doravante definidos como patrimônio cultural”. em que a maioria expressiva delas é do tipo BIR (Bens Imóveis Representativos), ou seja, são bens de reconhecido valor histórico, arquitetônico, paisagístico; 4) este mesmo valor histórico é reafirmado pela resolução número 22, de 2002, do CONPRESP 3, que resolve pelo tombamento de um série de elementos públicos urbanos e uma série de áreas, dentre as quais está a ”Área do Bexiga”, sob a qual fica estabelecida um nível de preservação 1, de modo que todas as características arquitetônicas, internas e externas devem ser preservadas nos lotes e conjuntos indicados; 5) o Teatro Oficina, vizinho adjacente à a.i. possui três tombamentos: a nível municipal pelo CONPRESP 4 (resolução número 5/1991), a nível estadual pelo CONDEPHAAT 5 (resolução número 6/1983), e a nível nacional pelo IPHAN 6, que resolveu em 2014 pela inclusão do imóvel nos livros de tombo histórico e de belas artes. A área envoltória fica definida pelo órgão estadual e inclui o polígono em que se pretende intervir. Feitas as apresentações, comecemos por essa tradicional representação de figura e fundo que, enquadrada ao centro do bairro, revela importantes personagens, mas não só: revela também a profundidade das cicatrizes permanentes deixadas pelo sistema rodoviarista de transporte.
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referências 1 Portal. GeoSampa. 2
Plano Diretor Estratégico. Lei nº 16.050/2014. Prefeitura/SP
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Resolução Patrimonial. Resolução nº 22. CONPRESP, 2002
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Resolução Patrimonial. Resolução nº 5. CONPRESP, 1991
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Resolução Patrimonial. Resolução nº 6. CONDEPHAAT, 1983
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Livro de Tombo Histórico e de Belas Artes. IPHAN, 2014
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A área de intervenção está inserida num contexto de quadras regulares e relativamente extensas, no que tange a caminhabilidade. Contexto esse que é fruto de um parcelamento bastante lógico, ortogonal, já muito orientado para a realidade do carro; Entre as expressivas, largas e movimentadas Avenida Brigadeiro Luís Antônio, R. Rui Barbosa e o Viaduto Júlio de Mesquita Filho (um dos corpos do Minhocão, que hoje opera com horário limitado de segunda a sexta), o bairro é desenhado por ruas menores, mas de fluxo também intenso, de fácil associação com o imaginário que se tem das ruas do centro da cidade de São Paulo. São poucas as áreas verdes públicas. A Praça Dom Orione, maior e mais significativa delas, foi justamente o que orientou a escolha do recorte para o mapa, de modo que o quadro comporta, em suas extremidades, a praça e a área de intervenção propriamente dita. Salta aos olhos o significativo valor cultural que o bairro revela, através de uma combinação rica e vasta de teatros, cinemas, estúdios e casas de espetáculo e cultura, que se articulam por raios de curtas caminhadas. Essa variedade configura um potencial inegável de intensificação desses usos voltados à atividades culturais no Bixiga. 124
Este quadro já apresenta uma noção mais clara do real impacto causado pelo Minhocão: além de configurar uma barreira física, visual e simbólica de, aproximados, cinquenta metros de largura, o viaduto se mostra um verdadeiro transtorno quando sob a perspectiva dos moradores e visitantes que transitam pelo bairro; as quadras imediatamente vizinhas ao complexo viário apresentam alguns de seus limites expressos numa geometria pouco adequada, o que se desdobra em becos, esquinas mal aproveitadas. Por outro lado, isso gera uma certa flexibilização na geometria dos lotes e das construções e proporciona uma dinâmica e algumas visualidades interessantes ao caminhar: um bairro que se descobre aos poucos e que se revela numa variedade bastante grande de possíveis olhares; O perímetro de intervenção é uma somatória de diversos lotes vazios cuja área se aproxima de dez mil metros quadrados, e se encontra numa localização bastante privilegiada quando se pensa em deslocamentos (apesar do imbróglio com nome de anelídeo): está em uma região de convergência, isto é, onde muitos caminhos se fazem ao redor, estando inclusive conectada diretamente a dois pontos de parada de transporte público. 126
Cena extraída do documentário: Para ver a luz do Sol - 40 anos da luta Teatro Oficina X Grupo Silvio Santos. TV UZYNA
