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João Queirolo

PONTO DE VISTA | ENTREVISTA

João Otávio de Noronha Por Natália Martino

No dia 3 de dezembro de 2002, João Otávio de Noronha tomou posse no cargo de ministro do Superior Tribunal de Justiça. Antes da sua posse, Noronha, natural da cidade de Três Corações, em Minas Gerais, trabalhou no Banco do Brasil por 27 anos. De chefe do Núcleo Jurídico dessa instituição na cidade mineira de Varginha, cargo que assumiu em 1987, ele chegou a diretor jurídico em 2001. Com essa experiência, aprimorou os conhecimentos em áreas como Direito Bancário e Societário. Foi professor de Direito Processual Civil e de Direito Comercial na Faculdade de Direito de Varginha e de Direito Bancário na Escola Superior de Advocacia

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da OAB/MG. Ensinou Direito Processual Civil também na Universidade de Itaúna, em Minas Gerais. Do seu gabinete no Superior Tribunal de Justiça, o ministro falou à Revista Fórum CESA da experiência no Departamento Jurídico do Banco do Brasil e da sua influência na atuação no Superior Tribunal de Justiça. Com o conhecimento do mercado financeiro adquirido nas experiências profissionais, ele fala, ainda, sobre a repercussão da Crise dos Subprimes no Poder Judiciário e avalia as regulamentações brasileira e americana. Para ele, as regras brasileiras para o mercado financeiro são superiores às americanas e até às europeias. Não nega, porém, que exisRevista Revista

tem ajustes a serem feitos no mercado brasileiro e diz que o setor imobiliário pode ser o maior problema do país. “Ele pode ser o nosso subprime a longo prazo”, afirma. O instituto dos recursos repetitivos, criado em 2008 pela Lei n° 11.672, é outro tema abordado nesta conversa. João Otávio de Noronha fala da possível resistência de desembargadores e juízes de primeiro grau em seguir a jurisprudência e da necessidade de ajustes na forma de escolha dos recursos afetados. Voto vencido na Corte, o ministro apresenta, ainda, as razões pelas quais não concorda com a decisão de que as partes não mais poderão desistir do recurso quando ele for afetado.

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cípios não estão inseridos no texto como ornamento, portanto não é lógico dizer que a jurisprudência dos Tribunais Superiores constrange os juízes a julgar. Uma vez interpretada a lei, não cabe receber os recursos que estão discutindo a mesma matéria. O papel do tribunal já está desempenhado. Não é razoável termos no STJ milhares de recursos para dizer a mesma coisa. Isso é onerar o contribuinte, é desvalorizar a decisão dos Tribunais Estaduais, dos Tribunais de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais, e é desprestigiar também, por que não, a decisão do juiz de primeiro grau, que está em conformidade com a posição já adotada aqui pelo STJ. RFC: Indeferir um recurso no STJ significaria dificultar o acesso aos Tribunais Superiores, inibir o direito ao contraditório? JON: O recurso que é indeferido já passou pelo contraditório lá embaixo. Para chegar ao Superior Tribunal de Justiça, tem que passar por uma primeira instância. A parte vencida vai a um Tribunal Regional Federal, a um Tribunal de Justiça, com o contraditório amplo; e se nessa decisão for negada a vigência de uma Lei Federal, é que se alça o processo ao STJ. Quando se indefere o recurso especial é porque a

JON: A escolha é feita pela tese. Existem vários recursos que tem como objeto ou como fundamento a mesma tese. O relator escolhe um ou alguns e afeta a sessão para julgamento pela técnica do recurso repetitivo. Ao afetar, vai sobrestar todos os demais aqui e nas instâncias ordinárias, para que se decida no STJ em definitivo qual a interpretação dada ao dispositivo de lei. Pode ser também que o presidente do TJ ou do TRF escolha um processo que vai sobrestar os demais, até que se julgue no STJ. Feita a interpretação, publica-se o acórdão para que os demais processos possam ser julgados. RFC: Como o senhor avalia essa forma de escolher os recursos afetados? JON: É preciso ter muito cuidado na escolha do processo típico, do processo que vai ser afetado. Ele tem que ultrapassar a fase de conhecimento para que a Corte possa se pronunciar sobre a própria tese. Senão, vai frustrar a técnica do recurso repetitivo, pois a manifestação não será sobre o mérito e, consequentemente, não atingirá o objetivo adequado. Nós estamos tendo esse cuidado. Já se cometeu alguns equívocos, mas é normal, já que o instituto é novo.

“O fato de ter um processo afetado (pela técnica do recurso repetitivo) não pode tirar da parte a faculdade que o Código assegura de desistir a qualquer instante.” Corte já se posicionou em um sentido contrário. Na realidade, não se está cerceando ninguém, está se fazendo prevalecer o direito federal já interpretado. RFC: Como é realizada a escolha do recurso afetado?

RFC: Já que cada ministro pode afetar uma tese, podem acontecer choques entre as escolhas? JON: Eu defendo a ideia de que a afetação tem de ser aprovada pela sessão. Isso evitaria o vício de conveniência. Vou até propor essa Revista

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alteração, que ainda não foi discutida, mas da qual já estamos sentindo necessidade. RFC: Um dos temas polêmicos acerca do recurso repetitivo é a impossibilidade de desistir do recurso afetado. O que o senhor acha dessa decisão? JON: Eu fui voto vencido; fui fragorosamente vencido porque fui o único na Corte Especial a sustentar a tese de que é admissível a desistência. Em matéria de recurso repetitivo, o processo continua sendo um recurso especial. O fato de ter um processo afetado não pode tirar da parte a faculdade que o Código assegura de desistir a qualquer instante. Se a parte desistir, cabe ao tribunal escolher outro processo para substituir o primeiro. Um recurso afetado continua na qualidade de recurso especial, não deixa de atender todos os requisitos de admissibilidade. O que muda é apenas a instrução e o julgamento, a eficácia para o caso concreto é idêntica se é julgada na turma ou na sessão como afetado. A lei de recurso repetitivo não derrogou em nada a faculdade da parte de desistir. RFC: E quais são as consequências da impossibilidade de desistência? JON: A consequência é que a parte está vinculada à decisão. Eu não sei como a Corte vai interpretar. Parece-me que há uma proposição – a meu ver, não correta na melhor técnica jurídica – de que haverá o

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julgamento e, depois de julgada, esclarecida a tese, será homologa a desistência. Quer dizer, julga-se um recurso sem que estejam presentes as condições da ação traduzidas pelo interesse processual, que deveriam permanecer ao longo de todo julgamento. Em boa técnica, isso não se faz, mas a Corte entendeu que há uma relevância que transcende o interesse das partes, por isso adotou a posição de que não é possível desistir depois da afetação. RFC: A utilização da técnica desse recurso repetitivo vai alterar o perfil do STJ? JON: Não, de modo algum. A longo prazo, vamos entender no Brasil que os Tribunais Superiores não constituem uma sede onde todas as ideias devem chegar, mas apenas aquelas que dispõem de uma matéria de largo interesse, ou seja, cuja relevância ultrapassa o caso concreto para ser reputado relevante em todo seio social. RFC: O primeiro recurso escolhido para ser afetado trata de questões bancárias. O que as demandas dessa matéria representam, hoje, no STJ em termos de quantidade? JON: No direito privado, as questões bancárias representam hoje mais de 50% dos nossos julgamentos. Elas são relevantes na medida em que há um contencioso no sistema financeiro no Brasil todo. A definição das teses que impactam nesse sisteRevista

ma tem importância tanto para que os bancos possam refletir e até rever seus instrumentos de contratação, quanto para definir para os cidadãos quais são os seus direitos, como ele tem que se pautar para aquela ação com o sistema financeiro. RFC: Esse recurso foi bem escolhido? JON: Nós não fomos felizes na escolha desse recurso. Algumas teses não puderam ser apreciadas, como a da Comissão de Permanência. Isso importou em uma obrigação de afetar outro recurso para julgar as tese que nós não pudemos apreciar no primeiro. RFC: Mudando um pouco de assunto, quais serão as repercus-

grande na indústria automobilística. Com o impacto econômico, nos agentes econômicos, há repercussão no sistema judicial. Haverá um aumento da inadimplência, um descumprimento de contratos, ou seja, conflitos surgirão em razão da crise. Quem pacifica esses conflitos é o Poder Judiciário. No Brasil, o problema imobiliário é o nosso calcanhar de Aquiles. Preocupa-me de certa forma o financiamento de casas, que pode ser o nosso subprime a longo prazo. RFC: Essa crise começou no mercado financeiro norte-americano e falou-se muito que o mercado brasileiro era mais estruturado, mais prudente. O senhor concorda?

