REVISTA MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE 3

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Universidade de Brasília

Faculdade de Ciência da Informação

Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação - UnB

nº 3,Vol. 2, 2013 ISSN 2238-5436


Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação - UnB PPGCINF/FCI/ UnB

REITORIA DA

COMISSÃO EDITORIAL

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

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Andrea Fernandes Considera Celina Kuniyoshi

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CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

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PÓS-GRADUAÇÃO Lillian Alvares

EDITOR-CHEFE Emerson Dionisio Gomes de Oliveira

CONSELHO CONSULTIVO Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira

SECRETARIA

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Lena Vânia Pinheiro Ribeiro Lillian Alvares

PROJETO GRÁFICO/

Luiz Antonio Cruz Souza

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

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Cláudia Neves Lopes

Maria Cristina Oliveira Bruno

Mayara Felix Pierre

Mario de Souza Chagas Mário Moutinho

CAPA

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André Maya Monteiro

Renato Monteiro Athias Tereza Cristina Moletta Scheiner Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses


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Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação - UnB

nº 3,Vol. 2, 2013 ISSN 2238-5436


Correspondências e contribuições devem ser enviadas para: M u s e o l o g i a & I n t e r d i s c i p l i n a r i d a d e Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCInf) Faculdade de Ciência da Informação (FCI) Universidade de Brasília Edifício da Biblioteca Central (BCE) Entrada Leste, Mezanino, Sala 211 Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte, Brasília CEP: 70910-900 E-mail: revistami@unb.br

Todos os direitos reservados A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei no 9.610).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Museologia e interdisciplinaridade: publicação eletrônica do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Universidade de Brasília. Faculdade de Ciência da Informação. – v.2, n.3 (2013) – Brasília: UnB/FCI, 2013v. Semestral Resumo em português e inglês. Disponível no SEER: http://seer.bce.unb.br/index.php/museologia ISSN 2238-5436 1. Museologia. Patrimônio e memória. Artes Visuais. Antropologia. História. Interdisciplinaridade em Museologia. I. Universidade de Brasília. Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Faculdade de Ciência da Informação. CDU: 069.01(051)


SUMÁRIO EDITORIAL Emerson Dionisio Gomes de Oliveira

PÁGINA 09

O OLHAR DO OUTRO: A GESTÃO DE MUSEUS E A SUSTENTABILIDADE NA MUSEOLOGIA Júlio César Bittencourt Francisco Valdir José Morigi

PÁGINA 10

EL MUSEO DE INSTRUMENTOS DEL REAL CONSERVATORIO SUPERIOR DE MÚSICA DE MADRID: UNA PANORÁMICA DE LA COLECCIÓN Esther Burgos Bordonau

PÁGINA 22

QUANDO O ARTISTA TRAMA UMA IMAGINAÇÃO MUSEAL. ANTÔNIO BANDEIRA E A CRIAÇÃO DO MUSEU DE ARTE DA UNIVERSIDADE DO CEARÁ Carolina Ruoso

PÁGINA 31

UMA GUARDIÃ DA TRADIÇÃO: GERALDA ARMOND E AS AÇÕES EDUCATIVAS NO MUSEU MARIANO PROCÓPIO (MINAS GERAIS- BRASIL) Carina Martins Costa

PÁGINA 47

A INOCÊNCIA DO MUSEU: INTERSECÇÕES ENTRE LITERATURA E ARTES VISUAIS Emerson Dionisio Gomes de Oliveira

PÁGINA 59

A TRAJETÓRIA DO ENSINO DA MUSEOLOGIA NO BRASIL Gabrielle Francinne de S.C. Tanus

PÁGINA 76

MUSEU E ARQUIVO COMO LUGARES DE MEMÓRIA Suely Lima de Assis Pinto

PÁGINA 89

CAPA Corpos Informáticos

PÁGINA 103



EDITORIAL Futuros possíveis Emerson Dionisio Gomes de Oliveira O debate sobre o tempo é uma prática fundamental para a compreensão dos principais anseios no campo da Museologia, sobretudo numa publicação aberta aos diferentes campos e saberes que dialogam com o universo museológico, onde distintas percepções sobre a temporalidade colocam-se em tensão e embate. Tomados no conjunto, os artigos apresentados em nossa terceira edição expressam parte dos conflitos ensejados pelas distintas temporalidades percebidas por pesquisadores oriundos da Museologia, da Ciência da Informação, das Artes, da Educação, das Ciências Sociais, da Comunicação e da História. Sobre o presente, Júlio César Bittencourt Francisco,Valdir José Morigi, Gabrielle Tanus e Emerson Dionisio questionam modos, operações e funcionamentos dos processos museológicos em perspectivas que abrangem: problemas socioambientais e o inevitável e necessário diálogo com a comunidade; a criação de cursos de ensino superior, dedicados à formação de museólogos, e suas consequências para a autonomia desta área de conhecimento; a comunicação entre a literatura e as artes visuais contemporâneas em um espaço museológico do Oriente Médio. Em configurações e narrativas próprias, Carolina Ruoso, Esther Burgos Bordonau, Suely Lima de Assis Pinto e Carina Martins Costa acessam e apresentam possibilidades de entendimento sobre o passado. Possibilidades que nos apresentam: a construção de uma identidade brasileira por meio da interpretação poética de um artista - imaginador museal - e da fabricação do patrimônio cultural; a trajetória de um gestor na constituição de uma coleção e um museu e sua dimensão pedagógica; o manuseio da cultural material e a representação de uma coleção na Espanha; além de uma profícua discussão sobre a dimensão memorial do arquivo. Trabalhos instaurados no devir. Abertos a interpretação dos nossos leitores, em futuros possíveis, que, novamente, tramam pelo amadurecimento da pesquisa plural da prática museológica contemporânea. Horizonte ampliado com a entrevista da artista e pesquisadora Bia Medeiros e os embates entre arte, público, museus e memória. Participação dedicada a partilhar e compartilhar saberes e a construir bases sólidas para o conhecimento interdisciplinar.


O OLHAR DO OUTRO: A GESTÃO DE MUSEUS E A SUSTENTABILIDADE NA MUSEOLOGIA

Júlio César Bittencourt Francisco1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul Valdir José Morigi2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO: Reflete sobre a prática museológica e o papel da Gestão de Museus no século XXI.Os Museus através de seus acervos, espécimes e equipamentos têm a missão de divulgar a cultura, comunicar os bens da memória social, além de educar e entreter os cidadãos. Entretanto, essas atividades essenciais precisam ser repensadas, pois já não satisfazem as necessidades dos novos tempos. O estudo propõe a construção do Plano Museológico como prática de Gestão de Museus a partir da Política Nacional de Museus e da análise de dois manuais de gestão museal e de programas socioambientais em Museus brasileiros. Conclui-se que a prática museológica também deve fomentar a participação ativa da comunidade em questões socioambientais e do exercício pleno da cidadania, colocando-se como instituição que possibilita a reflexividade dos sujeitos diante da realidade.

ABSTRACT: Reflect on Museum management practices and its role in the XXI century. The Museums through their assets, specimens and equipment have the mission of stimulate appreciation of culture, represent the broadest spectrum of human achievement at the highest level of quality, as well as educate and entertain the public. However, these essential activities need to be rethought,because it alone no longer meets the needs of changing times. The study proposes the designing of Museum Planning chart to be applied in situations and examples of social and environmental programs in Brazilian Museums. We conclude that Museum practice should also encourage active community participation in environmental issues and the full exercise of citizenship, placing itself as an institution that enables the reflexivity of the community members before reality.

PALAVRAS-CHAVES: Museologia. Gestão museal. Sustentabilidade. Práticas socioambientais. Cidadania.

KEY-WORDS: Museology. Management. Sustainability. Community. Citizenship.

1 Professor Assistente no Departamento de Ciência da Informação, Fabico/UFRGS, Professor de Museologia. Mestre em Memória Social e Documento. PPGMS/UNIRIO. 2 Professor Adjunto II do Departamento de Ciências da Informação, Fabico/UFRGS. Professor do programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação. Doutor em sociologia, FFLCH/USP.


Júlio César Bittencourt Francisco,Valdir José Morigi

1.Introdução Os Museus têm se tornado instituições de grande sucesso em todo mundo contemporâneo. Seu crescimento se dá por diversos fatores, entre eles, está o novo papel das instituições museológicas na educação, mas também por servir melhor as necessidades da sociedade. Destaca-se ainda a expansão das coleções, quer seja através de doações ou de fatos históricos, que, ao se tornarem memória, vem sendo valorizados pela sociedade; como a imigração, para citar apenas um exemplo. O crescimento dos Museus se deve ao aumento das verbas através de isenção de impostos de particulares, mas também pela atenção social pública, uma vez que os objetivos dos Museus atendem questões políticas.Aqui nos referimos a direitos difusos, ou seja, aquela geração de direitos que apareceu depois da II Grande Guerra e que foram consagrados a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Assim, em seu artigo 27 afirma: Toda pessoa tem direito de tomar parte livremente na vida cultural e da comunidade e desfrutar das artes e a participar do progresso científico e dos benefícios que deles resultem.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por sua vez, garante esses mesmos direitos difusos especialmente em seus artigos 215 e 216 que tratam da cultura e do patrimônio cultural brasileiro, respectivamente, entretanto, a nossa Constituição inova ao destacar um capítulo inteiro as questões ambientais sintetizadas seu artigo 225, que diz: “Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial a sadia qualidade de vida [...]”. A multiplicação e diversificação que se observa através do crescimento dos Museus, [...] não se devem a questões de marketing simplesmente, mas por um anseio popular profundo de prestigiar e participar da produção cultural da sociedade, que são motivadas pela vontade de conservar os vestígios de uma sociedade em mudanças. (HERNANDÉZ, 1998, p. 287).

Segundo Cury, (2009, p. 2) o “Museu deve resistir também a concepção equivocada de desenvolvimento distanciando-o de interesses de segmentação do mercado que buscam o lucro em detrimento de valores sociais e culturais.” O Museu é então ‘o olhar do outro’ sem amarras como quem vê um quadro pelo lado de fora. Ele é um espaço privilegiado em termos de ferramentas eficazes para propor mudanças, mas também para educar com vistas aos grandes desafios que se impõe neste início de milênio. 2 A Política Nacional de Museus Durante a gestão do Ministério da Cultura entre 2003 e 2006, foram desenhadas as primeiras iniciativas práticas para a política nacional voltada para o setor museológico brasileiro. Em Maio de 2003 foi apresentado o caderno contendo a Política Nacional de Museus – Memória e Cidadania1. O objetivo desta política é: 1 INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. Política Nacional de Museus. Brasília, 2003. Disponível em: <www.Museus.gov.br/sbm/downloads/Politica_Nacional_de_520Museus.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2013.

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O olhar do outro: a gestão de museus e a sustentabilidade na museologia

Promover a valorização, a preservação e a fruição do patrimônio cultural brasileiro, considerado como um dos dispositivos de inclusão social e cidadania, por meio de desenvolvimento e da revitalização das instituições museológicas existentes [...] (IBRAM, 2003).

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A Política Nacional de Museus apresenta sete pilares de sustentação que estruturam ações a serem desenvolvidas, sendo que a primeira delas compreende a gestão e configuração de processos museológicos. As outras seis são: a democratização e acesso aos bens culturais, formação de recursos humanos, informatização de Museus, modernização da infraestrutura, financiamento e aquisição de acervos e gestão de acervos museológicos. Para consolidar esta política pública o Governo Federal criou o Sistema Brasileiro de Museus, que é o órgão responsável pela gestão da Política Nacional de Museus. O órgão gestor tem sua composição formada por membros da sociedade civil e do setor governamental, e tem como objetivo propor as diretrizes e as ações para o setor museológico. A entidade funciona através de um formato democrático que garante o debate e permite uma ampla participação da sociedade civil organizada em suas decisões. Assim afirma Storino, (2007, p. 55): Gestores do Instituto Brasileiro de Museus/IBRAM apontam para a necessidade de se construir na atualidade, modelos democráticos de gestão cultural. Um dos desafios atuais é, segundo eles, o encontro de um ponto de equilíbrio dinâmico, na qual a participação da iniciativa privada, das comunidades populares e dos movimentos sociais não implique na exoneração do Estado no papel que lhe cabe na preservação da memória. [...].

No Brasil, se apresenta como modelo de Gestão de Museus as ações contidas no Plano Museológico, que retirou conceitos e metodologia do Museums & Galleries Commission (MGC), um órgão britânico criado em 1931. (DAVIES, 2001) Em 2006 o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional / IPHAN publicou a Portaria Normativa nº 01, assinada pelo Presidente do órgão, sobre a obrigatoriedade de elaboração do Plano Museológico nos Museus do IPHAN: “O ato é inovador no campo museológico e servirá de base para que outros Museus, não vinculados ao Iphan, possam adotá-lo para elaboração de seus próprios planos museológicos” (BRASIL, 2006). Em Janeiro de 2009, a Lei 11.9042, que institui o Estatuto de Museus, estendeu essa obrigatoriedade para todos os Museus públicos brasileiros. Como expõe Silvana Cançado, da Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais: [...] a Seção III do Estatuto de Museus, artigos 44 a 47, é dedicada ao Plano Museológico, estruturando-o e estabelecendo seu conteúdo. Essa Lei encontra-se em pleno vigor e deverá nortear todos os procedimentos afetos às instituições museológicas no Brasil (CANÇADO, 2010, p. 9).

O documento apresenta os procedimentos para a organização e gestão dos Museus públicos brasileiros, além de detalhar as diretrizes e procedimentos para elaboração do Plano Museológico, indicando inclusive, quais programas ele deve conter e está dividido em três partes, a saber: 2 Texto completo da Lei disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/ L11904.htm>. Acesso em: 15 jan. 2009.


Júlio César Bittencourt Francisco,Valdir José Morigi

Introdução: Questões da instituição, histórico, regimento interno, metas e missão. Programas:A que se dispõe a instituição, através de que meios. Gestão, finanças, arquitetura, aquisição, conservação, segurança, pesquisa, educação e cultura. Projeto de gestão: Como se pretende gerir o patrimônio e o acervo: orçamento e também como fazer para conservar e exibir. Analisando as informações contidas no Plano Museológico, quando detalhadas através de suas diversas ações, é possível adaptar o planejamento para toda a diversidade, variedade e a ampla tipologia que os Museus e centros culturais assumem na prática. As informações sugerem uma reestruturação por meio de um roteiro administrativo para Museus já implantados ou em funcionamento, mas também para aqueles em fase de projeto. A primeira parte compreende desde a formulação da missão e mandato, mas também a formatação jurídica do Museu, seu estatuto e regimento interno, tipo institucional de governança, código de ética entre outras formalidades. Estes conteúdos devem estar conectados com a realidade e a prática dos Museus através de um constante exercício de diagnóstico e avaliação. Esta prática torna-se essencial, em instituições que lidam com Patrimônio Cultural, exposições, pesquisa, coleções, documentação, aquisições e descarte de acervo, entre outras funções típicas de Museus. É através da segunda parte do Plano Museológico, dedicado aos programas, que se podem ordenar as atuações em cada âmbito do Museu, que inclui a relação das necessidades para o cumprimento de suas funções que se concretizarão em diferentes projetos.Também deve compor a pauta social do Museu ao incluir entre um de seus programas as questões socioambientais e de cidadania. Essas temáticas não podem ser esquecidas quando tratamos de Gestão de Museus. Tais questões estão na agenda social e necessitam de encaminhamento e debate entre a comunidade universitária e a sociedade. As questões socioambientais que se impõe na agenda política e social no mundo contemporâneo, quando não encaminhadas, têm trazido consequências devastadoras a natureza e os efeitos da falta de articulação entre as questões de educação ambiental podem causar danos a todo o sistema social. De acordo com Álvares (2012, p. 12): Aos Museólogos, cabe abraçar as dinâmicas da mudança social, acentuar a voz do nacionalismo histórico e contemporâneo, remover homogeneidade e pontos de vista único, rejeitar a exclusão, incentivar a complexidade e o pluralismo, tornando-o local para o diálogo da identidade nacional e da inclusão social. Aos professores de Museologia, cabe a formação obrigatória também do cidadão.

A terceira parte do Plano Museológico é dedicada aos projetos. Esses projetos são derivativos dos programas e se caracterizam por serem documentos executáveis que possibilitam a materialização das especificações técnicas reconhecidas nos diferentes programas. Nos projetos são definidas, descritas e propostas as soluções ajustadas para as necessidades das instituições no cumprimento de suas missões. Assim, conclui-se que os Museus devem considerar a inserção em seu Plano Museológico, desde a missão e objetivos, passando pelos programas e projetos uma especial atenção as questões socioambientais. Desta forma eles se colocam em consonâncias com as demandas dos novos tempos e se mantêm na vanguarda das mudanças sociais.

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O olhar do outro: a gestão de museus e a sustentabilidade na museologia

3 Processos e questões: a gestão sustentável Para Yudelson (2008, p. 55):

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[...] gestão sustentável é a capacidade de gerenciar um empreendimento por meio de processos que valorizem e aprimorem capitais naturais, financeiros e humanos, conciliando diferenças e pontos de vista díspares em prol de objetivos comuns.

Mas, afinal, a que se refere o conceito de sustentabilidade? E, como podemos reconhecer um empreendimento culturalmente sustentável? Apesar das controvérsias em torno desta questão, segundo as Nações Unidas, um empreendimento para ser sustentável deve ser: socialmente “justo”, economicamente viável e ambientalmente aceitável. De acordo com Nascimento (2012, p. 8): Nos embates ocorridos nas reuniões de Estocolmo (1972) e Rio (1992), nasce a noção de que o desenvolvimento tem, além de um cerceamento ambiental, uma dimensão social. Nessa, está contida a ideia de que a pobreza é provocadora de agressões ambientais e, por isso, a sustentabilidade deve contemplar a equidade social e a qualidade de vida dessa geração e das próximas. A solidariedade com as próximas gerações introduz, de forma transversal, a dimensão ética.

A sustentabilidade encontra-se na interseção entre essas três forças que estão presentes em nossas realidades: a social, a econômica e a ambiental. No caso de empreendimentos culturais como Museus, exposições de arte, históricas ou científicas, sítios culturais em suas mais diversas formas, também serão sustentáveis quando se introduz um quarto elemento na fórmula acima mencionada. “A disseminação da cultura é justamente o quarto elemento, que juntamente como o econômico, o social e o ambiental vão possibilitar que um empreendimento seja culturalmente sustentável” (LORD, 2009, p. 22). É através de práticas e exemplos que promovam a consciência e o desenvolvimento cultural das pessoas que se pode evitar que as atividades humanas não irão se voltar contra a própria sociedade no futuro. Um exemplo disso é a falta de critério na reciclagem de resíduos sólidos que infestam o meio ambiente ou na emissão, muitas vezes desnecessária, de gases nocivos como o dióxido de carbono na atmosfera. 3.1 A sustentabilidade econômica Como coloca Rendeiro, (2011, p. 6) a sustentabilidade econômica se aplica no Museu através de recursos financeiros que é sempre limitado. O atual estado de carência financeira que afeta os Museus nacionais obriga a que se reformulem os modelos de gestão vigentes. Nesse sentido, tendo em conta as medidas de austeridade, os cortes orçamentais, as reestruturações na administração central, entre outros fatores que perturbam o setor cultural e que colocam os Museus nacionais nas mais críticas condições de sobrevivência, torna-se premente que se estabeleçam linhas de atuação que os reintegrem no desenvolvimento da sua missão.

Gastar os recursos disponíveis de forma eficaz é vital para manter a transparência e a confiança dos patrocinadores, do público e do governo. O Museu


Júlio César Bittencourt Francisco,Valdir José Morigi

deve investir cada centavo que ganha em seu ‘próprio’ benefício, que é coletivo. Nesse sentido, uma gestão pautada em princípios éticos, através de escolhas bem feitas, planejamento cuidadoso e atenção ambiental podem garantir seu crescimento e mais importante; manter-se no tempo. Simples ações de gestão que vão desde a escolha de matérias economicamente eficientes até a implantação de sistemas de monitoramento contra desperdícios podem ajudar na sustentabilidade econômica do Museu. 3.2 A sustentabilidade socioambiental A sustentabilidade ambiental é um dos assuntos que exercem grande pressão global na atualidade; os Museus devem estimular discussões sobre educação ambiental pública e dar o exemplo de práticas ambientais corretas. O meio ambiente no qual realizamos nossas atividades cotidianas, por sua vez também exerce impacto em cada aspecto da cultura humana, da natureza e da história. Cada Museu, independentemente de sua especialidade, através da sua programação pode contribuir no processo reflexivo em relação à sustentabilidade e ao nosso futuro no planeta. Como afirma Correia (2012, p. 87): O desenvolvimento sustentável tem se tornado um desafio para toda e qualquer atividade que tem compromisso socioambiental. A sustentabilidade ambiental consiste em um novo paradigma que deve ser alcançado, sob pena de os custos ambientais serem tão elevados para a sociedade e muitas atividades humanas não poderem persistir num futuro muito próximo. Todos nós dependemos dos recursos naturais e ambientais, e, portanto, nesta perspectiva temos de prolongar a vida útil desses recursos.

A sustentabilidade social é o que dá ânimo ao Museu; especialmente se o trabalho realizado nele repercutir nas ações de cada membro da comunidade, tornando um sujeito participativo e coresponsável pela construção da coletividade. Entretanto, é necessário trabalhar na direção de questionar estilos de vida baseados em padrões do consumismo e do desperdício. Uma sociedade sustentável que promova a qualidade de vida dos seus cidadãos necessita estar vigilante aos processos de gestão da produção, circulação, consumo e destino dos resíduos.A participação comunitária na resolução e encaminhamento de problemas socioambientais possibilita a compreensão de que as práticas do passado são capazes de definir o presente e estas redefinirem as gerações do futuro. 3.3 A sustentabilidade cultural No mundo contemporâneo, o papel do Museu não se limita a ser o “guardião” da herança cultural do passado. O Museu é um espaço de reflexão, discussão, de debates sobre as questões que nos inquietam no presente e, ao mesmo tempo, pode servir de ‘abrigo’ a elas, transpassando os tempos, auxiliando os cidadãos construírem um mundo mais sustentável.Assim, pensar na gestão de um Museu significa repensar práticas, rever ações, debater, questionar, mobilizar e, sobretudo, participar socialmente da criação de uma cultura para construção de um mundo mais sustentável. Um exemplo de Museu e sustentabilidade no século XXI é o projeto de construção e gestão do Museu de Imagem e do Som – MIS, que está sendo

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O olhar do outro: a gestão de museus e a sustentabilidade na museologia

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edificado no Rio de Janeiro. Segundo os planos de implantação do MIS, ele já vai nascer com um projeto arquitetônico que leva em conta as questões ambientais e de sustentabilidade. Seu objetivo é conquistar de uma Organização não Governamental (ONG) a certificação LEED (Leadership in Energy and Environmental Design) ouro, ou seja, bem acima das metas mínimas necessárias para obtenção desta certificação ambiental internacional de sustentabilidade3. O MIS/RJ manterá diálogo constante com a comunidade do entorno do Museu, através de uma sala exclusiva para este fim. Também está previsto um programa permanente de palestras periódicas com o público e com os funcionários do Museu sobre o conceito de sustentabilidade e educação ambiental. 4 Gestão museal: o plano museológico e os manuais de gestão Cotejando a produção bibliografia disponível para a didática e o ensino da Gestão museológica, percebemos que há poucos trabalhos, a maioria em forma de manuais cujos autores são europeus ou norte-americanos. No entanto, destacamos dois títulos que são dignos de referencia. O primeiro da professora da Universidade Complutense de Madrid, Francisca Hernández ‘Manual de Museologia’. Trata-se de um manual de 300 páginas que abrange todos os aspectos museológicos que vão desde a história dos Museus, passando pela arquitetura deles, exposições museológicas, ações educativas em Museus, conservação e proteção de bens culturais, programas de Museus até a disciplina que nos interessa, e que pela autora foi chamado de “Administração, Gestão e Organização de Museus” (tradução dos autores). No capítulo correspondente a Gestão de Museus o manual trata das características das administrações a partir dos tipos de instituições espanholas: Museus estatais, particulares, eclesiásticos e fundações mantenedoras com suas características diferenciadas, para finalmente entrar especificamente na área de Gestão de Museus. Observa-se entre as páginas 101 a 113, como são abordados assuntos inerentes as funções de um Museu como as áreas de conservação e pesquisa, difusão e administração, direção e os diversos profissionais que trabalham dentro de uma instituição museológica; restauradores, conservadores, Museólogos entre outros. A autora discorre sobre um tema que julgamos interessante para a área de gestão, o qual chamou de: mudanças sociais e as novas perspectivas da Museologia. Neste capítulo são tratados os seguintes temas como a relação aos Museus: A civilização do ócio, a cultura de massas, marketing, recursos e economia, novas tecnologias aplicadas, e o Museu numa sociedade pós-moderna. Outro título interessante é o Manual of Museum Management4 de Gail e Barry Lord. O casal canadense atua no ramo da Museologia por mais de quatro décadas e são proprietários da empresa Lord Cultural Resources que projeta, constrói, equipa, treina pessoal e administra Museus por todos os continentes. O Manual de Gestão Museológica (tradução livre), em sua segunda edição de 3 No projeto está previsto uma economia de energia de 26%, e de água em 35% através de sistemas eficientes como captação de luz do meio ambiente e de energia solar, reaproveitamento das águas utilizadas nos serviços do Museu, uso de lâmpadas e luminárias de alta eficiência, sistema de monitoramento contra vazamentos e desperdício de energia e iluminação inteligente nas dependências do Museu. SECRETARIA DE CULTURA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Site. Disponível em: <http://www.cultura.rj.gov.br/ espaco/Museu-da-imagem-e-do-som-mis>. Acesso em: 14 mar. 2013. 4 O livro foi traduzido para o espanhol e publicado na Espanha. Um dos autores deste artigo, por iniciativa própria, traduziu a obra do original em inglês, sendo que, atualmente encontra-se em fase de negociação com os autores canadenses para uma edição em português no Brasil.


Júlio César Bittencourt Francisco,Valdir José Morigi

2009, tem 330 páginas dedicadas exclusivamente a Gestão de Museus. O livro está dividido em três partes: A primeira chamada de ‘Por quê?’ e abrange os aspectos dos propósitos da gestão, da missão e do papel da gestão de um Museu. A segunda parte chamada de ‘Quem?’ trata da estrutura organizacional do Museu, de seus diversos modos de governança, do conselho, do papel dos voluntários e do papel da sociedade civil no Museu. A terceira e última parte, chamada de ‘Como?’, abrange os métodos de gestão e as suas diversas gerências: coleções, programas públicos, arquitetura e finanças. 4.1 O papel da museologia e dos museólogos A abertura de mais de uma dezena de cursos de Museologia no Brasil, a partir de 2008, vem mudar o quadro da oferta de profissionais no mercado de trabalho dos Museus. As universidades através da criação dos cursos de Museologia, já estão capacitando profissionais para atuar nas centenas de Museus brasileiros, que até então, não podiam contar com a colaboração desses profissionais, uma vez que os dois únicos cursos que havia5, não poderiam dar conta desta demanda em nível nacional e nem tão pouco em nível regional6. A nova realidade liga-se a formação dos Museólogos, passa pelos currículos das escolas de Museologia, e também pela questão de onde se inserem os cursos dentro das universidades brasileiras. Neste sentido, a formação do Museólogo dialoga com diferentes e variados corpus de saberes que vão desde a Ciência da Informação, da História, das Artes Visuais, da Antropologia, da Administração, da Geografia e da Biologia. De acordo com Álvares, (2012, p. 43). Os Museus e, por conseguinte, os Museólogos tem o notável dever de representar a identidade nacional. Os debates sobre o assunto realçam novos desafios para a profissão em torno da questão, dentre eles, a promoção da integração nacional dentro da pluralidade e diversidade de identidades regionais.

Como um campo de saber multidisciplinar por natureza, a Museologia e as práticas dos novos Museólogos, podem criar tensões com outros profissionais de diferentes áreas e que realizam atividades a mais tempo do que eles em diversos segmentos dentro dos Museus. Esses profissionais estão em posições nas quais dominam com natural competência, e o desafio dos egressos dos novos cursos de Museologia tem um efeito positivo. A colocação de novos Museólogos nos quadros dos Museus vai exigir deles a conquista de espaços pelo mérito, mas também através dos conhecimentos e aprendizados que lhes foram comunicados em seus respectivos cursos. Isto traz novas inquietações dentro das universidades e neste contexto, mostra a necessidade de abertura e diálogo com áreas já consolidadas no espaço acadêmico sobre a conveniência e o lugar do curso de Museologia, ao lado ou vinculado a esta ou aquela área de conhecimento. Assim afirma Stuart, (2012, p. 63) Pontos de vistas variados; diversidade; estímulo ao senso crítico; abertura; respeito a diferentes opiniões; confronto de ideias; contextualização cultu5 Rio de Janeiro – UNIRIO e Bahia – UFBA. 6 É inegável constatar que ambos os cursos mais antigos sofreram o impacto desta ‘avalanche’ de novos cursos. Apesar de possíveis resistências, uma série de novas ideias trazidas por intelectuais, professores, pesquisadores e cientistas da informação, que atuam nesses novos cursos, dinamizaram o que estava estagnado e uma profícua discussão que envolve os currículos dos cursos de Museologia está acontecendo atualmente na maioria das universidades onde há este curso de graduação.

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O olhar do outro: a gestão de museus e a sustentabilidade na museologia

ral e histórica; olhares multidisciplinares; consciência cidadã; estas e outras estratégias e valores devem estar presentes nas exposições dos Museus caso queiramos que estes espaços sejam promotores da cidadania.

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Há grande diversidade das tarefas conduzidas nas dependências de um Museu, por um número de variados profissionais. Arquitetos podem organizar exposições não só do ponto de vista técnico estrutural, mas também enquanto desenhistas (planejadores) de exposições, ou na museografia dessas exposições. Historiadores e antropólogos encontram colocação junto às coleções dos Museus e produzindo planos interpretativos para exposições, Sociólogos estão aptos a realizar e analisar pesquisas de público em Museus, Administradores são bons gestores, mas também podem preparar processos de captação de recursos. Historiadores da Arte, Biólogos e Arqueólogos são curadores de exposições e os Educadores os responsáveis pelos projetos pedagógicos dos Museus. Todas as áreas possibilitam a criação de um espaço para a colaboração de Museólogos que podem enriquecer o trabalho e a visão de todos esses profissionais. Há poucos trabalhos publicados sobre Gestão de Museus, especialmente se considerarmos a abordagem transdisciplinar. Obviamente refletir sobre processos de gestão é, em si, uma tarefa complexa, e de Museus, torna-se mais complexa, com suas funções muito específicas. Reunir informações técnicas em lições acadêmicas requer sistematização e aproximação anterior a alguns conceitos, assim como a necessidade de articular de forma didática e compreensiva essas duas ciências; Administração e Museologia. Este é o desafio que se impõe. Entre os processos de gestão de um Museu, a prática da avaliação de suas atividades e funções é um elemento indispensável porque proporciona transparência e participação democrática de todos os envolvidos; gestores, colaboradores e o público. Dessa forma ensina Cury (2009, p. 02) “Relacionar-se com o patrimônio é um processo, é um exercício democrático sistemático é um processo educacional no seu sentido amplo, mas profundo”. A avaliação se dá de forma interna e externa no âmbito do Museu. A análise interna ocorre em nível de cada colaborador que ocupa uma função específica em um determinado setor do Museu. A avaliação visa promover um diagnóstico da eficiência e da eficácia de cada um que está inserido no quadro funcional da instituição. A avaliação serve para encontrar os problemas e trabalhar suas soluções, fixar estratégias de ações para o efetivo encontro das metas de longo prazo, que foram definidas e controlar os cumprimentos dos diversos objetivos, dentro dos prazos que foram previamente estipulados. A avaliação externa se dá em relação a imagem que o Museu projeta perante a comunidade de uma maneira geral, frequentadores avulsos, grupos de turistas, nacionais e estrangeiros, professores e estudantes de todos os níveis, além de pesquisadores e cientistas. A avaliação externa mede o grau de satisfação de cada um desses grupos de pessoas separadamente e o sucesso do empreendimento museal em suas visões e, em relação a missão da instituição. De acordo com Lord, (2009, p. 22) a principal função do gestor de Museus é “facilitar a circulação de decisões”.Tais decisões devem visar o cumprimento da missão da casa, que por sua vez devem estar em consonância com as políticas traçadas para ela. O gestor é o principal incentivador do cumprimento da missão do Museu junto aos colaboradores e visitantes, sendo que, a sua inspiração reflete no dia a dia da instituição, interna e externamente, em seus diversos setores, tornando o gestor uma liderança que todos no Museu naturalmente seguem. Conforme Lord (2009, p. 23):


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É parte das atribuições do gestor de Museus comunicar o mandato da instituição aos colaboradores e ao público em geral. É importante que todos tenham consciência plena dos limites deste mandato, principalmente em relação a outras instituições, inclusive a universidade7.

Isso é importante para que o Museu conheça bem o seu objeto e evite perder o próprio foco, entrando no campo de outro Museu ou instituição, mas também para que cada um dos colaboradores saiba exatamente sua função e responsabilidades dentro deste quadro. Para Lord (2009, p. 24), o modo como se avalia o gestor é simples; [...] deve-se questionar se o gestor está ou não facilitando a circulação de decisões para que se cumpra a missão do Museu, e se ele está ou não comunicando bem o mandato do Museu à todos.

Assim, segundo o mesmo autor, (LORD, 2009, p. 25) é tarefa do gestor é: “[...] controlar o cumprimento das grandes metas do Museu, dentro de um orçamento e calendário de objetivos menores.” Para isso ele deve: avaliar a eficiência e a eficácia do pessoal do Museu em relação ao cumprimento das metas estabelecidas, e o esforço que cada um dos colaboradores realiza para que tais metas sejam cumpridas dentro do tempo estabelecido, levando em conta o espaço que cada um ocupa (que no Museu tende a ser pequeno) e a produtividade em relação as suas tarefas. Assim descreve Lord, (2009, p. 26): Eficácia: Mede a extensão na qual os esforços do Museu encontram o resultado pretendido, e que deveriam estar quantificados o máximo possível em detalhes no Plano Museológico para aquela função específica. Eficiência: Mede o efeito em relação ao esforço desprendido – em pessoas/horas, em dinheiro, em espaço (que são raros nos Museus) ou em uso de equipamento. O termo custo-eficácia é usado muitas vezes para descrever eficiência em termos financeiros: gente-eficiência ou espaço-eficiência são também usados para descrever eficiência. (Tradução e grifos dos autores)

O autor canadense (LORD, 2009, p. 28) pondera que nos últimos anos [...] os Museus têm se tornando mais alinhados com as instituições da sociedade civil em suas diversas fontes de financiamentos pelas comunidades, patrocinadores e mecenatos, públicos e privados.