Neste mapeamento torna-se um pouco mais clara a ideia de variação na geometria das construções, apresentada há pouco: num plano geral existem lotes mais longilíneos e outros um pouco mais quadrados. Nas esquinas, porém, qualquer tipo de previsibilidade cai por terra: as construções são completamente orgânicas em sua ortogonalidade. Ainda sobre as esquinas, as mais movimentadas apresentam travessias para pedestres até generosas, apesar do pouco respeito que se pratica com relação a elas; É possível reconhecer um subaproveitamento decorrente do viaduto que não se notava em escalas anteriores: os canteiros são significativamente grandes e, por falta de opção ou vontade, foram transformados em repositório de verde, com espécies relativamente grandes. e aqui um necessário ponto de destaque: apesar do valor ambiental, essas árvores, quando somadas a existência do próprio viaduto, produzem extensas áreas de sombra, para o bem e para o mau. com uma iluminação pouco eficiente, o cenário é capaz de produzir um certo desconforto associado à visibilidade e segurança; Encontra-se em destaque uma divisão da área em quadrantes, o que permitirá as aproximações sequentes. 130
Aqui se verifica uma amplificação da ideia de construções que variam morfologicamente entre si. apesar de um bloco nitidamente residencial de baixos gabaritos (os tradicionais sobrados, remanescentes da tradição italiana que se firmou na concepção do bairro), os usos mistos estão bastante presentes, de tal forma que as atividades comerciais e de serviço se revelam de maneira bastante expressiva. O que nos leva a crer que as atividades humanas são também bastante variadas; Existem alguns edifícios que se sobressaem em altura, mas num plano geral as construções ainda preservam um contato visual possível entre a rua e o edifício; *estacionamentos foram considerados vazios urbanos em acordo ao PDE que estipula para esta área coeficiente de aproveitamento mínimo de 0,7.
Neste primeiro quadrante já é possível notar uma das características atuais da R. Abolição: ela é ocupada, a depender do horário comercial, por uma série de veículos estacionados por pessoas que usufruem desse comércio e desses serviços, portanto; O que efetivamente chama atenção no recorte é a relação entre a área de intervenção e a R. Japurá: ambas se negam, fecham-se através de um muro, o que confere um curioso desfecho para a rua, que se encerra abruptamente. Sob a mesma, corre canalizado e tamponado, o córrego do Bixiga. 134
Na R. Santo Amaro novamente muitos carros estacionados, tambĂŠm por conta do movimentado comĂŠrcio, e de forma mais acentuada onde se pode aproveitar a sombra das ĂĄrvores; o fluxo de pedestres mostra-se mais intenso nas esquinas, o que de certa forma revela atividades predominantemente, passageiras, de pouca permanĂŞncia. 136
Neste quadrante é onde se encontra a maior e mais significativa parcela da área de intervenção, que hoje é utilizada como estacionamento privado e atende à região e às apresentações do Teatro Oficina. Sob ela segue correndo o córrego do bixiga guardando seu lugar de esquecimento, exclusão do convívio; o perímetro é inteiramente murado, fator que transforma toda a extensão da R. Jaceguai, à esquerda do teatro, num grande corredor: de um lado muro, do outro viaduto. Só não se verifica uma completa inatividade de fachada por conta do singelo sacolão que habita a área inferior ao Minhocão; Apesar dessa reiterada característica de passagem, o fluxo de pessoas é intenso durante o período comercial. as esquinas mais uma vez se sobressaem; Uma maior permanência de pessoas se verifica próximo ao horário das peças, quando há uma atração de vendedores ambulantes que atendem os espectadores que aguardam em fila, na calçada. 138
Mais estacionamento! esta outra parcela da área de intervenção, mais fragmentada, é também tomada por carros que ali permanecem durante o horário comercial; algo foge à regra: com uma maior concentração de esquinas, o esperado era um fluxo grande de pessoas, algo que não se confirma por conta do uso. O auto posto jaceguai afasta, em alguma medida, a circulação dos pedestres; por conta de uma grande concentração de árvores altas, a distância entre os postes de iluminação é pouco menor do que se verificou anteriormente, mas a característica de corredor parece persistir devido à pouquíssima atividade nas fachadas. 140
Agora, em plano de corte, algumas relações ficam um pouco mais claras: em se tratando de visualidades é possível notar como o viaduto se constitui enquanto barreira: não há, a nível do solo, contato visual possível entre a R. Jaceguai e a R. Prof. Laerte Ramos de Azevedo. Por outro lado, os carros ou até mesmo os pedestres (nos momentos em que o viaduto se mantém desativado) podem estabelecer contato com as fachadas e a atividade humana que se dá no nível mais baixo.