“No Brasil, o problema imobiliário é o nosso calcanhar de Aquiles. Preocupa-me de certa forma o financiamento de casas, que pode ser o nosso subprime a longo prazo.”

sões da Crise dos Subprimes no Poder Judiciário? JON: Essa crise já está no mundo todo e está a olho nu. Nós estamos sentindo isso no Brasil. A indústria do aço perdeu mais de 0% do seu faturamento, o desemprego já é

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JON: Inegavelmente, as regras estabelecidas aqui a partir das crises passadas, no governo Fernando Henrique, fizeram com que o nosso sistema financeiro fosse muito mais bem regulado que o europeu e, principalmente, que o americano.

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“Nós temos apenas um agente regulador enquanto os Estados Unidos têm mais de seis. O nosso problema é diferente, não é de regulação, é de ausência de capital.” Nós temos apenas um agente regulador enquanto os Estados Unidos têm mais de seis. O nosso problema é diferente, não é de regulação, é de ausência de capital. Os bancos captavam recursos com o prazo de três meses, seis meses, um ano e emprestavam a três, quatro, cinco anos. Enquanto o dinheiro circulava no mercado, esses financiamentos funcionavam. No momento em que o dinheiro desaparece, não é mais possível, como dizem os banqueiros, “pedalar a bicicleta”. O nosso problema foi esse, o desaparecimento de recurso, de liquidez. Houve um descasamento entre a captação e o empréstimo. Mas o sistema brasileiro também tem que passar por uma revisão muito séria. Há compensação diária, o que não existe nos EUA nem na Europa. Isso importa em um elevado custo do sistema financeiro. Os bancos têm que manter malo-

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tes rodando no país em aviões diariamente e, em alguns casos, mais de uma vez por dia. Temos um sistema on-line de transferência, o que significa que os bancos precisam manter recursos em caixa de prontidão para atender eventuais saques. Nenhum banco do mundo é mais avançado em informatização do que os do sistema brasileiro. Isso importa em gastar mais de um milhão, quase dois milhões, com o sistema de segurança para impedir fraudes. Nós temos ainda algumas coisas lamentáveis. Por exemplo, um banco não pode transportar seu dinheiro, ele tem que se valer de uma companhia transportadora. Isso importa em custos, o que faz com que a taxa de juros suba. A questão é mais complexa do os agentes tendem a perceber.

que precisará ser feito pra superar essa crise e evitar novos problemas? JON: Primeiro, é preciso mudar o sistema de regulação, o que o governo americano já está fazendo. Quando se tem seis órgãos regulatórios, ninguém regula nada e eles já estão atentos a isso. Segundo, os americanos sempre trabalharam alavancados. Agora, eles precisarão ter uma postura mais conservadora. Terceiro, os EUA têm um comprometimento com gastos públicos. Os gastos do governo Bush com guerras foram elevadíssimos e isso fez com que dinheiro fosse drenado do setor privado para o setor público, comprometendo a liquidez do primeiro. Agora, o setor público vai emprestar, vai devolver, mas para minorar a crise, não para resolvê-la. A solução virá do próprio setor privado. RFC: Os EUA trabalham mais alavancados que o Brasil. É a regulação brasileira que diminui a alavancagem de capital no país? JON: Diminui. Nós aplicamos o índice mais conservador da Basileia. Na medida em que se diminui a alavancagem, os bancos emprestam menos do que poderiam, mas ficam com mais recursos para honrar os seus compromissos. Com grande alavancagem, diminui-se a possibilidade de solvabilidade. Isso é importante perceber. RFC: Decorre daí o problema de falta de capital no Brasil que o senhor citou anteriormente? JON: Nos EUA também faltou capital, na medida em que as pessoas

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RFC: O senhor avaliou rapidamente quais são os problemas da regulamentação brasileira. E os EUA? O Revista

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não conseguiram mais pagar, devolver o que pegaram emprestado. Aqui, faltou capital não porque as pessoas não estavam mais pagando, mas porque não existia mais recurso para manter o financiamento de longo prazo. Quem aplica dinheiro no Brasil quer uma coisa, liquidez, quer sacar a qualquer dia. Isso tem um custo. Ninguém nos EUA aplica para sacar no mesmo dia. Liquidez não é diária, é semestral, é anual, de dez anos, de 5 anos. Quando se sabe que o dinheiro recolhido hoje só será pago daqui a dez anos, pode-se emprestar em nove. O que acontece atualmente no Brasil é que o prazo é de seis meses, mas caso o cliente queira ele pode sacar com dois. Se isso acontecer, o banco tem que ter recurso e acaba cobrando mais caro porque não consegue fazer um planejamento financeiro. O fluxo de caixa é uma tensão diante da liquidez diária. RFC: A primeira reação à crise foi estatizar empresas, injetar dinheiro na economia. Trata-se de uma crise do modelo neoliberal? JON: Não. O neoliberalismo é um sistema de liberdades econômicas, mas com regulação do Estado. Isso não desacredita o modelo, mas sim a ausência de regulamentação. É preciso entender que os EUA estão injetando dinheiro e comprando empresas provisoriamente. Eu tenho certeza, os EUA voltam a privatizar esses bancos. Aliás, para se falar em crise do neoliberalismo, temos que lembrar que antes dele quebrou o Estado intervencionista, comunista. Eu só acredito no regi-

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me de liberdade econômica com o Estado regulando. Se não for assim, o que nós teremos é a falência do Estado, como já ocorreu. Eu desafio alguém a me apontar um Estado socialista que tenha causado bemestar social à sua população. Na história do mundo eu não conheço. O capitalismo tem longa duração. Sofreu por descuido, por desmazelo de regulação, por políticas irresponsáveis em termos de gastos públicos. É preciso apenas corrigir essas falhas. RFC: Um dos assuntos que está na pauta política do Brasil já há alguns anos é a Reforma Tributária. O senhor concorda com a necessidade dessa reforma?

pesadamente, inclusive os menos favorecidos. No Brasil, primeiro se estabelece quanto se pretende gastar, para depois decidir quanto precisa arrecadar. Como se gasta muito todo ano, aumenta-se imposto todo ano. Essa equação é uma inversão. Nós precisamos mudar, precisamos saber quanto podemos receber para saber quanto o Estado deve gastar. Mas eu não sei se os políticos querem mesmo uma Reforma Tributária. RFC: O Judiciário poderia contribuir para que essa Reforma efetivamente acontecesse? JON: A Reforma é no campo político. Nós somos aplicadores das

“Eu não conheço país em que o sistema fiscal-tributário seja tão complicado quanto o nosso.”

JON: Eu prefiro falar em uma Reforma Fiscal-Tributária. É mais amplo. Eu não conheço país em que o sistema fiscal-tributário seja tão complicado quanto o nosso. Há um grande número de impostos e de leis. Isso dificulta o próprio contribuinte a calcular e a pagar o imposto. Muitas dessas leis são declaradas inconstitucionais. O sistema atual é perverso. Ele onera muito

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leis formuladas pelo Legislativo. Podemos contribuir dando sugestões, participando dos debates. Mas toda atitude tem que partir do Legislativo e do Executivo. RFC: E o Judiciário tem sido convidado a participar desses debates? JON: Eventualmente. A nossa participação não tem que se centrar no enfoque político, mas no enfoque

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“O advogado é o grande informador do Judiciário, que acolhe ou rejeita a tese submetida. Ao receber o advogado, o juiz ganha muito em termos de informação, principalmente nos campos fático e técnico.”

técnico. Na realidade, não é esse o principal papel do Judiciário. Nós podemos e, eventualmente, somos chamados a nos manifestar sobre alguns pontos. É assim que tem que ser. RFC: O senhor poderia nos falar, agora, sobre a sua experiência na assessoria jurídica do Banco do Brasil? JON: Foi uma experiência que eu reputo das mais ricas. Primeiro porque advoguei em comarcas pequenas, médias e grandes, atuei em praticamente todos os tribunais do Brasil. Trabalhei na área propriamente do Direito Bancário, como também do Direito Societário, na medida em que participava das estruturações societárias do Banco. Por ser um órgão de governo, o Banco do Brasil também tem sua inserção no campo público, de onde entramos no Direito Administrativo. Enfim, foi uma experiência de uma riqueza enorme, inestimável. RFC: Quais são os principais problemas jurídicos que um banco enfrenta? JON: Um banco enfrenta problemas em várias direções. Primeiro, no campo do Direito Bancário, tem-se uma quantidade enorme de demandas relativas ao consumidor. Depois, trabalha-se constantemente com a reorganização societária do próprio banco. Há, ainda, um problema pouco visível para quem está de fora do sistema, que é a regulação. Os bancos se deparam com uma quantidade enorme

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de normas regulatórias. Além do Banco Central, tem a CVM para a questão societária. Se for um banco público, tem o Tribunal de Contas. Existe ainda a fiscalização interna. Isso gera uma demanda enorme de pareceres, interpretações. O banco tem mais de um balanço. Ele tem um balanço societário, um fiscal, um segundo regras da CVM. Cada um com uma espécie regulatória. E é extremamente penosa a regulação tributária. Além das leis, existem várias portarias da Secretaria da Receita Federal. Os problemas jurídicos de um banco são muito mais complexos do que possam parecer. RFC: O senhor falou que atuou em comarcas pequenas, médias e grandes. Qual a diferença? JON: Na comarca pequena tem-se contato maior com o juiz. Eu comeRevista

cei no sul de Minas, depois fui para uma capital menor, Vitória, depois para uma maior, Belo Horizonte. Em seguida, vim para Brasília como diretor jurídico do Banco do Brasil, e o trabalho tomou uma dimensão nacional. Conheci todas as fases, todos os escalões da Justiça. RFC: Como esse contato direto com o juiz afeta a decisão final? JON: O advogado tem uma missão que ninguém pode esquecer. Seu grande papel é defender interesses. Ao defender interesses, ele instrui o juiz, leva informações a ele com as petições, a sustentação oral, os despachos. O advogado é o grande informador do Judiciário, que acolhe ou rejeita a tese submetida. Ao receber o advogado, o juiz ganha muito em termos de informação, principalmente nos campos fático e técnico.