Isso, segundo ele, desafia a ideia de que os Museus devem ser avaliados apenas por suas funções profissionais, mas que (LORD, 2009, p. 29): [...] existe uma forte tendência de se avaliar o Museu em termos dos seus resultados, mas também pela contribuição para com a sociedade de forma geral.

E conclui relatando que (LORD, 2009, p. 30): [...] no Reino Unido esta avaliação se dá em termos de critério de inclusão social enquanto na América do Norte há uma tendência de se avaliar os programas museológicos e suas coleções em termos de diversidade a quem servem e representam, mas que, em ambos os casos, a avaliação se dá em termos de resultados sociais.

7 Alguns Museus universitários têm entre suas funções a pesquisa de ponta, porém os Museus que não são vinculados a academia, segundos os autores (p.23), devem estar limitados aos conhecimentos reconhecidos e transmitidos por ela, ou caso seja possível, encaminhar suas pesquisas através das universidades.

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O olhar do outro: a gestão de museus e a sustentabilidade na museologia

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No âmbito do Plano Museológico o exercício de avaliação também é realizado de maneira interna e externa, mas também de forma coletiva pelos colaboradores em seus diversos setores, juntamente com as lideranças da Gestão do Museu. Na prática é realizado um diagnóstico que avalia e leva em conta o estado atual do Museu em relação as suas metas. O diagnóstico articula as seguintes variáveis: Pontos fortes, Pontos fracos, Oportunidades e Ameaças. (conhecido na administração como análise SWOT – Strong and Weak points, Oportunities and Treats). 5 Considerações finais Assim, tomou lugar no país um amplo debate sobre o papel da Museologia contemporânea, tendo os Museus como agentes de inclusão cultural, de afirmação de identidades de grupos sociais, de reconhecimento da diversidade e de desenvolvimento econômico aliado às questões da sustentabilidade. As discussões sobre a sustentabilidade socioambientais tornaram-se urgentes e dependem da educação para o meio ambiente, tanto para crianças como para adultos serem agentes de mudanças e compreenderem melhor o complexo mundo que lhes cercam. É neste sentido que o Museu contemporâneo deve se inserir, utilizando suas ferramentas de comunicação, informação, educação e entretenimento para proporcionar o entendimento e uma consciência social, por exemplo: da fragilidade da natureza e dos recursos não renováveis diante de um mundo cheio de contradições e que sofre pressões, até certo ponto legítimas para uma prática equivocada de um consumismo desenfreado e nefasto ao próprio cidadão. O Museu pode trazer diferentes olhares e contrapontos sobre as questões socioambientais, uma vez que é relativamente ‘livre’ de pressões comerciais e pode proporcionar a população uma visão realista da necessidade das comunidades e consumidores, que, ao se articularem em torno do exercício organizado da cidadania, exigir tanto das empresas quanto do poder público, providências para que as gerações futuras não sofram as piores consequências de seus atos que são praticados impunemente e sem a menor consciência de suas consequenciais socioambientais na atualidade. Desta maneira, inserido no Museu junto a outros profissionais de diferentes áreas, que o Museólogo passa a participar de uma ampla rede de saberes, ganhando força para aquisição de uma identidade própria e uma prática coerente frente a outras disciplinas acadêmicas já consolidadas. É possível que o Museu contemporâneo seja o maior exemplo de multidisciplinaridade em um mundo informatizado e digital. É nos Museus, nas bibliotecas e nos arquivos que se encontram os registros e as memórias das diversas ciências. Neles se exibem, guardam e comunicam os avanços científicos e culturais e suas apropriações podem fazer a diferença para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. A prática museológica também deve fomentar a participação ativa da comunidade em questões socioambientais e do exercício pleno da cidadania, colocando-se como instituição que possibilita a reflexividade dos sujeitos diante da realidade. Assim o Museólogo traz, em fim, para o Museu, um certo ‘olhar do outro’ que é apenas mais um ponto de vista, mas que pode auxiliar na compreensão e nas diferentes necessidades de uma sociedade que respeita a diversidade.


Júlio César Bittencourt Francisco,Valdir José Morigi

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Artigo recebido em fevereiro de 2013. Aprovado em março de 2013

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EL MUSEO DE INSTRUMENTOS DEL REAL CONSERVATORIO SUPERIOR DE MÚSICA DE MADRID: UNA PANORÁMICA DE LA COLECCIÓN Esther Burgos Bordonau Facultad de Ciencias de la Documentación. Universidad Complutense de Madrid

RESUMEN: El artículo trata sobre la colección de instrumentos musicales que custodia el Real Conservatorio Superior de Música de Madrid desde sus orígenes. A pesar de la larga historia del Conservatorio como institución, la existencia del museo es bastante reciente. Se presenta un recorrido por las distintas salas del museo dando noticia de los diferentes instrumentos, cuadros, documentos y otros objetos allí expuestos así como los aspectos más sobresalientes de la colección.

ABSTRACT: The paper deals with the collection of musical instruments kept in the Real Conservatorio Superior de Música de Madrid from its origin. Although the Conservatory, as musical institution, has a long tradition, the history of this museum is quite recent. A walk around the different spaces of the museum is presented informing about the instruments, pictures, documents and other kind of relevant objects shown there, as well as the most interesting aspects of the collection.

PALABRAS-CLAVE: Conservatorio. Museo. Instrumentos musicales.

KEY-WORDS: Conservatory. Museum. Musical instruments.


Esther Burgos Bordonau

Introducción El Real Conservatorio Superior de Música de Madrid se creó en 1830 aunque su fundación no se llevó a término hasta el año de 18311. En esas fechas, España no contaba aún con un centro reglado de enseñanza de la música como muchas de las capitales europeas y se hacía imprescindible dotar a la capital de un Conservatorio oficial. La impulsora y promotora de dicha institución fue la propia reina María Cristina, última esposa de Fernando VII, que provenía de Nápoles, ciudad que por aquel entonces ya contaba con varios centros de enseñanza musical. María Cristina no sólo tocaba varios instrumentos (el arpa entre otros) sino que además era cantante. La puesta en marcha del Conservatorio vino de la mano del que fuera su primer director, el cantante italiano Francesco Piermarini. Aunque diversas informaciones y documentos avalan, por ejemplo, que en uno de los múltiples traslados de sede que tuvo el Conservatorio se cambiaron de lugar algunos instrumentos musicales2.También sabemos que la colección fue haciéndose durante muchos años gracias a compras que el centro hacía para el uso de la institución. Dichas adquisiciones quedan patentes en los inventarios de los años 1843, 1867, 1891, 1925, 1940, 1946 al 59, 1962, 1974, 1980-81-82, 1984 y 1989, siendo especialmente reseñable el realizado por Cristina Bordás y Beryl Kenyon en 1989-1990. Los inventarios mencionan asimismo que se hicieron adquisiciones de instrumentos, pero no se puede hacer un seguimiento específico de cada pieza que se describe, pues muchas se perdieron o no coinciden exactamente con lo que conserva el museo en la actualidad. Además de estas fuentes documentales, aquellos inventarios que aparecían en las memorias elaboradas para las exposiciones universales, también aportaron datos de interés. Los índices de Reales Órdenes así como los expedientes generales, discursos inaugurales, memorias o anuarios fueron otras fuentes fidedignas. Pero hubo otras aportaciones interesantes durante el siglo XX, como la famosa donación del violín Stradivarius de Pablo Sarasate, pieza estrella del museo de la que más adelante hablaremos, y otras donaciones de profesores y particulares3. Siempre que el presupuesto lo permitía, el Conservatorio compraba instrumentos para su uso en las aulas, aunque nada entonces hacía presagiar que acabarían convirtiéndose en las piezas de un pequeño museo, ya a comienzos del siglo XX y con el célebre Tomás Bretón al frente del Conservatorio. Será entonces cuando el término “museo artístico” sirva para referirse a todo el conjunto de instrumentos y de otros objetos de arte que poseía la institución y que se hallaban en sus distintas estancias. El actual museo de instrumentos del Real Conservatorio de Música de Madrid no es un museo al uso, es decir, no sigue los patrones estándares de cualquier otra institución que responda a este nombre. En realidad, se trata más bien de una “colección” de objetos, fundamentalmente instrumentos de música. El museo ocupa una serie de salas, especialmente acondicionadas, dentro de un estableci1 Real Orden de 15 de julio de 1830 por la que se manda erigir el Conservatorio Real de Música con el nombre de “María Cristina”. La inauguración oficial tendría lugar el 2 de abril de 1831. 2 Leg. 6/64, 2 de marzo de 1847. Sobre la mudanza del Conservatorio a otro edificio por haber sido alquilada la Casa al Colegio Politécnico y otros particulares de este mismo asunto. Archivo Histórico del Real Conservatorio Superior de Música de Madrid. 3 Son varios los profesores de la casa que donaron sus instrumentos, como la famosa viola de Cavalieri cedida por Pedro Meroño, la guitarra de Angel Alonso o el arpa de Maria Luisa Robles, así como otras donaciones de particulares como los violines de Fernando Álvarez de Toledo y Acuña. Se cree incluso que la colección de instrumentos populares de España fue donada por la propia Infanta Isabel de Borbón. Otro caso curioso es el de la donación de Manuel Wals y Merino, aportando parte de los instrumentos orientales que se conservan en el museo.

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El Museo de Instrumentos del Real Conservatorio Superior de Musica de Madrid: una panorámica de la colección

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miento cuyo fin y principio es el de la enseñanza de la música. La colección, por tanto, está dentro de las instalaciones del Conservatorio y no cuenta con un horario y unas condiciones de visita como las que tendría el museo de estar localizado en un lugar diferente. De hecho, en la actualidad, el museo abre a los estudiantes, profesores y otro personal del Conservatorio los días miércoles y el resto de los días permanece cerrado. Su visita, por tanto, se debe concertar previamente con la responsable del museo, pudiéndose realizar visitas privadas así como de grupo. Con todo, esta iniciativa del Conservatorio es muy bienvenida pues no existe en la ciudad de Madrid otra exposición similar, de carácter público, que muestre a los visitantes una colección de instrumentos musicales como la que aquí se ofrece. El museo estuvo finalizado y preparado en el año 2007 aunque no presentó actividad alguna ese año. Fue a partir del año siguiente cuando su actual responsable entró a trabajar en la institución y el museo empezó a ser visitable. La organización de la colección El museo está dividido en tres espacios diferentes: antesala, sala 1 (en realidad, dos salas en una) y sala 2. Lo más singular de este museo es la variedad de material que encontramos en él: diversos tipos de documentos (libros, cuadernos, cartas, informes) instrumentos musicales o partes de éstos, pinturas variadas (óleos, acuarelas, dibujos) y una escultura. Comienza el recorrido en la antesala, donde pueden verse documentos de archivo del Conservatorio como libros de actas, premios y reproducciones de grabados que ilustran la historia del Conservatorio. En la sala 1, encontramos a la izquierda una serie de paneles explicativos que hacen un recorrido cronológico por la historia del Conservatorio, señalando los hitos más relevantes hasta la fecha de inauguración del museo. En la parte derecha aparecen colgados dos excelentes retratos de los fundadores de la institución: la reina Mª Cristina de Nápoles y su esposo Fernando VII. Aunque los retratos no están firmados, se cree que pudieron haber sido hechos por el pintor de corte Vicente López, pues denotan una gran maestría en sus trazos. Justo debajo de estos cuadros se encuentran unas obras dedicadas a la familia real que, aparte de su valor intrínseco, destacan por el lujo empleado en sus encuadernaciones. Al señalar que esta sala encierra dos en una, nos referíamos a la separación física que puede observarse y que, de hecho, se traslada al visitante. En la parte primera encontramos, junto con los retratos reales, tres tipos de vitrinas diferentes, que muestran diversos instrumentos. Podría decirse que esta primera parte de la sala 1 recoge la historia de los fundadores, así como la historia de la institución. La segunda parte de la sala 1 está dedicada al profesorado y al alumnado. En la primera de las vitrinas de esta sala 1, hecha en madera, se exponen objetos variados que aún están por clasificar. Esta vitrina es una reciente adquisición.Tiene documentos, partes de instrumentos y algún que otro objeto curioso. Todas las piezas se han colocado según los criterios clásicos de clasificación por familias. Se exponen sólo algunas de las piezas que posee el museo4. Esta colección se organiza según criterios de representatividad y conservación, 4 Según información aparecida en el folleto editado por el propio RCSMM titulado “Exposición de instrumentos musicales y otras colecciones históricas”, la colección está formada por 101 piezas de las cuales sólo se expone una parte. Según un artículo de Eva Jiménez Manero, técnico ayudante de Museos de la Comunidad de Madrid y actual responsable de esta colección, que detallamos en la bibliografía al final de este trabajo, los instrumentos expuestos son 64.


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por lo que se observan ciertas carencias en la colección en general. A veces, de algunos instrumentos se exponen solamente algunas de sus partes. La vitrina central, de metal y cristal, está dedicada al viento/madera.A través de los instrumentos expuestos puede observarse la evolución de las flautas traveseras. Vemos una flauta construida según el sistema Tulou,5 que sabemos que compitió con Bohem6 aunque no llegó a superarlo. Está fechada en torno a 1850 y procede de París. Sobre dichas flautas puede observarse un hermoso diagrama que muestra cómo era la digitación en el sistema Boehm, mucho más usada en nuestro país.Además de estas flautas, observamos como curiosidad una flauta de cristal. Otro de los tesoros de esta vitrina es una de las flautas que perteneció al prestigioso profesor de flauta Francisco González Maestre y que donó su esposa en enero de 1943. Se trata de una flauta de plata, a la que después se le dio un baño de oro, que había sido fabricada en 1875 por uno de los más famosos constructores de instrumentos de viento, el francés Luis Lot. La vitrina de la parte izquierda contiene otros instrumentos de viento/madera: un oboe del afamado Carlo Palanca, del siglo XVIII, un prototipo del clarinete de Adolphe Sax, fechado en 1843 hasta la flauta de Theobald Boehm. El resto de los instrumentos allí guardados son todos del siglo XIX, con abundancia de material francés, destacando especialmente los fagotes y clarinetes del constructor Buffet Crampon. La parte posterior de esta sala 1 es la que está dedicada al profesorado y al alumnado. Separa ambos espacios otra vitrina que contiene parte del conjunto de instrumentos de la orquesta de la Escuela Nacional de Música de 1879: dos clarinetes, una flauta, un fagot (sólo la campana) y dos timbales. Como curiosidad destacar la presencia del diapasón normal, distinto del actual, y fechado en torno a 1879.

Figura 1 - Colecciones museográficas del RCSMM. (Fotos de E.J.M.)

Siguiendo el recorrido por la parte derecha, encontramos otra vitrina que contiene métodos y otros documentos de interés. Se trata de la vitrina dedicada al profesorado. Encontramos la Geneuphonía del musicólogo José Joaquín 5 Para tener más información sobre este sistema véase: Disponible en: <http://www.oldflutes.com/ articles/ tulou.htm>. Consultado el: 23 oct. 2012. 6 Para tener más información sobre este sistema véase: Disponible en: <http://www.oldflutes.com/ boehm. htm>. Consultado el: 23 oct. 2012.

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Virués y Spínola, así como el Método de enseñanza de Armonía, Contrapunto y Composición, con dedicatoria de Gioachino Rossini, fechado en febrero de 1831. También se observa un Método de Canto de Santiago Masarnau, dedicado al que fuera primer director de la institución, el tenor Francesco Pieramarini y otros métodos: Método de Piano de Pedro Albéniz, Manual de Declamación de Julián Romea y el Método de Armonía de Hilarión Eslava, todos ellos utilizados para la enseñanza en el Conservatorio. Respecto a los retratos que adornan este espacio de la sala, pueden observarse los de los maestros Amadeo Vives y Antonio Fernández Bordás (obra éste último de José Garnelo) y también un excelente busto de Hilarión Eslava, sin autoría. Adornan también las paredes una serie de dibujos, todos ellos de Bernardino de Pantorba, de los que cabría destacar el del maestro Ruperto Chapí. También merece la atención del visitante la reproducción en acuarela de la propuesta de uniformes para los alumnos del curso de 1831. Mientras que la indumentaria de los hombres era muy parecida a un uniforme militar (y probablemente llegara a utilizarse en algún momento de su inicial historia), la vestimenta femenina muestra los gustos estéticos de la época, que hoy nos parecen muy poco apropiados para la ejecución de la música. La sala 2 del museo está dedicada a los instrumentos de cuerda, y recibe el nombre de Broadwood en reconocimiento a los constructores ingleses de pianos de los siglos XVIII y XIX, después conocidos como John Broadwood & Sons. Un fantástico piano de cola Broadwood, fechado entre 1830 y 1840, se expone en una parte de la sala, aunque se encuentra sólo en depósito, pues pertenece al pianista y profesor del Conservatorio Emilio González, quien lo ha dejado temporalmente en el museo. Se utiliza para dar conciertos en esta sala. Destaca su encordadura original y su convencional calado. El teclado es de ébano y marfil. Otros pianos de mesa expuestos en la sala 2 son los pertenecientes a los holandeses Hosseschrueders, que fueron donados en 1966 por sus herederos –familia Hazen– afamados fabricantes de pianos en la actualidad. Estos pianos tienen menos extensión de octavas (empiezan y acaban en la nota Fa) y destacan sus teclados de hueso. Las cuerdas y clavijeros descansan sobre madera y producen un sonido bastante suave. Hay que recordar que este tipo de instrumento estaba concebido para ser tocado en salas o pequeñas cámaras, nunca en salas de conciertos como los pianos posteriores. Están fechados en torno a 1830, uno, y 1843, el otro. El piano Erard, fabricado en París entre 1860 y 1865, es otro de los expuestos en la sala. Se trata de un hermoso piano vertical, con clavijero de madera y una inclinación de éste muy pronunciada.Tiene también el teclado de marfil y ébano. Junto a este piano, y para concluir con los instrumentos de teclado, encontramos un armonio, fechado en 1860, también francés, de Père & Fils. Ninguno de los pianos expuestos en la sala, a excepción del Broadwood de cola, está afinado ni preparado para ser tocado. Su buena conservación como objeto artístico y su utilidad y funcionalidad como instrumento musical no siempre son compatibles, ni algo siquiera posible para el responsable de conservación del museo. La vitrina izquierda de la sala 2 contiene una pequeña muestra de instrumentos “populares” que pertenecieron a Juan Gutiérrez Pons, un coleccionista de la ciudad de Mahón del siglo XIX.También hallamos guitarras de José Campo, así como otros instrumentos pertenecientes al constructor José Ordax Calvo. Destaca la guitarra con el puente inclinado cuya autoría se desconoce. Junto a ésta se exponen una cítara y una bandurria del siglo XIX.


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Figura 2 - Piano Broadwood. Colecciones museográficas del RCSMM. (Fotos de E.J.M.)

Figura 3 - Arpas, Piano Erard y Armonio. Colecciones museográficas del RCSMM. (Fotos de E.J.M.)

Figura 4 - Colecciones museográficas del RCSMM. (Fotos de E.J.M.)

Figura 5 - El Boissier-Sarasate.Violín Stradivarius. Colecciones museográficas del RCSMM. (Fotos de E.J.M.)


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Una curiosidad del museo que se encuentra en esta vitrina es la pequeña muestra de instrumentos chinos del XIX. Fue Wals y Merino, fundador de la Sociedad de Musicología Hispano-Filipina, quien donó dichos instrumentos a finales del siglo XIX. De su estancia en Oriente, trajo nueve instrumentos, de los cuales sólo dos, una especie de laúdes, han quedado en este museo. El tercer instrumento chino expuesto, el yueh kin, fue una donación de la familia Taltavull. La vitrina central de la sala 2 es la que contiene los instrumentos de arco. En primer lugar se observa un violonchelo español, fabricado por Esteban Maire Clará, fechado en 1919, que fue donado por el violonchelista Aniceto de Palma. Tiene como rasgo característico las “f” modernistas de su caja. Es muy probable que este detalle esté relacionado con la moda artística dominante de la época. Junto con este magnífico ejemplar se encuentran otros nueve violines, dos violas y tres violonchelos, aunque sólo cinco de estos instrumentos están expuestos. Llama la atención el llamado “violín de procesión”, utilizado para oficios religiosos. Está datado en el siglo XVIII y es de color negro. Este color responde al teñido de la madera, pues se sabe que bajo esta capa de tinte se esconde otra de tono rojizo. En aquellos tiempos, era relativamente frecuente que se tiñeran algunos instrumentos para acompañamiento de ciertos oficios religiosos (misas de difuntos).También se sabe que muchos de estos instrumentos se retocaban, es decir, se sustituían partes del mismo o se teñían o se reponían las volutas, lo que dificulta bastante su posterior datación correcta. Se cree que su procedencia es francesa o alemana. Llama la atención la “felina” cabeza del clavijero, de gran hermosura. Otro de los violines expuestos se cree que es de los años setenta del siglo XVI, con etiqueta “Morelli”. Fue donado por Fernando Álvarez de Toledo y Acuña en 1882. La viola expuesta (del XVIII-XIX), aunque lleva en su interior una etiqueta “Stradivarius”, no perteneció a este taller de construcción, según nos explicó la responsable del museo.Varios detalles como el barniz, el fileteado del instrumento, la marquetería, la forma de las “f”, etc., son detalles suficientemente elocuentes para denotar su autoría. Sin embargo, la joya del museo sí que es un auténtico violín Stradivarius que perteneció a Pablo Sarasate y en el que merece la pena detenerse para describirlo y comentarlo. Más conocido como el Boissier-Sarasate, el violín de la autoría de Antonio Stradivari fechado en 1713 que se encuentra en una vitrina aparte y en las mejores condiciones de conservación posibles, es lo más valioso del Museo de Instrumentos del Conservatorio de Madrid. Existe un trabajo de Eva Jiménez Manero7 que da noticia de todo cuanto se sabe acerca de este instrumento. En el año 2013 se celebrará el tricentenario de este singular violín. Según parece, este precioso violín de tono rojizo8 fue donado por Pablo Sarasate (según se establece en su testamento firmado en París el 12 de junio de 1894) al Conservatorio de Madrid, tras haber revocado un primer legado que hizo al Museo del South Kensington de Londres. Acompañaba al violín una sustanciosa cantidad de dinero (100.000 francos franceses), que, entre otras cosas, habría de sufragar todos los gastos que el traslado del instrumento originase. También advertía, a través de este documento, que el violín tendría que estar expuesto en una vitrina, tal y como aparece hoy. El violín data de 1713, lo que lo sitúa dentro del período de máximo esplendor del constructor de Cremona, de 1710 a 1720. Llegó a España en 1909, 7 JIMÉNEZ MANERO, Eva. Cien años con el Boissier: el violín de Sarasate en el Real Conservatorio Superior de Música de Madrid. Música, n. 16-17, p. 189-194, 2009/2010. 8 Se dice que en época de Sarasate era conocido el instrumento como “el rojo” debido al tono rojizo de su barniz.


Esther Burgos Bordonau

tras el viaje emprendido por Tomás Bretón y el discípulo de Sarasate, Antonio Fernández Bordás, a París, a donde fueron a recoger tan precioso legado. Sarasate había fallecido un año antes. Sarasate había mantenido en vida una buena y estrecha relación con el Conservatorio de Madrid, a pesar de que trabajara y se formara en el Conservatorio de París.Tan agradecido quedó a este último centro que le donó el segundo de sus violines Stradivarius, conocido por su propio nombre –Sarasate– y datado en 1724. El primer propietario del violín que llegó a España fue un tal Boissier, de ahí que haya quedado para la historia como el Boissier-Sarasate. Una vez en España, todos fueron conscientes de la importancia de este legado y de la enorme responsabilidad que suponía su custodia. Tal y como estableció Sarasate, se colocó en una vitrina en un lugar preferente, precintado, con un determinado número de llaves de la vitrina, expuesto al público pero sin posibilidad de ser usado en ningún acto público. Con el tiempo esta costumbre cambió y hace ya unos años, con la celebración del Certamen Nacional e Internacional Sarasate, el ganador del certamen tiene el privilegio de tocar este violín especial en una de las salas del Conservatorio. Ahora le queda al Conservatorio de Madrid la gran responsabilidad no sólo de mantener en buen estado tan preciado instrumento sino también de procurar que este objeto, cuya finalidad última es hacer música, suene adecuadamente cada vez que se utiliza. Para finalizar el recorrido por esta sala 2 hay que mencionar el violonchelo de Forster, datado en 1800, de fabricación inglesa y que está en bastante mal estado. Lo más característico de este instrumento es la voluta de su mango. Junto a este instrumento se encuentra un arpa Erard de comienzos del siglo XX, de 1914, de fabricación francesa y un arpa Lyon & Healy, de 1916 y fabricada en Chicago. Ambas son arpas de estudio que se han estado tocando hasta hace poco tiempo. Compartiendo espacio están los dos contrabajos: uno francés y otro italiano. Tienen distinto tamaño, carecen de etiquetas en su interior y se sabe que ambos han sido muy retocados. Estos instrumentos, a diferencia de los anteriormente descritos, no se tocan desde hace muchos años. Otra curiosidad del museo es la presencia de una zanfoña, del siglo XIX. No se sabe con certeza porqué está aquí ni quién la donó, aunque muchos apuntan que podría haber sido la propia infanta Isabel. También se cree que podría haber hecho su ingreso en la década de los años 30 (del siglo XX), cuando se creó la cátedra de folklore en el Conservatorio de Madrid. Tan sólo es una hipótesis. Termina nuestra panorámica con la mención de una serie de retratos de gran interés. El primero de todos es el de Manuel de Falla, sentado al órgano y pintado por Daniel Vázquez Díaz en 1922. Es un gran retrato muy conocido del genial músico. El retrato está colocado en un lugar preferente de la sala junto al piano Broadwood. Los otros dos grandes retratos que adornan la sala son el de Manuela Oreiro de Lema, cantante de la primera promoción del Conservatorio, y al lado el del famoso tenor Rubini. Ambos cuadros fueron pintados por el gran artista Antonio María Esquivel en 1841. Un total de 90 pinturas adornan distintos espacios del edificio del Conservatorio de Madrid, que. aunque no formen parte del museo, son por sí mismas piezas extraordinarias de gran valor. Comentarios finales El Real Conservatorio Superior de Música de Madrid ha hecho un enorme esfuerzo en la recopilación y recuperación de todos estos instrumentos musica-

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les que se exponen en el pequeño museo de la institución. Ofrecer al estudiante de música, al docente, al personal trabajador de la casa y a todos los visitantes que lo deseen la contemplación de estas joyas musicales, supone un gran paso en la organización museográfica de este tipo de colecciones, especialmente si se tiene en cuenta que no existe otra semejante en Madrid capital. Se ha intentado fusionar, por un lado, la conservación de objetos de valor artístico per se con la conservación y el mantenimiento de algunos instrumentos musicales cuyo fin último es, sin duda, sonar. No siempre es sencillo conseguir ambas cosas a la vez. A menudo se apuesta por conservar los objetos muebles en detrimento del sonido, o viceversa. De ahí la singularidad de una colección como la que someramente hemos descrito. Auguramos un gran futuro para esta colección y esperamos verla crecida y mejorada en próximos años. Sin duda, los esfuerzos realizados por la dirección del Centro y los de su técnico especialista en museos invitan a pensar que se trabaja en la dirección acertada. Agradecimientos Queremos agradecer especialmente a Dña. Eva Jiménez Manero, técnico responsable del Museo, la información facilitada y las fotografías que ilustran este artículo. Referencias bibliográficas BORDAS IBAÑEZ, Cristina. Instrumentos musicales en colecciones españolas. Madrid: Centro de Documentación de Música y Danza- INAEM, Ministerio de Educación, Cultura y Deporte, 2001. DONINGTON, Robert. La música y sus instrumentos. Madrid:Alianza Editorial, 1986. JIMÉNEZ MANERO, Eva. Cien años con el Boissier: el violín de Sarasate en el Real Conservatorio Superior de Música de Madrid. Música, n. 16-17, p. 189-194, 2009/2010. ______. Las colecciones de instrumentos antiguos del Real Conservatorio Superior de Música de Madrid. Boletín DM, año 13, p. 49-62., 2009. ORTIZ BALLESTEROS, Consuelo. Un paseo por Palacio a través del Real Conservatorio Superior de Música de Madrid. Música, n. 12-13, p. 13-44, 2005-2006. REY GARCÍA, Emilio. Reseña histórica del RCSMM. Disponible en: <http://www. educa.madrid.org/web/csm.realconservatorio.madrid/historia.html.>. Consultado el: 25 oct. 2012.

Artigo recebido em outubro de 2012. Aprovado em janeiro de 2013


QUANDO O ARTISTA TRAMA UMA IMAGINAÇÃO MUSEAL. ANTÔNIO BANDEIRA E A CRIAÇÃO DO MUSEU DE ARTE DA UNIVERSIDADE DO CEARÁ Carolina Ruoso1* Universidade Paris 1 “Quand l’artiste trame une imagination muséale. Antônio Bandeira et la création du musée d’art de l’Université du Ceará” RESUMO: O presente artigo busca investigar na obra do artista Antônio Bandeira os indícios da sua imaginação museal. Analisa o pintor e a sua participação no fazer-se do mundo das artes em Fortaleza, antes da criação do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará. E procura interpretar o significado de cadinho, este objeto-conceito, presente de maneira marcante na vida e na obra do artista. Na relação com a sua história familiar: a fundição do pai, o conhecimento do conceito de cadinho de raças entre os artistas ligados ao Bandeira, bem como críticos de arte e nos escritos autobiográficos de Bandeira. O artigo procura historicizar o conceito de cadinho de raças e sua repercussão no Brasil, como argumento que fundamentou a invenção de uma identidade nacional Brasileira, baseada na homogeneidade cultural. Procurando estabelecer semelhanças e diferenças entre a apropriação de Bandeira do cadinho e o projeto da nação brasileira. Para apontar algumas possíveis definições para o que viria a ser o museu-cadinho de Antônio Bandeira.

RESUMÉE: Cet article propose étudier les indices de l’imagination muséale de l’artiste Antonio Bandeira. L’analyse du peintre et de sa participation à la composition d’un monde de l’art à Fortaleza, avant la création du Musée de l’Université Fédérale de Ceará. Et il cherche à interpréter le sens de creuset, cet objet-concept, marquée dans la vie et l’œuvre de l’artiste. Dans le cadre de son histoire familiale: le creuset du père, la connaissance du concept de melting-pot pour les artistes liés a Bandeira, ainsi que les critiques d’art et les écrits autobiographiques de Bandeira. Le présent article vise à historiciser le concept de melting-pot et sa résonance au Brésil, un argument qui a justifié l’invention d’une identité nationale brésilienne fondé sur l’homogénéité culturelle. On a cherchez à établir des similitudes et des différences entre l’appropriation du creuset par Bandeira et de la conception pour la nation brésilienne. Pour souligner quelques définitions possibles de ce qui allait devenir le musée-creuset de Antonio Bandeira.

PALAVRAS-CHAVE: Imaginação museal. Museus de arte. Cadinho de raças. História dos museus. Museu Universitário.

MOTS CLÉS: Imagination muséale. Musées d’Art. Creuset de races. Histoire des Musées. Musée Universitaire.

1 * Carolina Ruoso é doutoranda em História da Arte na Universidade de Paris 1, Panthéon-Sorbonne com orientação do professor Dominique Poulot. É membro organizadora do Groupe de Travail em Histoire du Patrimoine et des Musées HiPaM, neste mesmo programa de pós-graduação. Bolsista da CAPES. E-mail: carol@ruoso.com.