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A questão da sensação de insegurança agora se pode confirmar: os postes de iluminação (que distam entre si algo próximo de cinquenta metros) se encontram em apenas um dos lados da rua na R. Jaceguai e compete com as árvores do canteiro. Do outro lado do viaduto, porém, há iluminação dos dois da rua, onde uma é notavelmente dedicada ao complexo viário.
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A esquina da R. Abolição com a R. Jaceguai funciona como exemplo para aquilo que vínhamos já observado: uma intensa movimentação de passagem nas esquinas que, neste caso, é reforçada por um bar que atrai certo um movimento mais permanente. Nota-se que a área de intervenção, apesar de murada, pode ser observada a partir de pontos de cota superior: alguns apartamentos que a cercam e o próprio viaduto.
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Esta seção da R. Santo Amaro reforça o que observamos até aqui e sobre ela se pode acrescentar como a vegetação, em especial as árvores maiores são bons atrativos para o estacionamento de carros. Estacionamentos que se verificam também dentro de alguns lotes, privados, e desfavorecem e muito a relação entre o pedestre e a paisagem construída que o cerca: são fachadas inativas que reforçam esse cenário de corredor.
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Na parte interna da área de intervenção um grande desafio se revela: a topografia. Cada terreno que compõem o perímetro total tem uma história própria, uma singularidade. E associada a cada uma delas, diferentes relações com a rua e, portanto, diferentes platôs. Entre a parte mais baixo e a mais alta da área de intervenção são mais de 10 metros de desnível.
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Em retrospecto imaginativo, multicolorido, e debruçado sobre a história, a cultura e a dinâmica social: 148
proposta de intervenção
“E para isso, me aproprio de duas ideias fundamentais que destaco desde já como norteadoras; conceitos do projeto que virá: a pluralidade, enquanto síntese máxima da experiência tropicalista; e o tratamento do espaço como público, democrático, reiteradamente plural.” Essas foram palavras ditas há pouco, algumas páginas atrás. Lembrase delas? Agora com o objeto de intervenção devidamente apresentado e em mente, façamos delas sentido menos subjetivo. Pois bem. Pensemos a quadra e seus 10.000 m² como um grande potencial de expressão do encontro e da apropriação. Uma grande praça, portanto. Uma praça cercada por um bairro e um teatro com histórias brilhantemente infindas. Junto a isso, uma enorme tensão e necessidade da arte de aflorar e ganhar novos espaços, mas que operem a nível da comunidade. E que possam atender parte de seus anseios. O que nos leva à um programa ancorado em três pilares: o espaço de encontro, o núcleo de memória e o desenvolvimento artístico plural. Como referências, trago cinco experiências paulistanas que tem como fundamentais valores como: a ampliação do espaço da rua, o ser humano como centralidade em sua capacidade de apropriação e a difusão de valores artísticos e, sobretudo, de cidadania de maneira democrática. 150
O Sesc Fábrica da Pompeia é projeto de Lina Bardi, inaugurado em 1986, um ano após a redemocratização do país. A unidade batizada pela arquiteta como cidadela da liberdade, traz um programa multicultural e esportivo, mas que sobretudo, tinha como intenção primeira a criação de um novo espaço de encontro para os moradores do bairro. O programa se distribui entre os galpões da antiga fábrica, onde eu destaco o galpão de exposições que abraça seus visitantes numa espécie de gesto genitor de uma praça coberta - dispõe da lareira, da reconexão com o a água e do mobiliário perfeitamente projetado para o completo ócio, por isso então praça; destaco também o galpão onde acontecem as oficinas, dispostas sabiamente por entre meias paredes que permitem a curiosidade e a intimidade simultaneamente. Além deles, ainda outros, todos conectados por duas ruas. Ruas quase públicas. Avenidas culturais, prontas para receber aquele que se dispõe ao encontro.