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RFC: Como essa experiência influencia sua atuação no STJ? JON: Não diria que influencia diretamente minha atuação no STJ. É inegável que eu trouxe comigo uma bagagem muito grande em matéria de Direito Privado, Direito Societário, Direito Bancário. Isso me dá uma tranquilidade para aplicar aquilo tudo que eu conheci e ter tempo de estudar outras matérias. Às vezes, defendo posições contrárias ao sistema. O fato de eu ter sido advogado não significa que eu assimilei todas as teses que defendi. O advogado tem uma posição de defesa de interesses, hoje minha posição é de fazer justiça, dar uma interpretação correta da lei. Atualmente, o meu juízo é axiologicamente neutro. No tempo de advogado, era um juízo de interesse.

está desempenhando. Eu, desde que tomei posse no STJ, tive plena convicção de que estava mudando de lado. Meu papel não era mais o de defender as posições que eu havia defendido ao longo dos anos. Minha posição era de ser um intérprete desinteressado da norma jurídica. Posso lhe confessar com toda honestidade que não tive dificuldade nenhuma em trocar de papel. RFC: A sua atuação como advogado influencia hoje o seu relacionamento com esses profissionais?

RFC: Como foi essa transição, de um perfil para outro?

JON: Eu recebo todos os advogados que marcam audiência. Isso é uma filosofia que eu trouxe porque eu sempre tive necessidade de falar com o juiz e, algumas vezes, tive dificuldades em ser recebido. Aquilo que eu não gostava, procuro não fazer hoje.

JON: Isso decorre da maturidade profissional. Saber o papel que se

RFC: Essa é uma postura constante entre os ministros do STJ?

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JON: Acredito que sim. Eu sempre dizia, antes mesmo de ser nomeado, que nesta Casa os advogados são bem recebidos, de maneira geral. RFC: O STJ tem a alcunha de Tribunal Cidadão. Ele está cumprindo esse papel? JON: Cumpre. Quando falamos Tribunal da Cidadania, é preciso entender que julgamos as teses que mais diretamente repercutem na vida do cidadão. A população vive, de modo geral, no plano da legalidade, não da constitucionalidade. A Constituição é primeiramente dirigida ao legislador para editar normas. Evidentemente que, em pleno regime democrático, devemos cumprir com os preceitos constitucionais. Mas as teses que mais são veiculadas no Judiciário são as que exigem interpretação das leis, são causas de família, de contratos, de sucessão, de tributos.

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Hamilton Penna

Regulamentação do mercado financeiro


Fabio Rodrigues Pozzebom/Abr

CAPA |

A evolução dos mercados financeiros representou avanços na sua regulamentação, mas a atual crise dá sinais de que novos progressos ainda precisam ser alcançados

A história da economia mundial oscilou, durante os séculos, entre momentos de grande interferência dos Estados nos mercados e outros de intervenção quase nula, sendo os Estados Totalitários e os Estados Liberais as manifestações máximas desses dois momentos. A recente quebra de várias instituições financeiras norte-americanas e a crise que se seguiu nos mercados mundiais colocou novamente na pauta dos dirigentes dos países a regulamentação da economia como um todo – e mais especificamente do mercado financeiro, fonte irradiadora da atual crise. Chefes de estado começaram a se mobilizar para conter os efeitos da crise e até para evitar novas deRevista

sestabilizações da economia mundial. No dia 5 de novembro de 008, por exemplo, líderes das 0 nações mais importantes economicamente, o G- 0, se reuniram em Washington para discutir a crise que se agravava e concluíram que seria necessário criar novas normas de regulamentação e monitoramento de mercado. No dia 8 de dezembro, líderes da China e da Europa discutiram os passos que dariam para recuperar a estabilidade dos seus mercados. A essas, seguiram-se várias reuniões, encontros e manifestações isoladas sobre o rumo que deveria ser dado à economia mundial. Modesto Carvalhosa, ex-professor de Direito Comercial da USP

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e ex-consultor jurídico da Bovespa, acredita que a atual crise tem as mesmas origens da Crise de 9 9, as quais ele exemplifica como especulação, ganância, produtos falsos e falsas cotações de bolsa. A diferença fundamental entre as duas, segundo ele, é que em 9 9 o Estado só começou a injetar dinheiro na economia anos depois de o problema ter emergido. Desta vez, os Estados Unidos, a União Europeia e outros países estão dando recursos ao sistema financeiro e aos bancos para incentivar a economia. “Os governos estão tratando da crise soltando dinheiro. O Estado não está omisso. Se isso tivesse sido feito nos anos sub-


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Regulamentação do mercado financeiro

“Os governos estão tratando da crise soltando dinheiro. O Estado não está omisso. Se isso tivesse sido feito nos anos subsequentes à Crise de 1929, tudo teria sido amenizado”

Ana Paula Amorim

Modesto Carvalhosa, ex-professor de Direito Comercial da USP e ex-consultor jurídico da Bovespa.

“(O) mercado financeiro nos Estados Unidos (...) ficou parado no tempo, enquanto diversas outras nações desenvolveram suas normas” Marcos Barbosa Pinto, diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

sequentes à Crise de 9 9, tudo teria sido amenizado”, afirma. Colocar dinheiro na economia e estatizar grandes instituições de crédito imobiliário têm sido, então, a reação dos países. Assim, a Fannie Mae e a Freddie Mac, criadas pelo Estado americano em 9 8 e 970, respectivamente, e depois privatizadas com o objetivo de diminuir os gastos públicos e aumentar a concorrência setorial, voltaram às mãos do Estado. “A regulamentação do mercado financeiro nos Estados Unidos foi um modelo adotado por vários países, mas, não obstante, ficou parado no tempo, enquanto diversas outras nações desenvolveram suas normas”, diz Marcos Barbosa Pinto, diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Marcos Pinto cita como exemplo da deficiência da regulamentação americana a falta de transparência no mercado de balcões. Essas operações são realizadas dentro de uma instituição financeira ou entre duas dessas instituições. O registro das operações nos Estados Unidos se dá apenas na contabilidade das partes envolvidas. Além disso, os limites a operações de empréstimo são estabelecidos pelas próprias instituições. Essas características limitam a supervisão da atividade, já que as transações estão dispersas entre as instituições, e dificulta a identificação do volume de operações de um mesmo investidor, uma vez que não existem informações centralizadas sobre ele. O Brasil apresenta uma regulamentação mais prudente nesse sentido. O empréstimo de títulos é feito de forma centralizada, por entidades de compensação e liquidação autorizadas pela CVM. Atualmente, a única entidade autorizada é a Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia (CBLC), que detém o registro de todas as operações de empréstimo realizadas. O serviço é supervisionado pela CVM, que posRevista

sui, ainda, a identificação de cada investidor que toma títulos emprestados. A transparência é tão valorizada pela regulamentação brasileira nessa área que a informação sobre o volume total alugado por ativo é pública e é atualizada a cada 5 minutos. Há também limites máximos para os empréstimos que podem ser mantidos em aberto. Marcos Pinto diz que essa falta de transparência no mercado de balcão americano dificulta a coibição de comportamentos que podem ocasionar prejuízos ao investidor e diminui a confiabilidade no mercado como um todo. “A transparência é o melhor modo de regular conduta. Sem transparência, em um ambiente opaco, diversos procedimentos que poderiam ocasionar prejuízos para os investidores podem ocorrer”, diz. Para ele, essa opacidade foi uma das grandes causas da crise atual. O diretor da CVM aponta, ainda, outros problemas da regulamentação americana. Para ele, existem brechas de competência entre a Securities and Exchange Commission (SEC), órgão regulador do mercado de capitais, e o Federal Reserve System (FED), o Banco Central americano. A regulamentação dos bancos de investimento está, segundo ele, em uma dessas brechas. A competência para regular tais bancos é da SEC, mas, como lembra Marcos Pinto, esse órgão não dispõe do arsenal que o Banco Central teria para enfrentar uma crise bancária. Não seria possível à SEC lançar mão de medidas como emprestar dinheiro aos bancos, já que não há orçamento disponível para isso. No Brasil, o Banco Central e a CVM regulam os bancos de investimento enquanto bancos, o que significa que, se houver alguma crise nessas instituições, o Banco Central pode atuar com medidas tradicionais, como se as instituições atingidas fossem bancos comerciais.