Quando o artista trama uma imaginação museal.Antônio Bandeira e a criação do Museu de Arte da Universidade do Ceará

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O artista Antônio Bandeira recebeu, no inicio desta pesquisa, uma atenção especial em relação ao trabalho de investigação que venho realizando para contar a história da formação do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC). O percurso deste artista que nasceu na cidade de Fortaleza em 1922 e, faleceu em Paris, aos 45 anos, tem me convidado a pensar a formação do museu a partir da compreensão do seu fazer artístico e da construção da sua participação no mundo das artes. De acordo com BECKER (2010:58-63) o mundo das artes é composto por todos aqueles que estão envolvidos na produção das obras, as quais são definidas, por estes atores, como obras de arte, ao incorporarem esquemas estabelecidos e agirem por meio de redes de cooperação, onde há partilha de conhecimentos e convenções que possibilitam e facilitam a realização de atividades coletivas. Os artistas e os trabalhadores de museus, por exemplo, fazem parte do mundo das artes. Assim, foi buscando compreender como uma rede de cooperação foi formada entre artistas e os demais participantes do projeto MAUC, que tornou-se necessário investigar o papel de Antônio Bandeira na tarefa de inventar um museu de arte em Fortaleza. Ao investigar o papel dos artistas na produção das memórias das artes, ao traçar a maneira pela qual estes atores interferiram instaurando diferenças e qualificando continuidades nas práticas e, no pensamento museológico, podemos perceber que o museu é produto de uma atividade coletiva. Neste artigo, procuro identificar e apontar, na obra e na trajetória de Bandeira, alguns dos indícios de uma possível imaginação museal. E, assim, construir contrapontos para traçar uma relação entre a imaginação deste artista e a formação da coleção do MAUC. Será que um artista pode ser considerado um imaginador museal? Teria Antônio Bandeira sonhado propor um museu de arte na sua cidade? É possível ler e interpretar traços de uma imaginação museal a partir de sua obra? O artista nos deixou algumas pistas... Para poder analisar e construir esta problemática utilizo o conceito de imaginação museal elaborado pelo museólogo Mário Chagas (2009), segundo o autor a imaginação museal é a capacidade única e eficaz que uma pessoa tem de articular no espaço uma narrativa poética das coisas, que começa com o estudo da “linguagem das coisas”. E, a análise dessa imaginação é, também, uma forma de investigar sobre o domínio das políticas museais. Tecnicamente, ele se refere a um conjunto de pensamentos e práticas de certos atores que produziram a respeito dos museus e da museologia. Então, é a partir da investigação da imaginação museal que poderemos compreender como Antônio Bandeira participou, entre jogos de poder, da criação do MAUC. Ambiência para engendrar um museu de arte O MAUC não foi uma ideia de um só autor, houveram alguns artistas e intelectuais em torno da sua criação. Trata-se de um museu universitário público federal, do início da segunda metade do século XX, pensado para uma cidade que não tinha nenhum lugar dedicado à memória das artes. Havia um Museu de História e Antropologia circunscrito ao Ceará, criado em 1932 e, que trazia em sua coleção, quadros que haviam sido encomendados para retratar personagens e eventos, valorizando os denominados vultos da história. O trabalho deste museu não era aceito de maneira positiva por parte dos artistas de Fortaleza, talvez não concordassem com a visão da arte como ilustradora dos fatos históricos, ou


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ainda, não aprovassem a maneira pela qual os quadros eram arrumados nas salas do museu. Na solenidade de abertura do II salão de abril, em 1946, Mario Baratta fez um discurso valorizando o trabalho desenvolvido pela Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP), destacou a “evolução artística” das pinturas expostas na segunda edição do salão, resultado de 6 anos de atividades e, continuou: (...)Aí está no Museu Histórico do Estado. O que lá se mostra, com raras exceções, é (refiro-me a quadros e retratos) de um nível artístico tão baixo (…) no mesmo caminho marcham nossas praças. Nelas não encontramos mais monumentos como o de D. Pedro II, o do romancista O Guarani, o busto de J da Penha, o monumento de Sampaio ou de Tibúrcio. O que agora se colocam em nossas praças se não se envergonham o nosso povo, que pouco sabe sobre arte, deveriam envergonhar os autores. (ESTRIGAS, 2009: 47)

Aparentemente para Mário Baratta o mal-estar estava na qualidade das obras expostas no museu e nas praças. A sua queixa indica um descontentamento por parte dos artistas, pois o Governo do Estado, alvo dos ataques de Baratta, não havia elaborado políticas de cultura. Afirmava, no seu discurso, “que o povo pouco sabe sobre arte” e, que as mostras de arte organizadas pela SCAP tinham “(...) sempre mais fim educativo que econômico” (idem), deixando claro que era preciso formar um público, que o Estado deveria adquirir obras de arte e estimular a circulação dos artistas com as suas obras em exposições organizadas em outras cidades e países. Esse discurso é uma denúncia social da situação dos artistas do Estado do Ceará e, principalmente, da cidade de Fortaleza. Mario ainda conclui que é preciso ficar com os artistas, somente assim seria garantido uma “arte perene” e, onde podem ficar os artistas? Um museu de arte, poderia ser uma das respostas? No museu a permanência do artista estaria garantida enquanto parte de uma memória das artes. Mario afirmou: “gostaríamos ‘de espaços para’ expor nossa arte” (ibidem) (as palavras destacadas foram acrescidas por mim). Então, havia uma preocupação, sobretudo dos artistas, com a conquista de um espaço de exposições e de políticas de aquisição pública de obras de arte. Naquele contexto, a educação artística através dos museus constituía com um desafio de difícil acesso e, geralmente, eram, em sua maioria, as elites que podiam viajar e participar de atividades culturais em outras cidades do país, principalmente, às cidades do Rio de Janeiro e São Paulo ou, ainda, ir à Europa e aos Estados Unidos. Entretanto, os deslocamentos entre as diferentes cidades pelas quais alguns artistas circulavam e, também, a prática do compartilhamento de informações sobre arte, comentando das viagens, dos livros e das revistas que liam, favorecia uma ambiência imaginativa entre os artistas e intelectuais que atuavam, à época, em Fortaleza. Os espaços de aprendizagens e trocas de saberes aconteciam no seio dos seus pequenos grupos. No começo do século XX, a maior parte dos artistas da cidade faziam o trabalho de pintura de faixas e painéis publicitários e, também, coloriam fotografias e as ampliações de retratos nos estúdios Valter Severiano e Photo Ribeiro. Normalmente os encontros para falar sobre arte eram nos ateliês, seus espaços de trabalho. E após as rodas de conversa, acontecia a vida boêmia e, foi dessa maneira, que se estabeleceram as primeiras redes de artistas em Fortaleza. Como nos mostra Galvão: Um exemplo foi o grupo que se reunia no atelier de fazer letreiros de Delfino Silva, na rua Pedro Pereira, um pequeno espaço que já havia

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sido ateliê de J. Carvalho antes deste artista se transferir para o Rio de Janeiro.Todas as tardes, depois das 4 da tarde, quando a calçada jà estava na sombra, chegavam muitos artistas, que desviando-se dos vidros dos letreiros que Delfino estava pintando e evitando se sujar de tinta, sentavam-se em tamboretes e caixotes para conversar sobre arte. (2008: 77)

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Foi após ter participado de alguns destes encontros que Mario Baratta, um jovem estudante de Direito, com as ideias da « Semana de Arte Moderna » na bagagem - que havia trazido na mudança, quando partiu do Rio de Janeiro – organizou, ao lado dos seus colegas estudantes, o primeiro Salão de Abril, em 1943. E, num exercício de mobilização, começou a bater na porta de cada um dos diferentes ateliês da cidade para convidar os artistas para formar o CCBA Centro Cultural de Belas Artes e, depois a SCAP, Sociedade Cearense de Artes Plásticas. Estes espaços permitiram criar um ambiente mais institucionalizado, onde eles podiam estar juntos para falar de arte, para trocar livros e experiências e, principalmente, fazer o que Mario Baratta chamava à francesa de “entre aide”, que era fazer avaliações mutuas das suas pinturas. Todos os trabalhos eram submetidos à critica do conjunto e a ninguém cabia magoar, pois a critica era honesta e procurava mostrar falhas, erros que deveriam ser evitados. Era critica construtiva. Hoje sem atelier, não há mais o lugar onde possa, o artista, deixar que os companheiros se critiquem mutuamente suas realizações. Nunca o nosso grupo mostrava ao público tudo o que produzia, mas apenas aquilo que passava na critica, o que de melhor produzia. No atelier, havia aquilo que os franceses chamavam de entre aide, que estimulava. (ESTRIGAS, 2004: 31-32)

Destaco neste depoimento, o uso da expressão francesa “entraide”, que quer dizer ajuda mutua, para comentar brevemente sobre o tema da influência estrangeira. Baratta poderia estar construindo a sua imagem de homem da cultura, ao fazer uso de um estrangeirismo, demarcando dessa maneira, a amplitude do seu conhecimento diante dos seus pares. Podemos, também, aproveitar este indicio para mostrarmos que estes artistas organizados em sociedade, poderiam ter tido conhecimento que em Paris os artistas também praticavam “entraide” por vias associativas, muitas vezes estimulados por donos de galerias de arte, através de ajudas familiares, para garantir aos artistas uma renda mínima. Foi uma prática que aconteceu nos anos 1930, uma alternativa encontrada para atravessar a crise provocada pela quebra da bolsa de Nova York. (VERLAINE, 2012: 23) Se no caso francês a “entraide” significava uma ajuda financeira, em Fortaleza embora fosse uma forma de cooperação financeira era, sobretudo, de aprendizados e de ideias: astúcias para fazer dos sonhos realidade. A articulação gerada nesses encontros alimentada pelos sonhos comuns, os mobilizava a inventar e a produzir as exposições, os cursos e as reuniões semanais. Entre as ações de ajuda mútua, atuavam, simultaneamente, como: críticos de arte, curadores, juri, colecionadores e produtores culturais. Eles eram escritores, operários, estudantes, profissionais liberais, funcionários e pintores. E começaram a ter desejos maiores, apercebendo-se que para realizá-los, fabricavam suas próprias necessidades, mas não eram capaz de produzirem tudo que almejavam dentro daquilo que entendiam ser o mundo das artes que estavam construindo, com a experiencia, notavam que faltavam condições e incentivos


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na cidade que proporcionassem visibilidade ao que estavam nomeando de arte. Não estagnaram-se e continuaram as atividades coletivas, sendo insistentes e, sempre que oportuno, reivindicavam publicamente as suas queixas e demandas. O auxílio que tivemos até hoje dos poderes públicos resumiu-se na compra de, se não me engano, dois trabalhos expostos, pelo ex-Departamento de Imprensa e Propaganda.Também a Prefeitura Municipal de Fortaleza deixou que vivêssemos uns três meses trepados nos salões em ruínas da velha e histórica Intendência. (…) Hoje caso pudéssemos pleitear alguma coisa dos poderes públicos, o que poderíamos querer seria uma possibilidade para levar um salão nosso à Metrópole. (ESTRIGAS, 2009: 47-48)

Uma atividade bastante valorizada entre os Scapianos era o curso de pintura ao ar livre, que aconteciam na maioria das vezes no Morro do Moinho e Pirambu. Eles escolhiam um bairro popular para aprender a pintar a luz, as paisagens da cidade e suas percepções criticas do social. Estes bairros eram favelas de ocupação, que eram herdeiras dos antigos campos de refugiados da seca que foram submetidos ao campo de concentração, criado pelo governo da província do Ceará em 1933 (RIOS, 2001). Um lugar pensado para as pessoas que eram rejeitadas pela cidade de Fortaleza, pessoas que deveriam ser esquecidas. O gesto de pintar e fotografar esse lugar produziu uma lembrança e, associou a imagem dos artistas à história do bairro, gerando uma intervenção na memória da cidade, produzindo imagens que de alguma maneira narram, fabricando fragmentos de lembranças que impedem, de uma certa maneira o silêncio. Esta ação de artista no exercício do aprendizado era, também, uma demonstração de um engajamento politico pois a escolha destes artistas não era ingênua, tratava-se de um posicionamento sobre a maneira pela qual queriam estar/ser no mundo. Gestos que marcaram a época em que iniciavam uma reflexão sobre um projeto que começavam a nomear de “Arte-Ceará”. Foi durante uma caminhada com destino ao Morro do Moinho, que Bandeira foi avistado em frente a sua casa na rua Princesa Isabel e, convidado por Mario Baratta a fazer parte das atividades, como lembrou o artista Afonso Bruno em entrevista concedia ao Estrigas no ano de 1974: Em fins de dezembro de 1941, ao passarmos pela rua Dona Isabel, “achamos” Antônio Bandeira na porta da sua residência. Embora ele parecesse ainda leigo em pintura, Baratta o convidou para a excursão que fazíamos ao Morro do Moinho. Bandeira seguiu-nos, e tudo indica que foi ai que ele pegou em pincel pela primeira vez, mas surgiu então a sua comentada aquarela Três por dois vinténs. (ESTRIGAS, 1983:80)

Bandeira iniciou-se nas artes com a Dona Mundica, professora do bairro, aprendendo a copiar reproduções de obras de arte dos cartões postais. Ele havia despertado o interesse pelas artes quando era pequeno e pertencer a um grupo, poder deslocar-se na cidade em bando, compartilhar ideias, técnicas, organizar e participar de exposições, são elementos inovadores e que atraíram Bandeira. A inciativa daquele grupo que, posteriormente, fundaria a SCAP, formavam uma escola invisível (GALVÃO 2008). Muitos foram os artistas que participaram dos cursos e tornaram-se membros da Sociedade Cearense de Artes Plasticas, não havia uma homogeneidade entre eles, eram diferentes assim como seus projetos, alguns de cunho mais individual outros pensados para o

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coletivo ou para a cidade. Neste sentido, dentre o conjunto de pensamentos e práticas realizados e idealizados por estes artistas, que faziam parte da SCAP, germinaram “imaginações museais” distintas. O que tenho percebido é que provavelmente houveram varias dessas imaginações: enquanto sonhos, enquanto necessidades culturais ou enquanto modelo à seguir para um lugar dedicado à memória das artes em Fortaleza e, também, por um espaço disponível aos artistas. Neste artigo o objetivo é tecer a perspectiva de um único ator, Antônio Bandeira. Da criação do Museu de Arte da Universidade do Ceará O MAUC foi inaugurado no dia 25 de junho de 1961. A SCAP fechou suas portas em 1958. O museu não foi um projeto pensado para dar continuidade à SCAP. Como o MAUC foi pensado enquanto projeto público e político? A criação do MAUC significou uma importante mudança no campo artístico de Fortaleza porque ele representou a primeira iniciativa na construção de uma política pública de cultura no Ceará. Depois do MAUC, houveram muitas iniciativas geridas pelo Governo do Estado, Prefeitura e iniciativa privada, especialmente dedicadas ao domínio artístico: galerias, museus, a Secretaria de Cultura do Governo do Estado do Ceará (fundada em 1966) e o Salão de Abril passa para a responsabilidade da Prefeitura Municipal de Fortaleza, no ano de 1964. A instalação do museu de arte provocou uma alteração da paisagem cultural em Fortaleza. Esta preocupação institucionalizada em prol da construção de uma memória para as artes teria causado incômodos, controvérsias e tensões? Seriam iniciativas derivadas da SCAP? Houveram ramificações que conquistaram seus próprios caminhos e, assim, conseguiram ter um lugar e desenvolver seus papéis na cidade. O Mauc foi pensado como um museu de muitas missões? Como a análise das imaginações museais em torno do Mauc, podem nos fornecer argumentos para descrever tais missões? Ainda antes da inauguração do MAUC, o artista Chico da Silva iniciou um período de residência, entre 1959 à 1963. Ele havia sido convidado a pintar telas em uma das salas previstas para o museu, recebeu materiais como pinceis e tintas e pintou 39 telas que ficaram como parte da coleção do acervo. O Reitor da Universidade Federal do Ceará,Antônio Martins Filho, depois de uma viagem que fez à Paris, entre 1949 e 1959 e, de ter falado com Heloísa Juaçaba, Zenon Barreto e Floriano Teixeira, tomou para si a responsabilidade de criar um museu, devido a forte constatação da importância de um museu para o aprendizado mais aprofundado sobre arte. Então, Chico da Silva foi a primeira experiencia de ação, antes mesmo da sua existência oficial. Foi o artista Jean Pierre Chabloz quem pediu ao Reitor que recebesse Chico da Silva.1 Chabloz era um artista Suíço, funcionário do SENTA (Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia) e, também, membro da extinta SCAP. Ele viu Chico, na praia do peixe, a pintar um muro e acreditou ter encontrado o artista primitivo, o que ele qualificava como sendo o “reinventor da pintura”. Martins Filho ao compreender o olhar de Chabloz, recebeu Chico na Universidade. O projeto do museu começou com a formação de uma da coleção e com a ideia de uma arte que poderia ser nomeada de primitiva, considerada como uma arte verdadeiramente brasileira, pura e original, estas 1 Arquivo do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará: Caixa Chico da Silva.


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noções fizeram parte da escolha museal. Entretanto, na biografia difundida de Chico da Silva, não aparecem os registros de que seus quadros teriam sido expostos na ocasião da inauguração do MAUC (OLIVEIRA, 2010) Para a exposição inaugural do Museu o artista escolhido foi Bandeira, que também já havia circulado na Europa, mas antes havia exposto em sua cidade, em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. No caso, ele representava o artista que retornou, uma imagem muito forte para fabricar memórias. Antônio tinha consciência do verbo “emigrar”, para ele, no Ceará, até mesmo os artistas eram imigrantes, refugiados, flagelados que precisavam partir para poder ser artista. “O único meio é emigrar (…) no Nordeste até os artistas são flagelados”2 Durante as semanas que antecederam a exposição, os jornais locais publicaram muitas matérias sobre o artista que era muito reconhecido em São Paulo, Rio de Janeiro e Paris e que havia voltado para casa, especialmente para inaugurar o primeiro museu de artes da cidade. Ele havia conseguido realizar o mais difícil, talvez o quase impossível, o sonho da maioria dos exilados, voltar em grande estilo à terra natal. Com este gesto, foi construída uma nova possibilidade para os artistas, ao saberem que, mesmo partindo, iriam ter um lugar de memória, ou melhor, lugares de memórias que representassem a possibilidade de ligação entre os artistas e a cidade. Uma chave para inscrever a saudade ou para entrar pela porta da história da arte? A necessidade de partir aliada ao sonho de retorno, por parte dos artistas ficou registrado, na musica “O Carneiro” de Ednardo e Augusto Pontes, que: (...) é um exemplo, da permanência do significado do Rio de Janeiro, para aqueles que, oriundos de outras regiões do Brasil, mais especificamente do Nordeste, já existente como região distinta do Norte, pretendiam dedicar-se a carreira artista na década de 1970. Não é somente a letra que confirma este fato, a melodia também, marcada pelos ritmos de origem nordestina como o baião e o forró, mistura-se aos traços rítmicos da geração que naqueles anos ficou conhecida como o “Pessoal do Ceará”. Na musica vemos que o Rio de Janeiro era o lugar para onde se ia, afinal, “as coisas vem de lá” e de onde se voltava, mas em videotapes e revistas super coloridas. (BEZERRA, 2009: 81)

E para colocar em evidência esta noção de pertencimento, Antônio Bandeira prepara uma homenagem à cidade de Fortaleza. Seus quadros foram adquiridos pela Universidade do Ceará e ele oferecia uma de suas telas, essa que ele intitulou “Cidade Queimada do Sol” e um poema aos filhos da terra. Ele pretendia mostrar com esta atitude, como a sua obra que tornava-se coleção do museu, estava carregada de afetividade. E, sobretudo que ele nunca havia esquecido sua terra e suas gentes e que seu trabalho era em parte Fortaleza e em parte Paris. Como diz na letra da canção de Sérgio Ricardo “Tulão das estrelas”: “É do povo: sofrimento traz sabedoria / Filho que sai da terra volta diferente / Volta trazendo uma vontade dentro /volta trazendo uma vontade dentro!”. Essa diferença e essa vontade dentro, foi o que fez germinar a criação de sua “imaginação museal”. Fortaleza um xadrez queimado do sol: pintura e poesia do afeto-cidade Antônio Bandeira utilizou a pintura à óleo, aplicada com pincéis e espátulas sobre tela de tecido. Ele escolheu a pintura à óleo, talvez porque uma das vantagens 2 “Nomes que lideram o movimento atual da pintura neste Estado deixarão brevemente nossa terra, com destino ao Rio de Janeiro”. O Unitário. Fortaleza, 13 mar. 1945.

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dessa técnica é a flexibilidade e a secagem lenta da pintura, permite ao artista modificar e corrigir seu trabalho em permanência3. Sua intenção não era os corrigir, mas brincar a partir da longa duração do tempo com os movimentos imprecisos dos fios de tinta molhados. Ele sabia trabalhar o tempo de secagem ao seu favor, com esperteza ele mexia o quadro para fazer a tinta escorrer sobre a tela nas diversas posições, a fim de que as imagens criadas ajudassem a formar sua composição abstrata, aproveitando da ocasião para misturar as cores, sobrepondo-as. O vermelho escarlate é a cor do pano de fundo, com nuances entre intensidades mais ou menos diluídas da tinta, chapada na tela. Essa é a cor que dá a estrutura e, também, a força temática do quadro. Uma cor quente que marca uma diferença com a maior parte dos seus quadros da coleção do Mauc. O vermelho era necessário para representar a ideia de “queimar” a cidade. As outras cores formam o traçado xadrez: azul, preto, fragmentos de quadrados e linhas retas, inventam a cartografia de Fortaleza, suas ruas e suas casas. Os amarelos e brancos são as faíscas, talvez para fabricar os pontos de tensão e luz, da força do calor quando a cidade ferve. Revelando a ideia de poder fundir misturando essas cores que são diferentes, mas que estão ainda lá, presentes e distintas. E o quê faltava para tudo misturar? Por quê ele não fazia tudo vermelho, amalgamado? Ao observar seus quadros, poderia afirmar que o quê interessava ao Bandeira não era o produto final? E, sim o fazer-se, o queimar-se? No entanto, o título da tela marca um processo concluído: a cidade queimada do sol. Mesmo tendo sido queimada a cidade não tornou-se homogênea para o artista, embora em ambiguidade, o vermelho predomine intensamente. Para compreender o pensamento e a produção de Bandeira partimos também da leitura do seu lugar social. Antônio era filho de metalúrgico, dono de uma pequena fundição, que prestava serviços gerais de mecânica e, que tinha como função principal, a fundição e a usinagem de peças fundidas. Somente em 1954, há um salto para a produção das bombas de puxar água e a criação da fabrica, tendo como carro chefe as Bombas Neide, e um corpo de 30 a 40 trabalhadores4.Tendo nascido neste contexto, mesmo não vendo-se no mesmo oficio do pai, Bandeira sempre trouxe consigo, a presença desse fazer, como registrou na sua poesia dedicada à Fortaleza. Bandeira homenageia sua cidade mas, principalmente o seu público. Ele faz um elogio do seu público: pessoas de uma cidade moderna, que não tinha segundo ele nada de provinciano e de folclórico. A poesia está associada ao texto de Bandeira, datado de 1963, apresentando as obras que passavam a fazer parte do acervo do MAUC5. Para ele as pessoas estavam prontas para ver e saber compreender as suas pinturas. A partir do seu texto, podemos interpretar que ele tinha uma expectativa ao fazer a crítica de sua arte, oferecia ao público as coordenadas, explicando que não era necessária explicação, para definir o seu trabalho. Aplicava o que Peter Gay (1988) denominou de “educação dos sentidos” qualificando o olhar espontâneo do publico, pedindo uma atenção ao sentimento do amor, do carinho, de angustia e, até mesmo, do prazer de viver. Ele tinha vontade de construir um diálogo e afirmava que Fortaleza havia a mesma possibilidade de compreensão da obra de arte que Paris, Londres e Rio-São 3 Girão Eduardo. Antônio Badeira: amazonas guerreando. 2011. In: http://eduardogirao.blogspot.fr/2011/07/ antonio-bandeira-amazonas-guerreando.html acessado em maio de 2012. 4 Correspondências trocadas com Nilson Bandeira, sobrinho de Antônio Bandeira, responsável pela pagina Pintor Antônio Bandeira, no facebook, via mensagem, entre os dias 02 e 30 de janeiro de 2013. 5 Arquivo do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará: caixa Antônio Bandeira – DOC04/06. Texto de 1963, datilografado, com alterações manuscritas, feitas por Antônio Bandeira.


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Paulo. E, como ele olhava para Fortaleza como um filho da terra, ao mesmo tempo que reunia a experiencia do viajante, ele acreditava estar em uma cidade que havia despertado para os grandes acontecimentos de cultura e de sensibilidade. Bom dia Fortaleza Te ofereço êsse carinho de viajor do filho que não sabe se vem ou se vai o que olha e medita indo e voltando à sua cidade envelhecendo e remoçando com ela (ela és tu) Fortaleza te ofereço êsse carinho de gente para outra gente (porque é gente a que nasce de teu ventre) de corpo e alma também ofereço cadinho de ferro e bronze (uma lembrança de meu pai) cadinho de corpo e alma êsse cadinho de raças Fortaleza Antônio Bandeira Ainda na tarefa elogiosa da cidade Bandeira evidenciava o seu retorno atribuindo importância: à luz do sol, ao balançado na rede, à brisa, ao mar e às gentes. Ele descrevia a sua visão de Fortaleza com as palavras: esplendor e miséria, deixando claro sua crença na solidariedade entre as pessoas. Essa cidade moderna e contraditória, capaz de compreender a sensibilidade de uma pintura era também lugar de diferenças e desigualdades. Uma cidade moderna que começava a crescer com a vinda dos migrantes, pessoas que queriam fugir da dureza da terra árida, que procuravam um trabalho, como Chico da Silva, por exemplo que morava no Pirambu e fazia um pouco de tudo, “bicos” para sobreviver. Mas para Bandeira não era essa imagem a ser valorizada sobre Fortaleza, ele queria mostrar uma cidade cosmopolita que olhava o passado, o presente e o futuro ao mesmo tempo. Uma cidade que tinha vontade de estar ligada ao mundo, que se interessava pelas praticas tradicionais mas sonhava com as novidades e queria aprender com os outros. Foi com estas palavras que construiu o seu retorno, a recepção da sua pintura e, também, a justificativa para ela ter sido adquirida pelo Reitor, passando a fazer parte do acervo do MAUC. Soube jogar com as duas possibilidades, de estar em Paris e chegar em Fortaleza. Não é uma história regional da arte cearense o projeto em questão, nem a valorização das culturas tradicionais como símbolos de um “ser cearense”. O MAUC inscreve-se

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como narrador de si para si, de si para o outro e, dos outros para si, tramando as teias do que poderia ser a prática do lema do Antônio Martins Filho, Reitor da Universidade Federal do Ceara, à época: “o universal pelo regional”.

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O museu-cadinho de Bandeira O objeto mais evocado por Bandeira foi o cadinho. O artista o tinha arraigado à vida e ao seu fazer artístico. Está para além da metáfora, é marca da experiencia do trabalho do pai, operário que tinha a habilidade de transformar o estado da matéria ao controlar o calor. O cadinho esta presente na poesia, nas entrevistas, nas fotografias, no roteiro do filme “O colecionador de crepúsculos” e no MAUC. Cadinho ou crisol segundo a definição do dicionário (MICHAELIS, 2012) é: 1 Vaso de argila refratária, porcelana, grafita, ferro ou platina, geralmente em forma de tronco de cone, e próprio para nele se fundirem metais e outros minerais; crisol. 2 Parte do forno em que se realiza a fusão. 3 Prova: O cadinho da experiência.

Para Antônio foi um objeto muito familiar, portador de memória afetiva. Pois o transportava para a fundição do seu pai, senhor Sabino Bandeira. Talvez houvesse uma imensa vontade de retribuir ao seu pai os ensinamentos de um oficio , por não ter podido seguir o sonho do seu pai, dando continuidade à Fundição Princesa Isabel. Foi sua mãe quem notou o gosto do menino para a arte e o matriculou no curso de desenho, onde aprendeu a copiar olhando cartões postais. Este cadinho de seu pai o tocou profundamente e ao mesmo tempo era utilizado para colocar em evidencia o que havia de simbólico na sua pintura. Em entrevista concedida ao seu amigo, o poeta Milton Dias, no ano de 1964, ele disse: Da fundição aprendi misturas que meu pai nem suspeita mas, vendo derreter ferro ou bronze, aprendi muito. Hoje misturo emoções em cadinhos iguais aos dele, de ferro, de bronze, de corpos, de alma, de vento, de paisagem, de objeto, e dessa mistura fabrico as peças do meu trabalho. (ESTRIGAS e DIAS, 1992: 16)

Esse cadinho que se repete, que ele carrega consigo por todos os lugares onde passa é o que representa a sua maneira de ver e interpretar o mundo. Ele via a sua pintura como uma pratica de amalgamar as ideias, as cores, as vidas e as técnicas, Fortaleza, Paris, a si próprio e aos outros. Ele tinha uma visão que apagava os conflitos e as diferenças? O cadinho de Bandeira tinha o poder de misturar tudo a ponto de transformar tudo em uma única unidade? Ao que parece, são misturas plurais, talvez o resultado pudesse vir a ser algo uníssono, mas a pesquisa que desenvolvia este artista procurava identificar as diferenças, os nuances e as faíscas de um cadinho em ebulição. Era o poder que o cadinho tinha de fazer um conter no outro, mas isso não significava necessariamente que a transformação por meio das misturas gerasse um produto que anulava as diferenças. Ao contrário o seu trabalho de pesquisa com as cores, por meio da mistura, possibilitava o encontro com imagens as mais diversas. Seria possível saber quando e como Bandeira conheceu o conceito “cadinho de raças”? Não encontramos uma resposta precisa, mas temos exemplos do uso desses conceitos próximos ao artista.


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No dia 1° de julho de 1945, Mario Baratta escreveu um texto intitulado “Exposição cearense” em resposta ao texto de Ruben Navarra apresentando a exposição na Galeria Askanasy, no Rio de Janeiro. Segundo Couto (2009: 75) embora a exposição não tenha recebido muito destaque, alguns críticos ressaltaram a oportunidade de entrar em contato com a pintura do Nordeste. E Navarro, teria celebrado as pinturas vindas do interior, com seu seu ar de pureza, sensualidade e violência, marcadas por um “impeto meio fauve”. E Bandeira representaria o sangue puro do Ceará. Navarra questionou o lugar do índio na pintura cearense e comparou Chico da Silva às impressões que teve quando teve contato pela primeira vez com a pintura de Cicero Dias, adjetivando as suas impressões escreveu: “ingenuidade lirica aplicada à pintura” e continuava as comparações dizendo “este índio é um Dali em estado de natureza” (Galvão 1985: 86) Baratta, devolve dizendo que Navarra, de cearense, somente conhecia o Bandeira. Afirma que o mesmo não podia avaliar o quanto estava sendo feito em Fortaleza em termos de renovação da pintura, na busca da libertação na observação da natureza. E que em relação aos conceitos que Navarra apresentava sobre a pintura Mexicana, os trabalhos por eles realizados, estavam de acordo com a compreensão que estavam tendo da orientação da pintura, afim de chegarem a uma escola de pintura brasileira. E continuou: Do melting-pot nordestino há um tipo, um resultante de fusão, perfeitamente caracterizado, temos um folklore próprio e rico, temos uma literatura nordestina (Zé Lins, Rachel, Graciliano, Fran), a mais brasileira, e, se continuarmos, nada nos impedirá de termos uma escola de pintura nordestina, que pelas determinantes econômicas, mesológicas e antropológicas, será também a mais brasileira de todo o Brasil. (ESTRIGAS, 2004: 55-56)

O que os dois críticos debatem entre seus textos não é a qualidade da pintura propriamente, mas o lugar que elas representam e para quem elas se apresentam, uma relação de poder entre os lugares que as interpretam. Baratta afirma no inicio do seu argumento que Navarra desconhece - mesmo sendo considerado um dos grandes críticos de arte do Brasil - o trabalho que estava sendo desenvolvido em Fortaleza e, que o no Ceará os artistas estavam em sintonia com as propostas contemporâneas em relação à pintura – sabia da onde falava e para quem falava, estava ciente da sua participação na arena política das artes. E qual teria sido a intenção de Mário ao evocar o conceito de melting-pot ? Para contrapor-se a noção de pureza apresentada por Navarra e, mostrar que no Ceará, os projetos em torno da renovação da pintura, sabiam-se resultado de uma fusão cultural? Que os artistas cearenses poderiam produzir uma arte brasileira tanto quanto os artistas da onde escrevia Navarra? Neste texto para o jornal O Estado, o melting-pot é usado como argumento na defesa da arte produzida no Ceará, enquanto arte brasileira. Talvez Navarra não tenha tido a oportunidade de ler a resposta elaborada por este crítico de arte, da cidade que acreditava ser tão distante. O termo foi escrito em inglês, para mais uma vez demarcar que as leituras e interesses que circulavam, na cidade desconhecida por Navarra, faziam parte de um diálogo internacional. Assim, podemos tentar compreender como este conceito de fusão de culturas, foi importante para a afirmação política de artistas, que estavam circunscritos em uma realidade social diferente da dos artistas de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo. Antônio Bandeira tem mais possibilidades de ter

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tido contato com o texto, de ter participado de momentos em que o tema do cadinho de raças foi colocado em pauta, na rodas de conversas entre artistas. Navarra no seu texto fala da origem “enigmática” de Chico da Silva. Baratta responde dizendo que “não duvida em nada da sua origem indígena” e não admite a possibilidade de Chico da Silva ter sido influenciado pelas imagens da arte ocidental, mantendo-se originalmente índio e o mantém o artista no seu lugar de primitivo. Seria possível para o Chico da Silva ser índio e não ser primitivo, para o pensamento da época? Um índio artista urbano, é transformado em um problema para a critica de arte. Como definia-se o ser índio, no Brasil, nos anos de 1940? Era possível pensar arte brasileira e diferenças étnicas, nos meados do século XX? Os críticos em questão não sabiam como enquadrá-lo, Navarra expôs a seguinte conclusão: “O que importa é ele ser um exemplo maravilhoso do que existe em potencial na sensibilidade indígena como promessa de arte criadora”(GALVÃO, 1986:86). Enquanto Baratta afirma a etnicidade de Chico da Silva, Navarra nega e o pensa como um sinal do potencial criativo da herança indígena, para o futuro da criação artística no Brasil. O confronto entre estes dois críticos é um indicio do quão complexo era o uso da noção de cadinho, para pensar as artes brasileiras. Assim, é preciso historicizar este conceito de cadinho de raças que foi difundido no Brasil a partir da obra de Gilberto Freyre e, fez parte da elaboração do processo de formação de uma identidade nacional a partir da diversidade étnica no Brasil. Este conceito tem origem nos Estados Unidos, onde Freyre havia feito seus estudos com Franz Boas. No inicio do século XX, o escritor judeu Israel Zangwill, nascido em Londres filho de imigrantes Russos, escolheu o termo “Melting Pot” como titulo de uma peça de teatro. Essa peça foi encenada em Nova York em 1908. E dramatizava a aceitação dos imigrantes como americanos no cadinho de Deus, o grande melting pot aconteceria quando todas as raças da Europa estivessem fusionadas e refinadas. (BURKE, 2009: 47) O cadinho de raças, proposto por Freyre, nos anos 1930, traria um olhar positivo para o mito das três raças, de acordo com Schwarcz, (1993): O “cadinho de raças” surgia como uma nova forma de celebração do mito das raças - um novo instrumental para a utilização do mesmo termo, porém com um novo sentido -, mais evidente aqui do que em qualquer outro lugar. “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma quando não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro.” (Freyre, op. cit., p. 307) O brasileiro era, portanto, o resultado sincrético de uma mistura bem-feita e original, cuja cultura homogênea e particular era também mista.

Gilberto Freyre se apropria deste conceito para explicar a formação do Brasil, a partir da tese de que não haviam diferentes raças humanas, mas sim diferentes culturas contrapondo-se a teoria evolucionista. O cadinho de raças metaforizava o Brasil como sendo fruto da mistura cultural entre brancos, negros e índios, uma atualização do mito das três raças. Ao homogeneizar as diferenças étnicas no processo de abrasileiramento das praticas culturais, a noção de cadinho provocou, por exemplo, a “desafricanização de elementos culturais, simbolicamente clareados” ( SCHWARCZ, 2010: 12). Considerando esse argumento, questiono: para sua arte ser brasileira Chico da Silva deveria deixar de ser índio? Ou, continuando sendo índio, sua arte seria sempre inferior, posto que era considerada primitiva? Sendo índio ou não, era analfabeto e, por este motivo, seria


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apenas uma sensibilidade criativa, a ser notada como influência na formação da identidade nacional? Índio, pobre e analfabeto, Chico seria visto sempre como o outro e o exótico, não estando “pronto” para ser produto da cultura nacional? E para Antônio Bandeira, artista negro, trazia o tema do cadinho como oferenda à sua cidade queimada do sol. O objeto associado na sua função à sua metáfora. Esse cadinho de raças, de ferro e bronze, de corpo e alma era parte da sua arte, das obras que passavam a fazer parte da coleção do primeiro museu de arte de Fortaleza. No museu-cadinho de Bandeira temos: afeto, deslocamento, dúvidas, os tempos da vida, olhares, meditação, Fortaleza e gente, é feito de ferro e bronze, de corpo e alma e de raças. E principalmente, das lembranças que o ligam à sua história intima, ao seu pai. O cadinho é o vestígio do processo criador, é a sua ferramenta de trabalho, são as técnicas com as quais ele operava com as cores, as ideias, as vidas, as praticas, os olhares e os seus sentimentos. No Brasil não se comentava sobre a cor da pele de Antônio Bandeira, talvez no abrasileiramento do artista, que morava em Paris, acreditassem não caber esta observação. Entretanto, Georges Mathieu artista francês ligado ao abstracionismo lirico, em uma das poucas vezes que citou o nome do artista, referiu-se ao Bandeira como um artista negro: Reencontrávamos Bandeira, esse pintor negro brasileiro, de expressão hilária e sempre bem humorado, que também estava fascinado pela personalidade de Wols, e que eu procurava introduzir nos grupos de artistas. (COUTO, 2009: 81)

Com as misturas do seu cadinho Bandeira teria tornado-se branco para o/no Brasil? Este objeto era o que mantinha os laços com a cidade e com a história familiar. Antes de embarcar para Paris, Bandeira havia pintado três retratos, “retrato de menino”6 em 1942, “auto-retrato no espelho” de 1945 e, em 1946, pintou “auto-retrato na garrafa”7, este último quando vivia no Rio de Janeiro. No quadro de 1942, fica ambíguo, pelo titulo se é um registro dos tempos de menino, ou se é o retrato de um menino qualquer: um busto de menino negro, de olhar sereno e afirmativo. Quando um artista pincela seu autorretrato na tela, está inscrevendo sua imagem na trajetória da sua obra, registra, com este gesto, a maneira como quer ser visto e lembrado, elabora uma representação como escrita de si. Sobre o ato de pintar um autorretrato George Steiner (1993: 183 apud VENTURA, 2010) coloca: o auto-retrato é a menos imitativa, a menos especular das construções estéticas. “Pintar-se a si próprio” é uma expressão densa de um sentido que nos apresenta o escritor ou o artista retomando a criação da sua própria personagem. (…) O auto-retrato é a expressão da sua compulsão de liberdade, da sua intenção agonística de se reapossar, de conseguir o domínio das formas e dos sentidos do seu próprio ser.

