REVISTA MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE 1

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Universidade de Brasília

Faculdade de Ciência da Informação

Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília

nº 1, Ano 1, 2012


Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação Vinculada ao Grupo de Pesquisa Museologia, Patrimônio e Memória MPM/PPGCInf/UnB

REITORIA DA

Mário Moutinho

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Myrian Sepúlveda dos Santos

José Geraldo de Sousa Junior

Renato Monteiro Athias Tereza Cristina Moletta Scheiner

DIRETORIA DA FACULDADE DE

Ulpiano Toledo Bezerra de Menesesulo

CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO Elmira Luzia Melo Soares Simeão

COMISSÃO EDITORIAL Ana Lúcia de Abreu Gomes

COORDENAÇÃO DE

Andrea Fernandes Considera

PÓS-GRADUAÇÃO

Celina Kuniyoshi

Lillian Alvares

Déborah Santos Elizângela Carrijo

CONSELHO CONSULTIVO

Marcela Stockler Coelho de Souza

Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira

Marcelo Balaban

James Early

Monique Batista Magaldi

Lena Vânia Pinheiro Ribeiro

Silmara Küster de Paula Carvalho

Lillian Alvares Luiz Antonio Cruz Souza

EDITOR-CHEFE

Marcus Granato

Emerson Dionisio Gomes de Oliveira

Maria Célia Teixeira Moura Santos Maria Cristina Oliveira Bruno

PROJETO GRÁFICO/

Maria Cristina Oliveira Bruno

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Mario de Souza Chagas

Núcleo de Editoração e Comunicação - FCI Cláudia Neves Lopes Vesna Simões


Universidade de Brasília

Faculdade de Ciência da Informação

Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília

nº 1, Ano 1, 2012


Correspondências e contribuições devem ser enviadas para: M u s e o l o g i a & I n t e r d i s c i p l i n a r i d a d e Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCInf) Faculdade de Ciência da Informação (FCI) Universidade de Brasília Edifício da Biblioteca Central (BCE) Entrada Leste, Mezanino, Sala 211 Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte, Brasília CEP: 70910-900 E-mail: revistami@unb.br

Todos os direitos reservados A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei no 9.610).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Museologia e interdisciplinaridade: publicação eletrônica do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Universidade de Brasília. Faculdade de Ciência da Informação. – v.1, n.1 (2012) – Brasília: UnB/FCI, 2012v. Semestral Resumo em português e inglês. Disponível no SEER: http://seer.bce.unb.br/index.php/museologia ISSN 2238-5436 1. Museologia. Patrimônio e memória. Artes Visuais. Antropologia. História. Interdisciplinaridade em Museologia. I. Universidade de Brasília. Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Faculdade de Ciência da Informação. CDU: 069.01(051)


SUMÁRIO Interdisciplinares Emerson Dionisio Gomes de Oliveira

Página 07

Confluências Interdisciplinares entre Ciência da Informação e Museologia Lena Vania Ribeiro Pinheiro

Página 09

Museus e Centros de Ciência na Esteira da Diversidade

Página 26

e da

Cidadania

Denise C. Studart Museologia, Comunicação Museológica e Narrativa Indígena: a Experiência do Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre Marília Xavier Cury

Página 38

A Narrativa de Arte Moderna no Brasil e as Coleções Matarazzo, MAC USP Ana Gonçalves Magalhães

Página 57

Narrativa sobre arte popular: estudo de caso sobre

Página 81

tesauro e exposições permanentes elaboradas pelo

Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular Elizabete Mendonça A Patrimonialização da Memória da Cultura Popular Brasileira no Museu de Folclore Edison Carneiro Vânia Dolores Estevam de Oliveira

Página 97

Arte Doméstica e Imagem da Nação: Um Olhar Sobre os Museus-casa de Rui Barbosa e de Benjamin Constant Marize Malta

Página116

O Museu e a Sua arquitetura no Mundo Globalizado: Entre Informação e Virtualidade José Cláudio Alves de Oliveira

Página 133

Público, o X da Questão? A Construção de Uma Agenda de Pesquisa Sobre os Estudos de Público no Brasil Luciana Sepúlveda Köptcke

Página 149

Graduação em Museologia: Significados, Opções e Perspectivas Lillian Alvares

Página 167

Entrevista Lygia Martins Costa: dedicação ao mundo museal por mais de meio século

Página 177

CAPA

Página 196

Diretrizes Para Autores

Página 199



EDITORIAL Interdisciplinares

Emerson Dionisio Gomes de Oliveira O conhecimento é sempre instável, provisório, dependente dos questionamentos que se impõem num dado momento. Aquartelar-se não é uma prática bem-vinda para aqueles que se debruçam sobre o saber. A liberdade e a troca são elementos essenciais para o conhecimento num ambiente acadêmico e científico. Ligada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, a Revista Museologia & Interdisciplinaridade dentro desta perspectiva, busca ser uma publicação voltada à pesquisa museológica, engenhada dentro do jovem curso de Museologia da Universidade de Brasília, que por sua vez foi criação dos esforços de quatro áreas: Antropologia, Artes Visuais, Ciência da Informação e História. Museologia e Interdisciplinaridade é um curioso nome para uma publicação que surge no segundo decênio do século XXI e carrega consigo duas marcas importantes: a ironia e a franqueza. No universo científico estamos pouco acostumados a admitir nosso humor como forma de gerenciar o conhecimento. O nome de nossa revista é por principio uma redundância efetiva e irônica. Que aspecto do conhecimento museológico não é em si mesmo interdisciplinar, para dizer o mínimo? A interrogação pede um leve sorriso, da mesma forma que o título da revista nos pede atenção, pois diante dos prefixos sedutores - trans, multi, pluri – ainda não nos achamos suficientemente inter. Este desafio parece-nos evidente. A interdisciplinaridade não é uma meta desta publicação e, sim, sua base. Em suas páginas esperamos encontrar as mais variadas formações profissionais, pesquisadores de áreas aparentemente contrapontísticas, mas que poderão encontrar nesta revista espaço para trocas e questionamentos. No primeiro número da revista temos um elenco de pesquisadores que bem mostra o caráter, a ambição e o desafio proposto pelos pesquisadores da UnB. Lena Vania Ribeiro Pinheiro foi a pesquisadora convidada para abrir o longo e profícuo debate entre Museologia e Interdisciplinaridade, na perspectiva da Ciência da Informação. Cidadania e o museu de ciência, como espaço democrático de gestão cultural e educação, é o que nos oferece o trabalho de Denise Studart. O fortalecimento da cidadania é um dos temas de Marília Xavier Cury ao investigar o processo expográfico construído junto com os índios Kaingang. Modelos expositivos e seus sistemas narrativos e classificatórios voltados à arte popular é a contribuição de Elizabete Mendonça. Também é a arte popular que veremos na contribuição de Vânia de Oliveira. Como Oliveira, debruçada sobre a coleção do Museu de Folclore Edison Carneiro,Ana Magalhães e Marilze Malta nos trazem questionamentos ímpares sobre coleções de arte e seus desdobra-


Editorial

mentos sobre as narrativas da história da arte. José Cláudio Alves de Oliveira apresenta em seu artigo diferentes arquiteturas da presença dos museus no ciberespaço. Já Luciana Köptcke toca num ponto crucial da área, o estudo dos diferentes públicos que acessam os museus. Para terminar, o começo, Lillian Alvares, apresenta-nos o próprio nascimento do curso de Museologia da UnB.