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João Queirolo

Regulamentação do mercado financeiro

“Em tese, pelo menos o que nos ensinaram, é que o mercado americano é construído pelas forças de mercado. No Brasil não é assim.”

tre as regulamentações brasileira e americana. De acordo com ele, o modelo norte-americano foi difundido pelo mundo por meio das Conferências de Bretton Woods, realizadas em 9 . Foram nessas conferências que os 7 0 delegados de todas as nações aliadas se reuniram para reorganizar o capitalismo no fim da Segunda Guerra Mundial. Esses delegados estabeleceram o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (International Bank for Reconstruction and Development, ou BIRD) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). O Sistema Bretton Woods determinou, ainda, que cada país deveria adotar uma política monetária que mantivesse a taxa de câmbio de suas moedas dentro de um determinado valor indexado ao dólar que, por sua vez, estaria ligado ao ouro.

Precedentes históricos A regulamentação que está em vigor atualmente nos Estados Unidos tem suas origens na década de 9 0 e é fruto da crise econômica que o país viu estourar em 9 9. É, portanto, uma legislação criada para diminuir práticas de especulação de ações e significou o aumento da intervenção estatal na economia. Foi nesse momento que surgiu, por exemplo, a SEC. Décadas depois, porém, no governo de Ronald Reagan ( 98 - 989), essa regulamentação perdeu parte do seu valor e deixou de ser prioridade diante da ideia dominante na época, e compartilhada pelo então presidente, de que a intervenção governamental na economia era indesejável. Em 00 , com a descoberta de manipulações contábeis em duas das

Francisco Munia Machado, exprocurador do Banco Central, diz que o mercado financeiro do Brasil foi muito inspirado no americano, que já existia de forma amadurecida quando o mercado brasileiro começou a se desenvolver. Apesar disso, ele ressalta que atualmente os dois mercados são muito diferentes. “Por mais que se inspirem em algo feito anteriormente, as coisas depois se modificam”, diz. Ele afirma que os Estados Unidos acreditam nas forças de mercado, apesar da esperada intervenção governamental que a atual crise possivelmente causará. “Em tese, pelo menos o que nos ensinaram, é que o mercado americano é construído pelas forças de mercado. No Brasil não é assim, muito menos foi assim na época de sua implantação, no governo militar. Era tudo muito controlado”, completa. Modesto Carvalhosa não acredita que existam tantas diferenças enRevista

Antonio Cruz/Abr

Francisco Munia Machado, ex-procurador do Banco Central.

No Brasil, o Banco Central pode atuar com medidas tradicionais nos casos de crises nos bancos de investimento, como se esses fossem bancos comerciais. Os órgãos reguladores americanos não contam com tal possibilidade.

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Ana Paula Amorim

Regulamentação do mercado financeiro

“Quando se está fazendo uma transição monetária daquela magnitude é melhor ser mais prudente” Aloísio Araújo, professor do curso de pósgraduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas.

maiores empresas do país, a Enron e a Worldcom, a maior crise de confiança desde a quebra da bolsa de Nova York em 9 9 teve início. Com o objetivo de recuperar a credibilidade do mercado de capitais, foi, então, promulgada a Lei Sarbanes Oxley, que se configurou como a maior reforma na legislação desse mercado desde a quebra da bolsa. A detalhada lei, que conta com títulos e . 07 artigos, aumenta o grau de responsabilidade do presidente e da diretoria das empresas, assim como das auditorias e dos advogados contratados. A lei introduz, ainda, regras bastante rígidas de governança corporativa, na tentativa de dar maior transparência e confiabilidade aos resultados das empresas. Há também a previsão de severas punições contra fraudes empresariais. Tal lei incide sobre as empresas brasileiras com ações negociadas nos EUA e mesmo aquelas que não possuem ações nos mercados americanos tendem a seguir as re-

O desenvolvimento do mercado financeiro no Brasil

O mercado de capitais brasileiro teve seu início apenas a partir de 96 , no governo militar. Até então, os investimentos dos brasileiros eram voltados principalmente para os ativos reais (imóveis), como consequência de um ambiente de grande inflação e uma legislação que limitava constitucionalmente os juros reais a % ao ano. “A redação original da Constituição previa uma carga mais pesada em termos de mercado financeiro, inclusive com limites aos juros praticados no mercado. Isso é um desprezo à magnitude da Constituição e quem coloca isso lá está vendendo promessas irrealizáveis”, avalia Egon Bockmann, da Universidade Federal do Paraná. Já em 96 , foi iniciado um programa de grandes reformas na economia nacional. Entre as leis editadas nessa

gras de governança coorporativa estabelecidas. O objetivo de tais empresas, ao observar as normas da Lei Sarbanes Oxley, é alinhar suas práticas corporativas com as tendências do mercado global, já que a lei acabou se tornando uma referência mundial. No Brasil, porém, o mercado de capitais se configurou de forma diversa até como resultado do momento no qual ele se estruturou, já que as práticas desse mercado só se mostraram recorrentes no país a partir da década de 960 (ver quadro). A consolidação de tal mercado, entretanto, se deu a partir do final da década de 980. Aloísio Araújo, professor do curso de pós-graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas, diz que o Brasil é mais prudente que os Estados Unidos e que um dos motivos para isso é a crise bancária pela qual o país passou depois da implantação do Plano Real. “Alguns bancos tiveram problemas e foi preciso fazer várias intervenções. Foram criados

época que tiveram maior impacto para o mercado financeiro estão a Lei n° . 80/6 e a Lei n° .595/6 . A primeira instituiu a correção monetária nos contratos imobiliários e de interesse social, enquanto a segunda reformulou todo o sistema nacional de intermediação financeira, criando o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central. Em 965, foi editada a Lei n° .7 8, que disciplinou o mercado de capitais e estabeleceu medidas para seu desenvolvimento. Ficou estabelecido na exposição de motivos dessa última que o objetivo era reorganizar o mercado financeiro diante das deturpações sofridas devido ao processo inflacionário. A partir da promulgação da nova legislação, a emissão de haveres financeiros e sua negociação somente poderiam ser feitas por meio de instituições autorizadas a trabalhar no Sistema Financeiro Nacional. A legislação sobre Bolsa de Valores foi reformulada, as corretoras de fundos públicos foram transformadas em Sociedades Corretoras e se profissionalizaram, os bancos de investimento foram criados.

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alguns mecanismos, alguns que na realidade já existiam nos Estados Unidos. O Fundo Garantidor de Crédito (FGC) é um exemplo. Ele tinha muitas semelhanças com o Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC), que existia nos Estados Unidos desde a Grande Depressão. Mas também se optou por criar mecanismos de controle para não ter tantos problemas depois. Quando se está fazendo uma transição monetária daquela magnitude é melhor ser mais prudente”, afirma. As diferenças entre as regulamentações americana e brasileira têm, para Egon Bockmann Moreira, doutor em Direito Econômico e professor do departamento de Direito Público da Universidade

Federal do Paraná, origens anteriores a todo esse desenvolvimento do mercado de capitais. Para ele, “os Estados Unidos, desde a guerra da independência americana, no século XVIII, é um país eminentemente liberal, que preza pela não presença do Estado na economia. O Brasil é o contrário, segue a tradição europeia continental, que é de uma grande presença do Estado na economia.” Egon Bockmann lembra que mesmo bens de interesse nacional, como energia elétrica, são tratados

Posteriormente, o governo passou a conceder incentivos para a aplicação no mercado acionário, como os Fundos 57, criados pelo Decreto Lei n° 57/67. Os contribuintes poderiam utilizar parte do imposto devido em aquisição de quotas de fundos de ações de companhias abertas. Com os incentivos, a demanda por ações cresceu rapidamente, mas a emissão de ações pelas empresas não acompanhou tal crescimento, o que gerou o boom na Bolsa do Rio de Janeiro. O início da década de 970 foi, então, marcado por uma forte onda especulativa. O “boom de 97 ”, como ficou conhecido esse movimento especulativo, teve curta duração, mas gerou grandes prejuízos, e a falta de confiança no mercado acionário se prolongou por vários anos. A partir de 975, as cotações começaram a melhorar devido principalmente aos novos aportes de recursos, provenientes, por exemplo, da criação das Sociedades de Investimento pelo Decreto Lei n° . 0 , que objetivava captar recursos externos e aplicar no mercado de ações. Outros incentivos foram adotados ao longo do tempo, como a isenção fiscal dos ganhos obtidos em bolsa de valores. Foi nesse contexto de tentativa de recuperação do mercado acionário que, em 976, foram criadas duas novas leis, que ainda estão em vigor. Foram elas: a Lei n° 6. 0 /76, que versa sobre as Sociedades Anônimas, e a Lei n° 6. 85/76, sobre o mercado de capitais. Foi essa segunda que criou a Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Todos esses incentivos geraram, em

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como commmodities nos Estados Unidos, enquanto no Brasil cabe ao Estado prestar tais serviços diretamente ou por meio de concessões. “Lá a regulação se presta basicamente a coibir excessos e para efeitos concorrenciais. No Brasil, não. O Estado brasileiro sempre teve uma mão pesada”, explica.