Nos dois quadros Bandeira está contido nos objetos que tem a qualidade de refletir a imagem: o espelho e a garrafa. Perto do espelho podemos ver a mesa, como suporte, um cachimbo e uma carteira de cigarros, outros objetos não identificados, marcados pelas cores, vermelho, azul, marrom e branco. A parede amarela e um fragmento da moldura da janela. No centro do quadro, no enqua6 Coleção Antônio Bandeira, acervo do MAUC. 7 Os quadros são da coleção do Governo do Estado do Ceará, acervo MAC, Centro de Arte e Cultura Dragão do Mar.

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dramento do espelho, seu rosto: um jovem negro com os cabelos soltos crescidos na franja. Olha de lado, observando-se no espelho, com semblante inquieto. Por ter escolhido a cor amarela, como predominante para o pano de fundo do quadro, produziu mais luz no ambiente e, por contraste, ressaltou os sentidos do seu próprio ser. Da garrafa, objeto do cotidiano, Bandeira aproveita o reflexo convexo para ampliar as mãos que escrevem. Um homem negro e forte sentado na escrivaninha, aparenta estar reflexivo. Ao fundo a parede da casa, um quadro, as linhas amarelas: a garrafa está sobre a mesa, diante do seu autor. Na feitura do autorretrato, ensaia encontrar a si mesmo, produzir uma interpretação do momento vivido. Na experiência, de saber-se no mundo apresenta aspectos e fragmentos do seu lugar social, seleciona que pessoa, das gentes que o habitam, vai expor ao outros e a si. Bandeira mostra-se de casa para o mundo, inquieto, pensativo e autor/ator da seu ser/estar no mundo. Nesse movimento, o artista mostra que no seu museu-cadinho é também um lugar de histórias de vida.A sua noção de cadinho, não é exatamente a mesma que vai servir ao Governo Federal Brasileiro, na tentativa de forjar uma identidade nacional brasileira que homogeniza e apaga as marcas singulares das diferentes culturas que habitam neste território definido como Brasil. No roteiro escrito por Bandeira para o filme “o colecionador de crepúsculos” , onde contaria sua vida, escreveu: Falando ainda em cadinho, creio que fundindo homens e bichos, cidades, trens, navios, arvores e lixo, remexendo bem como no disco de Newton, se poderá conseguir uma confusão ou receita psicoplàstico poética que não é nada e é tudo. (ESTRIGAS, 2001: 46)

O disco de Newton é uma ferramenta que serve para mostrar que a luz branca é formada de todas as cores, em alta rotação as cores se misturam e criam a ilusão de que o disco é todo branco. Newton trabalhou em diferentes experimentos para demonstrar que “a luz era uma mistura heterogênea de raios com diferentes refrangibilidades”, SILVA e MARTINS (2003: 56 e 61) explicam que: Para entendermos todos os aspectos envolvidos na argumentação de Newton, é importante compreendermos sua distinção teórica entre cor simples (ou primária) e cor composta.compreendermos sua distinção teórica entre cor simples (ou primária) e cor composta. Para desenvolver sua teoria, Newton criou um novo conceito de cor, distinguindo entre nossa sensação e as propriedades da luz em si. Ele estabeleceu cuidadosamente que raios diferentes de luz têm diferentes “disposições para exibir esta ou aquela cor particular”. O mesmo tipo de luz sempre produz a mesma sensação, mas a mesma sensação pode ser produzida por diferentes tipos de luz. Nossos olhos não podem distinguir entre os dois tipos de luz. No entanto, elas podem ser distinguidas através de experimentos: a luz composta pode ser decomposta em duas ou mais componentes por um prisma, enquanto que a luz primária não. Segue-se desta definição que a luz branca não é simples – ela é composta pois pode ser decomposta em várias cores diferentes por um prisma.

O museu-cadinho não teria o poder de transformar a luz, apenas de decompor as suas diferentes cores? Ou teria o poder de iludir causando confusões nos sentidos? Teria este lugar de memória o compromisso de apresentar a heterogeneidade ou de forjar a homogeneidade? No caso da fabricação do patrimônio cultural no museu, a luz não é natural, ela é projetada. Este todo


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branco, que contém todas as heterogeneidades, não é possível. Assim, dependendo das sensações de quem projeta as luzes, algumas cores serão refletidas e outras serão absorvidas. Bandeira reflete uma cidade queimada do sol, feita com o cadinho que ganhou de presente do seu pai. Ao mesmo tempo projeta com a sua luz a vontade de garantir um lugar de memoria das artes, que faça pontes entre a sua cidade e o mundo. Bibliografia: BECKER, HOWARD S. Les Mondes de l’art. Champs des arts - Flammarion, Paris 2010. GALVÃO, Roberto. Chico da Silva e a Escola do Pirambu. Secretaria da Cultura de Fortaleza, Fortaleza, 1985. CHAGAS, Mario. A imaginação museal:museu, memória e poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro: Ibram/Garamond, 2009. BEZERRA, Carlos Eduardo de Oliveira.Adolfo Caminha: um polígrafo na literatura brasileira do século XIX (1885 -1897) – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. BURKE, Peter. Cultural Hybridity. Polity Press: Cambridge, 2009 ESTRIGAS, (Nilo de Brito Firmeza). O Salão de Abril de 1943 a 2009, 2° Edição, atualizada e ampliada por Gilmar de Carvalho. Fortaleza, La Barca Editora, Secretaria da Cultura de Fortaleza, 2009. COUTO, Maria de Fátima Morethy. A recepção da obra de Antônio Bandeira no exterior (1946-1967) In: Revista de História da Arte e da Arqueologia n°11. IFCH Unicamp, Campinas, 2009. ESTRIGAS, Nilo de Brito Firmeza. Arte Ceará. Mário Baratta: o líder da renovação. Museu do Ceará, Secretaria da Cultura do Estado do Ceará. Fortaleza, 2004. ESTRIGAS, Nilo de Brito Firmeza. Antônio Bandeira: a permanência do pintor. Imprensa Universitária, 2001 ESTRIGAS, Nilo de Brito Firmeza.A fase renovadora da arte cearense. Fortaleza, Edições Universidade Federal do Ceará, 1983. ESTRIGAS e DIAS, Milton. Antônio Bandeira: 25 anos depois. Fundação de Cultura e Turismo de Fortaleza, 1992. GAY, Peter. A educação dos sentidos - A experiência burguesa: da rainha Vitória a Freud. São Paulo, Cia. das Letras, 1988 LIMA, Roberto Galvão. A Escola Invisível: Artes Plásticas em Fortaleza 1928 – 1958. Quadricolor editora: Fortaleza, 2008. MICHAELIS, Dicionário de Português Online. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=cadinho acessado em março 2012. OLIVEIRA, Gerciane Maria da Costa. Chico da Silva: estudo sociológico sobre a manifestação de um talento artístico. 2010. 126 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade Federal do Ceará-UFC, Fortaleza, 2010. RIOS, Kênia Sousa. Campos de concentração no Ceará: isolamento e poder na seca de 1932 – Fortaleza, Museu do Ceará, Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001

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Artigo recebido em fevereiro de 2013. Aprovado em março de 2013.


UMA GUARDIÃ DA TRADIÇÃO: GERALDA ARMOND E AS AÇÕES EDUCATIVAS NO MUSEU MARIANO PROCÓPIO (MINAS GERAIS- BRASIL) Carina Martins Costa1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar a trajetória de uma intelectual relegada ao ostracismo, mas que teve uma atuação relevante nos campos político, educativo e museológico brasileiro. Geralda Armond (1913-1980) foi diretora do Museu Mariano Procópio e, por meio de suas ações educativas, procurar-se-á investigar as noções de educação, História e cultura que a autora mobiliza em sua práxis. A análise recairá, portanto, no período de sua gestão do Museu (1944-1980), importante momento de construção de narrativas sobre o passado nacional, no qual os museus históricos foram palco de iniciativas pedagógicas centradas na comemoração e no culto dos heróis. A gestão Armond foi marcada pela defesa da continuidade institucional e do enquadramento da memória do fundador e colecionador; pela luta pela sustentação material do Museu, inclusive com uma forte aproximação com o regime civil e militar; e pela busca da profissionalização de quadros e do dinamismo das ações.Assim, a análise das comemorações cívicas, dos guias de divulgação e das exposições permite uma aproximação das ativações memoriais ensejadas por Armond, com atenção para as continuidades, as negociações e as transformações dos projetos, especialmente em sua dimensão pedagógica.

RESUMÉE: L’objectif de cet article est d’analyser la trajectoire d’une intellectuelle reléguée à l’ostracisme, mais qui a joué un rôle très important dans le domaine de la muséologie et de la politique brésilienne. Geralda Armond (1913-1980) a été directrice du Musée Procopio Mariano (Juiz de Fora, Minas Gerais). Elle cherchait à ét udier, notamment les notions de l’éducation, de l’histoire et de la culture que l’auteur mobilise dans sa praxis. L’analyse portera donc sur sa gestion du Musée (1944-1980), un moment important de la construction de récits nationaux sur le passé, où les musées d’histoire ont été le théâtre d’initiatives éducatives axées sur la célébration et le culte de héros. La gestion « Armond » a été marquée par la défense de la continuité institutionnelle ; par la lutte pour le soutien matériel du Musée, incluant un rapprochement avec le pouvoir civil et militaire ; ainsi que la poursuite de la professionnalisation de la gestion et du dynamisme des actions. Ainsi, l’analyse des célébrations civiques, les catalogues et la présentation des expositions permettent de mesurer le patrimoine de mémoire laissées par Mme Geralda Armond, avec une attention particulière à la continuités, aux négociations et à la transformations des projets, spécialement dans sa dimension pédagogique.

PALAVRAS-CHAVE: Intelectuais. Ensino de história. Museus.

MOTS CLÉS: Enseignement de l’histoire. Intellectuels. Musees.

1 Profa. Adjunta do Departamento de História da UERJ, área prática de Ensino de História.


Uma guardiã da tradição: Geralda Armond e as ações educativas no Museu Mariano Procópio

Venho hoje conversar contigo, minha criancinha brasileira. Sabes bem, minha amiguinha, como os grandes se interessam por ti (…).Tu és a bonequinha viva e querida do Brasil (…), a chavezinha dourada que abre o edifício do futuro (…).

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Estas palavras foram escritas por Geralda Armond em 1941, em um jornal diário da cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais. O tom cordial evoca representações sobre o que é ser criança e, principalmente, patriota, na metade do século XX no Brasil.A autora indica, em seu diálogo imaginado, os principais conselhos para sua amiguinha:“Seja sempre boazinha, obediente e meiga. Inimiga da raiva e da preguiça, seja estudiosa e lembra-te sempre de Deus, rezando todos os dias. O Brasil espera tudo de ti, criancinha colegial (…)1. Em plena vigência do Estado Novo brasileiro, a autora apropria-se do discurso patriótico difundido pelos órgãos educativos e de comunicação da época. A propaganda política varguista enfatizava as dimensões do trabalho, da harmonia e da religiosidade como pontos determinantes para a construção de uma nação de futuro. Assim, a conexão entre política e cultura foi reforçada em inúmeras ações que envolviam desde projetos educativos formais até campanhas de puericultura com a intenção de angariar legitimação do regime em setores amplos da sociedade. Armond retoma, a seu modo, alguns eixos da cultura política do Estado Novo, compreendido como “(…) o regime que nasceu para a salvação do Brasil”2. Seu texto revela um importante aspecto do arcabouço político do governo Vargas, comprometido com a formação de uma nova cidadania, disciplinada e nacionalista: as crianças eram uma das chaves para o futuro do país. Ao projetar como principal interlocutora a menina, a “chavezinha dourada”, a autora reforça as qualidades do gênero feminino, que seriam a obediência e meiguice frente aos “grandes”, leia-se, homens e governantes que se interessariam e zelariam por ela. O lugar da menina patriótica era a escola, responsável por salvá-la da raiva e da preguiça e, portanto, dos conflitos sociais e da ausência de trabalho. Geralda Armond foi uma intelectual que “conversou” com as meninas e os meninos brasileiros por meio de diferentes estratégias. Como cronista, poeta, educadora e, principalmente, diretora do Museu Mariano Procópio, atuou decisivamente na consolidação de valores cívicos e patrióticos. Importa, portanto, analisar a trajetória de uma intelectual relegada ao ostracismo, mas que teve uma atuação relevante em seu tempo. 1 A guardiã da tradição A historiografia brasileira tem avançado na pesquisa sobre intelectuais e educação, com a apropriação de conceitos como redes de sociabilidades, trajetórias e projetos. Pensar a história da educação nos museus envolve, ainda, inserir a questão do gênero, tendo em vista que a maior parte das ações foi proposta, dirigida e executada pelas museólogas. conhecidas como “donas”, dentre as quais podemos destacar Heloísa Alberto Torres (diretora do Museu Nacional) e Nair Moraes de Carvalho (coordenadora do Curso de Museus do Museu Histórico Nacional), ambas atuantes no Rio de Janeiro, então capital federal. Geralda Armond (1913-1980), ou Dona Geralda, como era conhecida, foi diretora do Museu Mariano Procópio e, por meio de suas ações educativas, mo1 ARMOND, Geralda. Cartão Postal. Diário Mercantil, Juiz de Fora, 05 mar. 1941. 2 ARMOND, Geralda. Cartão Postal. Diário Mercantil, Juiz de Fora, 10 nov. 1941.


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bilizou em sua práxis noções de educação, História e cultura. Integrava, portanto, o campo intelectual que projetava o museu como espaço científico e educativo. Foi a primeira diretora após a morte de Alfredo Lage, o fundador do museu, e teve intensa atuação nas redes de sociabilidade que envolveram os intelectuais na busca da consolidação de uma pedagogia da nacionalidade. Sua gestão foi longa, de 1944 a 1980, e perpassou em um importante momento de construção de narrativas sobre o passado nacional, no qual os museus históricos foram palco de iniciativas pedagógicas centradas na comemoração e no culto dos heróis. De acordo com os estudos de Bastos (1961), o ramo brasileiro da família Armond teria vindo da Ilha da Madeira e se instalado em Barbacena no século XVIII. Uma família importante, já que três de seus membros foram agraciados com títulos da nobreza no Império, como o 1º e 2º Barões de Pitangui e o Conde de Prados. Geralda Ferreira Armond Marques foi a décima filha do casal Adalberto Ferreira Armond e Marinha Barbosa Armond. Consta que seu pai estudou no Colégio do Caraça, importante instituição para a formação da elite cultural e política de Minas Gerais, a exemplo de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, de quem fora colega. Não há dados sobre sua mãe, mas seu avô foi o 2º Barão de Pitangui, Honório Augusto José Ferreira Armond (1819-1874), que possuía erudita formação eclesiástica, embora não tenha exercido o sacerdócio. Geralda Armond é apresentada na obra de seu amigo Wilson Bastos como professora, escritora, poetisa, antiga secretária do Museu Mariano Procópio, a quem coube substituir, por longos anos, o Dr. Alfredo Ferreira Lage, desde o falecimento deste, na direção do Museu. Foi casada com o funcionário do Banco Comércio e Indústria de Minas Gerais, e tenor lírico do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Zacharias Cirilo Marques. (BASTOS, 1961, p. 197-198)

O resumo, na verdade, pouco esclarece sobre a trajetória de vida da própria Geralda, o que não é raro no caso de mulheres do período, identificadas como filhas de, mulheres de ou mães de, no traçado de uma identidade cujo sentido é apenas relacional. A identificação como secretária é incorreta, pois a nomeação pela Prefeitura se deu para o cargo de bibliotecária do Museu, em 1939, conforme publicado na imprensa3. De certa forma, o texto de Bastos também revela uma concepção sobre o papel da mulher na sociedade, na qual certas posições seriam permitidas e valorizadas, como o magistério e a escrita ficcional, mas outras seriam inadequadas, como o comando de uma instituição.Assim, Geralda seria identificada como uma substituta e antiga secretária do Dr. Alfredo, ou seja, uma continuadora de sua gestão e vontade. O maior destaque é dado ao seu casamento com Zacharias Cirilo Marques, valorizado duplamente como tenor e funcionário público. Se Bastos não esclarece muito sobre a trajetória biográfica de Geralda Armond, é possível reconstituir, com proveito e cuidado, por meio da imprensa, alguns elementos de sua vida, para além da genealogia. Para tal objetivo, o Diário Mercantil é fonte privilegiada de consulta por sua importância e circulação contínua no período em que viveu. Além disso, Armond escrevia para o jornal regularmente, tendo tido duas colunas fixas: Cartão Postal, com poesias, crônicas e narrativas históricas e Museu em Coluna, com assuntos diversificados sobre o cenário cultural local e nacional. Em estudo sobre as representações do gênero feminino na imprensa de Juiz de Fora, Rita de Cássia Vianna Rosa (2009) destaca o papel dos jornais na 3 ATOS administrativos. Diário Mercantil, Juiz de Fora, p. 2., 12 jan. 1940.

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demarcação de espaços para a mulher, em consonância com o que a literatura especializada chama de ideal feminino de “parecer direita”. Remetendo ao famoso dito grego de que não basta uma mulher “ser” direita, mas também é preciso que “pareça” direita, tal ideal remete às possibilidades reconhecidas socialmente, em determinado tempo e lugar, de participação da mulher no espaço público, já que, a ela, em princípio, caberia apenas o espaço privado da casa. Armond, nesse sentido, era considerada uma “mulher direita” com visibilidade pública, pois, como colaboradora de destaque na imprensa, detinha uma posição valorizada e aceita de expressão de virtudes femininas. Pelas notícias do periódico, é possível observar, inclusive, como ela vai ganhando e estendendo esse “lugar”, uma vez que, no início de sua gestão, ocupa apenas um pequeno espaço no jornal, inclusive havendo um período, nos anos 50, em que não se encontrou nenhuma notícia sobre ela ou sobre o MMP. Mas sua presença vai se afirmando e crescendo, e a década de 1960 representa o ápice de sua participação na imprensa e de divulgação das atividades do Museu, coincidindo com a manutenção de suas colunas. Uma visibilidade que se explica pela posição política de Geralda Armond, uma oposicionista do governo de João Goulart e aliada dos militares que tomam o poder em 1964. Nesse sentido, é bom lembrar que foi de Juiz de Fora e do Comando da Quarta Região, através da figura do general Mourão Filho, que partiu o movimento que acabou por derrubar Goulart, o que tornou essa cidade um local singular na geografia do poder do pós-64. Em 1962 4, ela publicou uma mensagem divulgando o aceite ao convite do Partido Social Democrático (PSD), o maior do sistema partidário de então, para o lançamento de sua candidatura como vereadora do município. O convite demonstra bem seu papel de destaque nas interlocuções políticas e culturais da cidade, bem como as novas possibilidades que se abriam à sua atuação pública, até porque eram muito poucas as mulheres que se lançavam no mundo político-partidário. Na mensagem de aceite, ela propunha à mulher juizforana a formação de um bloco de resistência, assentado na partilha de ideais cristãos, frente às ameaçadoras transformações políticas vivenciadas pelo país. De acordo com Geralda Armond, “meu programa é aquele que sai do coração da Mulher cristã (…)”5, ou seja, um programa que apela a ideais religiosos, em especial católicos, e à mobilização política da condição feminina, algo que, como se sabe, só cresceria nos anos vindouros. Apesar da candidatura não ter tido êxito eleitoral, demonstra a posição de liderança assumida por ela no movimento de mulheres em Juiz de Fora, na medida em que fica clara que essa é a interlocução que ela se aplica em estabelecer. Nesse sentido, o episódio é igualmente revelador da penetração da Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), criada no Rio de Janeiro, em Juiz de Fora. Diversas ações foram encetadas pelo grupo de mulheres da cidade, vinculado à CAMDE, entre elas palestras anticomunistas em colégios, publicação de artigos em periódicos, jantares de adesão, abaixo-assinados, indicação de nomes de candidatos às eleições de 1962 e, por fim, grandes comícios. O grupo, embora mantido em anonimato, como precaução frente a uma derrota política, era composto por mulheres de prestígio social, como esposas de militares, prefeitos e empresários (ROSA, 2009, p. 17). O envolvimento de Armond com a CAMDE foi profundo e ocorreu por meio da publicação de textos e da realização de palestras, reforçando um ideário místico da mulher como guardiã dos 4 ARMOND, Geralda. Minha mensagem à mulher de Juiz de Fora no dia das mães. Diário Mercantil, Juiz de Fora, 13/14 maio 1962. No arquivo histórico do Museu, encontram-se santinhos de sua campanha. 5 Ibid.


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valores da família, célula básica de uma sociedade “sadia”, dentro das tradições brasileiras e, mais ainda, mineiras. Assim, a CAMDE, em Juiz de Fora, reforçava a mística feminina ao associá-la aos símbolos da mineiridade, frutos de um passado de luta pela liberdade, em que as mulheres tiveram destaque. A escrita de Armond ressalta o heroísmo das mulheres e o seu protagonismo na luta contra os “perigos comunistas”, identificados como uma autêntica representação do “mal” contra o qual o “bem” se batia. Dessa forma, com a instauração do regime civil e militar, Geralda logrou muitas homenagens e uma posição privilegiada de interlocução política na cidade. Não obstante sua projeção pessoal, as ações da CAMDE foram arrefecidas diante da chamada “revolução democrática”, e as mulheres do grupo deixaram seu protagonismo para assumir uma posição de bastidores, de apoio e vigilância dos ideais difundidos. Segundo o estudo de Rita Rosa (2009, p. 36), apesar de a CAMDE perder, paulatinamente, espaço na imprensa, Geralda Armond continuou em evidência, desempenhando papel de porta-voz do grupo, o que foi reforçado por suas ações de rememoração no Museu. Nesse ponto, especialmente, sua biografia e a história institucional do MMP convergem fortemente, alcançando momento de destaque. A sua morte, duas décadas depois, foi outro momento importante para se compreender a percepção que setores da sociedade local construíram a seu respeito. Ocorrida em 10 de agosto de 1980, mereceu grande atenção da imprensa, ganhando um necrológio de Almir de Oliveira, reconhecido historiador da cidade. Em seu texto, Almir de Oliveira6, em tom bastante emocionado, ressaltou a sua longa amizade com Geralda, mas, sobretudo, a relação de amor estabelecida com a instituição, que sofria grande perda. O autor assinalava que “a Geralda Armond dos discursos cívicos, iluminados de sol, vibrantes de entusiasmo, muitas vezes carregados de certa ingenuidade e de pureza, não falará mais”. Em suas palavras, “morreu a grande amorosa da cidade, de sua gente, de suas tradições, de seu relicário – o Museu Mariano Procópio”. Segundo Oliveira, ela havia sido vítima exatamente deste amor ao Museu e de seu incomensurável sacrifício, em um momento no qual suas aspirações de melhorias pareciam se concretizar com a reforma empreendida por Mello Reis. Ressaltava então as dificuldades enfrentadas ao longo de sua gestão, bem como as críticas severas e injustas que vinha recebendo, além da pouca atenção dos prefeitos. De acordo com ele, Armond doou-se integralmente à instituição, valorizando “o mínimo, na esperança de novos mínimos”. Nesse momento tão especial, não é de se estranhar o destaque dado à sua luta pela defesa do Museu, atravessando sucessivas administrações municipais, pouco atentas às demandas orçamentárias de um empreendimento de tamanha envergadura, como era o MMP. Em um longo período de gestão, com transformações no cenário cultural e político da cidade, do estado e do país, é previsível um deslocamento na construção da figura pública de Geralda Armond pela imprensa. O tom com que é tratada vai se alterando ao longo do tempo: se no início de sua gestão era considerada uma mestra no Museu, empenhada em divulgar seu acervo e história já, ao final, passa a ser apresentada, ainda que subliminarmente, como um empecilho para a instituição, quer pela desorganização e/ou fechamento de parte do acervo, quer pelos assaltos e roubos sofridos por falta de segurança. Frente a esses problemas, sua figura é a de uma mulher frágil, idosa e sem poder para enfrentá-los ou geri-los. Assim, ainda era possível valorizá-la como educa6 OLIVEIRA, Almir. Geralda Armond. Diário Mercantil, Juiz de Fora, 15 ago. 1980.

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dora, papel facilmente atribuído a uma mulher com larga experiência, mas não mais como a gestora eficiente da mais importante instituição cultural da cidade, com potencial de trânsito nacional. Mas as mudanças no tratamento à diretora podem se dever, também, a um processo de reposicionamento político do jornal, com o início da transição democrática no país. É nesse período, segundo Rosa (2009), que as chamadas “mulheres democratas” são esquecidas e mesmo silenciadas, sendo que muitas haviam se afastado da arena pública. Além disso, outros sentidos já eram atribuídos aos museus, havendo críticas contundentes a um mero papel de legitimador de elites, ainda mais quando relacionadas ao regime civil e militar, conforme o ocorrido no caso do Museu Mariano Procópio, sob a gestão de Geralda Armond. Com sua morte, fica claro que um ciclo se fechava para a instituição, que, mesmo após três décadas, ainda conhece pouco sobre a mais longa administração de sua história. Isso somado ao fato, muito sintomático em termos de construção de memória, de, até hoje, nenhuma homenagem ter sido feita a Armond68, nem seus projetos pendentes terem sido retomados ou rediscutidos. Ao contrário, o que se assiste é um silenciamento sobre sua figura, acompanhado de um desmanche gradual da estrutura construída por ela. O Museu Mariano Procópio, em nome da profissionalização de suas atividades e de uma nova fase de sua vida institucional, foi criando, como é fácil perceber, uma barreira de esquecimento em relação à sua principal gestora. 2 Ações educativas no “ninho das relíquias” “[O Museu] onde os quadros fremem, as esculturas (...) palpitam, os livros falam, as cartas sangram, as armaduras cantam hinos de glória (...)”. Geralda Armond, 1955

A análise das ativações memoriais engendradas por D.Geralda exige, de saída, compreender as noções de passado e tradição que mobilizava em suas ações educativas, forjadas ao longo de sua trajetória. É interessante, em primeiro lugar, analisar a sua compreensão do uso das fontes nos museus. Elas falam por si e “cantam hinos de glória”. São utilizadas para o resgate do passado, como se essa operação fosse possível. Caberia ao historiador, portanto, apenas escutá-las. Igual concepção ela apresenta sobre o “palacete descorado e triste”, onde “o nosso Brasil de ontem está guardado, inteirinho, nos salões silenciosos do Museu Mariano Procópio”7. O passado inerte é convocado para suas ações pedagógicas como fonte de aprendizado cívico e legitimidade. A ideia de tradição, fundamental em seu discurso, tinha profundas relações com o pensamento museológico de Gustavo Barroso, fundador do Museu Histórico Nacional, que também advogava em favor do museu como casa de cultura e tradição. Uma indicação de que as relações entre as instituições foram mantidas e aprofundadas durante toda a sua gestão, quer mais institucionalmente, quer na defesa de concepções de história e de museus. De acordo com o depoimento de Nair de Carvalho (2008)8, ex-coordenadora do Curso de Museus, Gustavo Barroso chegou a pronunciar uma conferência no MMP e, ao menos uma vez, os alunos visitaram a instituição no programa de excursões 7 O MUSEU e o Parque Mariano Procópio. Diário Mercantil, Juiz de Fora, 22 nov. 1939. 8 Depoimento de Nair de Moraes Carvalho, concedido à pesquisadora no dia 15 de outubro de 2008.


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anuais, conforme relatório de 1944, o que evidencia a formação de uma rede de sociabilidade importante no campo museológico. A gestão de Geralda Armond aponta ainda para a maior participação do Museu Mariano Procópio no cenário museológico brasileiro. De acordo com Henrique Cruz (2008), ela era membro do primeiro Comitê Nacional do ICOM, formado em 1948 por quinze membros. Destes, treze participantes eram diretores de museus, a maioria do Rio de Janeiro. A presença de Geralda parece ter sido mais simbólica, pois seu nome não consta nas atas pesquisadas por Cruz. Não obstante, Lygia Martins Costa (2002, p. 49), museóloga do IPHAN, assinalou em suas memórias que conviveu com a diretora nos “vários congressos nacionais de museus realizados pela organização nacional do ICOM”. De qualquer forma, o fato demonstra a inserção do Museu em um importante projeto para a consolidação da museologia no Brasil. Outras iniciativas da direção permitem reforçar essa ideia de inserção do MMP e, portanto, de Geralda Armond, no campo intelectual. Em julho de 1973, por exemplo, Armond coordena o II Encontro de Museus Mineiros, com o apoio da Universidade Federal de Minas Gerais e do IPHAN. De acordo com o Diário Mercantil, os seminários foram dirigidos por assessores do IPHAN, abordando temas comuns aos museus mineiros, com ênfase na relação com a comunidade local e o potencial turístico de cada instituição. Os temas das palestras eram claros e imperativos: “Pôr a casa em ordem para receber o público”, “O que o Museu deve e pode realizar em benefício do público” e “Atividades culturais em benefício do público”. Essa é uma oportunidade rara para se acessar o pensamento de Geralda Armond, que então expõe suas concepções pedagógicas e museológicas, em fala de apresentação, situando também o Museu Mariano Procópio no cenário museológico: Os Museus do Brasil contam a História Pátria, na sua linguagem expressiva, vestidos de Tradição e de Beleza coeterna (sic). Os de Minas Gerais, sobretudo, exaltam a nossa Independência, desde os remotos tempos da Inconfidência. (…) Em Juiz de Fora, se ergue o “Mariano Procópio”, sentinela das relíquias históricas do Brasil Colônia, do Brasil Império. Hoje suas portas se abrem num abraço de congraçamento a todos os seus coirmãos (…). Os Museus são verdadeiras Escolas de Cultura. Neles, todos os estilos se cruzam. São arautos da Verdade. (…) falam a linguagem do Passado e do Presente, numa dinâmica de História, de Tradição e de Arte9.

A citação evidencia como Armond situa o lugar específico dos museus mineiros no cenário nacional, evocando o mito das Minas Gerais como terra da liberdade. A Inconfidência é assim interpretada como a origem do sentido da independência, conseguida, afinal, pela família imperial, o que tornava o MMP exemplar como guardião dessa tradição de liberdade tão cara aos mineiros: o Museu era uma “sentinela” do passado da Colônia e Império. Vale notar que, mesmo vivendo o período do regime civil e militar, a diretora exclui a República como período a ser destacado como alvo de atenção do Museu, apesar de defender a “revolução democrática” em vários de seus pronunciamentos e escritos, percebida como uma consagração dos ideais de liberdade e independência mineiros. Ou seja, no momento de um encontro de museus a 9 ARMOND, Geralda. II Encontro Mineiro de Museus. Diário Mercantil, Juiz de Fora, Caderno de Domingo, 01/02 jul. 1973.