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº1, jan/jul de 2012

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Um quase começo é o que o primeiro número da revista apresenta na entrevista, concedida as pesquisadoras Ana Abreu e Elizângela Carrijo, com a museóloga Lygia Martins Costa, responsável pelo projeto de criação do curso de Museologia na Universidade de Brasília em 1964. Projeto e sonho interrompidos pela ditadura civil-militar da época. Esperamos que Museologia e Interdisciplinaridade possa contar um pouco do sonho de Lygia e seus desdobramentos décadas depois em nossa universidade. Nosso primeiro número é dedicado a ela e a todas as docentes do curso de Museologia atual. Todas dedicadas a partilhar e compartilhar saberes e a construir bases sólidas para o conhecimento interdisciplinar.


CONFLUÊNCIAS INTERDISCIPLINARES ENTRE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO E MUSEOLOGIA

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Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia - Ibict

RESUMO: Pesquisa sobre a interdisciplinaridade entre Ciência da Informação e Museologia, tendo como centro de análise as teses e dissertações do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI) resultado do convênio entre o IBICT e a UFRJ (1970-2000 e a partir de 2008) e do IBICT com a UFF (2003-2008), além de cursos de pós-graduação, pesquisas, grupos de pesquisa, publicações, especialmente periódicos, associação e eventos técnico-científicos. Os resultados mostram indicadores de uma situação ímpar do Brasil, criada e estimulada pelas políticas públicas nacionais e ações acadêmicas, tanto na Ciência da Informação quanto na Museologia, e a presença de estudos que traduzem o fortalecimento e expansão da interdisciplinaridade em diferentes instâncias, sejam teóricas, empíricas ou da prática profissional.

ABSTRACT: Interdisciplinary research about Information Science and Museology having as an analysis center the PPGCI (Graduate Program in Information Science IBICT-UFRJ and IBICT-UFF), graduate courses, researches, research groups, and technical scientific publications, especially journals, association and events, that adopted approach in these areas. The results shows indicators of an unique Brazilian situation created and stimulated by public policies and academic actions, both in Information Science and Museology, and the presence of studies that translated the expansion and strengthening of interdisciplinarity in different instances, whether theoretical, empirical or professional practices.

PALAVRAS-CHAVE: Interdisciplinaridade. Ciência da Informação. Museologia. Programa de Pós-Graduação em Ciência da informação (PPGCI/ IBICT-UFRJ PPGCI/IBICT-UFRJ). Teses e dissertações.

KEYWORDS: interdisciplinary. Information Science. Museology. Graduate Program in Information Science (PPGCI/IBICT-UFRJ PPGCI/ IBICT-UFRJ).Thesis and dissertations.

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O IBICT inicialmente atuou por mandato acadêmico em convênio com a UFRJ (1970-1981 e 1982-2000), por um breve período em convênio com a UFF (2003-2008) e a partir do final de 2008, novamente por convênio com a UFRJ, este na modalidade associação ampla.


Confluências Interdisciplinares entre Ciência da Informação e Museologia

Introdução: demarcações conceituais da interdisciplinaridade no tempo

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº1, jan/jul de 2012

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As Ciências Sociais e Humanas, por sua natureza e objeto, trouxeram para as ciências em geral novas abordagens e metodologias, entre as quais a interdisciplinaridade que, com a emergência de novas disciplinas no mundo contemporâneo, impulsionadas também pelas tecnologias, forjaram uma epistemologia multifacetada e híbrida. A interdisciplinaridade não é uma questão nova, na sua filosofia e ideias. Já estava presente no humanismo grego e no renascimento, quando artistas-cientistas como Leonardo da Vinci, vivenciaram e exerceram práticas interdisciplinares, embora ainda assim não fossem denominadas. Em Portugal, Olga Pombo apresenta significativa produção teórica sobre interdisciplinaridade. Em uma conferência proferida no Brasil, depois publicada em nosso País, ressalta que “a interdisciplinaridade tem - e sempre teve - um lugar decisivo na criação científica”. E ao exemplificar afirma: como recorda Gilbert Durand, ... os sábios criadores do fim do século XIX e dos dez primeiros anos do século XX (esse período áureo da criação científica, em que se perfilam nomes como os de Gauss, Lobatchevski, Riemann, Poincaré, Hertz, Becquerel, os Curie, Rutherford, Pasteur, Max Plank, Bohr, Einstein), tiveram todos uma formação largamente pluridisciplinar, herdeira do velho trivium (as humanidades) e do quadrivium (os conhecimentos quantificáveis e, portanto, também a música) medievais. (Durand, 1991 apud Pombo, 2005: 9)

Outro exemplo é Whewell, em The philosophy of inductive sciences, do século XIX, que recorreu ao termo consiliente para representar a noção de interdisciplinaridade, assim descrita: “salto conjunto do conhecimento entre e através das disciplinas, por meio da ligação de fatos e de teorias, para criar novas bases explanatórias”. (1840 apud Braga. 1999: 9) Depois desses exemplos mais espaçados no tempo, começam a surgir, de forma mais sistemática, estudos sobre interdisciplinaridade no interior da epistemologia, disciplina nova na qual se discute também a nova questão. Assim, alguns autores dedicaram-se a essa temática e no Brasil, há mais de 30 anos, Hilton Japiassu (1976) estuda a interdisciplinaridade, tendo recentemente lançado livro sobre um conceito mais amplo, o de transdisciplinaridade. (Japiassu, 2006). Olga Pombo (2005), já citada, aponta as dificuldades semânticas e epistemológicas desse termo e de próximos, “mais ou menos equivalentes” ou da “família”, como pluridisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade. A autora manifesta a sua preocupação com a “... equivocidade que envolve o conceito de interdisciplinaridade” e assinala: ”As suas fronteiras não estão estabelecidas, nem para aqueles que as usam, nem para aqueles que as estudam, nem para aqueles que as procuram definir”. Assim, espera contribuir para “proposta de estabilização do sentido da palavra” (Pombo, 2005: 9). Ao mesmo tempo aborda, a partir de Durand, a “passividade monodisciplinar”, inibidora do “salto heurístico” de que a ciência moderna necessita, salto esse que, por natureza, sempre esteve e continua a estar “dependente de uma larga informação e cooperação interdisciplinar”. (Durand, 1991 apud Pombo, 2005: 9).