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alguns momentos, aumento na quantidade de companhias com capital aberto, mas o mercado ainda não teve o crescimento esperado. Só no final da década de 980 é que o capital estrangeiro começou a entrar em maior volume no mercado de capitais brasileiro, notadamente a partir da edição da Resolução do Conselho Monetário Nacional n° . 89/87 e seus anexos. A resolução aprova os regulamentos que disciplinam a constituição, o funcionamento e a administração de Sociedade de Investimento, Capital Estrangeiro e Carteira de Títulos e Valores Mobiliários. O aumento de volume de investidores estrangeiros no início da década de 990 é acompanhado também pela oferta de ações de empresas brasileiras em bolsas de valores estrangeiras. A partir daí, as companhias abertas brasileiras precisaram seguir as regras impostas pela SEC e começaram a ter contato com investidores mais exigentes, acostumados a investir em mercados com práticas de governança corporativa mais avançadas. Foi quando o mercado de capitais brasileiro começou a se especializar. A falta de proteção ao acionista minoritário e a ausência de instrumentos adequados de supervisão das empresas, porém, fizeram o mercado brasileiro perder espaço para outros mercados. Mais recentemente, algumas iniciativas institucionais e governamentais foram implementadas com o objetivo de revitalizar o mercado brasileiro de capitais a partir do aperfeiçoamento da regulamentação, da maior proteção ao investidor e da melhoria das práticas de governança. Pode-se destacar a Lei n° 0. 0 /0 , que alterou e acrescentou dispositivos à Lei n° 6. 0 /76, que dispõe sobre as Sociedades de Ações, e à Lei n° 6. 85/76, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários. Foram, ainda, criados o Novo Mercado e os níveis e de governança corporativa na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa).

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Rodrigo Napoli

Regulamentação do mercado financeiro

“Lá a regulação se presta basicamente a coibir excessos e para efeitos concorrenciais. No Brasil, não. O Estado brasileiro sempre teve uma mão pesada”

Bamerindus”, diz. Machado afirma que não existem, por exemplo, proteções trabalhistas, tudo se dá a partir de convenções feitas com os sindicatos. O ex-procurador do Banco Central aponta, ainda, outra diferença entre a regulamentação brasileira e a norte-americana. “O FED tem uma extraordinária autonomia em relação às políticas de governo. Eles conseguem realmente cuidar da moeda. Nós fazemos isso aqui dependendo da personalidade do presidente do Banco Central”, observa. Segundo ele, o atual presidente da entidade consegue agir com certa independência, mas nem todos conseguem. “A verdade é que o Banco Central não tem autonomia, quem a tem é seu even-

Egon Bockmann Moreira, doutor em Direito Econômico e professor do departamento de Direito Público da Universidade Federal do Paraná.

Há, porém, quem não encontre tantas diferenças entre as regulamentações brasileira e americana. “Não vejo no Brasil um controle rígido ou diferente dos Estados Unidos. Lá existe um controle pseudorrígido sobre os bancos, como aqui também há”, diz Modesto Carvalhosa. O ex-professor da USP explica que ele considera o controle dos dois países pseudorrígido por não fiscalizarem os produtos oferecidos pelos bancos aos investidores. A falta dessa fiscalização permite, segundo ele, uma alavancagem muito grande dos bancos e pode culminar em uma crise como a atual.

“O FED tem uma extraordinária autonomia em relação às políticas de governo.”

Francisco Munia Machado, ex-procurador do Banco Central, concorda com a afirmação de que o Brasil segue uma tradição mais europeia. Ele diz que, como a Europa, o país tem a cultura do direito positivo, enquanto os Estados Unidos seguem a tradição do direito costumeiro. “Quem manda mais que a lei são os juízes. As autoridades de fiscalização e supervisão bancária são uma espécie de Judiciário no mercado financeiro, eles criam as regras de uma determinada situação”, diz Machado sobre a tradição americana.

(Egon Bockmann)

“A verdade é que o Banco Central não tem autonomia, quem a tem é o seu eventual presidente.”

Ele exemplifica afirmando que, quando o Banco Bamerindus faliu, a filial de Nova Iorque precisou seguir as regras impostas pelo Estado de Nova Iorque para fechar o banco. “Eles trabalham com as condições de momento do mercado e da empresa, a capacidade de pagamento do dono do banco. Eles fizeram exigências duras no caso

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tual presidente. Nos Estados Unidos, o currency já tem uma liturgia que confere independência maior ao FED”, completa.

(Egon Bockmann)

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O que diferencia o Brasil dos Estados Unidos, para Modesto Carvalhosa, não é, portanto, a regulamentação. “A diferença é que os bancos brasileiros são mais prudentes que os americanos, no sentido de mais conservadores. Não ingressaram nessa alavancagem total de criação de produtos de terceira geração, produtos piramidais, especulação de imagens e criação de alavancagem absolutamente inimaginável com referência a seus próprios depósitos e seu capital”, avalia.

Intervencionismo e liberalismo Modesto Carvalhosa lembra que o liberalismo predomina nos Estados Unidos e no Brasil desde o Consenso de Washington, firmado no encontro de diversos economistas latino-americanos de perfil liberal, funcionários do FMI, do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do governo norte-americano, em 989. No encontro, foram estabelecidos dez pontos consensuais entre os participantes (ver quadro), que se tornaram diretrizes para a economia mundial. Esses dez pontos passaram, posteriormente, a ser impostos pelas agências internacionais para a concessão de créditos. “No Consenso de Washington, o Estado é um empecilho, é uma entidade burocrática, que impede o desenvolvimento dos mercados. Então, o mercado é absolutamente autorregulável, no sentido de que encontra nele mesmo o seu equilíbrio. O mercado prevalece sobre o Estado”, explica Carvalhosa.

Consenso de Washington O encontro realizado em Washington em 989 pretendia avaliar as reformas econômicas em curso na América Latina e o tema do evento foi “Latin Americ Adjustment: How Much has Happened?”. O encontro foi promovido pelo Institute for International Economics e o diretor desse instituto, John Willianson, foi quem sistematizou os dez pontos considerados consensuais entre os participantes. Posteriormente, tais pontos passaram a ser prerrogativas para a concessão de crédito em instituições internacionais. A seguir, as regras do Consenso de Washington: . Disciplina fiscal, através da qual o Estado deve limitar seus gastos à arrecadação, eliminando o déficit público; . Focalização dos gastos públicos em educação, saúde e infraestrutura; . Reforma tributária que amplie a base sobre a qual incide a carga tributária, com maior peso nos impostos indiretos e menor progressividade nos impostos diretos; . Liberalização financeira, com o fim de restrições que impeçam instituições financeiras internacionais de atuar em igualdade com as nacionais e o afastamento do Estado do setor; 5. Taxa de câmbio competitiva; 6. Liberalização do comércio exterior, com redução de alíquotas de importação e estímulos à exportação, visando impulsionar a globalização da economia; 7. Eliminação de restrições ao capital externo, permitindo investimento direto estrangeiro; 8. Privatização, com a venda de empresas estatais;

Adotar um modelo mais ou menos intervencionista tem efeitos bem palpáveis. Aloísio Araújo, da Fundação Getúlio Vargas, diz que o Brasil é mais prudente do que os Estados Unidos, mas que quando o país fez essa escolha acabou optando também por alavancar menos capital. Ele lembra, porém, que o Brasil tomou esse caminho porque era necessário para o mercado do país, que apresenta riscos maiores Revista

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9. Desregulação, com redução da legislação de controle do processo econômico e das relações trabalhistas; 0. Propriedade intelectual.

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re de maneira mais eficiente e com menos riscos. Ele concorda que algumas normas podem levar a uma diminuição do tamanho do mercado e provocar uma alavancagem menor, ou seja, gerar resultados piores do que se tais normas não existissem. O diretor da CVM acredita, porém, que é possível ter regras que reduzem o risco do sistema sem prejudicar sua eficiência. “Quer dizer, os ativos podem ser usados da melhor maneira possível sem comprometer a solidez do mercado. Desenhar essas regras é um grande trabalho dos reguladores depois dessa crise”, diz.