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representação do tempo presente no espaço museal era algo ainda muito difícil, sendo mais adequado estabelecer laços com um passado efetivamente distante e, também, conforme a trajetória “original” do Museu e de seu acervo. Foi, portanto, principalmente a partir do modelo barroseano que Geralda Armond procurou encontrar subsídios para a construção de projeto educativo que dialogasse com as discussões museológicas mais modernas de seu tempo.Tendo enfrentado, em toda sua gestão, o desafio, anunciado por ela mesma, de conciliar o dinamismo pretendido com o respeito ao “sagrado” desejo do doador, ou, em outros termos, entre ação e reação, ela procurou ressignificar o Museu, realizando escolhas, conseguindo verbas e, certamente, aceitando algumas imposições. Nesse paradigma, “ver” é um sentido fundamental, o que remete a uma noção de patrimônio substancialista, na qual a essência do objeto está encerrada nele mesmo (MENESES, 1994). Assim, a primazia do estético reforça uma concepção de História como magistrae vitae: é preciso visualizar os exemplos do passado nacional para atuar no presente. Os objetos funcionam como comprovações autênticas do discurso museal, precisando, por isso, serem devidamente etiquetados pelos conservadores da memória. O papel dos museus seria, por conseguinte, dinamizar essas lições do passado, o que foi consecutado por meio de diferenciadas estratégias, como a produção de materiais informativos, de visitas guiadas, de exposições e de eventos comemorativos. Apesar de todas as dificuldades políticas e financeiras, a gestão de Geralda Armond seria marcada por uma intensa atividade cultural e educativa, além de um aumento da visitação ao Museu. É possível que essa maior visibilidade e reconhecimento público possibilitassem também um maior poder de pressão nas negociações políticas por concessões e verbas orçamentárias, embora seja difícil demonstrar uma conexão entre ambas. Ademais, Geralda, atenta aos mecanismos de difusão e legitimação do MMP, ressalta, nesses relatórios, a publicação de seus artigos na imprensa, considerando-os um meio de divulgação institucional importante. Porém, sem dúvida, seria sua aproximação com os ideais da “revolução de 1964” e, mais objetivamente, com o alto-comando da IV Região Militar, que lhe proporcionaria as condições de barganha para um maior fortalecimento da instituição que dirigia, razão pela qual os anos 1970 representam o ápice do prestígio tanto da diretora como do Museu. É neste momento que o projeto comemorativo no Museu ganha visibilidade. Olhar para o passado, realizando o trabalho de representá-lo por meio de objetos que têm aura, como semióforos que ligam o visível ao invisível, atravessando tempos e despertando emoções, implica igualmente a produção e a escolha de heróis, capazes de encarnar seus valores (POMIAN, 1984). Dessa forma, se podem entender as ações que os museus exercem por meio de suas atividades educativas, de suas publicações, de suas exposições temporárias ou das alterações na exposição “principal” que, deste ponto de vista, não é “permanente”, ainda mais quando se consideram as múltiplas apropriações realizadas pelo público visitante e/ou leitor. Os rituais são práticas culturais cujos sentidos são sempre polissêmicos pelas variadas formas de apropriação que sofrem, embora sejam organizados com determinadas intenções pelos que se encarregam de encená-los. No caso do MMP, os rituais de comemoração da cidade e da pátria foram um dos meios mais utilizados e efetivos para promover a sua inserção no cenário museológico e no circuito político municipal, regional e nacional. Mais do que isso, tais rituais se constituíram em momentos para reforçar o seu projeto pedagógico, calcado


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em um sentido de história cívico-patriótica e direcionado a um futuro, definido como progresso/desenvolvimento, bem nos termos de uma história memória da nação, segundo paradigma construído no século XIX. A celebração de um calendário cívico pelo Museu dialogava, ainda, com as práticas escolares que geravam demandas em relação ao espaço museal. As datas cívicas são e permanecem sendo uma referência importante para a construção e a celebração do passado comum de um “povo”, tendo forte tradição no circuito escolar, onde as crianças, sobretudo nos primeiros anos de vida, devem ser socializadas com a narrativa histórica que fale dos grandes fatos e heróis nacionais. Não por acaso, em alguns momentos, ensinar História foi compreendido justamente como comemorar as suas principais datas cívicas. De qualquer forma, o que se deseja assinalar é a importância de uma demanda social por datas cívicas, capazes de oferecer um sentido para eventos e para o “tempo” da história de país. Um conjunto de eventos e significados que vai sendo selecionado e naturalizado, inclusive e destacadamente, pela repetição ritual. Mais uma vez, importa assinalar que as datas cívicas resultam de um longo trabalho político de seleção, que não sendo arbitrário nem tendo sentido instrumental, envolve lembrança e esquecimento. Ao estabelecer um verdadeiro culto à memória do colecionador e fundador Alfredo Ferreira Lage, a diretora criava uma diretriz para a política de crescimento do acervo e de fortalecimento da visibilidade do Museu, que deveria se reconhecer e ser reconhecido como a “casa da família Lage”. Nessa chave, que combinava, sem estabelecer fronteiras, o privado e o público, ela explorava quer os desdobramentos simbólicos que tal identidade guardava com um passado ligado à nobreza brasileira do século XIX, quer com um “empresariado” modernizador, amalgamando representações bem conforme à construção identitária da própria cidade de Juiz de Fora. O MMP ampliou, ainda, suas negociações memoriais para angariar recursos e prestígio, o que culminou na adoção de uma estratégia de multiplicação de projetos – museu da cidade, museu de ciências, além de histórico e artístico. O Museu foi transformado em palco de consagração da história recente, através do uso do passado da Inconfidência e de Tiradentes, que conciliava o discurso dos heróis da liberdade e a imagem de Mourão. Nesse momento, o espaço de consagração da “Revolução” foi garantido por meio da doação e exibição de objetos de um de seus principais líderes. Logo, o MMP atuou como importante memorial da “revolução de 64”, o que lhe garantiu, sem dúvida, ampla divulgação e apoio, mas também gerou uma herança difícil de ser enfrentada após a redemocratização. Os personagens e as efemérides poderiam sofrer algumas mudanças, conforme a política do presente, porém, como ocorre no caso de memórias nacionais consolidadas, certo repertório de nomes e datas passa a integrar o calendário do MMP por décadas, variando, é bom reforçar, os sentidos que o público lhe pudesse atribuir. Cinco datas se destacaram no calendário cívico da instituição durante a longa gestão de Armond. A primeira era o dia 10 de janeiro, nascimento de Alfredo, posteriormente transformada em “Dia do Museu Mariano Procópio”. Ela foi comemorada, com poucos intervalos, de 1943 a 1981, segundo um ritual que tinha uma parte fixa, mas podia sofrer acréscimos que lhe aumentassem o valor simbólico da maior data da história da instituição. Assim, anualmente, celebrava-se uma missa e organizava-se a reunião do Conselho de Amigos, com a apresentação do relatório pela diretora, o que tinha o claro sentido de estabelecer um momento solene, no qual se fazia o diagnóstico e o prognóstico das

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dificuldades e possibilidades da instituição. A parte móvel do ritual pode ser ilustrada pelo que ocorreu, em 1970, quando a data foi escolhida para a trasladação dos restos mortais do casal Frederico e Alice Lage, irmão e cunhada de Alfredo. Tiradentes, o maior herói cívico do regime republicano e da história das Minas Gerais era reverenciado, também anualmente, em 21 de abril, pelo menos a partir de 1947, já na gestão de Armond. Na ocasião, ocorriam palestras, publicações de diversos textos sobre a comemoração nos jornais, além de se realizarem teatralizações sobre o evento com escolares. Importa ressaltar que comemorar Tiradentes, além de todo o significado que o herói guarda para a História do Brasil e das Minas, no caso do MMP, envolvia consagrar a própria política de aquisição de acervo do Museu e a sua importância no campo museológico10. Outro marco importante para o Museu era o dia 13 de maio, data da abolição da escravidão no Brasil. Banhada em simbolismo, que ainda uma vez comemora o valor e ideal de liberdade, havia uma missa matinal, conferências e eventos artísticos. Comemorada anualmente, talvez o maior evento, pelo que significou, tenha ocorrido justamente em 1922, quando da abertura do prédio Mariano Procópio ao público. No caso do dia 13 de maio, o Museu procurava dialogar com a memória da abolição dos escravos e da Princesa Isabel, para promover a instituição, cuja história era marcada por laços de amizade com a família Orleans e Bragança, selados por visitas de herdeiros de Isabel e do próprio Conde d’Eu à Villa. Além disso, em seu acervo havia peças que remetiam à figura da “princesa redentora” de grande sentido simbólico, como é o caso de uma estatueta de prata, doada pelo Jóquei Clube do Brasil. No mesmo registro de efemérides, no dia 25 de agosto, o Museu se integrava às festas do Dia do Soldado, celebrado com homenagens ao Duque de Caxias, apresentações de banda militar do Exército, inaugurações de salas com doações provenientes do Exército e discursos patrióticos de Geralda Armond aos estudantes. Por fim, a partir do segundo aniversário da “revolução gloriosa de 1964”, nas palavras de Geralda Armond, o dia 31 de março entrou definitivamente para o calendário comemorativo do Museu Mariano Procópio, tornando-se o local de excelência para a celebração do fato na cidade. Uma data flutuante era o dia 31 de maio, comemorativo do aniversário de Juiz de Fora. Como é compreensível, a participação do MMP nessa festa torna-se mais marcante na década de 1970, um fato decorrente da maior aproximação da instituição da política local, que se reflete em um melhor diálogo com os prefeitos. Além dessas datas que integram um calendário cívico fixo, pois festejado anualmente, grande destaque era dado às comemorações de centenários pelo seu significado e pelo óbvio fato de assinalarem momentos raros e altamente propícios ao estabelecimento de laços de continuidade histórica entre passado, presente e futuro. Lições móveis da História”, nas palavras de Fernando Catroga (2001) ou “lições vivas para o presente”, na acepção de Geralda Armond, as comemorações também estabelecem relações fulcrais com a construção de projetos de ensino de História, sinalizando para o cumprimento de gestuais e narrativas cívicas, que repetidas sistematicamente, embora não com o mesmo conteúdo, são internalizadas e naturalizadas. Por isso, importa refletir sobre as atualizações memoriais presentes nos rituais dos museus, pois permitem vislumbrar as dinâmicas tecidas entre história e memória. 10 O Museu Mariano Procópio possui a tela “Tiradentes Supliciado”, de Pedro Américo, um dos principais pintores nacionais do século XIX. A imagem é amplamente difundida em livros didáticos e exposições, inclusive internacionais.


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3 Considerações finais Muito pouco destaque tem sido dado à Geralda Armond, embora ela tenha desempenhado o papel de memorialista do MMP, além de atuar na imprensa, na organização de movimentos de apoio ao regime civil e militar e na promoção de atividades educativas. A gestão Armond foi marcada pela defesa da continuidade institucional e do enquadramento da memória do fundador e colecionador; pela luta pela sustentação material do Museu, inclusive com uma forte aproximação com o regime civil e militar; e pela busca da profissionalização de quadros e do dinamismo das ações. Assim, a análise das comemorações cívicas, dos guias de divulgação e das exposições permite uma aproximação das ativações memoriais ensejadas por Armond, com atenção para as continuidades, as negociações e as transformações dos projetos, especialmente em sua dimensão pedagógica. A dinâmica entre lembrar e esquecer envolve a trajetória de Armond. Hoje, mesmo após três décadas de sua morte, ainda se conhece pouco sobre o pensamento e a ação dessa intelectual. O que se assiste é um silenciamento sobre sua figura, acompanhado de um desmanche gradual da estrutura construída por ela no MMP. Figura ligada aos tempos de autoritarismo, centralizadora e, certamente, polêmica, Geralda Armond não se tornaria um bom material para um trabalho de memória que tinha, como seu objeto, glorificar o próprio Museu. Mas quando a memória esquece, cabe aos historiadores lembrar e entender as razões desse esquecimento, até porque como a memória é obra do presente, o passado continua em aberto, podendo ser mobilizado com novos significados. Referências ARMOND, Geralda. Cartão Postal. Diário Mercantil, Juiz de Fora, 05 mar. 1941. ______. Cartão Postal. Diário Mercantil, Juiz de Fora, 10 nov. 1941. ARMOND, Geralda. II Encontro Mineiro de Museus. Diário Mercantil, Juiz de Fora, Caderno de Domingo, 01/02 jul. 1973. ______. Minha mensagem à mulher de Juiz de Fora no dia das mães. Diário Mercantil, Juiz de Fora, 13/14 maio 1962 ATOS administrativos. Diário Mercantil, Juiz de Fora, p. 2., 12 jan. 1940. BASTOS,Wilson de Lima. Álbum do município de Juiz de Fora. São Paulo: Habitat, 1955. ______. Mariano Procópio Ferreira Lage: sua vida, sua obra, descendência, genealogia. Juiz de Fora: Edições Paraibuna, 1961. CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001. COSTA, Lygia Martins. De museologia, arte e patrimônio. Brasília: IPHAN, 2002. CRUZ, Henrique Vasconcelos. Do horizonte do passado ao horizonte do futuro. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Escola de Museologia, 2007. MENESES, Ulpiano Bezerra. Do teatro da memória ao laboratório da história: a exposição museológica e o conhecimento histórico: anais do Museu Paulista. São Paulo: [s.n], 1994. (Nova Série, v. 2). O MUSEU e o Parque Mariano Procópio. Diário Mercantil, Juiz de Fora, 22 nov. 1939.

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Uma guardiã da tradição: Geralda Armond e as ações educativas no Museu Mariano Procópio

OLIVEIRA, Almir. Geralda Armond. Diário Mercantil, Juiz de Fora, 15 ago. 1980. POMIAN, Krystopher. Coleção. In: ROMANO, Ruggiero. Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1984. v. 1.

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ROSA, Rita Vianna. As mulheres de Paraiburgo: representações de gênero em jornais de Juiz de Fora MG (1964-1975). 2009. Dissertação (Mestrado em História)–Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2009.

Artigo recebido em janeiro de 2013. Aprovado em março de 2013


A INOCÊNCIA DO MUSEU: INTERSECÇÕES ENTRE LITERATURA E ARTES VISUAIS Emerson Dionisio Gomes de Oliveira1* Universidade de Brasília

RESUMO: O presente artigo buscou analisar a relação entre o romance “Museu da Inocência” e o museu homônimo, ambos criados pelo escritor turco Orhan Pamuk. A coleção criada por Pamuk para orientar na confecção do livro e as estratégias de torná-la visível foram os processos debatidos. Depois de um breve comentário sobre o museu, segue-se a comparação entre as estratégias museológicas e estéticas utilizadas por Pamuk e aquelas adotadas por artistas visuais desde os anos de 1960.

ABSTRACT: This work seeks to analyze the relationship the novel “Museum of Innocence” and the homonym museum, both created by the Turkish writer Orhan Pamuk. The collection created by Pamuk to guide the making of the book and the strategies to make it visible processes were discussed. After a brief comment on the museum, we have a comparison between the museum and aesthetic strategies used by Pamuk and those adopted by visual artists since the 1960s.

PALAVRAS-CHAVE: Orhan Pamuk. Museu da Inocência. Arte contemporânea.Teoria crítica.

KEY-WORDS: Orhan Pamuk. Museum of Innocence. Contemporary art. Critical theory.

1 * Doutor em História pela Universidade de Brasília. Docente do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília; docente do curso de Museologia na mesma instituição.


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Numa breve passagem do diálogo Fedro, Platão distingue recordação e memória. Para o filosofo, esses conceitos têm relação com a “interiorização” do conhecimento. A memória representa, de certa maneira, o saber. E não podia ser apreendida através de símbolos externos ao indivíduo, pelo contrário, era inerente a ele. A escrita permitia a criação de um processo mnemotécnico, no qual os símbolos externos proporcionam a quem leu a possibilidade de se recordar de determinado conhecimento. Essa recordação, em Platão, é distinta e inferior à memória advinda do tipo de conhecimento que o filósofo declarava ser o único verdadeiro, a saber: aquele que não pode ser ensinado, pois provém do interior do indivíduo. Sinais exteriores, dessa forma, não podem ensinar o que quer que seja. Os signos exteriores não significavam a verdadeira memória. A distinção platônica, embora superada, nos oferece uma excelente metáfora para a compreensão da dupla jornada do escritor turco Orhan Pamuk: a escrita do romance Museu da Inocência (PAMUK, 2011a), publicado originalmente em 2008, e a instauração do “Museu da Inocência”, inaugurado em Istambul em 2012 (Figuras 1 e 2). Dentro do romance, um museu de adoração fetichista dos objetos “interiores” relacionados à mulher amada. Fora, um museu dedicado a rememorar, por meio de objetos “exteriores”, uma narrativa ficcional: um museu do Museu. As questões que se apresentam possuem um caráter inevitavelmente ordinário: um museu pode nascer de uma obra ficcional? Ou um romance pode ser concebido da vontade de construir um museu? Evidentemente que as respostas afirmativas não esgotam o problema no que concerne ao modelo ético que sustenta toda uma ideologia patrimonial no ocidente.1 O presente artigo busca debater como um museu pode ser concebido dentro de uma obra de arte e afetá-la de modo a constituir-se parte de sua própria poética. O “Museu da Inocência”, instalado no bairro de Çukurcuma2, em Istambul, é uma operação complexa, na medida em que nos faz perguntar sobre os limites entre a memória, enquanto modalidade veritativa de uma dada comunicada, e uma memória ficcional, intima e particular, construída a partir de uma trama autorreferente, que tem em seu criador sua matriz instituidora. Para aprofundar nossas discussões, vamos percorrer o processo de criação da história de Kemal e Füsun e compreender quais elementos visuais e memoriais “exteriores” são explicitados, uma vez que Pamuk considera que, “sem dúvida, todo o texto literário se dirige, ao mesmo tempo, à nossa inteligência visual e à nossa inteligência textual.” (PAMUK, 2011b, p. 67). O enlace entre textualidade e visualidade aprofunda-se com a constituição do museu em 2012 e impacta, desde o início, seu projeto “curatorial” e expográfico. Proporemos, a seguir, uma leitura de como o jogo tramado por Pamuk relaciona-se com os modelos ficcionais e poéticos da arte contemporânea, área que especialmente nos interessa. 1 Uma inacreditável história de silêncios Museu da Inocência conta a história de um amor frustrado, carregada de desencontros, interdições e silêncios. O autor institui-se como personagem da 1 “Que eu saiba, este é o primeiro museu baseado num romance”, alerta Pamuk, em entrevista ao Jornal The New York Times. KENNEDY, J. Michael. Pamuk e a nostalgia. O Estado de São Paulo, São Paulo, 8 maio 2012. Caderno 2, D7. 2 Na transcrição dos nomes de origem turca, obedecemos aos tradutores para a língua portuguesa voltados ao mercado editorial brasileiro (Hildegard Feist e Sergio Flasksman), mesmo quando as fontes estão em língua inglesa e francesa.


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Figura 1 - Imagens do Museu da Inocência, inaugurado em Istambul em 2012. Fonte: MUSEU DA INOCÊNCIA. Site oficial do museu. Disponível em: <www.masumiyetmuzesi.org>. Acesso em: nov. 2012.

Figura 2 - Imagens do Museu da Inocência, inaugurado em Istambul em 2012. Fonte: MUSEU DA INOCÊNCIA. Site oficial do museu. Disponível em: <www.masumiyetmuzesi.org>. Acesso em: nov. 2012.


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narrativa num discurso memorial quase documental. Pamuk, o escritor contratado por Kemal, “herói” do romance, apresenta o drama do protagonista apaixonado por uma mulher mais jovem que ele, Füsun. É a história do lamento de um “herói” impotente diante de um destino que se apresenta mais forte que ele – o destino de um personagem frustrado, que amplia seu sofrimento por meio de narrativas enviesadas e mal-entendidos inexplicáveis. Kemal, o personagem, sofre pelo que realmente acontece; pelo que já aconteceu e pelo que imagina que poderá acontecer. Num sentido romântico, ele sofre principalmente pelo o que imagina e pelo que sonha. Sofre ao imaginar que sua amada está morta. Sofre ao imaginar que ela o abandonará. Sofre, principalmente, por amá-la. A narrativa é fragmentada em oitenta e três capítulos que descrevem o envolvimento de Kemal com Füsun: o término do noivado de Kemal com Sibel (sua primeira noiva); o desaparecimento de sua amada (tema recorrente para Pamuk3), que consome páginas e páginas do romance; a decepção de reencontrá-la casada; as estratégias para aproximar-se de toda a família da moça por meio do marido; as incursões na incipiente indústria cinematográfica turca; a esperada união; e o fim trágico. Em sua perspectiva material, o museu surge, desse modo, como uma forma de recordação de uma impossibilidade e do sofrimento: o amor de Kemal e Füsun.4 O autor lembra recorrentemente que o livro foi escrito concomitantemente à vontade de criar um museu para a memória desse amor. O método que utilizou para escrever o romance é revelador de como livro e museu estão intrinsecamente relacionados. Pamuk acredita que a descrição de objetos, lugares, enfim, das coisas “externas” do mundo num romance deve ser a expressão da compaixão pelas personagens (PAMUK, 2011b, p 85). Ou seja, construir, pela narrativa, um espaço que delineie os sujeitos do romance e que deles faça parte. Ele se inspirou nos objetos que cercavam as personagens, ora encontrando-os antes de inseri-los na trama, ora percorrendo lojas, antiquários, brechós, mercados etc. em busca daquelas “coisas” que havia imaginado para seu romance: Eu pretendia usá-los no romance e estava imaginando situações, momentos e cenas adequadas a esses objetos, muitos dos quais (como um ralador de marmelo) eu comprara por impulso. Uma vez, fuçando num brechó, encontrei um vestido de tecido claro com rosas alaranjadas e folhas verdes e decidi que era perfeito para Füsun, a heroína de meu romance. Com o vestido estendido diante de mim, pus-me a escrever os detalhes de uma cena em que Füsun, usando esse exato vestido, está aprendendo a dirigir. (PAMUK, 2011b, p. 88-89)

3 O autor dedica especial atenção ao tema em O livro negro, obra publicada originalmente em 1990, na Turquia. Nele já podemos encontrar traços do leitmotiv do Museu da Inocência: Em algum ponto dessas novas procuras baldadas, quando se via tendo nas mãos a caixa vazia de um par de óculos escuros havia muito perdido ou às voltas com as memórias despertadas pela fivela de um dos velhos cintos de Rüya, ele entendia como tudo aquilo era em vão e sem sentido (e como eram implausíveis os detetives de todos aqueles livros, para não falar dos autores compassivos que sussurravam pistas oportunas nos ouvidos dos seus heróis!), e então devolvia o objeto que tinha nas mãos ao seu lugar de origem – com uma precisão meticulosa, com o cuidado do pesquisador que elabora o inventário de um museu – e voltava para cozinha a passos de sonâmbulo. (PAMUK, 2008, p. 66). 4 Uma dimensão não explorada do romance aqui diz respeito a seu elo com a cidade e à cultura local. A história do romance percorre o último quarto do século passado e apresenta-nos um impressionante retrato do cotidiano das famílias de classe média de Istambul. Do mesmo modo, todo o romance funciona como um retrato dos tensos dilemas que envolvem uma sociedade instaurada entre o Oriente Médio e o Ocidente: “(...) o que temos aqui não é uma simples história de amor, mas de todo o reino, ou seja, de Istambul.” (PAMUK, 2011a, p. 555). Pamuk dedicou um livro exclusivamente à sociedade e à história da cidade (2007).


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Esse caminho, que levou o autor a uma coleção particular de objetos destinados à elaboração do livro e à constituição do acervo do museu, foi fartamente explorado no romance. Os objetos passaram a ser marcadores da obsessão de Kemal em preservar a memória de seu amor por Füsun. Como o escritor, o protagonista utilizou os mais variados processos para colecionar as peças do futuro museu que, no final do livro, ele abriria (o livro antecipa em quatro anos a inauguração efetiva do museu). Comprar, trocar, furtar, negociar foram modos de construir o acervo que tinha como objetivo inicial, para o protagonista, de reter o passado. Guardar os momentos prazerosos e fugazes com sua amada Füsun. De modo singular, Pamuk-Kemal realiza uma espécie de “antropologia da materialidade”, numa acepção própria oferecida por Appadurai (2010): cada objeto transforma-se num complexo elo entre narrativas distintas, imaginação e um conjunto mais amplo de materialidades. 5 O livro salienta recorrentemente o colecionamento. Coleção, ao lado de um sentido abstrato de “público”, é possivelmente o conceito museológico mais explorado pelo escritor. O romance esmiúça três dimensões particulares e interconectadas do processo de colecionar. A primeira está diretamente ligada ao tradicional sentido de posse aurática, própria da relíquia, cuja função é servir como pedaço autêntico do passado: Tantas línguas descrevem a condição em que me encontrava como ‘coração partido’ que o coração quebrado de louça aqui exponho deve bastar para descrever aos visitantes do museu o que senti naquele momento. (PAMUK, 2011a, p. 292).

Todavia, romance e museu rompem com a dinâmica da relíquia moderna: a autenticidade como valor essencial para apresentar o passado.6 Os objetos colecionados no romance e mostrados no museu não se autenticam pela experiência factual. Muitos dos objetos expostos são clones, cópias de objetos com atributos equivalentes. A autenticidade daquilo que é possuído está depositada na narrativa ficcional e na lógica expositiva do museu. Complementar a essa dimensão possessiva do passado é aquela que significa a coleção como legado, herança 7. Um conjunto de objetos dotados da qualidade de preservar, para as futuras gerações, as qualidades e os valores do 5 Em entrevista concedida em 2008, o antropólogo indiano amplia sua abordagem sobre a vida material, inscrita no clássico A vida social das coisas (EdUFF, 2008), integrada à força social da imaginação: Elaborei a idéia da imaginação como fato social no início dos anos 90, que culminou nas afirmativas que fiz em 1996, em Modernity at Large, no qual a imaginação constituiu, talvez, a ideia central ou motriz. Nessa época, não tinha consciência da conexão dessa idéia com A vida social das coisas, mas você está totalmente correta em dizer que, então, eu já não queria ver a imaginação como uma faculdade individual, ou, se quiser, mental, ou como algo separada de efeitos sociais. Eu já estava, creio, tentando enxergar como a imaginação se materializava. (APPADURAI, 2010, p. 190). 6 Lembramos o seguinte: O senso comum atribui ao museu uma ligação com o que é autêntico e original. Consequentemente, à preservação da memória, como se o que foi recolhido, guardado, estudado e exposto fosse, a rigor, o primordial, o inesquecivel. Estende-se à memória a concretude dos componentes físicos do objeto museológico ou, dizendo de outra forma, como se o objeto contivesse em si a memória do que revela, o distingue, o singulariza. (CASTRO, 2009, p. 26). 7 Dentro da tradição francesa, de grande influência para além das fronteiras nacionais, Poulot identificou o final do século 18 como o momento crucial para que a transmissão dos bens se tornasse uma característica essencial do próprio sentido de patrimônio: A nova economia moral dos objetos e das obras insere-se no princípio de uma preservação minuciosamente estudada. A transmissão ‘à posteridade’ é doravante o resultado de iniciativas bem pensadas, expressamente desenvolvidas para esse efeito, e não o fruto do acaso. É uma nova representação do passado que se tenta forjar através de uma judiciosa distinção do insignificante a ser apagado, ou do memorável a ser instaurado ou, às vezes, a ser reconduzido, mas sempre em nome da reabilitação do autêntico. (POULOT, 2011, p. 16).

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passado experimentado. Nesse tocante, a coleção apresenta-se como uniforme. Objetos de todas as ordens, utilidades, procedências e datações são interpretados como tendo uma única finalidade temporal:

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Minha vida me ensinou que lembrar-se do Tempo – a linha que conecta cada momento que Aristóteles chama de presente – é, para a maioria de nós, um exercício doloroso. Quando tentamos imaginar a linha que conecta esses momentos, ou, como em nosso museu, a linha que conecta todos os objetos que trazem esses momentos dentro de si, somos forçados a lembrar que a linha chegará a um fim, e contemplar a morte. (...) Desde o início, sabia que só estava indo à casa dos Keskin na esperança de poder reunir felicidade suficiente para durar até o fim da minha vida, e era na intenção de preservar para o futuro esses momentos felizes que eu recolhia tantos objetos, grandes e pequenos, que tinham passado pelas mãos de Füsun, e os levava para casa. (2011a, p. 309-310).

Essa é uma perspectiva em que se pensa o passado, contido na materialidade objectual, prioritariamente com olhos do passado, portanto como algo imutável, e em que se esforça para que qualquer interpretação identifique-se com uma narrativa primeira e autorizada. A terceira dimensão explorada por Pamuk diz respeito ao propositor da coleção: o colecionador. A coleta, a seleção, a guarda e a conservação dos objetos ganham sentido graças àquele que os reúne.A percepção do colecionador é distinta ao logo do livro. Primeiro, o narrador se vê como um colecionador autêntico, despreocupado, pois, quando reúne “seus primeiros objetos, quase nunca se pergunta qual será o destino final de seu tesouro” (PAMUK, 2011a, p. 87). Para Kemal-Pamuk, os colecionadores genuínos eram aqueles que “nunca reconheciam o valor real desses artigos” (idem). Depois, quando o protagonista passa ativamente a negociar os objetos no intuito de construir o museu, o colecionamento adquire tons próprios da assimilação, aquisição e complemento. Os objetos ganham finalidade unívoca. Inúmeras vezes Kemal-Pamuk cita outros colecionadores de quem adquiriu objetos complementares ao acervo reunido. Como quando adquire cartazes e fotografias de filmes produzidos em meados dos anos de 1970 para expô-los ao lado dos canhotos dos ingressos assimilados anteriormente (PAMUK, 2011a, p. 281). A autenticidade repousa no discurso museológico e não na “experiência dos objetos”. A dimensão do colecionador autêntico em Pamuk assemelha-se àquela defendida por Walter Benjamin. Ele positiva o ato do colecionamento como aquele capaz de retirar o uso ordinário dos objetos, dotando-os de outros significados. “É decisivo na arte de colecionar que o objeto seja desligado de todas as suas funções primitivas” (BENJAMIN, 2006, p. 239)8. O verdadeiro colecionador é, portanto, aquele que insere o objeto específico em um círculo pessoal de sentidos, o que não significa alienação, pelo contrário, cada objeto da coleção está diretamente ligado à rememoração de sua história passada, seus usos anteriores, aqueles que os possuíram (BENJAMIN, 1987, p. 228). Nesse sentido, é sintomático lembrar que o escritor passa anos dedicados a visitar outros museus, atitude que transfere para seu protagonista, que também se dedica a conhecer distintas formas de coleção. A visita a centenas de museus pelo mundo não deixa de evidenciar o colecionador de percepções 8 Benjamin questiona-se de que os livros são os únicos que mantêm sua função dentro de uma coleção (2008, p. 241). Podemos ampliar essa excepcionalidade para parte considerável da arte produzida no último século.


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sobre outras coleções. Mas o que elas guardavam em comum com o “Museu da Inocência” inaugurado em 2012? Se o romance for um bom mapa, e acreditamos que seja, para além dos museus de personalidades e históricos, o que liga os museus enumerados no octogésimo primeiro capítulo é sua incessante necessidade de conviver com elementos cotidianos e banais das memórias preservadas e apresentadas. Muitos desses museus buscam perpetuar memórias deixadas à margem das grandes narrativas ou dos circuitos midiático-turísticos convencionais. “Meu romance honra os museus aonde ninguém vai, aqueles nos quais você pode ouvir o som dos seus próprios passos” (PAMUK apud MELENDI, 2012, p. 81). Museu Nissim de Camondo, Museu Jacquemart-André, Museu do Serviço dos Objetos Esquecidos, Museu Postal, Museu da Cidade de Cazalles, Civico Museo del Mare, Museu das Mariposas e outros insetos, Museu da Medicina Chinesa, Museu do Forte de São Jorge são alguns exemplos dos museus visitados. É evidente que, individualmente, cada um desses museus tem peso e impacto distinto em suas comunidades, mas, reunidos no livro, como uma coleção de museus visitados, eles funcionam como norteadores das ambições museológicas de Kemal. Nesses museus, o personagem pode compreender a variedade do que se pode colecionar e a importância de comunicá-las. Passear por esses museus de Paris era ser libertado da vergonha da coleção que eu acumulava no apartamento de Merhamet. Deixando de ser um seu jeito esquisito, envergonhado pelas coisas que empilhava, eu aos poucos adquiria o orgulho de um colecionador. (PAMUK, 2011a, p. 524).

Não deixa de ser exemplar que uma visão benjaminiana do ato de colecionar seja perceptível no romance. Como uma forma de recordação, a coleção torna-se uma prática contra a dispersão e o apagamento. Pamuk/Kemal são colecionadores dedicados a uma luta incessante contra uma das facetas inevitáveis da memória: o “esquecimento”. Não do esquecimento da própria estória de amor vivida em Istambul, delicadamente narrada no livro, mas sentinelas das recordações que unem todos os objetos díspares reunidos no museu. Enquanto o livro instaura o elo que os ata à história, o museu busca conservá-lo. Com o museu, o drama literário não cessa de renascer do distanciamento em que consiste a exterioridade do rastro que ele conserva. O autor está intensamente preocupado em mostrar menos a relação representacional que une os dois – romance e museu – e mais sua condição de arquivo: A qualidade ‘museologizante’ em que gostaria de me demorar está menos em suscitar pensamentos e mais em preservar, conservar e resistir ao esquecimento.Assim como famílias que vão a um museu no domingo, achando que ele preserva algo de seu próprio passado e tendo prazer com essa ideia, os leitores também têm grande prazer em descobrir que um romance incorpora facetas de sua vida real – a parada de ônibus no fim de sua rua, o jornal que eles leêm, o filme que eles amam, o sol poente que contemplam de sua janela, o chá que eles tomam, (...). A razão para essa felicidade talvez seja semelhante à ilusão e ao orgulho subsequente que sentimos num museu: a sensação de que a história não é oca e desprovida de significado e de que alguma coisa da vida que vivemos será preservada. (PAMUK, 2011b, p. 99)

Nas obras do escritor, museu e romance, o que reencontramos é compreensão do arquivo enquanto sinais e resquícios do processo de criação autoral. Uma forma de salvaguardar não apenas o interior da narrativa, seja pela

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escrita, seja pela expografia, mas, sobretudo, de conservar o processo de criação do próprio escritor. Ulpiano Meneses chama atenção para o fato de que os profissionais do arquivo (museólogos, historiadores, arquivistas, bibliotecários, conservadores etc.) negligenciam o poder dos arquivos materiais e virtuais dos artistas, na medida em que ignoram seu impacto em suas poéticas (2010, p.11). Nesse tocante, a tensão entre o romance e o museu se instaura dentro de um comparativo modelo de pressuposições: o que nos revela o museu sobre o romance e o quanto o romance serve como guia para a compreensão do museu. O embate entre dois modelos discursivos distintos se estabelece. Essa tensão está próxima do sentido derridiano de arquivo, baseado no conflito entre sua dimensão memorial e seu inevitável vínculo com o lugar de lei, da autoridade de um outro (DERRIDA, 2001, p. 32). O processo de tradução é complexo e concomitante. Trata-se de dois operadores memoriais distintos. O literário não se rende às premissas basais do veritativo, seu compromisso é com sua própria estrutura narrativa, e seu elo com mundo exterior é tão tênue quanto inevitável. Já o discurso museal obedece à instauração de uma autoridade, no sentido que Certeau confere ao termo: representações ou pessoas que se querem aceitas como críveis (CERTEAU, 1995, p. 40). O museu faz crer o romance, ou ao menos assim o pretende. Sendo assim, as dimensões simbólica e ética do museu e do romance não se equivalem; já nascem distantes. Pelos limites de um enquadramento pedagógico e um compromisso social, o museu subordina-se ao romance que lhe dá forma. A exterioridade das coisas nele contidas depende da materialidade textual e visual do romance. No entanto, há uma outra forma de abordar a questão: o museu como uma grande instalação, uma obra poética em si. 2 O museu como instalação Dentre as inúmeras direções tomadas pelas artes visuais desde o final dos anos de 1950, destacam-se dois fenômenos interdependentes que marcaram a ascensão da arte contemporânea nas duas décadas subsequentes. O primeiro foi a expansão do sistema da arte: a inserção da arte atualizada num mercado global, a expansão do colecionamento para além das instituições convencionais, a ampliação dos modelos de difusão, a instauração do curador como mediador privilegiado e a criação de novos museus de arte contemporânea, devotados tanto à memória quanto à experimentação. O segundo foi o surgimento de um amplo e difuso processo poético baseado na crítica e no combate ao mesmo sistema da arte 9. Brandon Taylor (1995, p. 105-106) divide os artistas dedicados a essa poética em dois grupos: aqueles que confrontaram as instituições da arte com estratégias inócuas, que foram imediatamente absorvidas pelo sistema que pretendiam julgar (Carl Andre, Richard Long, Joseph Kosuth, John Hilliard, Gilbert e Georg, Ed Ruscha e Jan Dibbets segundo o autor), e aqueles que realmente colocam em xeque o modelo operacional da rede internacional de legitimidade da arte. Para esse segundo grupo,Taylor não lista nomes, mas podemos indicar artistas como Marcel Broodthaers, Graciela Carnevale, Daniel Buren Andrea Fraser, Guerrilla Girls, Umberto da Costa Barros, Silvia Kolbowski, Hans Haacke, Michael Asher, Lea Lublin,Artur Barrio, entre tantos outros. 9 A faceta mais conhecida dessa tendência foi aquela que reuniu artistas europeus e estadunidenses sob a difusa rubrica de Crítica Institucional; cf. FRASER,Andrea. From the critique of institutions to an institution of critique. In:WELCHMAN, John C. (ed.). Institutional Critique and After. Zurique: JRP Ringier, 2006, p. 122-135.