Danilo Zamboni
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Guilherme Pianca
Nelson Kon
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Nelson Kon
Nelson Kon
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O segundo projeto dessa lista foi inaugurado também na década de 1980, a poucos metros da área de intervenção. O Centro Cultural São Paulo fica entre as avenidas 23 de Maio e Vergueiro. Projeto de Eurico Prado e Luiz Telles, foi encomendado para ampliar a rede de bibliotecas do município, mas tornou-se muito mais do que isso. Integrado diretamente a estação Vergueiro do metrô, o centro funciona como uma espécie de rua verdadeiramente dedicada ao pedestre que havia perdido seu espaço nas imediações. Rua essa que se desdobra em vários níveis, através da continuidade da rampa, mas que mantém sua franqueza e gentileza através do vidro, permitindo um vislumbre de toda a extensão do complexo em linha reta. Dentre as joias que o CCSP abriga, está o maior acervo público de histórias em quadrinhos do país. E que se pese a relevância dessa expressão, tida por muitos como menor, menos central, mas que é parte fundamental da formação do brasileiro como leitor (o gibi é porta de entrada pra artes mais pesadas!) Acervo que se encontra num generoso subsolo sabiamente iluminado por entre um jogo de patamares que não se encerram. Outro fator que nos trás a ele é a amplitude da democracia que se verifica: os vidros espelhados são verdadeiras casas de ensaio dos grupos mais variados. Não há quem não se encante com as coreografias que se praticam por entre exposições, shows de música, teatro, e sobretudo diante dos olhos dos ociosos.
Guilherme Pianca
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SIAA Arquitetos
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Karime Xavier
Nelson Kon
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Nelson Kon
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O terceiro projeto surge da necessidade de compreender a rua também como espaço não totalmente edificado. Como praça aberta, vegetada e equipada para a permanência humana. De gestão compartilhada entre o município e a Abril, a Praça Victor Civita faz parte das imediações da estação Pinheiros do metrô e sob ela cabe um olhar atento ao programa: sob uma antiga área contaminada nega-se a obviedade do aterro e se dispõe de um extenso deck que atende ao passeio, ao exercício físico, ao entretenimento e o contato contínuo com a natureza. A história do lugar é contada e, a partir dela, se narra uma nova história dedicada a recuperação ambiental sob novas perspectivas.
Nelson Kon
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Levisky Arquitetos
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Levisky Arquitetos
Nelson Kon
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Nathalie Artaxo
Pedro Mascaro
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Eis um nome que não cansa de se repetir por aqui: Lina Bardi. Sempre dedicada à democratização dos espaços mesmo quando o público, a priori, é da mais alta classe. Num gesto de livrar o térreo e propor sobre ele a completa liberdade de uso, o desenho de Lina para o Museu de Arte de São Paulo fundou um dos mais importantes e icônicos espaços de livre apropriação da cidade de São Paulo. Ponto de encontro das mais diversas expressões democráticas, o vão do MASP é mais um exemplo de extensão da rua e é, sem muito espaço para dúvidas, o lugar mais importante do museu. O acervo e a museografia, no entanto, são também importantes atores que fizeram e fazer brilhar a arte e a cultura popular brasileiras. Um importante marco da cidade que reúne na sutileza de sua brutalidade do colecionista ao morador de rua.