“Nos Estados Unidos nem existia autorregulação, eram o mercado e os agentes econômicos se comportando da forma que melhor lhes aprouvessem.” (Egon Bockmann)

“(...) temos uma política ortodoxa de juros altos, contenção da moeda no mercado, retirada de incentivos. (...) A política é eminentemente conservadora”

Os possíveis efeitos adversos de regras nem tão bem feitas podem surgir por excesso ou por deficiência de regulamentação. Segundo Egon Bockmann, no caso de excesso de regulamentação, inibe-se a atuação dos agentes econômicos, e esses tendem a procurar alternativas mais fáceis, como se instalar em outro mercado. Por outro lado, ele completa, se o Estado não intervém,

raajamb

(Egon Bockmann)

que o mercado norte-americano. Ele ressalta, ainda, que o país veio de uma hiperinflação e tem uma oferta de crédito muito menor. Segundo Araújo, os Estados Unidos têm mais de três vezes o PIB em crédito, e o Brasil não tem nem uma vez. “O crédito é bom para o crescimento, no entanto, talvez tenham exagerado nos Estados Unidos”, avalia. Araújo afirma, ainda, que Alan Greenspan – ex presidente do FED –, Robert Rubin – ex-ministro da fazenda e ex-secretário do Tesouro no governo de Bill Clinton – e Henry Paulson – secretário do Tesouro norte-americano e membro da Assembleia de Governadores do FMI – têm o ponto de vista dos bancos de investimento, sendo que

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os dois últimos foram executivos do The Goldman Sachs Group, um dos maiores bancos de investimento do mundo. Com essa perspectiva, querem mais risco, mais alavancagem, o que traz agilidade para o mercado financeiro. Foi esse perfil que moldou, segundo Araújo, o mercado americano. Os efeitos dependem, porém, mais da qualidade do que da quantidade de normas para Marcos Pinto, da CVM. Segundo ele, regras bem feitas permitem que o sistema ope-

A Bolsa de Valores de Nova Iorque é uma das mais importantes do mundo. Foi uma das primeiras a sentir os efeitos da atual crise econômica.

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ou intervém de forma acanhada, a atuação dos agentes econômicos fica sujeita às livres forças de mercado e à ganância dos agentes, o que pode, segundo Bockmann, gerar crises como a que tomou os noticiários no segundo semestre de 008. “Se o Estado atua com excessos ou com muito pouca intervenção, os efeitos podem ser perversos. Quando o Estado consegue encontrar um ponto ótimo da intervenção – o que é muito difícil –, ele tende a gerar resultados positivos não só para o mercado em que ele intervém, mas para o país como um todo, em termos gerais”, completa.

Quando lançado no Brasil, em meados de 995, menos de um ano depois da implantação do Plano Real, o PROER foi um socorro a bancos privados brasileiros que custou cerca de ,5% do PIB do país. “Os tradicionais bancos familiares brasileiros, quando a moeda se estabilizou na década de 990, não puderam mais fazer a maquiagem inflacionária nos balanços”, diz Egon Bockmann sobre as causas da crise bancária que gerou o PROER. O programa foi, para Modesto Carvalhosa, um precedente importante de segurança jurídica no mercado financeiro do Brasil. “Os depositantes não perderam um tostão devido ao PROER”, explica.

Bockmann avalia que os Estados Unidos tratavam seu mercado com pouca regulamentação e que a crise já era, por isso, detectável. “Nos Estados Unidos nem existia autorregulação, eram o mercado e os agentes econômicos se comportando da forma que melhor lhes aprouvessem. Autorregulação é um termo que usamos para designar setores econômicos que têm uma regulação.”, explica.

O Plano Real e a crise que se seguiu formaram, então, o cenário para o PROER e para a implantação de várias regras do mercado brasileiro. Para Bockmann, o caos financeiro vivido nessa época foi determinante para que a postura do Banco Central fosse mais conservadora. Ele lembra que a volatilidade dos mercados

não é controlada pelo Banco Central, existem outras questões, como a eleição do futuro presidente, que influenciam nos mercados. É tal instabilidade que, segundo Bockmman, determina o conservadorismo brasileiro. “Nós já tentamos algumas políticas heterodoxas, como o Plano Bresser e o Plano Collor, que não deram certo. Agora temos uma política ortodoxa de juros altos, contenção da moeda no mercado, retirada de incentivos. Ainda que esteja tentando compensar um pouco com moeda pública via BNDES ou outros bancos públicos, a política é eminentemente conservadora”, avalia. O cenário americano, ao contrário, não teve caos semelhante ao brasileiro, a não ser o crash de 9 9, lembra Bockmann. Essa é a razão de os Estados Unidos regularem o mercado de forma menos intervencionista. “Se o Alan Greenspan estivesse aqui e o Henrique Meirelles estivesse lá, as coisas seriam feitas basicamente da mesma forma”, afirma.

A Bovesta é Bolsa de Valores mais importante do Brasil. Ela já sentiu os efeitos da atual crise, embora de forma mais branda que a Bolsa

Hamilton Penna

Para ele, porém, muita intervenção estatal também pode gerar crises. O problema, segundo Bockmann, está em detectar as falhas, e, ressalta, quanto mais liberado, mais difícil é identificar o que está errado. “Ninguém sabe o que acontece do outro lado do balcão”, afirma. Bockmann diz, ainda, que os problemas enfrentados atualmente pelo mercado de capitais americano forçarão os Estados Unidos a tomar medidas mais conservadoras e intervenientes, assim como o Brasil, segundo ele, fez com o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (PROER).

de Nova Iorque.

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mentações mais cedo e mantiveram vários ângulos”, explica. Araújo diz, ainda, que o sistema inglês unificou até mesmo a regulamentação do mercado de seguros, o que ele julga positivo. “No Brasil, o mercado não é tão unificado quanto o inglês, existem quatro grandes órgãos reguladores, mas, dentro da parte bancária, toda regulação é feita pelo Banco Central”, afirma.

Órgãos regulatórios: Federal Reserve System (FED) Securities and Exchange Commission (SEC) Commodity Futures Tranding Comission (CFTC) Office of the Comptroller of the Currençy Office (OCC)

Francisco Munia Machado, ex-procurador do Bacen, lembra que no Brasil o Banco Central é a autoridade monetária, enquanto nos Estados Unidos o FED trabalha com juros e liquidez, mas não com fiscalização e supervisão bancárias. “Essa fiscalização é distribuída para cada Estado. Há uma autoridade monetária em Nova Iorque e outra na Califórnia, por exemplo. Cada um tem seu Office of the Currency, que cuida da moeda especificamente naquele lugar e faz a supervisão bancária”, diz Munia sobre a dispersão do sistema norte-americano.

Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC)

Órgãos regulatórios: Banco Central Comissão de Valores Mobiliários (CVM) Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) Secretaria de Previdência Complementar (SPC).

Órgãos de regulação Os modelos americano e brasileiro de regulação do mercado financeiro são mantidos por diferentes órgãos. Nos Estados Unidos, o Federal Reserve System (FED), o Securities and Exchange Commission (SEC), o Commodity Futures Tranding Comission (CFTC), o Office of the Comptroller of the Currençy Office (OCC) e o Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC) são os reguladores. No Brasil, os órgãos de regulação são o Banco Central, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) e a Secretaria de Previdência Complementar (SPC). Diante de todos esses órgãos regulatórios, Modesto Carvalhosa diz que o problema é a ineficácia

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dos mesmos, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. “Se aqui os bancos tivessem entrado nessa ciranda de alavancagem e de colocação de produtos heterodoxos e alavancagem desses produtos, nós estaríamos em uma situação bancária tão ruim quanto a americana e a europeia”, diz. Aloísio Araújo, da Fundação Getúlio Vargas, aponta, porém, diferenças fundamentais entre os órgãos de regulação dos dois países. Para ele, o sistema americano é muito pulverizado, o que exemplifica dizendo que os bancos menores não são regulados pelo FED, como os demais bancos comerciais. “Nos Estados Unidos, existe uma fragmentação muito grande, até por razões históricas. Eles começaram a ter regulaRevista

No Brasil, segundo Machado, já houve a tentativa de tirar a responsabilidade de supervisão do Banco Central. “Um grupo de São Paulo propunha isso. Eram professores de Direito. Faziam parte desse grupo o Ives Gandra, o Hamilton Dias de Souza, o Paulo Rabelo de Castro. Eles todos eram a favor de um Banco Central puro”, diz. O grupo não atingiu o objetivo, e, na avaliação do ex-procurador do Banco Central, é possível que tenha sido melhor assim, pois, para ele, é preciso ter um Banco Central forte para se impor perante os técnicos do Ministério da Fazenda. “O ministro e seus secretários são pessoas que estão lá seguindo determinado partido, determinada ideologia. São absolutamente transitórios. No Banco Central existe também uma diretoria volátil, mas há uma estrutura burocrática de carreira. Essa solidez talvez seja fundamental para impedir que a coisa vire bagunça”, explica. O ex-procurador do Banco Central avalia, porém, que nos Esta-