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Independentemente dessa severa divisão de Taylor, a arte, a partir dos anos de 1970, passou a questionar seu próprio valor e lugar. De um elenco diverso de criadores ocupados com esse questionamento, é possível destacar artistas que transformaram o museu em elemento de manejo poético. De um modo amplo e raramente sistemático, artistas atuaram sobre todas as práticas museológicas: criticaram e se apropriaram dos processos curatoriais, mimetizaram desenhos expositivos, evidenciaram práticas de colecionamento, escrutinaram procedimentos de conservação e restauro, intervieram em ações educativas etc. Algumas dessas ações poéticas criaram e recriaram espaços museológicos em ações que comumente denominamos de instalações ou intervenções. Dentro dessa perspectiva, talvez o mais notável projeto tenha sido aquele instaurado por Marcel Broodthaers. O artista belga não foi necessariamente o pioneiro nos questionamentos às instituições da arte. Contudo, seu papel é crucial para a compreensão dessa tendência, uma vez que seu trabalho questionou profundamente os valores do colecionamento e o sistema expositivo. Quando Broodthaers, em 1968, apresenta a “Seção do século XIX” do Museu de Arte Moderna (uma contradição evidente e um crítica indicativa do modelo “evolutivo” da narrativa dos museus de arte), instalado em seu apartamento, o artista inicia o processo que propõe questionar o lugar da arte na sociedade a partir de um museu fictício. Ele apresentará, nos anos seguintes, uma infinidade de leituras e desdobramentos de seu museu “virtual” (Figura 3). Broodthaers manipulou, em suas instalações, os rituais próprios das instituições museais – convites, folders, press-releases, mapas, sinalizações, projetos expositivos, souvenires, modelos curatorias (não tão evidentes na época), reservas técnicas e táticas de marketing –; mirou na aliança entre o discurso museológico e a história da arte, os quais, para ele, juntos criaram uma pedagogia que produziu tanto um discurso taticamente sintético e eficiente na intenção de fazer circular obras, valores e discursos de e sobre a arte, quanto discursos obscuros, cheios de lapsos e esquecimentos (SCHULTZ, 2007). Todo o sistema de apresentação e mediação das obras foi questionado.Vitrines, painéis, catálogos, etiquetas, visitas monitoradas, vídeos “educativos”, biografias fictícias, enfim, exposições e museus inteiros foram criados para apontar as contradições do sistema da arte. Em 1965, Claes Oldenburg planejou seu museu de objetos comuns, intitulado Mouse Museum, projeto que se estendeu até meados dos anos de 1970 e que se tornou um conjunto de instalações de objetos kitschs inspirados na figura do personagem da Disney (Figura 4). Outro exemplo foi o museu de gavetas (Museum of drawers) de Herbet Distel, executado entre 1970-1977. Uma instalação destinada a comentar e criticar os compartimentos que unem o discurso museológico, a exaltação biográfica e a história da arte convencional. Nela, Distel apresenta miniaturas de obras de diferentes artistas. Todas devidamente compartimentados (Figura 5). Já Annette Messager expõe sua compulsão por álbuns de noivas – ficções – em inúmeras vitrinas perfiladas na Städtiche Galerie de Munique, em 1973, na instalação chamada Album Collections. Em 1970, Joseph Beuys expõe sua “constelação de ideias”, uma miríade de objetos e obras produzidas ao longo de dez anos, no Hessisches Landemuseum, na pequena cidade alemã de Darmstadt, num arranjo espacial onde as vitrines esculpidas pelo artista e os displays são parte constitutiva e indissociável da instalação denominada Beuys Block: view of room 3.

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Figura 3 - BROODTHAERS, Marcel. Museu de Arte Moderna, Departamento de Águias, seção de figuras. Düsseldorf: Städtische Kunsthalle, 1972.

Figura 4 - Poster do Mouse Museum de Claes Olderburg, realizado para a V Documenta de Kassel em 1972.

Figura 5 - DISTEL, Herbet. Museum of drawers: instalação. Kunsthaus, 1970-1977. Disponível em: <www.moma.org>. Acesso em: nov. 2012.

Figura 6 - WILSON, Fred. Modos de Transporte 1770-1910: instalação, 1992-1993: parte da mostra Mining the Museum. The Contemporary and Maryland Historical Society. Fonte: Putnam, 2009.


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Na lista dos criadores que utilizaram objetos cotidianos como elementos matriciais de suas instalações, temos nomes como Andy Warhol, Daniel Spoerri, Georgia Starr, Peter Blake, Sophie Calle, Ross Sinclair10, Mark Dion, entre tantos outros. Spoerri, por exemplo, criou, entre 1977 e 1989, quatro museus. Um projeto denominado Museu Sentimental, cujas coleções reuniram uma série de objetos ordinários vinculados à percepção que o artista possuía das cidades que acolhiam o projeto (PUTNAM, 2009, p. 24). As exposições negavam qualquer processo de ordenação tradicional. Funcionaram como uma caótica Wunderkammer contemporânea. Há também artistas que trabalharam apropriando-se das coleções existentes e intervindo sobre elas: Richar Wentworth, Joseph Kosuth, Hans Haacke, Christian Philipp Mueller, Fabiano Gonper, Sarah Lucas, Jorge Pardo, entre outros. Fred Wilson, por exemplo, rearranja a exposição permanente do Museu da Sociedade Histórica de Maryland em 1992. Sua mostra, apropriadamente chamada de “Mining the Museum”, cavou, no acervo do museu, elementos que não apenas demonstravam o conservadorismo dos museus históricos, mas que também expunham os procedimentos museológicos (em especial o projeto curatorial) como decisões políticas nada abstratas. A obra funcionou como um site-specific que apenas utilizava a própria coleção da instituição (Figura 6). Sua apropriação da coleção lembra a recriação realista de Claudio Costa, na instalação Museum of Man, de 1974, cujo modelo eram as cabeças e ossadas dos “homens primitivos”, numa ácida crítica à antropologia física e sua institucionalização por museus de ciência ocidentais. Táticas expográficas também foram essenciais nesse processo. Se algum visitante do “Museu da Inocência” em Istambul estranhar as baganas reunidas e etiquetadas por Pamuk-Kemal para lembrar a cumplicidade com sua amada após um jantar, o sexo ou um passeio de carro, este mesmo visitante poderá recorrer a Dead ends died out, expored de Damien Hirst, obra de 1993, cujo processo de criação ampara-se na taxionomia do objeto-testemunho serializado (Figuras 7 e 8). A seriação é um dos recursos obsessivos de Pamuk na constituição de seu museu. Objetos, fotografias, bilhetes repetidamente enfileirados, como prova do tempo e da persistência amorosa. A mesma obsessão que impulsiona artistas contemporâneos a perfilar sobre os olhos do público instalações como Between Taxonomy and Communion, de Anna Hamilton, criada em 1990.11 A artista expõe nela cerca de 14 mil dentes humanos e de animais, ordenadamente dispostos em grandes vitrines (Figura 9). Ou, ainda,Toothbrushes, de Karsten Boot, uma instalação de 1991 com centenas de escovas de dente usadas, dispostas lado a lado, bem ao gosto do museu de Pamuk. Outros exemplos podem ser elencados para a compreensão do modelo expográfico adotado pelo Museu da Inocência. As oitenta e três vitrines numeradas, apresentadas no museu, configuram cada uma delas um capítulo do museu, numa reconstituição paulatina do romance. No capítulo “Algumas verdades antropológicas implacáveis”, Pamuk adverte: 10 A crítica à mercantilização da obra de arte e o fetichismo narcisista do artista inspiraram Sinclair a criar o “Museu do Desespero” em 1994, onde vendia camisetas, fotografias, gravuras, pôsteres com suas obras (PUTNAM, 2009, p. 78). 11 Muitos artistas dedicaram-se a mostrar elementos seriados numa perspectiva poética apoiada no colecionamento: Christian Boltanski, Tom Friedman, Allan McCollum, Nelson Leirner, Ed Burtynsky, Peter Greenaway, Sophie Calle, Mabe Bethônico, Carmela Gross, Susan Hiller, Tim Head, Rinko Kawauchi, Christian Marclay, Rivane Neuenschwander, Bil Lühmann, Andreas Siekamann, Daniel Buren, Annette Messager, Jac Leirner, Mark Dion, Arthur Bispo do Rosário, entre muitos outros.

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70 Figura 7 - Foto do Museu da Inocência. Disponível em: <www.masumiyetmuzesi.org>. Acesso em: dez. 2012.

Figura 8 - HIRST, Damien. Dead ends died out, explored: instalação, 1993. Retrospectiva do artista na Tate Modern de Londres, em 2012. Fonte: Putnam, 2009 (detalhes).

Figura 9 - HAMILTON, de Anna. Between Taxonomy and Communion: 1990/1996, instalação. Fonte disponível em: <http://www.guggenheim.org/new-york/collections/>. Acesso em: dez. 2012.


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Tendo tocado na questão da ‘sujeição’, gostaria de retornar a um tema que se encontra na base do meu relato. Muitos leitores e visitantes já terão entendido perfeitamente do que se trata, mas, imaginando que gerações muito posteriores – como, por exemplo, as que visitarão nosso museu depois de 2100 – possam julgar o termo obscuro, deixo agora de lado o medo de me repetir e enuncio aqui uma série de verdades cruéis: no passado, a palavra preferida teria sido ‘impalatáveis’. Mil novecentos e setenta e cinco anos solares depois do nascimento de Cristo, nos Bálcãs, no Oriente Médio e nas margens ocidentais e meridionais do Mediterrâneo, assim como em Istambul, a cidade que era a capital de toda essa região, a virgindade ainda era considerada um tesouro que as moças deviam proteger até o dia do casamento. (2011a, p. 75, grifo nosso)

O que se segue são seis consequências para “uma jovem que abrisse mão da castidade antes do casamento”. O modo como o escritor resolveu expor o tema merece atenção por um motivo: é um dos raros capítulos em que não estão contidos “objetos” ligados à trama central do romance. No museu, observam-se, na vitrine, 15 fotos perfiladas de mulheres de diferentes idades. Seus olhos são ocultados (Figura 10).As fotos representam vítimas do julgamento social, segundo Pamuk. Todavia, o modelo expográfico liga essa sessão a toda uma estética da arte política, preocupada em evidenciar dramas pessoais e coletivas. Esse é um tipo de relato que incomoda. As fotografias funcionam como elementos que personificam, no coletivo e de modo anônimo, a violência sofrida pelas mulheres turcas. Justamente o tipo de discurso que incomoda os setores conservadores do país e que já renderam a Pamuk problemas jurídicos. Aqui, a vitrine nos lembra outro grupo de artistas (Glenn Ligon, Kara Walker, Doris Salcedo, Keith Piper, Rosangela Rennó (...) – a lista é longa), dedicados à memória da violência social. Artistas dedicados a criticar a velha crença de que o belo, o bem e a verdade se superpõem. A vitrina nº 15 guarda semelhanças, por exemplo, com Parede da Memória, de 1994, uma contundente crítica autobiográfica ao apagamento da memória das famílias afro-brasileiras realizada por Rosana Paulino. Do mesmo modo que a vitrina assemelha-se, enquanto poética, aos trabalhos de Cristian Boltanski dedicados às vítimas da Shoah. Trabalhos que muitas vezes são expostos de modo a reproduzir o discurso expográfico de museus históricos, como é caso de Vitrine de Referência, de 1971 (Figura 11). Sabemos que acervos, muitas vezes, contribuem para a legitimidade de um dado discurso de verdade, apto a ser transmitido e que, geralmente, está amparado, de alguma forma, numa mitologia das origens. É justamente a narrativa dessa “mitologia” que muitos desses artistas acabam perturbando, dando-nos condições de percebê-las como construções políticas. O museu de Istambul, ancorado num romance, também passa a perturbar as narrativas “inequívocas” e aparentemente neutras do discurso museológico convencional. Entretanto, encará-lo como uma grande instalação, dentro dos códigos especializados das artes visuais exige re-enquadrá-lo numa perspectiva política-estética diversa. Ele deixa de ser suporte do romance, como alentamos anteriormente, e passa a ser resíduo de uma “estrangeridade” da poética literária. Um “estrangeiro” com sua própria língua e consciente de que a tradução que deseja expressar a transferência de significado nunca pode ser total, nem desejável. ,

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Figura 10 - MUSEU DA INOCÊNCIA. Vitrina nº 15, capítulo: algumas verdades antropológicas implacáveis. Fonte disponível em: <observatory.designobserver.com>. Acesso em: dez. 2012.


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Figura 11 - BOLTANSKI, Christian.Vitrine de referência: 1971, instalação. Fonte disponível em: <http://mediation.centrepompidou.fr/education/>. Acesso em: dez. 2012.

Figura 12 - O bilhete de entrada do museu. Fonte: Pamuk, 2011a, p. 550.


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O alvo dessa tradução passa a ser o próprio artista. O museu usa a linguagem dos museus tradicionais para conferir uma exterioridade poética ao livro e neste tocante, a instituição participa da elaboração de uma narrativa pertinente sobre o passado criativo do autor. Passado que confere estabilidade (identidade com o romance) ao lugar material de seus objetos, como o status simbólico destes, ao mesmo tempo em que dissolve as garantias entre os limites do real e da imaginação: “Sr Pamuk, tudo isso aconteceu realmente com o senhor? Sr. Pamuk, o senhor é Kemal?” (2011b, p. 29).12 Todos estss exemplos pontuados apenas demonstram semelhanças no que tange ao discurso expográfico adotado pelos artistas e pelo museu de Pamuk e, como todas as aproximações teóricas, as condições e os estágios funcionam mais como expectativas do que como regras. As obras de arte do escritor – museu e romance – não se resumem, felizmente, à sua ideologia. O romance termina com um bilhete impresso no final (Figura 12). A intenção é convidar todos os leitores a visitar o museu. Alguns críticos vão compreendê-la como simples estratégia de marketing. Porém, quase todas as histórias de Pamuk podem ser lidas como parábolas da inocência perdida ou de tentativas abortadas de redenção. O museu do museu nos parece ser mais uma delas. Referências APPADURAI, Arjun. Entrevista com Arjun Appadurai a Bianca Freire Medeiros e Mariana Cavalcanti. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 2010, v. 23, n. 45, p. 187-198. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S01032 1862010000100009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: nov. de 2012. BENJAMIN, W. O colecionador. In: ______. Passagens. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. p. 237-247. ______. Desempacotando minha biblioteca: um discurso sobre o colecionador. In: ______. Obras escolhidas: a rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987. v. 2, p. 227-235. CASTRO, Ana Lúcia Siaines de. O museu do sagrado ao segredo. Rio de Janeiro: Revan, 2009. CERTEAU, Michel de. A beleza do morto. In: ______. A cultura no plural. Tradução Enide Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus, 1995. DERRIDA, Jacques. Mal do arquivo, impressões freudianas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. KENNEDY, J. Michael. Pamuk e a nostalgia. O Estado de São Paulo, São Paulo, 8 maio 2012. Caderno 2, D7. MELENDI, Maria Angélica. O museu das insignificâncias: a memória, a arte e os restos da derrota. In: FLORES, M. B. R.; PATERIE, P. (org.). História e arte: imagem e memória. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2012. MENESES, Ulpiano T. B. de. Arquivos de artista, museus e pesquisa: reflexões de um historiador. In: MAGALHÃES, Ana Gonçalves (org.). Anais do Seminário In12 A resposta do escritor pouco esclarece a questão colocada: “Permitam-me dar duas respostas contraditórias, nas quais acredito sinceramente: 1. ‘Não, eu não sou meu herói Kemal’. 2. ‘Mas seria impossível convencer os leitores de meu romance de que não sou Kemal.” (PAMUK, 2011b, p. 30).


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ternacional Arquivos de Museus e Pesquisa. São Paulo: MAC/USP, 2010. PAMUK, O. Istambul: memória e cidade. Tradução Sergio Flaksman. São Paulo: Cia das Letras, 2007. ______.O livro negro.Tradução Sergio Flaksman. São Paulo: Cia das Letras, 2008. ______. O Museu da Inocência.Tradução de Sergio Flaksman. São Paulo: Cia das Letras, 2011a. ______.O romancista ingênuo e sentimental. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Cia das Letras, 2011b. POULOT, Dominique. O modelo republicano de museu e sua tradição. In: BORGES, Maria E. L. (org.). Inovações, coleções, museus. Belo Horizonte:Autentica, 2011. PUTNAM, James. Art and Artifact: the museum as medium. New York: Thames & Hudson, 2009. SCHULTZ, Deborah. Marcel Broodthaers: strategy and dialogue. Berna: Peter Lang, 2007. TAYLOR, Brandon. The art of today. London: The Everyman Art Library, 1995.

Artigo recebido em dezembro de 2012. Aprovado em fevereiro de 2013

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A TRAJETÓRIA DO ENSINO DA MUSEOLOGIA NO BRASIL

Gabrielle Francinne de S.C.Tanus1* Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO: Este artigo sistematiza, por meio de uma revisão de literatura, a trajetória do ensino da Museologia no país. Objetiva-se com esta revisão traçar o caminho da Museologia, desde a criação do primeiro curso até os dias de hoje, visando demonstrar as influências e os acontecimentos ao longo da história. Considera-se o momento oportuno para refletir sobre o ensino, haja vista o crescimento significativo dos cursos de Museologia, na última década, em diversas instituições de ensino superior, o que tem conduzido seu ensino a uma nova fase intitulada acadêmico-institucional. Enfim, espera-se despertar nos interessados, sobretudo, nos futuros museólogos, o desejo por uma contínua reflexão do ensino e do campo científico da Museologia.

ABSTRACT: This paper systematizes, through a literature review, the trajectory of Museology teaching in the country. The objective of this review is tracing the path of Museology, from the first course until the present day, in order to show the influences and the events throughout the history. It is considered an opportune moment to reflect about the teaching, due to the significant growth of Museology courses, in the last decade, have been increased in several institutions, to what leads its teaching to a new phase called academic-institutional. Finally, it is expected to arouse in the interested people, especially in the future museologists, the desire for a continued reflection of the teaching and of the scientific field of Museology.

PALAVRAS-CHAVE: Museologia. História do ensino. Cursos de museologia. REUNI.

KEY-WORDS: Keywords: Museology. History of teaching. Museology courses. REUNI.

1 * Mestranda em Ciência da Informação, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista CAPES/REUNI vinculada ao curso de Museologia. Possui graduação em Biblioteconomia (2010), pela mesma universidade. Integra os grupos de pesquisa: “Observatório de Museus” e “Epistemologia da Ciência da Informação”. Durante a graduação realizou vários estágios na área; foi também bolsista de iniciação científica e monitora de disciplina. Tem interesse em Epistemologia da Arquivologia, da Biblioteconomia e da Museologia, e nas relações destas áreas com a Ciência da Informação.


Gabrielle Francinne de S.C. Tanus

O ensino da Museologia inicia sua trajetória com a criação do Museu Histórico Nacional, pelo Decreto nº 15.596, de 2 de agosto de 1922, que previa também a criação do Curso Technico (sic) com dois anos de duração e com disciplinas que seriam distribuídas entre as instituições já existentes:Arquivo Nacional e Biblioteca Nacional, e o recém-criado Museu Histórico Nacional, este que é considerado a primeira instituição museológica voltada especificamente para a história da nação (SÁ, 2007). A criação desse museu, em 1922, fez parte de uma conjuntura de importantes acontecimentos que contemplaram uma grande valorização das ideias e das culturas nacionais, como a Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, e a exposição do Centenário da Independência, no Rio de Janeiro, que se estendeu, nas dependências do Museu Histórico Nacional, até julho de 1923. Em relação ao ensino das disciplinas, neste curso, caberia ao Arquivo Nacional ofertar as disciplinas História Política e Administrativa do Brasil, Cronologia e Diplomática; à Biblioteca Nacional, as disciplinas História Literária, Bibliografia, Paleografia, Epigrafia, Iconografia e Cartografia (no sentido de estudo, descrição e classificação das cartas geográficas); e ao Museu, as disciplinas Arqueologia e História da Arte, Numismática e Sigilografia (BRASIL, 1922).Todavia, por questões de ordem humana e estrutural1, este curso não entrou em funcionamento.Além dessas questões apontadas à época, Sá considera que tal curso “equivalia a um investimento na formação de técnicos absolutamente insólita para a realidade brasileira da época, sobretudo se considerarmos a inexistência de uma tradição museológica” (SÁ, 2007, p. 12). Assim, o desejo de se criar um curso de museus, vinculado apenas a sua instituição mantenedora, concretizou-se sob a direção e fiscalização do Museu Histórico Nacional em 1932, isto é, após dez anos da tentativa frustrada de criação de um curso técnico. Mário Chagas (2009) ao descrever o contexto histórico de criação do primeiro Museu Histórico Nacional que, por mais de 40 anos, abrigou o Curso de Museus, destaca o centenário da independência como um mecanismo fortalecedor do desejo de construção de um espaço destinado a recontar a história do país e o enaltecimento do modelo republicano, visto que “a república ainda não havia constituído um projeto especial de memória que perpassasse pelos campos dos museus” (CHAGAS, 2009, p. 87). Nesta ocasião, eclodia, em 1932, em São Paulo, a Revolução Constitucionalista, que objetivava a derrubada do Governo Provisório de Getúlio Vargas e a promulgação de uma nova constituição. As divergências com o então presidente Vargas, fez com que o idealizador do museu e do Curso de Museus, Gustavo Barroso, um dos apoiadores da campanha de Washington Luís à presidência, portanto, opositor de Vargas, fosse afastado da direção do Museu Histórico Nacional. Com esse afastamento, o Curso de Museus foi inaugurado no dia 3 de maio, com a aula magna do Dr. Pedro Calmon, sob a direção e fiscalização do historiador Rodolfo Garcia Amorim, que ocupou o cargo de diretor do museu de 1930 a 1932, quando saiu para assumir a direção da Biblioteca Nacional, o que marcou o regresso de Barroso à direção do museu, até 1959, ano de seu falecimento. Visto isso, neste breve contexto de criação do Museu Histórico Nacional, o que equivale aos antecedentes históricos do próprio Curso de Museus, este artigo 1 A criação deste curso não ocorreu efetivamente, em virtude dos seguintes motivos: “(...) leis dos adidos que mandavam aproveitar os funcionários em disponibilidade” (BIBLIOTECA NACIONAL, 1916, p. 466). A recusa de dois professores, em razão da discordância quanto à criação do curso e com o fato de que ao assumirem a docência estariam duplicando suas atividades de Bibliotecário/Chefe de seção e professor, não recebendo, por isso, qualquer adicional de salário (CASTRO, 2000). E, provavelmente, pela falta de espaço e da própria organização do museu em absorver todos os esforços da direção e dos técnicos, inviabilizando a implantação do curso técnico (SIQUEIRA, 2009).

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A trajetória do ensino da museologia no Brasil

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tem como objetivo perfazer, a partir de uma revisão de literatura, a trajetória do ensino da Museologia no país, desde o primeiro curso de Museologia, o Curso de Museus, até a configuração do novo cenário do ensino, em que se apresentam 14 cursos regulares de Museologia em funcionamento em todo o país, e um curso vinculado a Faculdade Dom Bosco de Monte Aprazível (FAECA/SP), que está cadastrado no site do Ministério da Educação (E-MEC), mas ainda não iniciou suas atividades. Portanto, considera-se este momento oportuno para reflexão da trajetória do ensino da Museologia, visando demonstrar suas influências e acontecimentos que marcaram o percurso desses cursos.Acredita-se que, com essa recente configuração dos cursos de Museologia vinculados a institutos, escolas e departamentos diferentes, delineia-se uma nova fase no ensino da Museologia, que pode ser intitulada como fase acadêmico-institucional. Essa nova fase decorre em virtude das diferentes vinculações dos cursos, bem como pela proximidade institucional, em especial, com os cursos de Biblioteconomia e os de Arquivologia2. Espera-se também que, além dessa pesquisa histórica, este trabalho desperte, sobretudo, em todos aqueles interessados a importância de manter uma reflexão contínua sobre o ensino e o campo da Museologia. 2 O primeiro curso de museologia do país: o curso de museus O Curso de Museus, considerado o primeiro do gênero nas Américas e um dos primeiros do mundo, previa, no primeiro parágrafo de seu Decreto nº 21.129, de 7 de março de 1932, o ensino das seguintes disciplinas: no primeiro ano, História política e administrativa do Brasil (período colonial), Numismática (parte geral), História da arte (especialmente do Brasil),Arqueologia aplicada ao Brasil e, no segundo ano, História política e administrativa do Brasil, Numismática (brasileira) e Sigilografia, Epigrafia, Cronologia e Técnica de museus (BRASIL, 1932). A maneira como essas disciplinas foram propostas revela o interesse na formação de conservadores voltados especificamente para a manutenção do museu. Além disso, esse curso vinculava-se de modo estreito com as necessidades do museu quanto à formação de técnicos para ocupar o lugar de 3º oficial3, bem como para a promoção e o preenchimento de cargos para essa mesma instituição. A criação de um curso para atendimento de uma necessidade endógena, dos interesses e demandas institucionais, ocorreu também com o curso de Biblioteconomia, o qual foi criado e mantido pela Biblioteca Nacional (CASTRO, 2000). Entretanto, diferente do ensino da Biblioteconomia, que, desde seu surgimento sofreu influências externas mais marcantes de escolas estrangeiras, o desenvolvimento no ensino da Museologia teve, durante o funcionamento do Curso de Museus, um estilo próprio de seu idealizador, denominado estilo Barrosiano. Este estilo refere-se à forma de dirigir, ensinar e transmitir conhecimentos e conceitos, bem como as normas e técnicas empregadas e aplicadas (SIQUEIRA, 2009). Gustavo Barroso, todavia, não esteve imune às influências estrangeiras, quando, em 1919, foi designado secretário da delegação brasileira à Conferência de Paz, em 2 Esses dois cursos, Arquivologia e Biblioteconomia, foram selecionados para compor o corpus da análise relativa à proximidade e/ou afastamento com os cursos de Museologia, pois se acredita que tais cursos podem estabelecer diálogos enriquecedores no plano teórico-metodológico, epistemológico e do ensino. 3 O cargo de 3º oficial estava relacionado aos alunos diplomados no Curso de Museus, e à execução dos trabalhos de escrita ou outros a eles destinados, como, a prestação de serviços na biblioteca e no arquivo de qualquer seção que o museu dele necessitar, em que auxiliariam os demais oficiais na colocação e conservação dos livros e documentos, na organização dos catálogos e na consulta pública, e na substituição de 2º oficial (BRASIL, 1934).


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Versalhes, Mário Chagas (2009, p. 82) apresenta que “essa função foi uma oportunidade especial para ampliar e solidificar sua rede de relações, para intensificar laços de amizade e para conhecer melhor algumas instituições museais europeias, canadenses e estadunidenses”.Além de ser um homem erudito e conhecedor minucioso de museus estrangeiros, percebe-se a influência familiar na construção do seu imaginário museal, de sua relação com a história e com os objetos, expressos por meio de um culto à saudade. Ademais, a direção do museu e do curso acabava também por transparecer sua postura centralizadora, elitista, aristocrática e conservadora (CHAGAS, 2009). Tal estilo Barrosiano foi fortemente replicado por meio da disciplina idealizada e ministrada por ele, denominada “Técnica de Museus”, que consistia em uma das disciplinas totalmente inusitadas no continente americano (SÁ, 2007). Além disso, essa disciplina constitui até a atualidade a estrutura principal dos cursos de Museologia, na qual se engloba um vasto campo dos saberes como: museologia, museografia, museologia aplicada e conservação e restauro (SÁ, 2007).A feição particular que Gustavo Barroso imprimiu ao curso perdurou mesmo após sua morte, em 1959, visto que seus ex-alunos assumiram a docência e continuaram a utilizar sua obra, escrita em dois volumes, “Introdução à técnica de museus” de 1946, que norteou além das aulas, o currículo e o conceito do curso (SIQUEIRA, 2009). Embora Chagas (2009, p. 109) reconheça a impossibilidade de moldar à maneira Barrosiana todos os alunos e os diplomados em Museologia, visto que “alguns fugiam à regra ou pelo menos seguiam caminhos distintos”, ele reconhece que o imaginário Barrosiano já estava institucionalizado.Assim, de modo geral, a figura de Barroso tornou-se indissociável da história do ensino da Museologia, tanto que ocorreram iniciativas, ao longo dos anos 60, em prol de mudar o nome do Curso de Museus para Curso Gustavo Barroso, Instituto Gustavo Barroso e Escola Gustavo Barroso (SIQUEIRA, 2009). Em 1951, o Curso de Museus por meio de convênio firmado com a Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), passou de seu status técnico para status universitário, mas, de fato, a efetiva mudança física e conceitual do curso notadamente marcado pelo estilo Barrosiano, ocorreu somente quando o curso foi definitivamente transferido, em 1979, de uma instituição de memória para um local voltado para o ensino, pesquisa e extensão, a Federação das Escolas Federais Isoladas do Rio de Janeiro (FEFIERJ), atual Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).Assim, após essa transferência, o Curso de Museus teve sua denominação modificada para curso de Museologia, o qual passa, em 1991, a vincular-se a única escola de Museologia do país, a Escola de Museologia da UNIRIO. Acrescenta-se ainda que, além da figura notável de Gustavo Barroso junto à criação do Museu Histórico Nacional e do primeiro Curso de Museus do país, ele é também o responsável pela criação, em 1934, da Inspetoria de Monumentos Nacionais, que tinha como finalidade impedir a saída de objetos de valor histórico e artístico do país, e que os monumentos nacionais fossem demolidos, reformados ou transformados sem a permissão e fiscalização do Museu Histórico Nacional (BRASIL, 1934). Apesar da breve duração e atuação pontual na cidade mineira de Ouro Preto, esse primeiro órgão federal de proteção ao patrimônio foi desativado, em 1937, por conta da instituição do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)4. Para 4 A ideia de um continuísmo perpetuada pelos Anais do Museu Histórico Nacional, de 1944, entre a Inspetoria de Monumentos Nacionais e o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional visou diminuir a frustração de Gustavo Barroso pelo término da primeira instituição. Todavia, seria impossível considerar tal posição, haja vista as significativas diferenças entre a atuação das instituições e entre os grupos (neocolonial versus modernistas) que disputavam a hegemonia de uma política de preservação e patrimônio (OLIVEIRA, A., 2003; OLIVEIRA, 2008).

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Chagas (2009), tal Inspetoria e o Curso de Museus, ambos criados dentro do âmbito do Museu Histórico Nacional, podem ser vistos como “divisores de água” do campo museal. Essa metáfora decorre no impacto ocasionado por esses dois acontecimentos, o primeiro, pelo pioneirismo nas atividades de inventário, identificação, conservação e restauração de bens tangíveis na cidade mineira e, o segundo, pela responsabilidade da institucionalização da Museologia e dos estudos de museus no Brasil. Retomando a história do Curso de Museus, sabe-se também que a criação do SPHAN afetou diretamente esse curso, o que ocasionou, nos anos de 1940, o período em que houve uma maior procura de candidatos. Além disso, Siqueira (2009) aponta outros fatores que influenciaram, nestes anos, no crescimento da procura pelo curso, tais como, o aumento da quantidade de museus federais vinculadas a esta instituição e a emancipação feminina em busca pelo mercado de trabalho, impulsionada pela Segunda Guerra Mundial. Outro acontecimento que impactou significativamente o Curso de Museus ocorreu na década de 1970, em razão das transformações do campo e dos conceitos ligados a Museologia e aos museus, trazidas pela Mesa de Santiago do Chile, evento realizado em 1972, que introduziu o conceito de museu integral, tornando inevitável uma nova reformulação curricular no Curso de Museus. Desta forma, em 1974, o curso passaria pela sua quarta reforma curricular, que amplia sua duração, de três anos para quatro anos, o que gerou um aumento na oferta de disciplinas de formação de caráter mais amplo e interdisciplinar (SIQUEIRA, 2009). 3 O segundo curso de museologia no país: um curso universitário O segundo curso de Museologia, pioneiro na região norte e nordeste do país, foi o primeiro curso criado dentro de uma universidade, o qual fora instalado, em 1969, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), por sugestão do arqueólogo e historiador de arte,Valentin Calderón, primeiro coordenador e idealizador. Santos (2008) ao remontar a trajetória desse curso esclarece que o currículo seguiu o modelo do primeiro currículo mínimo expresso pelo Parecer nº 971/69 e pela Resolução nº 14/1970, do Conselho Federal de Educação (CFE). Diferentemente do Curso de Museus, “[cujo] ensino [era] meramente descritivo pautado na aplicação de um conjunto de técnicas” (SANTOS, 2002, p. 181), o currículo do curso de Museologia da UFBA apresentava-se avançado para a época, porque ia além da ênfase dada ao museu e a coleção. O currículo era composto de disciplinas de áreas como Sociologia, Antropologia, Filosofia e História, portanto, mais abertos a outras áreas.Acredita-se que essa abertura é facilitada ou mesmo incentivada pela proximidade com outras áreas, devido a sua vinculação universitária. Em 1979, esse curso da Bahia, após as discussões da Mesa-redonda de Santiago do Chile, assim como fizera o Curso de Museus, alterou seu currículo, “com o objetivo de adequar o curso à evolução do processo museológico, às necessidades regionais e ao mercado de trabalho” (SANTOS, 2008, p. 186). A segunda alteração curricular ocorreu em 1989, após a regulamentação da profissão dada pela Lei nº 7.287, de 18 de dezembro de 1984, aliada a uma ampla discussão sobre o perfil deste profissional, área e atuação e o papel dos museus promovido pela instituição através do Seminário de Avaliação do Curso. Já com 40 anos de existência, o curso de Museologia da UFBA, demonstrando sua atualização frente às mudanças do campo passou por outra reforma curricular, iniciada em 2010, e implantada em 2011. Nesta última reforma, houve a


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inclusão de mais disciplinas obrigatórias e atividades complementares a sua grade, além da oferta de várias disciplinas optativas, as quais têm por finalidade complementar a formação do discente, totalizando uma carga horária de 2.514 horas. Dentre as disciplinas pertencentes a outros departamentos, cita-se a título de exemplo: Semiótica, do departamento de Comunicação; História das Religiões, do departamento de História; Estética, do departamento de Filosofia; Arquivística, do departamento de Documentação e Informação; Psicologia das Relações Humanas, do departamento de Psicologia, entre outras disciplinas (UFBA, 2012). Ainda a fim de fortalecer o ensino, o curso oferta também Seminários Temáticos com temas atualizados, além de disciplinas voltadas especificamente para a pesquisa e práticas museológicas e vincula a elaboração de monografia e sua defesa pública para a conclusão do curso. Portanto, essas mudanças revelam a constante preocupação do curso frente às mudanças da área e do contexto sócio-histórico brasileiro. 4 O curso de pós-graduação em São Paulo Se o início da década de 1970 fora marcada pela criação do segundo curso de Museologia, o final da década iria ser marcado pela ação do Ministério da Educação e do Desporto (MEC), pela Resolução nº 14/77, do Conselho Federal da Educação, contra a abertura de novos cursos de graduação em Museologia. Desse modo, em 1977, em São Paulo, Waldisa Rússio Camargo Guarnieri, a partir do impedimento dessa resolução, criou o primeiro curso de pós-graduação lato sensu em Museologia, inspirado no curso de Churubusco, no México. Waldisa (2010) aponta que o curso de pós-graduação em Museologia foi criado nesse nível em virtude de quatro fatores: a exigência da interdisciplinaridade; a instituição em que foi instalado; o momento de criação e a publicação da resolução supracitada. Destaca-se que “foi dentro de uma escola de Sociologia, a Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), que ela fez questão de criar o curso e lutar para mantê-lo” (COUTINHO, 2010). O fato de o curso ter surgido junto à Escola Pós-Graduada de Ciências Sociais (EPG) beneficiou a estrutura e a forma pedagógica desse curso de especialização, e concomitantemente possibilitou aos alunos o cumprimento de créditos em outras disciplinas dessa escola, o que favoreceu o aparecimento de dissertações em nível stricto sensu.Assim, o curso de Museologia de São Paulo logo se configuraria no primeiro curso de mestrado na área, o que conduziu ao desenvolvimento de um pensamento museológico brasileiro e ao desenvolvimento conceitual da Museologia sob os alicerces da Sociologia, deslocando o objeto de estudo da Museologia, conhecido tradicionalmente como o museu, seus objetos e funções, para o fato museal ou fato museológico. Após o falecimento de Waldisa, em 11 de junho de 1990, o curso idealizado por ela continuou atuando dentro do “universo waldisiano” por mais dois anos, até que foi definitivamente interrompido em 1992. A respeito desse curso, Santos (2008, p. 192) esclarece que “o curso e, posteriormente, o Instituto de Museologia da FESPSP, foram responsáveis pela formação de toda uma geração de museólogos com expressiva atuação no país”, os egressos desse curso foram também responsáveis pela luta para a regulamentação da profissão de museólogo, que se deu por meio da Lei nº 7.287, de 18 de dezembro de 1984. Esta lei pode ser vista também como um mecanismo de consolidação do campo da Museologia no país e, por conseguinte, motivadora da criação dos futuros cursos de graduação em Museologia.