Danilo Zamboni
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MASP
Manual of Section
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Nelson Kon
Nelson Kon
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A última referência projetual dessa lista é de autoria de um escritório cuja história está intrincada em vários níveis com esta história que vos conto. O Brasil Arquitetura, escritório de Marcelo Ferraz, é o responsável pelas sucessivas tentativas do Grupo Silvio Santos de ocupar os múltiplos lotes que circundam o Teatro Oficina. O arquiteto, curiosamente, foi estagiário e trabalhou com Lina Bo Bardi no primeiro projeto aqui apresentado, o Sesc Pompeia. Uma suposta contradição que é notável e desperta interesse também neste projeto. A Praça das Artes é um complexo que abriga a mais refinada arte paulistana e ao mesmo tempo oferece uma bela gentileza ao centro da cidade: uma conexão entre ruas que é ponto de encontro, é local de descanso, é praça e, é também rua. Um novo caminho que surge por entre o calçadão da Avenida São João e da Rua Formosa e compõe o cenário de espaços públicos dedicados ao pedestre. O vizinho do Teatro Municipal abriga em seu térreo uma praça seca. Seca, mas praça. Que permite ao paulistano do centro uma nova possibilidade de caminho por entre os históricos edifícios da República. O edifício que se alonga por entre estranhos recortes (tal como a área de intervenção), é sobretudo um belo exemplo de como se contrapor de maneira generosa e distinta à arquitetura do passado, sem a tentativa de apagar seu brilho. Guardadas as proporções e contextos, um edifício atravessado por ideias muito parecidas com as ideias que conceberam o MASP.
Brasil Arquitetura
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Brasil Arquitetura
Nelson Kon
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Nelson Kon
Nelson Kon
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Sob nossos olhos um extenso repertório simbólico, ideológico e imagético para, então, a prática: espaço de encontro, núcleo de memória e desenvolvimento artístico plural. Propor uma nova rua, uma nova possibilidade de ser e ocupar o bairro, recuperando conexões que se perderam ao longo dos anos. Físicas, afetivas, históricas. Trazer ambientes que ampliem a visão coletiva do espaço público e reservem ao térreo, a terra, a liberdade da apropriação. Praças, planos, bosques, aberturas e horizontes. Um novo mundo subterrâneo repleto de possibilidades e que, sobretudo trás como protagonista a natureza viva do Bixiga. 168
Oficina Tropical em perspectiva
“Três grandes praças.
Três nós na vida pública...
...que reconectam o bairro,
e abrem caminho para novas formas de apropriar-se dele.
Do artista que se propõe às novas trocas,
ao cinéfilo que, curioso, reencontra sua paixão de novo no meio da cidade, livre das grades...
Do mais rico ao mais pobre:
a possibilidade do encontro,
das experiĂŞncias urbanas, humanas.
A feira livre,
a comida de rua,
o espetĂĄculo a cĂŠu aberto.
O convite Ă s novas descobertas, novas linguagens.
o reencontro com o passado que revela,
sob a sombra, o presente.
Dos velhos sĂmbolos que ganham novas casas
Ă s velhas ruas que ganham novas aberturas.
A vivência da arte e da cultura que recebem
um novo lar. É sobre isso.”