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dos Unidos essa separação funciona. Ele ressalva, entretanto, que o fato de país ser muito rico ajuda a esconder erros estruturais. “O dinheiro realmente é um grande remédio para muita coisa. Nós estamos vendo agora a quantidade de dinheiro que estão investindo lá para acabar com a crise. É um absurdo. Nem pensamos em chegar perto. Isso aí tudo é para pagar os erros estruturais que eles têm”, avalia. Nos países onde foi estabelecido um único supervisor para todas as atividades financeiras, ele é, em geral, distinto da autoridade monetária, o que coloca o problema da coordenação entre os dois. Por exemplo, o Banco Central, que em última instância faz os empréstimos, exige informações detalhadas sobre a situação de liquidez e solvência de cada instituição financeira. Quando a autoridade monetária não exerce as funções de supervisão, essas informações podem não estar disponíveis com a confiabilidade e urgência necessárias. Por outro lado, quando há maior divisão de tarefas, o problema é a coordenação entre elas, principalmente quando se trata de supervisão de conglomerados financeiros, que oferecem mais de um e, às vezes, todos os serviços de competência dos diferentes supervisores. No Brasil, existe o Comitê de Regulação e Fiscalização dos Mercados Financeiros, de Capitais, de Seguros, de Previdência e de Capitalização (Coremec), que coordena as atividades de supervisão, ou seja, coordena as atividades do Bacen, da CVM, da Susep e da SPC. Além disso, há o convênio entre o Banco Central e a CVM, que instituiu reuniões mensais para a discussão de assuntos comuns. Marcos Pinto, da CVM, afirma que a divisão de tarefas na regulamentação brasileira é bem feita e que ela dá sustentação ao mercado Revista

para enfrentar crises como a atual, embora alguns pontos possam ser aperfeiçoados. “Falando especificamente da relação da CVM com o Banco Central, a divisão de competências é muito boa. O Banco Central atua no mercado financeiro em todos os aspectos prudenciais e sistêmicos – então olha todos os bancos e todas as instituições –, e a CVM cuida da relação com os investidores, quer dizer, exige transparência, práticas equitativas e leais”, afirma. O diretor da CVM avalia bem a regulamentação brasileira. “Temos hoje um sistema bancário forte, um mercado de capitais dinâmico, órgãos reguladores que têm a confiança dos investidores. O Brasil não tem nem de perto a situação de medo e pânico que ocorreu nos Estados Unidos”, diz. Marcos Pinto acredita que o país sentirá os efeitos da crise, mas estará bem preparado para enfrentá-la, pois existem instrumentos que a CVM e o Banco Central podem utilizar para combater essa crise de maneira adequada. Egon Bockmann, da Universidade Federal do Paraná, ressalta que estamos vivendo 5 anos de estabilidade de legislação e temos obtido alguma estabilidade financeira. “A legislação brasileira, devido às experiências negativas que tivemos, é sim uma das melhores legislações em vigor. Em termos de experiência, em termos de normas, em termos de contenção, é uma das legislações mais adequadas que existem hoje no planeta”, avalia. Para Bockmann, o grande problema do setor bancário e do setor financeiro privado no país é a tentativa de controle da concorrência entre as instituições. Existe, como ele exemplifica, uma grande discussão sobre quem controla a fusão em bancos. “O Banco Central, a AGU (Advocacia Geral da União) e o Presidente da República dizem que quem controla a fusão em bancos é o Banco Central. E

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o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), o órgão de defesa da concorrência, diz que quem controla é ele”, afirma. O Congresso Nacional conta com um Projeto de Lei tramitando sobre o tema desde 00 . Dentre as mudanças que o PL n° .9 7/ 00 prevê, está a definição de um prazo mínimo de dois meses de análise para o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) dar seu parecer sobre a operação de fusão, antes de as empresas a efetuarem definitivamente, o que evitaria a cartelização. Após esse período, se não houver manifestação de qualquer uma das duas secretarias (Secretaria de Direito Econômico e Secretaria de Acompanhamento Econômico), ratificada pelo CADE, ou manifestação do próprio CADE, a operação pretendida poderá ser concretizada sem restrições. Sobre o projeto, Egon Bockmann diz que “a legislação está em trâmite sem que seja instalado um debate, está simplesmente parada”.

Mudanças Com exceção das alterações que considera necessárias no sistema de defesa econômica, Bockmann diz que não vê necessidade de muitas mudanças legislativas em relação ao mercado financeiro do Brasil. “Os instrumentos legislativos de que o governo dispõe são aptos para resolver os problemas que vierem com a crise, só precisa de ação com rapidez”, afirma. Atualmente, grande parte do Sistema Financeiro é regulada pela Lei n° .595, de 96 . “Essa lei criou o mercado financeiro brasileiro, na forma que ele tem atualmente. Lógico que existiam negócios bancários antes, mas não tínhamos a forma moderna de se fazer intermediação bancária, e tudo isso foi inspirado na forma americana”, afirma Francisco Munia Machado, ex-procurador do Banco Central.


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Marcos Pinto lembra, porém, que toda crise mostra que ainda há o que ser melhorado, apesar da boa avaliação geral da regulamentação brasileira. A CVM tem, segundo seu diretor, uma agenda ambiciosa para 009. Nessa agenda consta desde a regulamentação de todas as informações que as companhias abertas prestam para o mercado até a regulamentação de vários agentes que ajudam a proteger a integridade do mercado, como Bancos de Investimento, custodiantes e corretores. Para Modesto Carvalhosa, ex-professor da USP, porém, não há mais trabalho legislativo em relação ao mercado financeiro a ser feito no Brasil. “A base jurídica do mercado financeiro brasileiro é a Lei n° .595/6 e as demais que se seguiram, que criaram a figura dos bancos múltiplos, depois da liquidação extrajudicial, da qual pode convolar, inclusive, a Lei de Falências. Temos, ainda, as leis que foram feitas na década de 970, absolutamente convenientes e que provaram sua eficácia. Não vejo a necessidade de modificação de lei nem nada nesse aspecto”, afirma.

A atual crise, segundo Francisco Munia Machado, ex-procurador do Banco Central, mostra que existem falhas legislativas e de atuação de autoridade no sistema norteamericano. Ele avalia, porém, que os Estados Unidos apresentam vantagens em relação ao Brasil. Era garantido, exemplifica Machado, 00 mil dólares para qualquer correntista americano. “Suponha que quebrou o banco Lehman Brothers. Se alguém tivesse 50 mil dólares lá, o prejuízo seria apenas de 50 mil”, explica. Recentemente, o Congresso americano impôs, para aprovar o pacote econômico do Bush para combater a crise, que a garantia fosse aumentada para 00 mil dólares. “Aqui no Brasil não dá para fazer isso. São raras as contas com esse dinheiro”, diz. A garantia brasileira é de 0 mil reais. Em

Os Estados Unidos, no entanto, também não precisam de mudanças na legislação, de acordo com Modesto Carvalhosa. “Lei não falta, regulamento não falta no sistema americano. Simplesmente não há aplicação das normas, exatamente pela ideia de que o Estado não deve interferir na economia”, diz. Para Carvalhosa, a forma de solucionar a crise é nacionalizar os bancos e demitir as administrações atuais, que, para ele, são as causadoras da crise devido a seus comportamentos imprudentes nas alavancagens. Ele acredita, ainda, que seja necessário abrir um inquérito para julgá-los. “Não adianta fazer uma nova legislação e deixar os

Garantia de crédito para correntistas: $ 100 mil até 2008 $ 200 mil a partir de 2008

Aloísio Araújo diz, entretanto, que a crise trará mudanças, embora essas tendam a ser muito maiores nos Estados Unidos, onde o problema foi muito maior. Ele salienta, porém, que o Brasil segue certa orientação internacional, então provavelmente vai adotar algumas propostas que aparecerem. “Uma ideia de que se tem falado e que eu acho muito importante é se fazer menos mercado de balcão e mais operações por bolsa de valores”, diz. Araújo diz que se foi longe demais no modelo de autorregulamentação e que é razoável agora ir em outra direção. “Ninguém quer tomar esse risco de novo, ninguém quer outra crise dessas”, afirma. Para ele, é artificial dizer que a regulamentação do mercado norteamericano se aproximará da brasileira, já que os Estados Unidos têm um mercado muito mais sofisticado. Mas haverá, segundo Araújo, ajustes que o farão mais parecido com o mercado europeu.

contrapartida, a legislação americana é, na avaliação de Machado, muito liberal e tende, agora, a se tornar mais rigorosa.