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5 Novo cenário: novos cursos de museologia

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A criação de um terceiro curso de Museologia, o primeiro da região sul, remonta ao ano de 2004, institucionalizado no Centro Universitário de Barriga Verde (UNIBAVE), em Santa Catarina, em funcionamento até os dias de hoje. Entretanto, conforme apontam Oliveira; Costa e Nunes (2012) existiram outros cursos no intervalo do segundo para o terceiro curso de graduação, como o da Faculdade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, que funcionou de 1975 a 1995. Além destes cursos de graduação, os referidos autores destacam que os cursos de pós-graduação desempenharam um papel importante no ensino da Museologia, como o curso já citado, criado por Waldisa Rússio, em São Paulo, o curso de especialização em Museologia, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP/CEMMAE), entre outros. Retomando ao cenário museológico, no início dos anos 2000, composto por apenas três cursos de graduação, o Ministério da Educação lançou a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que dispunha sobre as diretrizes e bases da educação. Dessa forma, os cursos de Museologia existentes passaram a ser orientados, assim como os cursos de Biblioteconomia e Arquivologia, pelo Parecer nº 492, de 3 de abril de 2001, que apontou as competências e habilidades profissionais destes três cursos. Em relação a essas disposições, o curso de Museologia é o que mais se distingue dos outros dois cursos, em razão das orientações que circunscrevem em torno da compreensão e interpretação das relações do homem, museu, cultura e contexto, de operações de registro, classificação, catalogação e inventários do patrimônio, bem como pelas ações de planejar e desenvolver exposições e programas educativos e culturais. Ainda no início dos anos 2000, o Governo Federal implantou, em 2003, por meio do Ministério da Cultura (MinC), a Política Nacional de Museus (PNM), que, desde então, vem investindo maciçamente na área museológica, gerando também reflexos como a criação de novos museus em todo o Brasil. Como parte integrante dessa política cultural foi criado, em 2009, o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura, que dentre suas inúmeras ações, projetos, programas e atividades tem como uma de suas competências “implantar e manter atualizado o cadastro nacional de museus visando à produção de conhecimentos e informações sistematizadas sobre o campo museológico brasileiro” (BRASIL, 2009). Assim, em recente publicação “Museus em números”, oriunda de uma pesquisa extensiva e interdisciplinar, foi apontada a existência de 3.025 museus em funcionamento em todas as regiões do país. Desse modo, acredita-se que as ações em prol do crescimento e do fortalecimento das instituições museais despertaram nas instituições de ensino superior e na sociedade civil o reconhecimento da importância de formar profissionais aptos a trabalhar nesses espaços. Recentemente houve outro estímulo para criação de novos cursos de Museologia nas instituições de ensino superior, que se deu com a implantação do Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007, o qual institui o Plano de Estruturação e Expansão das Universidades Federais Brasileiras (REUNI). Desse modo, a partir de 2007, como parte do Plano Nacional da Educação (PNE) lançado pelo Ministério da Educação (MEC), foram criados mais nove cursos de Museologia5, com exceção dos cursos da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) e da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), ambos, criados em 2006, portanto, antes do REUNI. 5 Os cursos criados pela via do REUNI são: Universidade Federal de Sergipe (UFS), Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de Brasília (UnB), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal de Santa CatariWWna (UFSC), Universidade Federal de Goiás (UFG) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


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Ainda ao lado desse crescimento dos cursos de Museologia, nota-se a preocupação dos professores com a criação, em 2008, da Rede de Professores Universitários do campo da Museologia. No ano seguinte, em 2009, no II Encontro da Rede de Professores é criado um grupo de trabalho cujo objetivo consistiu em mapear o perfil dos 14 cursos em funcionamento no país. Esse mapeamento se deu mediante análise dos nomes das disciplinas obrigatórias, das ementas e dos projetos políticos-pedagógicos de cada um dos cursos. Os resultados desse estudo, em relação às matrizes curriculares dos cursos existentes, apontaram que 61% das disciplinas estão agrupadas dentro dos eixos específicos da Museologia, e 39% dentro de outras áreas. Esta elevada porcentagem de outras áreas reflete o aspecto interdisciplinar da Museologia, bem como a importância do contato com essas áreas ao longo formação do museólogo (OLIVEIRA; COSTA; NUNES, 2012). A continuidade desse estudo pautou-se, sobretudo, na necessidade de criação de uma identidade comum e de um repertório referencial para formação oferecida pelas diferentes universidades, o que facilitaria a transferência dos alunos de uma escola para outra (OLIVEIRA, A. et al, 2012). Todavia, em razão da recente constituição dos cursos de Museologia, os quais tiveram autonomia para construção e adaptação de seus currículos, os autores supracitados alertaram que os resultados apontados poderão sofrer alterações ao longo do percurso, pois algumas grades curriculares analisadas tinham sido modificadas ou ainda seriam modificadas. Posto isto, considera-se que esse recente cenário delineado pelos novos cursos de Museologia deve permanecer instável durante algum tempo, pois os cursos criados recentemente estão se acomodando nos locais em que foram institucionalizados, e ainda muitos deles deverão passar pela avaliação do MEC. De modo geral, na investigação das influências que estes cursos sofrem, é possível perceber, por meio da análise de seus projetos políticos-pedagógicos, referências advindas das discussões sobre o campo e o conceito de museus promovidos pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM), fundado em 1946, e pelo Comitê Internacional para a Museologia (ICOFOM), criado em 1976. Além disso, em alguns destes projetos políticos-pedagógicos, é possível encontrar citações de documentos gerados nos eventos promovidos pelo ICOM/ UNESCO. Dentre esses eventos, destacam-se: o Seminário Regional sobre a função educativa dos museus, em 1958, a Mesa-Redonda do Santiago do Chile, em 1972, o I Atelier Internacional da Nova Museologia, realizado em Québec/Canadá, em 1984, nesse mesmo ano, a Reunião em Oaxtepec/México, e, em 1992, a Reunião de Caracas/Venezuela. Em alguns outros projetos políticos-pedagógicos houve a inclusão da Declaração da Cidade de Salvador, gerada no I Encontro Ibero-americano de museus, realizado em 2007. Em alguns outros projetos políticos-pedagógicos houve a inclusão da Declaração da Cidade de Salvador, gerada no I Encontro Ibero-americano de museus, realizado em 2007. Dessa forma, somam-se àqueles eventos incluídos mais esta nova influência, que passa a ser mais um documento norteador do pensamento museológico contemporâneo, do campo da Museologia, como também para os cursos e currículos de Museologia do país. 6 Considerações finais A partir desta trajetória do ensino da Museologia, realizada por este artigo, percebe-se que seu ensino, em um primeiro momento, fora marcado por esforços

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individuais de seus idealizadores, cada qual em seu momento, como no Rio de Janeiro, com Gustavo Barroso; na Bahia, com Valentin Calderón; e em São Paulo, com Waldisa Rússio Camargo Guarnieri. Esses esforços foram decisivos para a criação e manutenção dos cursos, os quais sofreram uma menor influência externa e institucional (ao contrário do que ocorrera com os cursos de Biblioteconomia, que tem sua história marcada pelas influências francesa e norte-americana). Todavia, isso não significa que o ensino da Museologia encontrava-se alheio às influências de outros países, o que ocorreu foi uma diluição dessas influências, nas figuras de seus idealizadores, posto que todos eles possuíam conhecimento da área e do funcionamento de museus estrangeiros.Além disso, é possível notar que os cursos têm sido influenciados por discussões teóricas museológicas do cenário nacional e internacional, bem como pelos debates e documentos produzidos pelos eventos do ICOM/UNESCO, tais discussões vem se modificando, ao longo das décadas, o que, por conseguinte, modificam os cursos. A questão interdisciplinar aparece como uma constante dentro dos projetos políticos-pedagógicos, promovendo, assim, reflexos no ensino. A diversidade de tipos de museus existentes conduz a um profícuo diálogo interdisciplinar com outros campos do conhecimento: Arte, Antropologia, História, Sociologia, Filosofia e etc. Em relação a esses outros campos do conhecimento e por sua vez, seus respectivos profissionais, pesquisadores e especialistas, salienta-se o pertencimento dos mesmos como construtores da história do ensino e da Museologia no país, porque estes já vinham atuando no campo da Museologia como técnicos, professores e pesquisadores. Enfim, nesse novo cenário, diferente de quando foi criado o primeiro curso da área, considera-se ser este um momento propício para a ampliação da discussão sobre o campo e do contato entre os diferentes cursos, para a manutenção um ambiente favorável a essa nova configuração do ensino e do campo; haja vista que todos os 14 cursos de Museologia estão institucionalizados em espaços acadêmicos de ensino, pesquisa e extensão. Assim, esses cursos de Museologia assumem distintas configurações acadêmico-institucionais, posto que estão alocados em diferentes faculdades, institutos, centros e/ou departamentos, a saber: Tabela 1 – Vinculação acadêmico-institucional dos cursos de Museologia no Brasil

IES UnB UFPA UFBA UFRGS

Vínculo acadêmico-institucional Faculdade de Ciência da Informação Instituto de Ciências das Artes Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Museologia Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Antropologia UFSC e História UFMG Escola de Ciência da Informação UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais. Escola de Museologia UFG Faculdade de Ciências Sociais Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Antropologia UFPE e Museologia UFS Campus laranjeiras UFRB Centro de Artes, Humanidades e Letras UNIBAVE Centro Universitário Barriga Verde Instituto de Ciências Humanas. Departamento de Museologia, UFPEL Conservação e Restauro UFOP Departamento de Museologia


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Além dessa diversificada localização dos cursos de Museologia, acredita-se que a proximidade com os cursos de Arquivologia e os de Biblioteconomia influencia, de alguma maneira, o ensino e o campo por meio da troca de conhecimentos entre os professores, pesquisadores e alunos. Essa proximidade dos cursos de Museologia com estes cursos, alocados em uma mesma instituição de ensino superior, ocorre na metade dos 14 cursos de Museologia, a saber: UFRGS, UFPA, UNIRIO, UFSC, UFBA, UnB e UFMG. Nas últimas quatro universidades além dos três cursos de graduação (Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia) encontram-se, ainda, os programas de pós-graduação em Ciência da Informação, os quais possibilitam o desenvolvimento de pesquisas referentes ao campo museológico no nível do mestrado e/ou doutorado. Embora, os cursos de Museologia alocados na UFBA, UFPA e UFSC estejam próximos dos cursos de Arquivologia e Biblioteconomia, eles encontram-se institucionalmente vinculados a departamentos diferentes. Em relação à proximidade dos cursos de Museologia apenas com os cursos de Biblioteconomia, essa configuração pode ser encontrada em três instituições de ensino superior, a saber: UFG, UFS e UFPE, esta última apresenta, ainda, o mestrado em Ciência da Informação.Todavia, esses três cursos de Museologia estão localizados em faculdades e centros diferentes dos cursos de Biblioteconomia. Os quatro cursos restantes, da UFRB, UNIBAVE, UFPEL e UFOP, estão alocados em instituições de ensino superior onde não existe curso de Biblioteconomia e/ou de Arquivologia, nem mesmo a pós-graduação em Ciência da Informação, ocasionando, assim, nestes casos, certamente um profissional com perfil diferenciado daquele que é formado por um tronco comum, como ocorre nos cursos da UFMG, UnB, UFRGS (ARAÚJO; MARQUES; SANZ, 2011), posto que, um currículo não é apenas um conjunto organizado de disciplinas ou informações, mas de conhecimentos selecionados que corporificam formas particulares de agir, sentir, falar e “ver” o mundo e o “eu” (BLACKER, 1994). Para além dos programas de pós-graduação em Ciência da Informação, que podem atender às pesquisas do campo museológico, faz-se necessário destacar que, hoje, no Brasil, o campo da Museologia conta também com os programas de pós-graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado) em Museologia e Patrimônio, implantados respectivamente em 2006 e 2011, em parceria com a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e com o Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST); e o Mestrado interunidades em Museologia da Universidade de São Paulo, criado em 2012, em pareceria com quatro instituições (Museu de Arqueologia e Etnologia, Museu Paulista, Museu de Zoologia e Museu de Arte Contemporânea). Além desses programas de pós-graduação, estão em funcionamento os cursos de especialização lato sensu em Museologia e Patrimônio, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); o curso lato sensu em Museologia, Colecionismo e Curadoria, ofertado pelo Centro Universitário de Belas Artes de São Paulo; o curso de especialização em Museologia e Sociedade (CEMUS), ofertado pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e o curso de especialização em Museologia, ofertado pelo Departamento de Biblioteconomia, na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Posto isto, é indispensável que os profissionais e os museólogos deem prosseguimento nas reflexões, dando continuidade à formação e expansão do pensamento museológico brasileiro, tal qual fizeram os primeiros pensadores do campo. Sendo assim, corrobora-se com os dizeres de Souza M. (2002), sobre a importância das constantes revisões, atualizações dos cursos de Museologia, uma

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vez que não se terá um perfil do museólogo definido e definitivo. De igual modo, chama-se atenção para que os futuros museólogos, profissionais, pesquisadores e professores, responsáveis pela construção, manutenção e trajetória dos cursos de Museologia, atentem-se para o necessário embasamento teórico, que guia tanto o curso por meio de seu projeto político-pedagógico e seu currículo, quanto às práticas museológicas, visto que “a teoria nos permite ver relevância na observação, identidade no fato e significância nas interrelações” (MENSCH, 1994, p. 21). Referências ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila; MARQUES, Angélica Alves da Cunha;VANZ, Samile Andréa Souza. Arquivologia, biblioteconomia e museologia integradas na ciência da informação: as experiências da UFMG, da UNB e da UFRGS. Ponto de acesso, Salvador, v. 5, n. 1, p. 85-108, 2011. BIBLIOTECA NACIONAL (BRASIL).Anais. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1916. BLACKER, David. Foucault e a responsabilidade intelectual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. O sujeito da educação: estudos foucaultianos. 5 ed. Petrópolis:Vozes, 1994. BRASIL. Decreto nº 6.096 de 24 de abril de 2007. Diário Oficial da União, Brasília, Seção 1, 25 abr. 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/_ ato2007-2010/2007/decreto/d6096.htm>. Acesso em: 11 jan. 2012. BRASIL. Decreto nº 15.596, de 2 de agosto de 1922. Disponível em: <http://www. jusbrasil.com.br/legislacao/116733/decreto-15670-22>. Acesso em: 11 jan. 2012. BRASIL. Decreto nº 21.129 de 7 de março de 1932. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, Seção 1, 11 mar. 1932. Disponível em: <http://www2.camara. gov.br/ legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21129-7-marco-1932502948 publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 11 jan. 2012. BRASIL. Decreto nº 24.735, de 14 de Julho de 1934. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, Seção 1, 1934. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/ legin/fed/ decret/1930-1939/decreto-24735-14-julho-1934-498325-publicacao original-1-pe.html>. Acesso em: 11 jan. 2012. BRASIL. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Brasília, Seção 1, 23 dez. 1996, p. 27833 Disponível em: <www.planalto.gov. br/ ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 15 jan. 2011. BRASIL. Lei nº 11.906, de 20 de janeiro de 2009. Diário Oficial da União, Brasília, Seção 1, 21 jan. 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ ato2007-2010/2009/Lei/L11906.htm>. Acesso em: 13 mar. 2013. BRASIL. Parecer nº 492, de 03 de abril de 2001. . Diário Oficial da União, Brasília, Seção 1, p. 50, 9 jul. 2001. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br /cne/arquivos/pdf/CES0492.pdf>. Acesso em: 2 fev. 2012. BRASIL. Ministério da educação. Consulta aos cursos de museologia. Disponível em: <http://emec.mec.gov.br/>. Acesso em: 11 de jan. 2012. BRUNO, Maria Cristina Oliveira. O ICOM-Brasil e o pensamento museológico brasileiro: documentos selecionados. São Paulo: ICOM, 2010. 2 v. CASTRO, Cesar. História da biblioteconomia brasileira. Brasília:Thesaurus, 2000.


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Artigo recebido em agosto de 2012. Aprovado em janeiro de 2013


MUSEU E ARQUIVO COMO LUGARES DE MEMÓRIA Suely Lima de Assis Pinto1 Universidade Federal de Goiás

RESUMO: Este estudo analisa a memória e o arquivo como lugares de memória a partir de autores como Nora (1993), Winter (2006), Huyssen (1996), Freud (1997), que contribuíram com a noção de memória aliada ao processo de esquecimento e ao museu como instituição de memória. Analisa-se ainda, a memória pela via do arquivo, a dimensão documental que encerra o acervo e a dimensão do conceito de arquivo, qual seja, a noção de arquivo que se efetiva a partir do “mal de arquivo” (Mal d´archive) em Derrida (2001) e Roudinesco (2006) e do processo de arquivamento pelo qual passa a instituição museológica.

ABSTRACT: This study analyzes the memory and the archive as places of memory, according to authors such as Nora (1993), Winter (2006), Huyssen (1996), Freud (1997), who have contributed with the notion of memory associated to the process of forgetfulness and to the museum as institution of memory. It also analyzes the memory via the archive, the documental dimension that closes the collection, the archive, the notion of archive, which becomes effective from Mal D’Archive in Derrida (2001)and Roudinesco (2006) and the process of filing, by which the museological institution goes through.

PALAVRAS-CHAVE: Memória. Lugares de memória. Arquivos. Museus. Mal de arquivo.

KEY-WORDS: Memory. Places of memory. Archive. Museum. Mal D’Archive.

1 Doutora em História pela Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás – FH/UFG (20011), Mestre em Educação Brasileira – Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás – FE/UFG (2003), Especialista em Museologia pelo Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás – MA/ UFG (2001), Graduada em Artes Visuais – Instituto de Artes da Universidade Federal de Goiás – IA/UFG (1984). Arte-educadora, professora Adjunta do curso de Pedagogia, Campus Jataí/UFG.


Museu e arquivo como lugares de memória

Este museu de tudo é museu como qualquer outro reunido; como museu tanto pode ser caixão de lixo ou arquivo.

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Assim, não chega ao vertebrado que deve entranhar qualquer livro: é depósito do que aí está, se fez sem risca ou risco. Museu de Tudo

(João Cabral de Melo Neto)

Sabe-se que o museu, nesta primeira década do século XXI, não é apenas um espaço para lembrar e contar histórias, mas um espaço em que se constroem memórias. O museu pode ser a lembrança de gente deixada pelo objeto, ou lembranças que incitam a busca de outras histórias: história de pessoas, história de lugares. Museu “lugares de memória”. Nora (1993) afirma que estamos passando por uma aceleração da história – aceleração do tempo, aceleração dos processos sociais – que seria uma oscilação cada vez mais rápida de um passado morto, algo desaparecido. Isso possibilita falar em memória justamente porque ela não existe mais. Há, nesse processo, uma curiosidade pelos lugares de memória, uma articulação em que a consciência da ruptura com o passado se confunde com a memória esfacelada. Para ele, há lugares de memória porque não há meios de memória, essa se torna um sentimento residual aos locais; ou seja, resíduos, restos de um passado já morto. Os lugares da memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora. É a desritualização de nosso mundo que faz aparecer a noção. O que secreta, veste, estabelece, constrói, decreta, mantém pelo artifício e pela vontade uma coletividade fundamentalmente envolvida em sua transformação e sua renovação. (...) os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais (NORA, 1993: 12 - 13).

Os lugares de memória se fazem pela experiência, pelos restos, resíduos daqueles que vivem o lugar e pela preocupação em perpetuar uma memória que é viva, mas crê-se no seu desaparecimento, daí a necessidade de um espaço que reviva essa memória. Como no “museu de tudo”, epígrafe desse texto, uma vontade incontrolável de criar arquivos gerados para a lembrança, para o desejo de não esquecer e não ser esquecido, memória que são restos, rastros de uma história. Segundo Nora (1993), se a memória estivesse em permanente processo de rememoração, não haveria necessidade de lugares. No entanto, se a história sente a necessidade de criá-los é justamente porque ela corre o risco de se extinguir, ou seja, há o sentimento entre as minorias de que se não houver comemorações, a história os varreria. Deve-se habitar a memória para que não seja


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necessário lhe consagrar lugares. Mas se o que defendem não estivesse ameaçado, se estivessem realmente na lembrança viva1, os lugares seriam inúteis. Desta forma, Nora (1993, p. 13) compreende que, se não houvesse a história, mesmo que, a deformá-los ou a transformá-los, eles não se tornariam lugares de memória. É exatamente este movimento que os constitui “momentos da história arrancados do movimento da história” não mais inteiramente à vida, não mais inteiramente à morte, mas num incansável movimento de sentidos, de símbolos, entre a fantasmagoria que os constitui e os vestígios que os materializa na memória viva – como em Derrida (2001) ao pensar no arquivo que se constitui em favor dessa memória, e que, no limite sempre procura nos vestígios, na matéria, os restos, a fantasmagoria do arquivo que muitas vezes se desvela em sua origem – é este movimento que fará a memória ser tomada pela história, que fará a necessidade da memória ser uma necessidade de história. A memória verdadeira, abrigada no gesto e no hábito, nos ofícios que transmitem os saberes do silêncio, nos saberes do corpo, é para Nora (1993) uma memória transformada por sua passagem em história. Uma memória psicológica, individual e subjetiva ao invés de social, coletiva, globalizante. Isto é, uma memória que se constitui de restos, mesmo diante de seu aspecto universalizante ela não perde sua singularidade que a faz única. Para esse autor, é uma memória que a faz diferente da memória arquivística, ou seja, na memória pautada na guarda excessiva de arquivos. Ela se apóia no traço, no material, no vestígio. A memória precisa ser vivida a partir de seu interior para que não sejam necessários esses suportes exteriores, ou seja, essa guarda infindável de arquivos. A obsessão pelo arquivo, que marca o contemporâneo surge exatamente dessa necessidade de arquivar, e isso afeta a preservação integral de todo o passado. Essa relação exagerada ao processo de arquivar está no pensamento de Freud (1997) sobre o mal-estar na civilização. Para ele, o arquivo, a necessidade de arquivamento e lembrança é um mal-estar, uma pulsão, uma pulsão de morte2, que é ao mesmo tempo uma vontade de lutar, guardar, é também trazer o arquivo da memória à vida. Por isso, para esse autor, o passado nunca passa, pois no presente, estamos sempre rememorando o passado, trazendo à tona os restos. O lugar de memória parece estar na contramão do excesso de arquivo que muitas vezes gera o mal de arquivo, onde há excesso de matéria, de material, de documentos e objetos, há também falta de escrita, de escritura3. Essa procura pela materialidade, pelo objeto, pelos vestígios, integra o corpus da maioria das instituições hoje. Para que se configurem em lugares de memória faz-se necessário esse trabalho de presentificação da memória, trazendo a vida e a experiência para os arquivos, para os objetos. É preciso trazer para o lugar de memória o sentimento de pertencimento no presente, em sua agoridade. Não seriam ações de comemoração como bem lembrou Nora (1993), mas de subjetivação do espaço. Deixar vir os fantasmas de tempos diante de um não tempo, de um não-dito, de um não-lugar. Memórias de um grupo singular e não de um sujeito institucionalizado, eleito como detentor de poder corroborado pelos vestígios documentais institucionais4. 1 Para Freud a memória está guardada e faz com que se entre muitas vezes no passado, quando isso ocorrer esse passado será sempre rememorada no presente. 2 É essa relação ligada a pulsão, que Derrida (2001) traz para a questão do arquivo, que se verá mais a frente desse estudo. 3 Para Roudinesco (2006), a escritura é processo de historicizar o documento, trazer a tona sua história, tornar acessível à pesquisa, confrontá-la, torná-la viva. 4 Isto é o que Roudinesco (2006, p.10) chama de dogmatização do arquivo. Ela observa que se houver

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É essa a ótica referente à experiência, memória, vidas que circundam os acervos que Chagas (2006) apreende em seu estudo como a necessidade de perceber “uma gota de sangue em cada museu”, quando faz uma paráfrase de Mario de Andrade. Para ele, aliada ao museu, a memória deveria conter “uma gota de sangue” e não ser apenas um mero reconhecimento de poder. Deveria ser “lugares de memória” a serviço de uma coletividade e não o privilégio de grupos economicamente abastados. Essa posição refere-se a uma memória que é construção, situada na dimensão inter-relacional entre os seres, e entre os seres e as coisas. E que os museus, mesmo sendo memória do poder, não deixam de trazer, de modo explícito ou não, um indelével “sinal de sangue”. Sinal de subjetividades, singularidades, restos, fissuras que precisam ser explicitadas. Observa-se que a maioria dos museus durante o século XX construiu uma memória pautada no arquivamento, na guarda e patrimonialização dessa memória, cuja necessidade de preservar vai produzir as instituições culturais. Memória e patrimônio ligado ao boom da memória debatido por Winter (2006) que levou ao fenômeno da musealização. Isso ressalta o dogma ligado a figura do rememorante, ou a memória do poder. No contexto desse estudo memória é passado, restos e vestígios. Nora (1993) lembra que o que se chama de memória nesta sociedade é uma constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que é impossível lembrar. Essa é também a posição de Derrida (2001) e Roudinesco (2006). É exatamente por isso, que a maioria das instituições que deveriam ser lugares de memória, constituem-se em simples depositário de objetos desprovidos de memória, de história, incapazes de falarem ao subjetivo. Há um incentivo acelerado ao arquivamento de tudo, “o dever de memória faz de cada um o historiador de si mesmo” (NORA, 1993, p. 17), são as memórias singulares, que com o fim da memória-história, reclamam sua própria história. É preciso lembrar, mas cabe ao sujeito lembrar. É ele, em sua individualidade, que lembra, que guarda. Há aqui um paradoxo se se pensar a guarda dessa memória que foi individual ou singular de um sujeito pois, de acordo com Roudinesco (2006) esse sujeito pensou a guarda de seu arquivo, de sua memória sob uma lógica, e esta nem sempre será a mesma, quando seguida por um arcôntico. Uma grande distancia entre o que foi pensado e o que foi constituído se instala nas inúmeras leituras e interpretações geradas no interior das instituições, causando uma fissura entre a memória e o arquivo da memória. Para Nora (1993), quanto menos a memória é vivida coletivamente, mais ela tem a necessidade de homens particulares que fazem de si mesmos homens-memória. Ou seja, se se percebesse o seu pertencimento, os lugares se efetivariam mesmo como lugares de memória. No entanto, esse não pertencimento ocorre justamente porque as produções históricas são diferentes daquela que se espera de uma memória. Ou seja, é necessário um esforço de lembrança para ressuscitar esse passado, atualizá-lo enquanto presente por meio “dos sintomas”, abrindo aí uma fissura entre o passado e o presente. É a capacidade de perceber o “sinal de sangue”, que irá transformar o museu em “lugar de memória”. O que se observa aqui é a presença do conceito de lugar em duas vertentes diferentes. Primeiro em Nora (1993), cujo conceito de lugar são espaços soa negação do arquivo como memória subjetiva, ou como herança genealógica há o risco de conduzir ao delírio e a reconstrução do arquivo como dogma. “Sob esse aspecto, a ausência de vestígio ou a ausência de arquivo é tanto um vestígio do poder do arquivo quanto o excesso de arquivo”.


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ciais, arquitetônicos, lugares que servem para comemorar, emblemáticos, como parques, cemitérios, museus, datas, que marcam algo que não é mais lembrado pelas pessoas, mas que para se tornar “lugar de memória” esse espaço precisa de uma relação que se efetiva entre o sujeito, sua afetividade e subjetividade e o espaço – sujeito que é lembrado pela memória do lugar e sujeito observador que se apropria desse espaço neste processo de subjetivação. O segundo conceito de lugar se efetiva pela via da psicanálise, pensado a partir de Derrida (2001) e Roudinesco (2006) que é um lugar subjetivado, vinculado ao desejo. Como o lugar espacial pode ser um monumento comemorativo cujo não pertencimento do sujeito que o frequenta o transforma em um lugar comum, que se configura no esquecimento. O lugar da psicanálise abre elementos sintomais que possibilitam essa relação de pertencimento justamente pela capacidade de ser olhado pelo objeto, pelo lugar. A percepção do passado é segundo Nora (1993, p. 30), a apropriação daquilo que se sabe não mais pertencer a sua individualidade; é uma acomodação sobre um objeto perdido. Daí uma necessidade de memória-espelho, não para que se refletisse aí a própria imagem, mas para procurar “o brilhar repentino de uma identidade impossível de ser encontrada”. É neste universo que se encontra o historiador, sujeito capaz de impedir que a história seja somente história, e sim, possibilitar que os lugares de vestígios se transformem em lugares de memória. Lugares que se constituem simultaneamente em material simbólico e funcional. Lugares que bloqueiam o esquecimento, imortalizam a morte, deixa vir o que nos olha (DIDI-HUBERMAN, 1998), materializa o imaterial, dá sentido ao mínimo de sinais. É isso que os torna apaixonantes: o lugar de memória é um lugar duplo: de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua identidade, recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extensão de suas significações (NORA, 1993, p. 21).

É espaço de significações, de histórias vividas, experienciadas, marcadas pela historicidade, pelo “sinal de sangue”. Museus, bibliotecas, arquivos, todos ao pôr em cena uma visão sobre determinado fato, acontecimento, personagem, não estão colocando uma história em si mesma, e sim, uma leitura possível e historicamente condicionada. É necessário reverter essa ação. No campo museal essa leitura significa olhar o objeto e ser olhado por ele. É trazer ao universo desses lugares históricos uma memória constituída de restos e, assim, possibilitar sua transformação em “lugar da memória”. Percebe-se com isso o quanto a memória tem sido alvo de debates, não só em espaços museais, mas em diferentes instâncias públicas e/ou particulares sob esta perspectiva do patrimônio. Ora possibilita a sua afirmação como memória e pertencimento ou memória-construção, e ora, no sentido simplório do termo, como memória/comemoração que é uma necessidade de historiar a memória que estava se esvaindo. É essa perspectiva ligada à memória e comemoração que na maioria das vezes se configura na constituição excessiva de arquivos. Segundo Winter (2006), os anos 1980 impulsionaram os estudos sobre memória que, de alguma forma, estavam ligados ao interesse entre memória ou comemoração, como se viu também em Nora (1993), ou ao desejo de reapresentar ou legitimar narrativas chamadas, às vezes, de memória coletiva. E quando estes estudos são financiados por agentes ligados ao poder, as histórias reforçarão as credenciais para esse poder, como também observou Chagas (2006).