Lena Vania Ribeiro Pinheiro

1. Esta discussão inicial é necessária pelo reconhecimento da complexidade e dificuldades demarcatórias conceituais, assim como a inserção histórica da interdisciplinaridade, como pano de fundo para desenvolver o objetivo do presente trabalho: analisar a interdisciplinaridade entre a Ciência da Informação e Museologia, a partir de elementos teóricos e da produção de dissertações e teses do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI), do IBICT (Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia)2 em parceria com a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e com a UFF (Universidade Federal Fluminense) em momentos diferentes. Como desdobramento, o objetivo específico é identificar alguns indicadores desse movimento interdisciplinar em pesquisas e grupos de pesquisa, cursos, disciplinas, publicações, associações e eventos técnico-científicos das duas áreas no Brasil. Questões epistemológicas centrais Considerando que a interdisciplinaridade foi abordada em publicações anteriores desta autora (Pinheiro, 1995, 1999, 2006, 2007), aqui serão privilegiadas a disciplinaridade, por sua onipresença nos demais conceitos, e a transdisciplinaridade. Da mesma forma, os conceitos próximos ou assemelhados como pluridisciplinaridade e multidisciplinaridade, além de tipos de interdisciplinaridade, da forma como Japiassu (1976) os categoriza, não serão aqui discutidos: ”interdisciplinaridade heterogênea, pseudo-interdisciplinaridade, interdisciplinaridade auxiliar, interdisciplinaridade compósita, interdisciplinaridade unificadora, interdisciplinaridade linear ou cruzada e interdisciplinaridade estrutural”. Quando Japiassu (1976: 79-81) define essas categorias está se referindo a graus ou níveis que antecedem a interdisciplinaridade propriamente dita, ainda monólogos, até se consolidar o “diálogo entre disciplinas”, representado pela última categoria, a interdisciplinaridade estrutural. Além deste esclarecimento, reconhecemos, conforme muitos autores, entre eles Clerk (apud Klein, 1996), que disciplinaridade é o “primeiro princípio” sobre o qual “tudo é construído” ou é inerente a todas essas palavras pela raiz comum, como Pombo (2005) ressalta em sua “proposta provisória”. Para a autora, ... por detrás destas quatro palavras, multi, pluri, inter e transdisciplinaridade, está uma mesma raiz - a palavra disciplina. Ela está sempre presente em cada uma delas. O que nos permite concluir que todas elas tratam de qualquer coisa que tem a ver com as disciplinas”. Por outro lado, “o sufixo trans supõe um ir além, uma ultrapassagem daquilo que é próprio da disciplina. (Pombo, 2005: 5)

Assim, elegemos apenas um conceito de interdisciplinaridade, para orientar os desdobramentos conceituais posteriores: 2

O IBICT inicialmente atuou por mandato acadêmico o convênio com a UFRJ (1970-1981 e 1982-2000), por um breve período em convênio com a UFF (2003-2008) e, a partir do final de 2008, novamente por convênio com a UFRJ, este na modalidade associação ampla.

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Confluências Interdisciplinares entre Ciência da Informação e Museologia

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº1, jan/jul de 2012

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Método de pesquisa e de ensino suscetível de fazer com que duas ou mais disciplinas interajam entre si, esta interação podendo ir da simples comunicação das idéias até a integração mútua dos conceitos, da epistemologia, da terminologia, da metodologia, dos procedimentos, dos dados e da organização da pesquisa, ... nova etapa do desenvolvimento do conhecimento científico e de sua divisão epistemológica, e exigindo que as disciplinas científicas, em seu processo constante e desejável de interpenetração, fecundem-se cada vez mais reciprocamente. (Japiassu; Marcondes, 1991:136)

Quanto à transdisciplinaridade, a primeira vez que é abordada, em menção de Japiassu (1976), data de mais de 30 anos, cuja criação é por ele atribuída a Piaget, teórico ao qual recorre, e para quem este termo equivaleria a uma etapa posterior e superior “que não se contentaria em atingir interações ou reciprocidade entre pesquisas especializadas, mas que situaria essas ligações no interior de um sistema total, sem fronteiras estabelecidas entre as disciplinas”. (Piaget apud Japiassu, 1976:75) Em seu livro de 2006, Japiassu destaca o conceito de transdisciplinaridade elaborado no Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, realizado em Portugal, no ano de 1994: “abordagem científica, cultural, espiritual e social dizendo respeito ao que está entre as disciplinas, através das disciplinas e além de toda a disciplina”. Nesta explicitação fica evidente a semelhança com as ideias de Whewell expostas anteriormente, relativas ao termo consiliente. Outro evento apontado pelo autor foi o Congresso de Lucarno, Suíça, em 1997, promovido pela Unesco e pelo Centre International de Recherches et Études Transdisciplinaires, reunindo Ciência e Educação. O objetivo foi “buscar novas diretrizes para a universidade do próximo século (XXI), pois a atual se encontra ameaçada pela ausência de sentido e por sua recusa em compartilhar os conhecimentos”. Japiassu enfatiza a necessidade de contextualizar e globalizar e, remetendo ao título de seu livro - O sonho transdisciplinar e as razões da Filosofia -, expressa o que entende por sonho transdisciplinar: “... o lugar geométrico mais ou menos utópico onde deveria manifestar-se o conjunto dessas estratégias, tendo por finalidade a compreensão do mundo presente numa perspectiva utópica de unificação de conhecimentos”. (Japiassu, 2006: 15-16) Convergências teóricas, empíricas e da prática profissional

Independentemente de constatações da prática profissional, há indícios de convergências teóricas entre Ciência da Informação e Museologia que se manifestam de diferentes formas: em abordagens, aplicações, aspectos técnicos ou operacionais, acadêmicos e tecnológicos. A primeira seria o caráter interdisciplinar da Ciência da Informação, admitido desde o seu alvorecer e presente em toda a literatura da área, quer seja apenas na sua menção, sem aprofundamento, ou mesmo a enumeração de uma série de interdisciplinas, algumas mais apontadas e outras, como a Museologia, menos, mas ainda assim presentes em determinadas pesquisas. Posteriormente, estudos sobre a interdisciplinaridade da Ciência da Informação ganharam aprofundamento, como os de Saracevic (1992, 1999). No artigo