Desvio no trajeto de carros particulares
Para efetivar necessária reconexão da região norte do Bixiga com o restante do bairro, o ideal seria voltar alguns anos na história e impedir a construção do viaduto que o cinde. Cabe-nos, no entanto, apenas o presente: transformar o polígono que cerca o Teatro Oficina em um grande espaço público é como uma espécie de convite. Sobretudo, para o pedestre, o transeunte. É fundamental, portanto, evidenciar a figura do pedestre como central. Para isso - e também como forma de atravessamento do Minhocão - a transformação da Rua Jaceguai em rua compartilhada: apenas para pedestres, transportes públicos e moradores. 187
O compartilhamento da Rua Jaceguai precede outra importante operação urbana: a remoção dos estacionamentos que ocupavam a quadra e descumpriam com a função social da terra. Decisão que permite que as praças sejam assentadas por entre os prédios e possibilitem um território, sobretudo, caminhável. Para o abismo topográfico que havia entre as ruas Santo Amaro e Abolição, uma proposta de transposição sútil, acessível e que permita mais do que a transposição em si, mas também a permanência. É na permanência que aflora a beleza deste bairro, a possibilidade da apropriação e da transformação efetiva do não lugar em lugar. Cada praça com sua característica, mas todas em diálogo com visão integradora e democrática de ampliação da rua, do espaço público. 188
Toda boa peça prescinde uma ambientação, uma atmosfera, um mundo onde a imaginação possa fluir e tornar tudo possível. Toda boa peça prescinde um bom cenário. 208
cenรกrios urbanos
a praça de eventos Pensada para abrigar a múltiplas possibilidades que o centro da cidade de São Paulo oferece, a praça acontece ao longo de um grande deck de madeira formado por pátios e caminhos. Com uma arborização generosa, áreas de sombra e descanso, o espaço se desenha para abrigar atividades a céu aberto. Feiras livres, práticas esportivas, atividades culturais e manifestações de qualquer gênero ou espécie.
O dossel de รกrvores que emoldura, ao fundo, a Casa do Artista Visitante
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Primeiras ideias: croqui realizado para primeira etapa do trabalho
A escolha do deck de madeira dá-se em função da manutenção da permeabilidade desta grande área que, junto à extensa arborização da praça, configura um microclima apropriado para atividades ao ar livre, inclusive em dias ensolarados. Em concreto, apenas rampas e escadas, revestidas por um piso antiderrapante. A praça dialoga diretamente com o Cinema Novo que, assim como no Auditório do Ibirapuera, se abre num palco externo por detrás da tela de projeção.
a praça jaceguai A praça que recebe o mesmo nome da rua que a cerca - e que agora tem como protagonista o pedestre - funciona como prolongamento natural do passeio público e também como extensão ao ar livre do restaurante. São esses fatores, portanto, que justificam seu mobiliário: mesas fixas, áreas de descanso, e muita sombra.
Primeiras ideias: croqui realizado para primeira etapa do trabalho
nota: apesar de fundamentais enquanto ocupação territorial da quadra e dos programas que ampliam a democratização da cultura e da permanência, através da alimentação, Cinema e Restaurante são apresentados neste trabalho como diretrizes, sendo seus respectivos projetos desenvolvidos até a etapa correspondente ao plano de massas.
a casa do artista visitante Mais do que ensinar. Trocar. Essa é a proposta do complexo cultural que se distribui ao longo da praça e que começa a se revelar desde o térreo, onde pousa a residência. Pensada para que artistas de outros lugares do estado - do país, do mundo - possam se abrigar no mesmo núcleo onde suas intervenções e atividades serão desenvolvidas, a casa e sua estrutura metálica, emolduram junto ao Oficina, a Praça Lina Bo Bardi.
Quem seria o primeiro a ocupar a residĂŞncia e, dela, poder observar e observar e observar?
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“...quando o caminhar em um plano se liga, visualmente, ao outro. Quando determinado nível permite ver e ser visto.” São ideias fundamentais para este cenário, onde a busca se faz - mais uma vez - na experiência da troca. E desta forma descreve tão bem a autora do desenho ao lado. Uma perspectiva que atravessa a praça Lina Bo Bardi quase como se conectasse Oficina e residência num fio de olhar. E revela uma interpretação generosa de como a escala humana pode se manter protagonista mesmo num edifício que se desdobra ao longo de proporções verticais. Casa do Artista Visitante, por Luiza Baiochi 233
a reabertura da r. japurรก Outro relevante gargalo urbano da quadra era justamente onde se encerrava, abruptamente, a R. Japurรก. Agora, num contexto onde a rua pode se desenvolver enquanto praรงa, promove-se a abertura dos muros e, com isso, mais uma conexรฃo aflora por entre os limites do bairro.