Garantia de crédito para correntistas: R$ 20 mil Revista

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executivos que são absolutamente viciados nas direções desses bancos. É preciso torná-los o que eles são realmente. Pessoas que cometeram crimes contra a economia mundial”, completa. Segundo ele, a dificuldade em se fazer isso é que os norte-americanos tem uma cultura anti-intervencionista. “É inacreditável que os diretores que estavam na direção dos bancos há 0 anos continuem lá, recebendo dinheiro para administrar o rombo que eles fizeram”, diz.

Enquanto o mercado financeiro mundial se desenvolvia, foram feitas tentativas para unificar o máximo possível as práticas de supervisão bancária e aperfeiçoar as ferramentas de fiscalização internacionalmente. Tais tentativas foram feitas pelo Comitê de Supervisão Bancária de Basileia (BCBS), organização estabelecida em 975 e formada pelos presidentes dos Bancos Centrais de Bélgica, Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Países Baixos, Suécia, Suíça, Reino Unido e Estados Unidos, além de Luxemburgo e Espanha. O nome é uma alusão à cidade suíça que abriga as assembleias do Comitê.

A legislação americana nem mesmo precisaria de adaptações para isso, de acordo com Carvalhosa. “A Lei n° .595/6 , que permite a intervenção no Brasil, é toda de inspiração americana”, afirma. Além disso, o ex-professor da USP lembra que os Bancos Centrais estaduais americanos já intervieram em bancos várias vezes, abrindo os precedentes. Ele diz, porém, que a base constitucional para a intervenção é maior no Brasil, devido ao princípio da função social da propriedade e do contrato, típico do direito brasileiro, com base na legislação europeia. Os bancos falidos, por exemplo, estariam, segundo Carvalhosa, em disfunção social.

A década de 990, porém, contou com inúmeras falências de instituições financeiras em todo o mundo e as recomendações de Basileia I se mostraram deficientes. O Comitê lançou, então, um novo documento, o Basileia II, em substituição às premissas de 988. O novo acordo se baseou nos pilares requerimento de capital, supervisão bancária e transparência de mercado. As novas recomendações incorporaram maior flexibilidade e deram mais espaço para as metodologias internas dos bancos. De acordo com as premissas de Basileia II, o Banco Central deveria deixar de ser, progressivamente, formulador de política de gestão de riscos para apenas validar essas políticas.

Egon Bockmann ressalta, no entanto, a dificuldade em prever as mudanças no setor a partir da crise. Ele diz que os agentes econômicos são muito mais sagazes na vontade de ganhar dinheiro do que o Estado na vontade de conter. “Toda e qualquer tentativa de diminuir riscos é um exercício de futurologia. Tenta-se diminuir os riscos do futuro com a experiência do passado, mas esse não se repete”, afirma. Para ele, haverá um ciclo de intensificação das restrições e depois a tendência é afrouxar a regulamentação novamente. Isso porque, segundo ele, não há Estado nos dias de hoje que, com pretensões de se colocar no contexto mundial, possa fazer uma restrição muito forte para qualquer mercado. Modesto Carvalhosa é ainda menos otimista e diz que independentemente do que se faça, outras crises virão. “É cíclico. Daqui a alguns anos vamos ter uma nova crise”, afirma. Revista

Basileia

Em 988, esse comitê publicou um documento que ficou conhecido como Acordo de Basileia ou Basileia I. O acordo foi ratificado por mais de 00 países e teve como objetivo criar exigências mínimas de capital para serem respeitadas por bancos comerciais. Até 988, os padrões internacionais de requerimento de capital eram baseados na fixação de índices máximos de alavancagem. Depois do acordo, passou a ser baseado em risco.

Os dois principais avanços do segundo encontro em relação ao primeiro foram a introdução do tratamento de risco operacional e a permissão para que as instituições utilizem sistemas de mensuração internos para o cálculo do capital regulamentar para risco de crédito, o que até então era feito somente por meio de abordagem padronizada. Em dezembro de 00 , o Banco Central, por meio do Comunicado n° .7 6, anunciou o cronograma para a implementação das diretrizes da Basileia II no Brasil, posteriormente alterados pelo Comunicado n° 6. 7, de 007. Assim, a partir de 006 foram editadas normas que tratam de orientações e melhores práticas relacionadas à gestão de riscos. Em julho de 008, entraram em vigor as abordagens padronizadas para os riscos de mercado, crédito e operacional. As abordagens avançadas serão implementadas gradualmente: risco de mercado em 009, risco de crédito (IRB) até 0 e risco operacional (AMA) em 0 .

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Recentemente, em razão da crise e da análise de suas possíveis causas, o Comitê de Basileia elaborou um conjunto de documentos que visam fortalecer as diretrizes de Basileia II. Tais documentos tratam primordialmente do risco de mercado, incluindo produtos complexos e ilíquidos, securitizações e exposições a itens fora do balanço das instituições.


Regulamentação do mercado financeiro

Regulamentação do mercado financeiro - Legislação Correlata Legislação

Descrição Formal

Lei nº . 0 , de 09.0 . 005

Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.

Decreto nº . 00, de 5.07. 00

Regulamenta o art. 6º da Lei nº 6. 85, de 7 de dezembro de 976, que dispõe sobre o Mercado de Valores Mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários.

Lei nº 0. 0 , de 0 . . 00

Altera e acrescenta dispositivos na Lei nº 6. 0 , de 5 de dezembro de 976, que dispõe sobre as Sociedades por Aações, e na Lei nº 6. 85, de 7 de dezembro de 976, que dispõe sobre o Mercado de Valores Mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários.

Decreto nº .995, de 0 . . 00

Altera e acresce dispositivos à Lei nº 6. 85, de 7 de dezembro de 976, que dispõe sobre o Mercado de Valores Mobiliários, nas matérias reservadas a decreto.

Lei nº 0. 98, de 6.0 . 00

Dispõe sobre a regulação, fiscalização e supervisão dos Mercados de Títulos ou Contratos de investimento coletivo, e dá outras providências.

MPV .0 - 6, de . 0. 000

Dispõe sobre a regulação, fiscalização e supervisão dos Mercados de Títulos ou Contratos de investimento coletivo, e dá outras providências.

Decreto nº . , de 0 .05. 000

Delega competência ao Ministro de Estado do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior para autorizar o funcionamento no Brasil de empresa ou sociedade estrangeira, na forma prevista nos arts. 59 a 7 do Decreto-Lei nº .6 7, de 6 de setembro de 9 0, mantidos pelo art. 00 da Lei nº 6. 0 , de 5 de dezembro de 976.

DELIBERAÇÃO/MF/CVM Nº 9 - Dispõe sobre o tratamento contábil dos ajustes de ativos e passivos em moeda D.O. DE 0.0 . 999, P. 05 estrangeira.

Lei nº 9.6 , de 0 .0 . 998

Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências.

Lei nº 8. 7, de 8. . 990

Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências.

Del nº . 98, de . . 986

Dispõe sobre mercado de títulos e valores mobiliários incentivados. Comissão de Valores Mobiliários, criada pela Lei 6 85, de 07/ / 976.

Lei nº 7. 9 , de 6.06. 986

Define os crimes contra o sistema financeiro nacional, e dá outras providências. (Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional).

Decreto nº 9 .96 , de 0. . 985

Dispõe sobre a diretoria do Banco Central do Brasil - BACEN.

Lei nº 6.6 6, de 9. . 978

Acrescenta artigos a Lei nº 6. 85, de 7 de dezembro de 976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários.

Lei nº 6. , de 0.06. 977

Altera a Lei nº 6. 85, de 7 de dezembro de 976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários

Lei nº 6. 0 , de 7. . 976

Dispõe sobre as Sociedades por Ações.

Lei nº 6. 85, de 09. . 976

Dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários.

Del nº . 0 , de 07.05. 975

Dispõe sobre a isenção do imposto de renda das sociedades de investimento de cujo capital social participem pessoas físicas ou jurídicas, residentes ou domiciliadas no exterior, regula o regime fiscal dos rendimentos de aplicações em ações dessas sociedades e dá outras providências.

Del nº 57, de .0 . 967

Concede estímulos fiscais a capitalização das empresas; reforça os incentivos a compras de ações; e facilita o pagamento de débitos fiscais. - FUNDO 57.

Lei nº 5.0 5, de 5.06. 966

Dispõe sobre o intercâmbio comercial com o exterior, cria o Conselho Nacional de Comércio Exterior, e dá outras providências.

Lei nº .7 8, de 6.07. 965

Disciplina o mercado de capitais e estabelece medidas para o seu desenvolvimento.

Lei nº .595, de . . 96

Dispõe sobre a Política e as Instituições Monetárias, Bancárias e Creditícias, Cria o Conselho Monetário Nacional e dá outras providências.

Lei nº . 80, de .09. 96

Institui a correção monetária nos contratos imobiliários de interesse social, o sistema financeiro para aquisição da casa própria, cria o Banco Nacional da Habitação (BNH), e Sociedades de Crédito Imobiliário, as Letras Imobiliárias, o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo e dá outras providências. Revista

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