Lena Vania Ribeiro Pinheiro

de 1992, o autor aborda quatro áreas interdisciplinares à Ciência da Informação, justificando as relações recíprocas: Ciência da Computação, Biblioteconomia, Comunicação e Ciência Cognitiva. Na publicação subsequente, o autor aprofunda as interfaces da Ciência da Informação com as duas primeiras. No caso da Biblioteconomia, a intensidade dessa relação interdisciplinar se manifesta pelo espaço comum entre ambas, “bastante forte”, que repousa no “... compartilhamento de suas regras sociais e preocupação geral com a utilização eficaz dos registros gráficos e outros tipos de registros, particularmente pelos indivíduos”. Mas, ao mesmo tempo ressalta as distinções, bem significativas e que o levaram a concluir que “... a Biblioteconomia e Ciência da Informação são dois diferentes campos com fortes relações interdisciplinares, mais do que um campo ou o mesmo campo, ou um sendo um caso especial do outro”. (Saracevic, 1999: 1060) Entre os teóricos também destacamos Wersig (1993), pela relação mais direta de seus trabalhos com museus, a partir da inserção da Ciência da Informação na pós-modernidade e de “interconceitos”. O autor analisa especificamente o “design de exposições” e conclui: “... os museus não são somente parte integral da Ciência da Informação, mas uma parte integral das estratégias pós-modernas de apresentação do conhecimento.” No entanto, pesquisas interdisciplinares entre Ciência da Informação e Museologia quase não aparecem na literatura estrangeira, conforme constataram Lima (2003) em sua tese de doutorado e Moraes (2008) na sua dissertação de mestrado. A situação brasileira se configura como uma exceção. Em nosso País, estudiosos têm se dedicado a pesquisas interdisciplinares entre Museologia e Ciência da Informação, especialmente aqueles que, graduados em Museologia obtiveram pós-graduação em Ciência da Informação (PPGCI/IBICT-UFRJ) ou mestres e doutores não-museólogos, mas com atuação em museus e na Museologia. No primeiro caso estão as citadas em Lima (2003) e Moraes (2008) e no segundo, Pinheiro (1995, 1999, 2006, 2007) com pesquisas teóricas e empíricas desenvolvidas há mais de 15 anos, no mapeamento da interdisciplinaridade e aplicações da Ciência da Informação, nas quais a Museologia está presente nas duas relações. Enquanto a interdisciplinaridade tem sido objeto de inúmeras pesquisas em C&T, inclusive na Ciência da Informação, as denominadas “aplicações” não são explicitadas, embora relevantes para essa disciplina por outra de suas características, a de perpassar diferentes áreas, na sua horizontalidade ou transversalidade. Quanto à informação especializada, Japiassu (1976) cita brevemente as aplicações, que considera orientadas a profissões, enquanto Pinheiro assim as explica: As aplicações (contextos, áreas, setores, organismos), isto é, a informação científica, tecnológica, industrial ou artística, ou a aplicação em campos do conhecimento como na Medicina (Informação em Medicina) se mesclam com a interdisciplinaridade propriamente dita – são conceitos distintos, embora possam apresentar contribuições interdisciplinares. (Pinheiro, 1990: 176)

A interdisciplinaridade da Museologia e Ciência da Informação passa também pela informação em museus, especialmente a informação em arte, nascida de estudos de museus de arte e seus respectivos sistemas e redes de informação, bem como da representação do objeto museológico.

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Confluências Interdisciplinares entre Ciência da Informação e Museologia

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº1, jan/jul de 2012

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É importante introduzir o pensamento de Ferrez e Bianchini (1987), inovador na época, para as quais o museu é um sistema de informação e os acervos museológicos constituem fontes de informação. A ideia, não incorporada às ações de museus há 20 anos, no Brasil e mesmo no exterior, hoje contribui para o reconhecimento da interdisciplinaridade entre Ciência da Informação e Museologia. É oportuno destacar que a primeira autora, Ferrez, é mestre em Ciência da Informação e os seus conhecimentos nessa área propiciaram tal visão. A definição de Informação em Arte contempla os aspectos interdisciplinares assinalados, uma vez que “... é o estudo da representação do conteúdo informacional de objetos/obras de arte, a partir de sua análise e interpretação. Nesse sentido, a obra artística é fonte de informação”, abrangendo “o objeto de arte, documento no seu sentido mais amplo, oriundo de múltiplas manifestações e produções artísticas”. (Pinheiro, 2000: 7) Outro fator de convergência são as tecnologias de informação e comunicação (TIC) que, juntamente com a globalização de todos os setores da sociedade, fomentaram a chamada Sociedade da Informação, posteriormente também denominada Sociedade do Conhecimento. As TIC aproximam diferentes campos do conhecimento, na medida em que as redes facilitam e necessitam, na sua operacionalização, da articulação de pesquisadores e profissionais de distintas formações, com saberes e práticas para atuação conjunta em redes eletrônicas, da mesma forma que proporcionam, mesmo a longas distâncias, a realização de pesquisas inter e transdisciplinares. Finalmente, uma circunstância acadêmica nacional diz respeito à inexistência de pós-graduação stricto sensu em Museologia até 2006, quando foi implantado o Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (PPG-PMUS), convênio entre a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e o Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) em nível de mestrado. Tornar realidade esse Programa pioneiro da área no Brasil foi uma conquista coletiva possível pela liderança firme e empenho desmedido de sua Coordenadora,Tereza Scheiner (UNIRIO), apoiada por Marcus Granato (MAST),Vice-Coordenador. Até então, os museólogos que cursavam a pós-graduação, a faziam em outras áreas, inclusive em Ciência da Informação, neste caso, especialmente no PPGCI. A produtividade de teses e dissertações que intercruzam Museologia e Ciência da Informação é identificada e analisada no seu conteúdo, no próximo tópico. Interdisciplinariedade no PPGCI: Ciência da Informação e Museologia Tratando-se de produção científica de duas universidades (UFRJ e UFF) e um instituto de pesquisa (IBICT), importa introduzir as distinções entre campo, área e linha de pesquisa, conforme estabelecidos por Amaral (1990): ...campo designa o território total cuja investigação o curso pretende operar. Medicina, Filosofia, Comunicação são campos. Área é uma subdivisão do campo, um corte introduzido artificialmente por motivos de estratégia exploratória. Teorias da Comunicação e da Cultura e Tecnologias da Imagem são áreas, como Filosofia Brasileira ou Cirurgia. Existirá linha cada vez que, dentro de uma área


Lena Vania Ribeiro Pinheiro

(que se caracteriza por uma certa informalidade, no sentido da ausência de uma clara forma individualizadora), certos temas aglutinadores dêem forma a cooperação entre pesquisadores. Estes então se reúnem para, trabalhando em conjunto em torno desses temas, aprofundarem a área e desenvolverem o campo. (Amaral, 1990)