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No entanto, para Winter (2006), a memória coletiva não está apenas na esfera do poder. Diferentes comunidades possuem suas narrativas e reinvindicam uma identidade coletiva5, questão essa, também explicitada por Nora (1993).“Muitos grupos étnicos e minorias desprivilegiadas exigem seu direito à palavra, à ação e o direito de conquistar sua liberdade ou a sua autodeterminação” (WINTER, 2006, p. 70). Independente do Estado, estas minorias constroem sua própria história gerando uma memória coletiva. Ou seja, algumas ações se iniciam com o poder e para o poder, mas diante das lutas das comunidades em criar suas próprias narrativas, a preservação da memória vai além dessas esferas. Huyssen (1996, p. 12), ao analisar a memória aliada ao esquecimento, afirma que houve uma “explosão ao discurso da memória como um sintoma cultural nas sociedades ocidentais”, procurando, à medida que o fim do milênio se aproximava, voltar o olhar para trás numa ânsia de armazenar dados e informações. Esse processo era acompanhado por um profundo sentimento de crise articulado à crítica de que a sociedade se encontra doente, com amnésia. O esquecimento foi desencadeado pela própria contemporaneidade e seu constante mal-estar; o medo de esquecer está associado ao desenvolvimento da escritura, do registro, de confiar na máquina que registra a memória (FREUD, 1997). É a confiança na máquina que registra e armazena dados, em detrimento da capacidade humana de re-memorar um evento. Esse processo de esquecimento ou de amnésia também foi um desencadeador do boom da memória observado por Winter (2006), o qual cita diferentes fatores que impulsionaram este momento na década de 1980. Um deles seria o grande interesse ligado à memória e comemoração do holocausto e o desejo de “re-apresentá-lo”. Estas manifestações desencadearam reflexões sobre que tipo de memória está contemplado nestes estudos. A política de identidade, criada e disseminada por narrativas do passado, e o desenvolvimento da tecnologia da informação, como bancos de dados audiovisuais, que deu uma nova forma de validação à noção de testemunho, são fatores que levaram ao boom da memória e, a partir daí, para a criação de arquivos e processos de informatização. Interessante observar que este processo de informatização também pode ser associado ao fenômeno da aceleração, da musealização. Nessa sociedade da aceleração o museu também passa a musealizar tudo. Volta-se a idéia de museu de tudo, de um museu que tem seu tempo de guarda, de memória, de arquivamento. Como não se consegue preservar no tempo da aceleração, surge, nesse contexto, a necessidade de digitalizar, de converter em arquivo digital, e assim, tudo pode ser guardado. Criam-se os bancos de dados tanto de acervo material, por meio da imagem, como bancos de dados de sujeitos e suas histórias. Converte-se em outra linguagem que passa a fazer sentido, excesso de memória transformada e informatizada. A memória ligada à noção de testemunho, segundo Seligmann-Silva (2006), descrita a partir de um evento catastrófico será sempre parcial, pois nunca dará conta da experiência do sobrevivente, memória do trauma. Ela está no limiar 5 Associada a essa questão percebe-se grande número de museus históricos e regionais criados no Brasil a partir da expansão dada pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) na definição do campo da museologia. Várias comunidades que possuíam espaços de guarda de memória, casa de cultura, ou memoriais solicitaram seu credenciamento como museu. Neste sentido, houve também a expansão dos lugares que reinvidicam o estatuto de “lugar de memória”. No site do IBRAM pode-se perceber essa dimensão dos “lugares” por seu texto de apresentação do que seja um museu: “Os museus são casas que guardam e apresentam sonhos, sentimentos, pensamentos e intuições que ganham corpo através de imagens, cores, sons e formas. Os museus são pontes, portas e janelas que ligam e desligam mundos, tempos, culturas e pessoas diferentes”.


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entre lembrar e esquecer, lembrar o evento crucial para uma comunidade/humanidade, esquecer o trauma, as cicatrizes. A partir da memória traumática, abrem-se caminhos para estruturação de museus que poderiam “transformar narrativas nacionais em narrativas de famílias, com apelo a um grande público de várias nacionalidades” (WINTER, 2006, p. 83). É um momento de expansão tanto para os estudos da memória quanto para sua musealização, considerando o efeito defendido pela musealização tradicional. A ênfase nas questões da memória que se efetivou principalmente na década de 1980 abre caminhos para essa necessidade de preservação, que Huyssen (1996) analisa como sendo ações, procedimentos já conhecidos no trabalho dos museus e que parecem apontar para novas instâncias, abordando esse fenômeno cultural da musealização. Com isso, os museus passam a ocupar espaços bem maiores na cultura e experiência cotidiana apontando para uma obsessiva recuperação/musealização, da cidade, dos cenários históricos, da vida cotidiana, transformando o museu num paradigma das atividades culturais contemporâneas. Para ele, isso parece um paradoxo, pensar o sucesso do museu numa época em que a aceleração das ações cotidianas parece apontar para uma perda dos sentidos, perda de memória, provocando a amnésia. Esse processo de transformação apresentado por ele é resultado de modificações pelas quais os museus passam no inicio do século XX e que foram desencadeadas a partir dos museus modernos. As transformações no interior dos museus de arte e da obra de arte propriamente dita desencadearam tanto novas formas de pensar os espaços, como nova forma de utilização desse espaço, a partir da criação de bibliotecas, restaurantes, lojas no interior dos museus. Com isso, houve no interior das instituições uma reelaboração de sua estrutura física, tipológica e conceitual. No entanto, essa perda da memória pode ser considerada como um não-lembrar, como uma negação daquilo que está intimamente recalcado. Está associado a um não-dito6 ou não-lugar. É esse universo de percepção (o recalque) que é aberto por Didi-Huberman (1998) quando associa a capacidade de ser olhado pelo objeto, ou Nora (1993) quando chama a atenção para a presença de um elemento externo aos vestígios que transformariam os museus em “lugares da memória”, ou Chagas (2006) quando menciona a existência de uma “gota de sangue” nos museus a qual deve direcionar a percepção dos estudos de memória. Não é uma busca infindável pela preservação de um patrimônio cultural, mas a percepção dos “sinais de sangue” neles contidos. Os restos, os sintomas que constituem a memória. 1 Desdobramentos do museu: entre a memória e o arquivo A ênfase na questão da memória abre caminhos para a criação de arquivos gerados no cotidiano daquele que lembra. O lugar para esse arquivo se constitui, independente do que pode ser arquivado, em espaços culturais públicos ou privados, mas espaço-museu. Para Huyssen (1996), museu é um efeito direto da modernização. Guarda de memória, do obsoleto, da história. Guarda do novo, que parece envelhecer a passos largos. Essa posição do autor remete ao modelo de museu do século XIX. Se se considerar as transformações pelas quais a museologia vivencia no século 6 Pollack (1989) afirma conter dentro da lembrança uma zona de sombra, de silêncio, de angústias, de “não-ditos”.

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XX, perceber-se-á que o museu de arte – que se transformou num paradigma dos museus na primeira metade do século XX –transformou-se no modelo de museu desse mesmo século, o que desencadeou o processo de transformação nos museus que trouxeram outra compreensão do processo museológico e expositivo. Voltando à posição do autor, percebe-se que para ele os museus:

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foram criados para serem instituições pragmáticas que colecionam, salvam e preservam, aquilo que foi lançado aos estragos da modernização. Mas ao fazer isso, o passado inevitavelmente seria construído à luz do discurso presente e a partir de interesses presentes [...] (HUYSSEN, 1996: 225).

Nesse sentido, pode-se considerar que o pragmatismo observado por ele se desconstrói diante da escritura desse arquivo, visto que, o pragmatismo é estabelecido pelo dogma, pelo poder, pela história centrada no acontecimento, no documento7 e a construção desse passado, no museu, já incorpora os métodos da historiografia recente. Ou seja, o passado é uma fabricação do presente, elaborado a partir de interesses presentes, a partir de uma atualização o passado é reelaborado a cada vez que se faz uma escritura. Com base nessa construção do passado, segundo Huyssen (1996), o museu expõe uma dialética gravada em procedimentos de colecionar e exibir, ações estas perdidas por aqueles que celebram o museu como proprietário de bens inquestionáveis. Percebe-se que, mesmo diante dessa transitoriedade em seus processos museológicos e, mesmo sendo considerados por muitos como um espaço de dogmas inquestionáveis, o museu ainda “se mantém como um espaço e um campo para reflexões sobre a temporalidade, a subjetividade, a identidade, e a alteridade” (HUYSSEN, 1996, p. 226). O museu incorporou, nesse processo, práticas e teorias que os auxiliaram a lidar com esse fenômeno cultural de musealização que o autor analisa como uma prática associada ao processo globalizador que, na verdade, nada mais é que o fenômeno da cultura como mercadoria e bem simbólico, ligado, por um lado, à aceleração das coisas cotidianas, em função da aceleração do tempo, e de outro, surgindo como uma instituição de guarda e preservação. E para entender esse paradoxo que se coloca, Huyssen (1996) traz a idéia da mercadoria; as instituições que tinham uma determinada função passam a incorporar novas funções, operando dentro de um circuito cultural determinado por uma rede de interesses e valores questionáveis. Observa-se, no entanto, que essa realidade não abarca a maioria dos museus brasileiros. Museus que, na perspectiva de Lourenço (1999), foram criados sem nenhuma estrutura, não conseguem ultrapassar essa dialética que os colocaria num patamar capaz de transitar entre sua origem (processo de criação) e a nova museologia (novos elementos que se erigiram nos espaços museais). Frente a isso essa problemática lançada por Huyssen (1996) permite pensar as instituições de memória por outra perspectiva, visto que possuem funções e papéis que não são mais os tradicionais.Tem-se que considerar todo o processo de sistema da arte ligado aos interesses da instituição que preserva e da instituição que fomenta e mercantiliza o processo de musealização. Ao analisar esse modelo de museu apresentado por Huyssen (1996), que seria um museu pós-moderno e se considerar a perspectiva de que a maioria dos museus brasileiros ainda não opera nessa lógica, pois se posiciona nos mo7 Considera-se aqui a partir de Roudinesco (2006) e Derrida (2001), que o documento, ao ser elaborado, ele se faz também a luz de interesses naquele momento, o arquivo é uma escolha.


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delos tradicionais do século XIX, verifica-se também as exceções. E é justamente essa exceção ligada aos novos museus, a essa esfera de mercantilização, da aceleração, analisada pelo autor, que é passível de ser percebida nas transformações ocorridas em diferentes museus de arte. De um lado, tem-se os dogmas e, de outro, a ampliação que se constitui em duas direções: uma que tem o museu como instituição de memória e não só de preservação, e outra, que tem o museu como instituição do excesso, que é como o “museu de tudo” mencionado anteriormente. Percebe-se que essas duas direções se diferem entre si ao mesmo tempo em que se confundem no interior da instituição. A primeira segue a lógica inicial da museologia, que tende a achar na memória uma maneira de se modificar o discurso da preservação, e outra, como é o caso observado por Huyssen (1996), que tem na mercantilização da memória uma prática perversa, o seu excesso, o museu de tudo. Tem-se uma tendência de musealizar o próprio museu. É essa prática de memória que leva ao esquecimento. Numa análise sobre esse processo de transformação que se opera no interior dos museus, sobre suas práticas, memória e preservação, memória e mercantilização, teremos, nesse contexto, uma terceira via que envolve essa prática e a concepção de memória. Ou seja, considerando os dois primeiros aspectos, este estudo traz a memória pela via do arquivo. Interessante observar que para Huyssen (1996), os museus pós-modernos e em constante transformação têm modificado sua própria estrutura interna museológica; ao invés de grandes exposições permanentes estão se acentuando grandes exposições temporárias. Isso em função do interesse por megaexposição e de todo o aparato capitalista que a envolve. O autor considera que na era do pós-moderno o processo de redefinição do museu vai além da dialética museu/modernidade – o museu não é mais guardião de tesouros e artefatos do passado, mas se aproxima do mundo do espetáculo, feiras, diversão de massa. Isto porque ele foi “sugado” pelo “distúrbio” da modernidade (sintoma), suas exposições são anunciadas como grandes espetáculos. E que, neste contexto, são de interesse capital até para a própria cidade. Isso desencadeia um interesse comercial no processo de musealização, que nem sempre é parte das intenções políticas e sociais da cidade, mas que vê na abertura de uma exposição, apenas a possibilidade de uma expansão turística a partir daquele evento. Esta “lógica” aqui observada envolve não só o processo de construção de uma memória histórica, mas também seu arquivamento – a memória e a sua materialização por meio de vestígios e musealização, e ainda o processo de musealização envolto em interesses políticos, públicos e/ ou particulares, principalmente no que tange aos grandes eventos, gerando muitas vezes conflitos internos e externos em função dessa guarda e arquivamento. Se se analisar o processo de criação dos museus de arte, ou as intenções originárias, e a distância na concretização desses ideais iniciais, e ainda, observando como agravante a falta de estudos, na área de museus de arte, e/ou a organização de um acervo que se constitui sem dispor de conceitos, de dados históricos, de compromissos sociais e éticos, de vasta bibliografia de apoio (LOURENÇO, 1999), percebe-se que para museus no cenário do interior brasileiro esta é a realidade que se efetiva. Ou seja, o acervo se constitui as expensas de sua própria identidade, constitui-se de excessos – excesso de arquivo, mas falta de arquivamento. Os museus de arte brasileiros, segundo Lourenço (1999), estão unidos por uma vasta carência, que vem desde a sua implantação e, em alguns casos, permanecendo após a criação. Faltam pesquisas criteriosas, histórico de ativida-

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des relativo ao público e ao acervo, além de dados bibliográficos e patrimoniais. Muitas vezes, as exposições temporárias se constituem rotineiras, justamente pela falta de condições de expor o próprio acervo, (diferenciando aqui da análise de Huyssen (1996), cujas exposições temporárias se constituem em interesse e mercantilização com vistas em mega-exposição) outras vezes, os museus relegam a segundo plano a sua função comunicacional por ser inexistente um projeto de comunicação visual coerente com sua identidade. É exatamente essa dinâmica que permeia o interior da maioria dos museus de arte, falta de condições espaciais para exposição de seu acervo, falta de autonomia financeira que conceda grandes alterações no escopo da instituição, falta de aquisição considerada significativa por aqueles que gerenciam seus acervos. Tudo isso faz com que esses pequenos museus se configurem em galerias a partir de uma política de editais de ocupações. Esta se torna a opção viável para uma dinâmica no interior do museu ao mesmo tempo em que essas ocupações se configuram também em doações. Ou seja, visualiza-se aí uma solução para aquisições, independente de uma política de fomento interna. Muitas vezes a escolha do acervo a ser exposto, segundo Lourenço (1999), está nas mãos e na opinião pessoal de alguém selecionado para tal função, ou seja, um curador convidado. Para ela, seria mais importante investir na formação de quadro técnico capaz de exercer essa função, visto que, por desconhecer a rotina e identidade do museu, este profissional fica impossibilitado de pensar uma política de seleção que possa contribuir com a tipologia da instituição. É importante ressaltar a necessidade de formação desse quadro pessoal independente de ter ou não curadoria externa, pois se acredita que essa questão seria amenizada por uma curadoria envolvida com a instituição em longo prazo. O problema de indefinição de um acervo para os museus de arte nos remete ao poema de João Cabral de Melo Neto, epígrafe deste texto, pois a forma indiscriminada com que se abrem museus, desde a década de 1950 até esta primeira década do século XXI, geram vários “museus de tudo” em diferentes regiões brasileiras, mas cria-se também, no que se refere aos museus de arte, “tudo de museu”, que abriga o mais complexo e diversificado acervo de arte tanto internacionais, quanto nacionais, regionais ou mesmo locais. O “museu de tudo” de João Cabral é a realidade do museu brasileiro, principalmente os regionais, salvo, é claro, poucas exceções. No entanto, no bojo do debate aqui empreendido, esse museu de tudo é ainda um museu-memória-arquivo, como museus que vão se configurando na contramão do que se espera deles. A memória no museu dar-se-ia justamente na formação de seu arquivo, ou, na falta deles, gerando tanto o mal de arquivo quanto seu apagamento. O excesso de arquivo se configura em excesso de dados e a ausência total de escritura. É a impossibilidade de sua inscrição na cultura, aquilo que aqui se chamou de não-pertencimento diante daquilo que deveria ser sua história, sua memória. É um museu de um museu, cheio de vestígios, vazio de informação. Para dar uma consistência ao trabalho no campo da memória, este estudo traz um viés diferente do que normalmente é utilizado pelo campo da museologia para se pensar o museu como instituição de memória, e que, a priori, está ligada à idéia de memória e patrimônio. A memória aqui debatida se dá por meio do conceito de arquivo em Derrida (2001), ou seja, analisa-se o mal de arquivo; o arquivo que é, ao mesmo tempo, instituidor e conservador, revolucionário e tradicional. Ele guarda, reserva de uma forma não natural, como uma lei a ser


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respeitada, uma ordem, que é do lugar, da família ou da instituição. Isto infere ainda a questão de poder também imbricada na instituição de arquivos; há uma lei, mas há também um poder. O museu em sua constituição já lida com o campo entre excesso e falta de acervo, excesso de objetos, falta de informação. O mal de arquivo é uma metáfora, uma cadeia de sucessão que está associada ao conceito freudiano de mal-estar, esse mal-estar provocado pelo excesso de dados e a ausência total de escritura, o silêncio. Excesso de escrita e falta de escritura. 2 Arquivo e mal-estar Quando se tem o excesso de arquivos e a falta de escritura não tem como inscrever esse arquivo na cultura, pois não se tem a história, nem a escritura do evento. Para tanto, Derrida (2001) analisa como se efetiva o problema da escritura ou a falta dele com base no conceito de mal-estar em Freud, analisando a partir da pulsão de morte8 uma sobre-vida ao arquivo. É importante considerar o conceito freudiano de mal-estar para se entender o processo no qual Derrida (2001) constrói a noção de arquivo. Ao se considerar o processo de arquivamento, ou o excesso de arquivo, se verá que para Freud (1997) são como a mente que guarda e conserva as camadas de histórias, gravadas como por camadas arqueológicas. A relação com essas histórias que podem tanto ser recalcadas, quanto serem afloradas diante da memória afetiva é que vai traçar os caminhos do indivíduo para uma sensação de felicidade. No entanto, a busca incessante de felicidade pode levar ao sofrimento, ao mal-estar. Ao analisar a fonte de onde o sofrimento provém, o autor cita como sendo três: o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade (FREUD, 1997, p. 37).

Ele considera a terceira fonte de sofrimento como a mais forte. Refere-se ao relacionamento com outros seres humanos e às leis e normas criadas para conviver com esses seres, no Estado e na sociedade. Quando se percebe o insucesso neste campo, percebe-se também o mal-estar, a incompletude. Para Freud (1997) há uma insatisfação, é essa insatisfação que gera o mal-estar da civilização – esse mal-estar da humanidade que está em seu processo civilizatório, que está na forma como a humanidade suprimiu seus desejos, inibiu seus instintos e em como todo esse processo foi absorvido pelo superego (consciência). 8 Freud (1997) afirma que em Além do princípio do prazer a “compulsão para repetir e o caráter conservador da vida instintiva” atraíram sua atenção. E, partindo de especulações sobre o começo da vida, e sobre paralelos biológicos ele compreendeu que, assim como Eros havia também um instinto de morte “os fenômenos da vida podiam ser explicados pela ação corrente, ou mutuamente oposta, desses dois instintos” (p. 77). Os dois instintos estão vinculados a restrição de uma agressividade, no entanto, para ele, essa agressividade na natureza humana é necessária, pois é a relação entre a pulsão de morte e a pulsão de vida (Eros). Precisa-se da tensão existente entre essas duas pulsões para manter a vontade, o desejo; de lutar; de viver; de crescer; de fazer algo. Ele afirma também que diante deste impulso para a agressão, há uma presença constante do instinto libidinal. Vê-se, então, que a libido está também ligada ao instinto de agressão. Há, assim, uma indistinta ligação entre Eros (pulsão de vida) e a destruição (pulsão de morte) “o instinto de destruição, moderado e domado, e, por assim dizer, inibido em sua finalidade; deve, quando dirigido para objetos, proporcionar ao ego a satisfação de suas necessidades vitais e o controle de sua natureza.” (p. 80-81). Para ele a evolução civilizatória consiste na luta entre Eros e a morte e essa representa a capacidade do indivíduo de tolerar essa tensão que se instaura.

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Diante disso, é possível afirmar que a insatisfação ou infelicidade é causada pelo processo de mal-estar na civilização gerado pelo próprio indivíduo diante de uma sociedade que ele mesmo criou. A não adequação a essa sociedade gera o sentimento de culpa. No entanto esse sentimento de culpa é para Freud positivo por se tratar de uma pulsão destrutiva que irá impulsionar o desejo pela mudança e será então organizadora dessa mudança. É essa relação que Derrida (2001) traz para a questão do arquivo. Freud (1997) analisa a partir do mal-estar que o sujeito por não se adequar a uma sociedade criada por ele mesmo, que mesmo diante de regras rígidas, de controle, não se sente protegido, pelo contrário se sente desamparado, passa a vivenciar uma tensão entre o ego e o superego, entre vida (Eros) e morte. Essa tensão traz o sentimento de culpa, (que a priori deveria ser ruim) como bom no contexto exposto por Freud (1997), pois ao gerar uma pulsão destrutiva gera também uma re-significação da agressividade. Essa tensão e seu processo de superação é visto por Derrida (2001) como uma possibilidade de re-significar também a questão do arquivo. Percebe-se que a relação proposta por Derrida leva à compreensão da memória ligada ao traço9. Memória é um traço, um arquivo, uma escritura, que em Freud está associado a um estado de culpa. Derrida (2001) atualiza esse conceito elaborando uma ligação entre o conceito de mal-estar e o arquivo, criando a partir daí, o conceito de mal de arquivo. Para Roudinesco (2006) Derrida aborda em mal de arquivo – a relação trágica e inquieta que se constrói frente ao arquivo – uma relação de dependência ou autoritarismo diante do espectro do arquivo e que exerce um dogma frente ao arquivado. Roudinesco (2006) chama a atenção para a obediência cega ao arquivo e a seu poder absoluto mostrando que isso leva à impossibilidade da história e a uma recusa do arquivo, ou ainda o contrário, o culto excessivo ao arquivo. Uma história quantitativa é também “destituída de imaginação e que proíbe que possamos pensar a história como uma construção capaz de suprir a ausência de vestígios” (ROUDINESCO, 2006, p. 9). Ou seja, acredita-se que se tudo está arquivado, a história já estaria escrita. Trata-se aqui de uma falta e de um excesso na questão de arquivo por um lado e as coleções por outro. As pessoas, as instituições, criam arquivos e formam coleções sem se preocuparem em desenvolver uma reflexão sobre o conteúdo arquivado, não há uma escritura. Fica o lugar pleno de objetos e documentos e, ao mesmo tempo, vazio de significação. Como o lugar pleno, vive de coleções de arquivos, de documentos, de fotocópias, torna-se um museu de um museu. É neste momento que se percebe que a instituição perde o caminho da reflexão em função do caminho do arquivista. Nesta tensão entre a falta e o excesso, tem-se um lugar vazio. Tem-se um lugar pleno de objeto, mas falta a inscrição, a escritura. Se se considerar os processos de musealização como operações museais, ou seja, no sentido de uma produção de documentação, que pode ser operações específicas realizadas no interior da instituição como ações de indexação, fichas catalográficas e outras, tudo isso pode formar um museu do museu. O que é em parte o administrativo, que cria diferentes arquivos sobre 9 Para Freud um traço mnêmico é como um resto, um resíduo de percepção que daria lugar à várias inscrições. Essa percepção está associada ao inconsciente uma vez que para ele memória e consciência são incompatíveis. “Assim se constitui o tesouro das lembranças, entreposto da memória, depósito de sentimentos, em que residem traços de acontecimentos, cenas e sensações, coisas vividas ou ouvidas, experiências de satisfação assim como de dor ou de pavor, mas também os representantes da atividade pulsional [...]” (SALVAIN, 1996, p.547). O que interessa nesse contexto dos estudos entre memória e arquivo é perceber que esses traços podem ser reativados e sua atualização fará com que o recalcado (uma percepção, uma ilusão) tenha crédito.


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as coleções gerando o arquivo-obra, são duplicações que, no interior do museu, pode ser acessado por um banco de dados gerados pelo sistema administrativo. Tem-se livro de tombo, mas se tem também, uma infinidade de fichas que gera o processo de escritura do objeto na instituição. No contexto do mal de arquivo, analisado por Derrida (2001) e Roudinesco (2006), ver-se-á se esse arquivo institui ou não o excesso, o excesso de memória e suas implicações que constituem a falta de operações museais que organizam outras formas de arquivo.Tem-se excesso de memória, mas na verdade não tem uma escritura do museu, uma inscrição de memória. A memória se encontra pulverizada em uma série de arquivos inoperantes e que só poderão ser acessados pelo rastro. Neste contexto, Roudinesco (2006) afirma que em muitas instituições se deparam com manuscritos que não foram classificados, não possuem uma organização, um repertório ou depósito, uma organização dos dados, não se constituindo, assim, em arquivo, e sim, na falta dele. A falta de arquivo é, para ela, tão tirânica quanto o excesso, criando o sintoma de história que vai se apagando, um constante apagamento de vestígio. Quanto mais se apaga o vestígio, mais se constrói uma ordem imaginária fundada na impossibilidade de se remeter a um repertório, no caso, é uma ordem imaginária da contemporaneidade. Cria-se uma espécie de ficção. Cria-se a fantasmagoria do arquivo, o mal de arquivo (DERRIDA, 2001). O que se observa é que a leitura do arquivo, seu tratamento, ou sua exegese é de certa forma uma violência sobre o mesmo. É preciso não só arquivar, mas possibilitar a sua escritura, a sua compreensão. O arquivo não pode se tornar uno10 se designar numa unicidade, isso seria uma violência. O arquivo deve ser re-con-signado11, pois ele é processual. O problema não está só no excesso ou na falta do arquivo, e sim, na escritura, no processo de inscrição que é permanente e dinâmico. Assim, ao se analisar o arquivo sob o viés do mal de arquivo, no conceito de Derrida (2001), compreende-se que, o mal de arquivo se baseia no mal-estar que está centrado no conceito metapsicológico da pulsão de morte freudiana, em algo que nos impulsiona a conhecer a origem de todo o processo de arquivamento e construção da memória. Ou seja, como se viu no conceito de mal-estar, a pulsão de morte é um desejo de viver, é uma pulsão organizadora. No arquivo ela consiste no desejo de ordenação, de escrituração, de inscrição. Se se considerar o âmbito da arte contemporânea, é possível perceber que a produção contemporânea por si só já é musealizável, uma produção que nasce gerando arquivos. A cada exposição, ou processos de visibilidade, que a obra do acervo é submetida, produz-se ou deveria produzir o arquivamento de sua trajetória, principalmente se forem obras em que o próprio corpo do artista é a obra, como a performance. Esse tipo de poética no museu abre caminhos para uma série de arquivos paralelos que vão, a partir de sua exponibilidade e consequente valoração, se transformando em arquivo-obra. É assim, no escopo da produção artística que a cada dispositivo de exibição, de estudo e manuseio deste complexo arquivístico, gera, como afirmou Costa (2008) a fantasmagoria do “mal de arquivo”. É ainda, no interior da instituição, que esse arquivo deve ser arguido, deve passar por uma escritura, ser organizado, analisado em sua origem. É assim, diante de sua destruição e recu10 Roudinesco (2006) observa, a partir do acervo do Museu de Freud, que se apenas um certo grupo tem acesso a informação, ou que este arquivo está protegido por uma certa unicidade de pensamento, de leitores, tradutores, há sua dogmatização. Ele se transforma em Uno. 11 Arquivo reconsignado é também re-com-signar, trazer novos signos que muitas vezes o distancia de sua origem. É o que ocorre quando este se encontra sob a guarda dos arcônticos.

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peração, escritura e esquecimento, que o mal de arquivo revitaliza a escrita da história e constitui os lugares de memória. Referências

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CHAGAS, Mario. Há uma gota de sangue em cada museu: a ótica museológica de Mario de Andrade. Chapecó: Argos, 2006. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1998. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1997. HUYSSEN,Andrea. Escapando da amnésia: o museu como cultura de massa. In: MEMÓRIAS do modernismo.Tradução Patrícia Farias. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1996. INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. Site. Disponível em: <www1.museus. gov.br/>. Acesso em: 15 ago. 2010. LOURENÇO, Maria Cecília França. Museus acolhem o moderno. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1999. NORA, Pierre. Entre memória e história a problemática dos lugares. Tradução Yara Aun Khoury. Projeto História: Revista do Programa de Estudos em História e do Departamento de História da PUC-SP, São Paulo, n. 10, p. 07-28, dez. 1993. Disponível em: <http://www.pucsp.br/projetohistoria/downloads/revista/ PHistoria10. pdf>. Acesso em: 22 mar. 2010. POLLACK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n.3, p. 3-15, 1989. ROUDINESCO, Elisabeth. A análise e o arquivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. SALVAIN, P. Traço. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Tradução Vera Ribeiro, Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. p. 547-548. SELIGMANN-SILVA. Márcio (Org.). Palavra e imagem: memória e escritura. Chapecó: Argos, 2006. WINTER, Jay. A geração da memória: reflexões sobre o boom da memória nos estudos contemporâneos de história. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio. Palavra e imagem: memória e escritura. Chapecó: Argos, 2006.

Artigo recebido em janeiro de 2013. Aprovado em fevereiro de 2013


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Corpos Informรกticos, 2012, enceradeiras em frente ao Museu de Arte Moderna de Salvador; foto Arthur Scovino.


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Corpos Informáticos. “Encerando a Chuva”. Festival Performance Arte Brasil. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro fotos: Camila Goulart.

Bia Medeiros [Maria Beatriz de Medeiros]. Artista e pesquisadora. Coordenada o grupo de pesquisa Corpos Informáticos. Doutora em Arte e Ciências da Arte- Universite de Paris I (Pantheon-Sorbonne). Docente da Universidade de Brasília. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos desde 1992. Pesquisadora do CNPq (2008-2011 e 2011-2015).


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R&M: Corpo, o urbano e o ordinário são elementos de Fuleragem. Gestos, palavras e desejos são apresentados em espaço distintos. Museus, galerias, ruas, praias, auditórios, o Congresso Nacional etc. são ativados e “re-inventados” pelas enceradeiras. Fuleragem parece desmistificar os espaços convencionais voltados para a arte, ao mesmo tempo em que transforma todos esses espaços em espaços da arte? Bia Medeiros: Exato. A fuleragem (naturalmente com minúsculo) quer se instalar em todos os cantos, recantos, meandros. Sub-repticiamente, surpreende o transeunte tornando-o errante. A fuleragem compõe com a cidade, com a web, com a rua, com o outro. E, como diz Spinoza, compõe e decompõe necessariamente. Poder-se-ia dizer, ainda, que a fuleragem simplesmente põe, põe em jogo, joga. Ou, dito diferentemente, a fuleragem mente, engana e trai.A performance se instala nas galerias, no MOMA, no PS1, ambos em Nova Iorque. O que faz a fuleragem? Pula corda, desenha amarelinhas binárias incompossíveis, enterra kombis com fálicas árvores penetrando seus interiores, encera a chuva, o encenador, encerra a dor e o senador usado.A nossa praia, e a de muitos artistas com os quais fuleramos– Coletivo Osso (BA), Grupo Empreza (GO), Opavivará (RJ), Filé de Peixe (RJ), Coletivo ES3 (RN), Larissa Ferreira (BA), Maicyra Leão (SE), Maria Eugênia Matricardi (DF), Shima(MG),Victor de La Rocque (PA),Yuri Firmeza(CE) – é onde estivermos. R&M: Corpos Informáticos é um projeto longevo num país onde os coletivos tem vida curta. A movência, a itinerância e a autocrítica são noções próprias do Corpos, essa é a chave para o projeto ter chegado a 20 anos e ainda suscitar tantas provocações? Bia Medeiros: Corpos Informáticos não possui uma estratégia limitada, delimitada. Esta forma de ação, que eu não chamaria de estratégia, se constrói no processo e no coletivo. Corpos Informáticos professa a fuleragem, mas também escreve livros, se sustenta (será que ele se sustenta, o se SUS-tenta?), consegue financiamento. Assim sobrevivemos: CAPES, CNPQ, FAC-DF FUNARTE, Petrobras, mas também, muito, na raça: com a cara e a coragem mas sobretudo com o corpo. O grupo se sustenta, pois sabemos nos sustentar na corda bamba, sabemos pular corda, escorregar no Congresso Nacional, andar de jangada carregando o bundalelê (www.copros.blogspot.com). Constituímos o grupo Corpos Informáticos na Universidade de Brasília com atores, performers, técnicos (técnicos em vídeo e em informática), e artistas plásticos. Por vezes contamos com o apoio de pesquisadores em música. O objetivo primeiro do grupo permanece interrogar as possíveis relações entre, por um lado, o corpo real, o corpo-carne, o corpo presença, isto é, o corpo da “linguagem” artística performance, aquele que atualiza o tempo real em uma arte perto do público, uma arte a não respeitar, a “tocar por favor”, do outro lado, a tecnologia (toda e qualquer). Isto, sem jamais abandonar a ocupação com a participação do público e os espaços ex-situ da arte. Nós falamos em tecnologias e pensamos arte digital, arte comunicacional, o espaço da rede mundial de computadores (a web) e a cidade. Que espaço é realmente público? A rua, a praça, a web, minha casa, minha cama? Sendo uma pesquisa pluri-disciplinar, interdisciplinar, ela só pode ocorrer no seio de um grupo onde a individualidade se torna dividualidade (capaz de divisão, de partilha e de pronóia – por oposição à paranóia). A, singularidade se divide, compartilha, traz sua especificidade e aceita a promiscuidade: secreções e contaminações. Na proposta do grupo sempre há um grande interesse pelo conhecimento específico de cada um (teatro, artes plásticas, informática, vídeo, fotografia…), mas também há uma pesquisa em todas as áreas de conhecimento envolvidas por cada um dos membros do grupo.

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MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.I1, nº3, maio/junho de 2013

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Corpos Informáticos é hoje formado por Adauto Soares, Bia Medeiros, Camila Soato, Diego Azambuja, Fabrício Araújo, Fernando Aquino, Luara Learth, Maria Eugência Matricardi, Marina Brites, Márcio H. Mota. Existe, ainda, o Corpos Expandidos: Larissa Ferreira, Luiz Ribeiro, Bianca Tinoco, Tiago Moira,Victor Valentim... R&M: De modo tímido, recentemente alguns museus públicos brasileiros começaram a assimilar performances em seus acervos. Em sua opinião por que a arte da performance encontra tanta resistência do sistema memorial voltado às artes? Bia Medeiros: A primeira resposta a esta pergunta é: - a performance não se vende. Mas... hoje, se vende, sim. Exatamente porque a performance foi, está sendo, vendo sendo, institucionalizada, comercializada que o Corpos Informáticos decidiu que não mais realizava performances. O que fazemos é fuleragem. Também não realizamos mais arte efêmera. Esta palavra foi sofisticada, enquadrada. Preferimos dizer que nosso trabalho é mixuruca. R&M: A partir de sua experiência, quais as dificuldades de um artista contemporâneo em produzir intervenções/alterações em espaços museológicos convencionais ou alternativos. Há diferenças consistentes? Bia Medeiros: Dependendo do espaço museológico contemporâneo esta pergunta não cabe. Poucas são as dificuldades de um artista contemporâneo em produzir intervenções/alterações em espaços museológicos convencionais ou alternativos quando estes realmente se interessam por arte contemporânea. Exemplo: Museu da República sob a direção de Wagner Barja. R&M: O que o sistema expositivo autorizado e convencional pode assimilar e aprender com a performance em telepresença? Como reapresentá-la? Bia Medeiros: Corpos Informáticos se interessou pela performance em telepresença entre 1999 e 2006. Deixamos de lado esta linguagem quando ela foi se tornando banal. Apresentamos performance em telepresença no Itaú Cultural em 2004, no Frankfurt Art (Feira de arte de Frankfurt) em 2005, na Bienal do Mercosul (curador Paulo Sérgio Duarte) em 2005 (www.corpos.org/telepresence2; www. corpos.org/teleperformance; vimeo.com/8729372). O sistema expositivo autorizado e convencional tem muito a aprender com a arte tecnológica. Nunca esqueço um co-curador da Bienal de São Paulo tentando me explicar porque ele não tinha arte tecnológica na Bienal:“a rede elétrica não sustentaria”. Pode? Tudo a aprender.




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