A reabertura da rua é pensada para que esta se alongue para dentro do complexo de áreas públicas e seja ela própria o eixo que aponta para a reconexão do bairro. Uma vez atravessada a praça Lina Bo Bardi, chega-se ao Minhocão. O viaduto recebe também uma nova diretriz: a remoção das grades e a instalação de um mobiliário fixo para melhor atender as atividades gastronômicas que já acontecem ali.
história do bixiga O pavilhão nada mais é do que um núcleo de memória. Um espaço dedicado ao compartilhamento da história de um bairro que, há pelo menos 100 anos, simboliza a grande miscelânea cultural que é São Paulo. Através de painéis, suspensos ou em cavaletes, o que se pretende é expor, sob curadoria da companhia Uzyna Uzona e de maneira rotativa, a relação intrínseca que existe entre arte, cultura e o Bixiga.
oficinas e debates “...cresce o número de artistas interventores do espaço urbano interessados no formato do workshop pra elaborar sua trabalho de arte. Por que será? O artista da arte pública contemporânea, ele quer constituir espectadores que não são só espectadores com s. Eles são expectadores com x. Ou seja, interatores do processo todo.” Disse a professora Sylvia Furegatti em depoimento para este trabalho.
Primeiras ideias: croqui realizado para primeira etapa do trabalho
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Intensamente inspirado pelo pavilhão de oficinas do Sesc Pompéia e seu modelo rotativo de atividades, este espaço também se desenha por entre paredes de meia altura para que a curiosidade seja sempre o motor da troca. Projetado para atividades educacionais que atendam as demandas e necessidades da comunidade do Bixiga - e ampliem esses horizontes -, o conjunto é formado por 5 núcleos de atividades práticas, que podem abrigar 20 participantes em média, e 3 auditórios de 100 m², que abrigam cerca de 50 pessoas, cada. Externamente aos auditórios, grandes espelhos transformam o subsolo num grande pátio de ensaios e apresentações espontâneas, como no Centro Cultural São Paulo.
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experimentação sob a cesalpina Assim como a árvore cesalpina que protagoniza o palco do Teatro Oficina, o centro da praça Lina Bo Bardi recebe também seu grandioso pau-ferro. Uma espécie de irmã da primeira que, mais do que marcar a paisagem urbana, simboliza a reconexão do lugar com a terra e sua natureza fértil. Sob sua sombra: palco-rua, plateia-rua. Como num passeio de domingo pela Av. Paulista, bandas, cantores, dançarinos, atores, podem ver e ser vistos.
Como uma espécie do ponto focal urbano, a grande árvore poderá ser vista inclusive por sobre o viaduto, como quem diz: eu sou o centro deste lugar. E de fato é. Ao seu redor, encontram-se todos os principais programas do complexo cultural.
oficina tropical e teatro oficina E o último cenário desta peça não poderia ser outro se não este, onde entra em cena aquele que motivou a conduziu a construção de todos os outros. O teatro projetado por Lina Bo Bardi ganha uma nova vizinhança, cheia de possibilidades que se abrem para que o próprio Oficina e sua companhia possam levar seu espetáculo para a rua, para o público, para todo o Bixiga.
O Teatro ganha como diretriz a abertura definitiva de sua fachada posterior, algo que já havia sido experimentado em ocasiões anteriores através do empréstimo do terreno. O teatro em forma de sambódromo pode agora ser efetivamente ser atravessado, assim como ele próprio atravessa os sentidos todos de seus espectadores.
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Oficina Tropical e Teatro Oficina, por Thays GuimarĂŁes
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Como seriam as peças de Zé Celso se atravessar o teatro fosse uma opção?
E assim se encerra: a celebração e a defesa da arte, da vida urbana, do espaço público, da troca, da coletividade. Da pluralidade.
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Oficina Tropical e Teatro Oficina, por DĂnamis Lara
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