Um dos fatores que deve ter contribuído para o desenvolvimento de dissertações e teses interdisciplinares no PPGCI é a existência da linha de pesquisa Teoria, Epistemologia e Interdisciplinaridade da Ciência da Informação, sendo este o único Programa da área que inclui uma linha dessa natureza. Com a assinatura do novo convênio, em 2009, a área de concentração, Informação e Mediações Sociais e Tecnológicas para o Conhecimento contém, na sua primeira explicitação da ementa, “as questões da interdisciplinaridade”. Por outro lado, as linhas de pesquisa3 foram reduzidas a duas e a primeira “Comunicação, Organização e Gestão da Informação e do Conhecimento” começa pelos “estudos históricos e epistemológicos da Ciência da Informação”. A quantidade de dissertações e teses com o enfoque interdisciplinar entre Ciência da Informação e Museologia e a sua distribuição cronológica são mostradas na Tabela 1. Quanto à temática dessas dissertações e teses, num total de vinte (Apêndice A)4, predomina a informação, objeto de estudo da Ciência da Informação, em distintas abordagens: informação museológica e comunicação (Castro, 1995), informação, museu e alienação (Loureiro, J. M., 1996), informação e discurso museológico (Rocha, 1999) e fluxos da informação em museu de arqueologia (Ribeiro, 2007). Outras pesquisas enfocaram a Informação em arte: a obra de arte como objeto museológico e fonte de informação (Loureiro, M. L., 1998) e informação em arte e interdisciplinaridade entre Ciência da Informação e Museologia (Lima, 2003), além de duas direcionadas às tecnologias de informação e comunicação: informação e sítios de museus de arte (Miranda, 2001) e museus de arte no ciberespaço (Loureiro, M. L., 2003). As exposições, de grande relevância para os museus, foram estudadas em quatro pesquisas: duas sobre a exposição e público, ambas de Carvalho, a dissertação enfocando a comunicação e transferência da informação (Carvalho, 1998) e a tese sobre o visitante presencial e o virtual (Carvalho, 2005). A terceira tratando de exposições e interdisciplinaridade (Moraes, 2008) e a última sobre interatividade e ação informacional e comunicacional em museus de ciência (Rocha, 2008). A divulgação científica e a informação em museus da ciência foi a questão pesquisada em duas dissertações (Cardoso, 2001; Souza, 2007). Ainda sobre museus científicos, mas como campo informacional e de ação hegemônica, foi proposta a representação da ciência e a socialização da informação em tese de doutorado (Loureiro, J. M., 2000). 3 4

http://www.ppgci.ufrj.br/index.php/grupos/grupos-de-pesquisa

É oportuno explicitar que, embora o convênio com a UFRJ-ECO tivesse encerrado em 2000, já haviam sido selecionadas, em outubro de 2000, turmas de mestrado e doutorado para 2001, que foram mantidas assegurando o direito dos alunos. Por essa razão, há casos de teses iniciadas sob o convênio da UFRJ-ECO e concluídas no período do convênio com a UFF.

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Confluências Interdisciplinares entre Ciência da Informação e Museologia

Tabela 1: Teses e dissertações interdisciplinares do PPGCI (IBICT-UFRJ e IBICT-UFF): Ciência da Informação e Museologia, por distribuição cronológica, 1995-2011

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº1, jan/jul de 2012

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Ano

IBICT-UFRJ* Teses

IBICT-UFRJ Dissertações

IBICT-UFF** Teses

IBICT-UFF Dissertações

1995

-

2

-

-

1996

-

1

-

-

1998

-

2

-

-

1999

-

1

-

-

2000

1

-

-

-

2001

-

2

-

-

2002

1

1

-

-

2003

2

-

-

-

2004

1

-

-

-

2005

1

-

-

2007

-

-

-

2

2008

-

-

1

1

2009

-

-

-

-

2010

-

-

-

-

2011

-

-

-

1

Total

6

9

1

4

Mandato e convênio, IBICT-UFRJ (1970-81 e 1982-2000), com últimas turmas selecionadas em 2000 para início em 2001, finalizando mestrado até 2004 e doutorado em 2005. *

**

Convênio IBICT-UFF (2003-2008

Finalmente, algumas dissertações e teses não enquadradas nas temáticas já apontadas, e mais específicas em determinadas questões são: museus como espaço do conhecimento e de confiança (Guedes, L., 1995), informação e acervo imagético em museu (Lasmar, 2002), museificação de memórias clandestinas (Castro, 2002), brinquedo como fonte de informação museológica (Guedes, A., 2004) e exposições de um museu itinerante de ciência (Schwenck, 2011). Consolidando a linha de pesquisa, o IBICT mantém um Grupo de Pesquisa com a mesma denominação - Teoria, Epistemologia e Interdisciplinaridade da Ciência da Informação5 - liderado por duas de suas pesquisadoras, exatamente as que concentram maior número de orientações em Museologia e Ciência da Informação, sobretudo a autora deste artigo (Pinheiro), hoje professora convidada do mestrado em Museologia e Patrimônio (UNIRIO-MAST), seguida da Profa. Maria Nélida González de Gómez, com algumas orientações partilhadas entre ambas. Este Grupo de Pesquisa estimula estudos nessa linha, pois seu objetivo é: Favorecer e aprofundar as relações interdisciplinares, sobretudo com as áreas de Comunicação, Ciências da Computação, Epistemologia, Ciências 5

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Lena Vania Ribeiro Pinheiro

do Conhecimento, Biblioteconomia, Museologia,Arquivologia, entre outras, ao mesmo tempo que mantendo relações permanentes com todos os outros campos do conhecimento que formam de uma ou outra maneira, seu domínio de referência ou aplicação.

Outro Grupo de Pesquisa do IBICT, intitulado “Comunicação e Divulgação Científica”, tendo como líder também a autora do presente artigo e Eloisa Príncipe de Oliveira, ambas do IBICT, inclui a linha de pesquisa “Processos de comunicação e informação em museus. Informação em museus e exposições” e, portanto, fortalece estudos nessa direção, bem como equipes com pesquisadores, professores e alunos oriundos das duas áreas. A UNIRIO mantém o Grupo de Pesquisa Museu e Museologia6, ao qual se vinculam projetos interdisciplinares, notadamente o de Termos e Conceitos da Museologia, coordenado pela Profa. Diana Farjalla Correia Lima, uma das líderes do Grupo e cujo teor é a fonte de convergência dessas áreas, envolvendo representação e indexação da informação e instrumentos como tesauros e vocabulários controlados. Indicadores da interdisciplinaridade entre Ciência da Informação e Museologia em pesquisas empíricas: cursos, publicações e eventos técnico-científicos A relação interdisciplinar entre Ciência da Informação e Museologia teve suas bases estudadas na tese de Pinheiro (1997), com o mapeamento epistemológico das disciplinas constituintes da Ciência da Informação cujos dados foram atualizados até 2004, tendo como fonte de pesquisa o Arist (Annual Review of Information Science and Technology). Em análises posteriores (Pinheiro, 1999, 2006, 2007) desses resultados empíricos foram identificados os campos do conhecimento com os quais a Ciência da Informação mantém maior ou menor interface interdisciplinar, que vão desde os mais acentuados, como ciência da computação (presente em oito disciplinas da Ciência da Informação) e Biblioteconomia e Administração, que aparecem em cinco disciplinas, além de outras áreas como a Museologia, cujos conhecimentos são incorporados em duas disciplinas da Ciência da Informação: Representação da Informação; e Necessidades e Usos de Informação, resultado coerente com os temas das dissertações e teses descritos no tópico 4 deste artigo. Um estudo coordenado e elaborado pela autora deste artigo em 1995 intitulado “Em busca de um caminho interdisciplinar: proposta de núcleo teórico e prático de disciplinas comuns aos cursos de Biblioteconomia, Museologia e Arquivologia” e atualizado três anos depois (Pinheiro, 1998) foi realizado na UNIRIO, por solicitação do então Decano do Centro de Ciências Humanas e Sociais, Prof. Afonso Celso Mendonça de Paula. Foi constituído um Grupo de Trabalho com professores das três áreas, que discutiram a proposta, especialmente Maria José Wehling, Maria Teresa da Costa Fontoura e Tereza Scheiner. A UNIRIO, por oferecer as três graduações, na ocasião a única universidade com essa característica, apresentava ambiente acadêmico propício a um empreendimento dessa natureza. O fundamento dessa proposta foi o “reconhecimento de 6

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que as três áreas têm como objeto de estudo a informação, seja um documento no seu significado mais amplo, um testemunho ou registro magnético, na sua essência, o que é “capaz de transformar a estrutura”. Nessa fase, a Unesco discutia o que denominava “harmonização”, significando a busca do que essas áreas têm em comum, com o objetivo de facilitar a interlocução. Referia-se às áreas de Biblioteconomia, Arquivologia e Ciência da Informação, não incluindo a Museologia. O Ensino em Museologia A Museologia vem se expandindo no Brasil nos últimos anos, com a criação de cursos de graduação, alguns vinculados a departamentos ou institutos de Ciência da Informação, o que certamente reforçará os laços interdisciplinares entre as áreas. Um exemplo é o curso de graduação em Museologia da Universidade de Brasília (UnB) e a criação da revista Museologia e Interdisciplinaridade, por essa mesma Universidade, a ser lançada ainda neste ano de 2012. Antes, o Mestrado em Museologia e Patrimônio, já citado, lançou a revista Museologia e Patrimônio, em 2008, com periodicidade semestral. Esta revista circula em formato eletrônico e adota Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas (SEER). O fascículo mais recente é o v.4, no. 2, de 2011. A expansão de cursos de graduação em Museologia, segundo mapeamento publicado pela Ancib (Lopez et al, 2011) hoje totalizam 14 bacharelados, a maioria criada nos últimos anos. Este crescimento pode estar relacionado ao Programa Reuni (Programa de Apoio aos Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), vinculado ao PDE (Plano de Desenvolvimento da Educação) do MEC (Ministério da Educação), cujo objetivo principal é “ampliar o acesso e permanência na educação superior” (MEC, 2008), para o crescimento do ensino superior público, na sua expansão física, acadêmica e pedagógica. Na verdade, as ações para o Reuni7 foram iniciadas em 2003, mas o Programa só foi instituído em 2007, pelo decreto no. 6096, de 14 de abril daquele ano, com previsão para encerramento em 2012. Importante mencionar o documento da Secretaria de Ensino Superior (Sesu) do MEC que trata dos Referenciais Orientadores para os Cursos Bacharelados Interdisciplinares e Similares8. Quanto à pós-graduação, duas relevantes conquistas acadêmicas certamente contribuirão para a produtividade científica da Museologia: a aprovação do doutorado em Museologia e Patrimônio, no convênio UNIRIO-MAST, iniciado em agosto de 2011 e o mestrado da Universidade de São Paulo (USP), aprovado pela Capes em março de 2012. Esse último, iniciativa de quatro museus daquela instituição (Museu de Arqueologia e Etnologia, Museu Paulista, Museu de Zoologia e Museu de Arte Contemporânea), onde já funcionava um curso de especialização em Museologia desde 1999. Tratando-se de um artigo sobre interdisciplinaridade da Ciência da Informação e Museologia, cabe ressaltar que no Programa da UNIRIO-MAST, cinco professores têm pós-graduação, mestrado ou doutorado em Ciência da Informação. 7 8

http://reuni.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=25&Itemid=28

http://reuni.mec.gov.br/images/stories/pdf/novo%20-% 20bacharelados%20interdisciplinares %20-%20referenciais%20orientadores%20%20novembro_2010%20brasilia.pdf


Lena Vania Ribeiro Pinheiro

Em relação a publicações, pode ser citada a coletânea do IBICT “Interdiscursos da Ciência da Informação: arte, museu e imagem”, organizada por Pinheiro e González de Gómez (2000), contendo, entre outros, trabalhos de museólogos pós-graduados em Ciência da Informação:Ana Lucia Siaines de Castro, Diana Farjalla Correia Lima, José Mauro Matheus Loureiro, Maria Lucia de N. Matheus Loureiro e Rosane Maria R. de Carvalho, todos professores do Mestrado em Museologia e Patrimônio no seu começo, exceto Maria Lucia Loureiro. A participação de museólogos na Ancib (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação) inicialmente aconteceu por meio de um grupo de trabalho experimental denominado Debates em Museologia e Patrimônio9, no Enancib de 2007 em Salvador. Nesse encontro foram apresentados 19 trabalhos, sendo 17 comunicações orais e dois pôsteres, que “... atenderam ao propósito de focalizar relações teóricas e práticas entre o campo museológico / patrimônio e demais domínios do conhecimento e, em especial, as que entrelaçam à Informação e Comunicação.” Esta experiência culminou com a criação, proposta pela UNIRIO, do Grupo de Trabalho Museologia, Patrimônio e Informação (GT-9), aprovado no Enancib 2008 em São Paulo, portanto, integrado à Ancib e cuja coordenadora é a Profa. Diana Farjalla Correia Lima, daquela mesma instituição. No primeiro ano do GT-9 formalmente instituído, foram aprovadas 15 comunicações, em 2010, 12 e em 2011, 16 comunicações e 1 poster10. Outros espaços institucionais compartilhados pela Museologia e Ciência da Informação são o CNPq e a Capes: no primeiro, a Museologia integra o Comitê de Assessoramento (CA) de Artes, Ciência da Informação e Comunicação e na Capes, na grande área de Ciências Sociais Aplicadas, juntamente com a Ciência da Informação e outras áreas. Um passo importante para a consolidação e expansão da Museologia no Brasil foi a criação do Ibram (Instituto Brasileiro de Museus) em 2009 pela Lei 11.906, de janeiro de 2009. Entre as suas inúmeras finalidades, a primeira, de acordo com o artigo 3º é: “promover e assegurar a implementação de políticas públicas para o setor museológico, com vistas a contribuir para a organização, gestão e desenvolvimento de instituições museológicas e seus acervos”. A estrutura organizacional do Ibram apresenta três departamentos - Departamento de Planejamento e Gestão Interna, Departamento de Difusão, Fomento e Economia dos Museus e Departamento de Processos Museais - e a Coordenação Geral de Sistemas de Informações Museais, desmembrada em coordenações específicas, sendo os dois últimos espaços de estudos de informação.

Considerações Finais: caminhos desbravados e perspectivas No presente artigo, por diferentes e diversificados caminhos, epistemológicos e institucionalizadores, foram apontados cursos, pesquisas, teses e dissertações, eventos, sociedades e publicações que deixam claro o movimento interdisciplinar em torno da Ciência da Informação e Museologia no Brasil. 9 10

http://www.enancib.ppgci.ufba.br/prog_dmp.htm

Dados informados pela Profa. Diana Farjalla Correia Lima, Coordenadora do GT-9, com base nos relatórios desse Grupo de Trabalho.

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Esta condição brasileira é ímpar, uma vez que nos outros países o núcleo de aproximação e estímulo da relação interdisciplinar entre as duas áreas reside em comitês do Icom, sobretudo o Cidoc. Foram identificados poucos movimentos nessa direção como, por exemplo, um fascículo especial e artigos de periódicos publicados eventualmente pelo Jasist (Journal of American Society for Information Science and Technology), o que não significa, necessariamente, abordagem interdisciplinar. Esta quase ausência foi constatada em pesquisas brasileiras nessa temática, especialmente na revisão de literatura de dissertações e teses analisadas neste artigo. Em nosso País, o foco interdisciplinar da Ciência da Informação e Museologia se origina no IBICT, com a geração de número significativo de dissertações e teses envolvendo Ciência da Informação e Museologia. A concentração de pesquisas nessa linha acontece no Instituto, com a participação de pesquisadores em Museologia da UNIRIO presentes nos Grupos de Pesquisa do IBICT e, da mesma forma e inversamente, pela presença de pesquisadores da Ciência da Informação do IBICT na UNIRIO, em uma verdadeira “fertilização cruzada” de ideias. Por outro lado, na UNIRIO, desde o final dos anos 1990, a preocupação com estudos de interdisciplinaridade já se manifestava, sendo, portanto, um solo propício ao ensino e pesquisa interdisciplinar. Importa ressaltar que esses eventos têm como epicentro centros geradores de conhecimento, podendo transcender as duas áreas estudadas e espraiar-se em outros campos e instâncias. É oportuno lembrar que a busca da transdisciplinaridade está relacionada à crise nas universidades. O Congresso de Lucarno sobre transdisciplinaridade, em 1997, mencionado no início deste artigo, teve por motivação maior a busca de novas diretrizes para as universidades neste século, em decorrência das ameaças que enfrenta, pela “ausência de sentido” e “recusa em compartilhar os conhecimentos”. Ao pensar essa crise nas universidades, Japiassu (2006: 18) recorre à seguinte frase de Péguy: “Quando a poesia está em crise, a solução não consiste em decapitar os poetas, mas em renovar as fontes de inspiração”. Esta metáfora conduz à busca de novas ideias e alternativas para a própria Educação e traz para o centro do debate a exigência de projetos pedagógicos e metodologias interdisciplinares. Assim, pesquisas e estudos introduzidos e sistematizados nesta pesquisa, acenam para atividades acadêmicas e científicas empreendidas nessa tentativa. Este artigo foi pensado e um esboço apresentado em slides no Grupo Experimental do Enancib 2007. Pela atualização realizada para esse artigo, nota-se acréscimo significativo de cursos, pesquisas, eventos o que, por si só, é indicador da intensificação da interdisciplinaridade entre Ciência da Informação e Museologia e, também, do próprio crescimento da área de Museologia no Brasil. Neste novo panorama, é possível prever ou sonhar, como prefere Japiassu, a transdisciplinaridade, inspirada num “novo espírito científico”, no qual a “fertilização cruzada” e o “cruzamento de fronteiras” e de pontes epistêmicas sejam um esforço contínuo, dinâmico e renovado, a fim de romper “traçados e limites” disciplinares, embora nestes sustentados, fortalecendo e vitalizando áreas e criando novos territórios inter e transdisciplinares.


Lena Vania Ribeiro Pinheiro

Referência AMARAL, Márcio Tavares d’. Nota sobre a organização de um curso de pós-graduação nos moldes de um programa de pesquisa. Boletim Informativo, IBICT/ DEP, v.10, n.6, 1990. BRAGA, Gilda Maria. Prefácio. In: Pinheiro, Lena Vania Ribeiro (Org.). Ciência da Informação, ciências sociais e Interdisciplinaridade. Brasília, Rio de Janeiro: IBICT/DDI/DEP, 1999. p. 9-10. GARCIA, J. C. R. (Org.); TARGINO, M. G. (Org.). Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação (Ancib): reflexão e proposta para dinamização. 1. ed. João Pessoa: Ideia, 2011. v. 1. 153 p. ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇAÕ EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO – Enancib, 8, 2007, Salvador. Debates em Museologia e Patrimônio. Salvador, Ancib, 2007. Disponível em: <http://www.EnAncib.ppgci.ufba.br/prog_ dmp.htm >.Acesso em: 3 out. 2008. Disponível também em CD-ROM. FERREZ, Helena Dodd; BIANCHINI, Maria Helena S. Thesaurus para acervos museológicos. Rio de Janeiro: Fundação Nacional Pró-Memória. Coordenadoria de Acervos Museológicos, 1987. 2 v.(Série técnica). INSTITUTO BRASILEIRO DE INFORMAÇÃO EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA (IBICT). Grupo de Pesquisa Comunicação e Divulgação Científicas. Rio de Janeiro; IBICT, 2005. Disponível em: <http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0026607ON4DU78 >. Acesso em: 2 de abril de 2012 INSTITUTO BRASILEIRO DE INFORMAÇÃO EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA (IBICT). Grupo de Pesquisa Teoria, Epistemologia e Interdisciplinaridade da Ciência da Informação. Rio de Janeiro, IBICT, 1996. Disponível em: < http://dgp. cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0026607JCBDLMK >. Acesso em: 2 de abril de 2012 JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976. 221 p. (Série Logoteca). JAPIASSU, Hilton. O sonho transdisciplinar e as razões da Filosofia. Rio de Janeiro: Imago. 2006. 237p. JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. 2.a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. KLEIN, Julie Thompson. Crossing boundaries, knowledge disciplinarities and interdisciplinarities. Charlottersville, London: University Press of Virginia, 1996. 281p. LIMA, Diana Farjalla Correia. Ciência da Informação, Museologia e fertilização interdisciplinar: informação em arte, um novo campo do saber. 2003. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – CNPq/IBICT-UFRJ/ECO, Rio de Janeiro. 2003. Orientadora: Lena Vania Ribeiro Pinheiro. LOPEZ, A. P. A.; LIMA, D. F. C.; LIMA, M. G. ; GARCIA, J. C. R.; TARGINO, M. das G. Mapeamento das áreas de Biblioteconomia, Ciência da Informação, Arquivologia e Museologia. In: GARCIA, J. C. (Org.) Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Gra-

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Confluências Interdisciplinares entre Ciência da Informação e Museologia

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As teses e dissertações constituem este apêndice por terem sido utilizadas como material de pesquisa, sendo incluídas nas referências as consultadas para elaboração do artigo.

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Confluências Interdisciplinares entre Ciência da Informação e Museologia

7. GUEDES, Laura de Oliveira. O museu como espaço de conhecimento e de confiança. 1995. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) - CNPq/IBICT-UFRJ/ ECO, Rio de Janeiro, 1995. Orientadora: Maria de Nazaré Freitas Pereira.

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8. LASMAR, Denise Portugal. Estoques de informação: o acervo imagético da Comissão Rondon no Museu do Índio como fonte de informação. 2002. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – MCT/IBICT-UFRJ/ ECO, Rio de Janeiro, 2002. Orientadoras: Rosali Fernandez de Souza e Isa Maria Freire. 9. LIMA, Diana Farjalla Correia. Ciência da Informação, Museologia e fertilização interdisciplinar: informação em arte, um novo campo do saber. 2003. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – CNPq/IBICT-UFRJ/ECO, Rio de Janeiro. 2003. Orientadora: Lena Vania Ribeiro Pinheiro. 10. LOUREIRO, José Mauro Matheus. Labirinto de paradoxos: informação, museu e alienação. 1996. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – CNPq/IBICT-UFRJ/ECO, Rio de Janeiro, 1998. Orientadores: Lena Vania Ribeiro Pinheiro e José Maria jardim. 11. LOUREIRO, José Mauro Matheus. Representação e museu científico: o instrutivo aparelho de hegemonia (ou uma profana liturgia hegemônica). 2000. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – CNPq/IBICT-UFRJ/ ECO, Rio de Janeiro, 2000. Orientadora: Heloisa Tardin Christovão. 12. LOUREIRO, Maria Lúcia de Niemeyer Matheus. Museu, informação e arte: a obra de arte como objeto museológico e fonte de informação. 1998. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – CNPq/IBICT-UFRJ/ ECO, Rio de Janeiro, 1998. Orientadoras: Lena Vania Ribeiro Pinheiro e Maria Nélida González de Gómez. 13. LOUREIRO, Maria Lúcia de Niemeyer Matheus. Museus de Arte no ciberespaço: uma abordagem conceitual. 2003. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – CNPq/IBICT-UFRJ/ECO, Rio de Janeiro, 2003. Orientadores: Lena Vania Ribeiro Pinheiro e Maria Nélida González de Gómez. 14. MIRANDA, Rose Moreira de. Informação e sites de museus de arte brasileiros: representação no ciberespaço. 2001. Dissertação. (Mestrado em Ciência da Informação) - CNPq/IBICT-UFRJ/ECO, Rio de Janeiro, 2001. Orientadora: Lena Vania Ribeiro Pinheiro. 15. MORAES, Julia Nolasco Leitão de. Faces e Interfaces na poesia das coisas: exposições museológicas sob o olhar interdisciplinar da Ciência da Informação e da Museologia. 2008. Dissertação (Mestrado em Programa de Pós Graduação em Ciência da Informação) - IBICT – UFF, Rio de Janeiro, 2008. Orientadora: Lena Vania Ribeiro Pinheiro. 16. RIBEIRO, Diego Lemos. A Ciência da Informação em ação: um estudo sobre os fluxos da informação no Museu de Arqueologia de Itaipu. 2007. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) - IBICT-UFF, Rio de Janeiro, 2007. Orientador: Geraldo Moreira Prado. 17. ROCHA, Luisa Maria Gomes de Mattos. Construindo novos planos de interatividade: proposta técnico-metodológica de ação comunicacional e informacional nas exposições dos museus de ciência. 2008.Tese (Doutorado


Lena Vania Ribeiro Pinheiro

em Ciência da Informação) - IBICT-UFF, Rio de Janeiro, 2008. Orientadoras: Lena Vania Ribeiro Pinheiro e Maria Nelida González de Gómez. 18. ROCHA, Luísa Maria Gomes de Mattos. Museu, informação: o processo de construção do discurso museográfico e suas estratégias. 1999. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – CNPq/IBICT-UFRJ/ECO, Rio de Janeiro, 1999. Orientadores: Regina Maria Marteleto e Rosali Fernandez de Souza. 19. SCHWENCK, Beatriz. Ciência móvel: a mediação informacional nas exposições de um museu itinerante. 2011. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – CNPq/IBICT-UFRJ/ECO, Rio de Janeiro, 2011. Orientadora: Regina Maria Marteleto. 20. SOUZA, Daniel Maurício Viana de. Museus de ciência e divulgação científica: a informação sob o crivo da ideologia. 2007. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) - MCT/IBICT-UFF, Rio de Janeiro, 2007. Orientadores: Geraldo Moreira Prado e José Mauro Matheus Loureiro.

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MUSEUS E CENTROS DE CIÊNCIA NA ESTEIRA DA DIVERSIDADE E DA CIDADANIA Denise C. Studart

Museu da Vida (Fiocruz), Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz

RESUMO:

ABSTRACT:

No presente artigo, faremos, inicialmente, uma breve revisão sobre o desenvolvimento dos museus de ciência desde a Era Moderna, procurando refletir sobre o seu lugar no sistema educativo-cultural e de produção de conhecimento. Em seguida, discutiremos o papel dessas instituições no mundo contemporâneo e o quanto são capazes de articular educação, divulgação científica e história no contexto do museu, sem perder de vista o compromisso social.

In this paper, we will make, initially, a brief review on the development of science museums since the modern era, trying to contemplate their place in the educational and cultural systems and knowledge production. Next, we will discuss the role of these institutions (including science centres) in the contemporary world and how they are able to articulate education, popularization of science and history within the museum context, without losing sight of the social commitment.

PALAVRAS-CHAVE: Museus . Ciência . Museologia . Educação Não Formal . Divulgação científica

KEYWORDS: Museums . Science . Museology . Informal Education . Popularization of science


Denise C. Studart

Os museus são, por excelência, locais de história e estórias, de observação e interação, de reflexão e aprendizagem. Não importa a tipologia de um museu – arte, ciência, tecnologia, antropologia, história –, diversas histórias podem ser narradas: do passado (outras épocas, povos e civilizações, suas maneiras de viver e pensar) e do mundo contemporâneo do qual fazemos parte (formas de expressão artísticas e culturais, novas descobertas científicas, etc.). Os museus são espaços simbólicos, muitas vezes mágicos e surpreendentes, que têm a qualidade de oferecer uma experiência ao mesmo tempo educativa e de lazer. No presente artigo, faremos, inicialmente, uma breve revisão sobre o desenvolvimento dos museus de ciência desde a Era Moderna, procurando refletir sobre o seu lugar no sistema educativo-cultural e de produção de conhecimento. Em seguida, discutiremos o papel dessas instituições (incluindo aqui os centros de ciência) no mundo contemporâneo e o quanto são capazes de articular educação, divulgação científica e história no contexto do museu, sem perder de vista o compromisso social. Museus de Ciência e Técnica nos séculos XVIII e XIX: suportes de estudo, difusão e instrução. Em artigo sobre o caráter público dos museus, Valente (2003) relata que, no século XVIII, intelectuais, inspirados pelo espírito enciclopedista, conclamavam pela necessidade de colocar as coleções “a serviço da educação do povo”, como suporte de demonstração, estudo e difusão. Nesse contexto, o Estado deveria ser o “tutor” de todo o patrimônio, voltado para a “história nacional” e a “instrução”. Na França, um exemplo é o Conservatoire des Arts et Metiers, criado em 1794, para receber as máquinas e instrumentos inventados no país: Essa instituição,moldada pelo enciclopedismo e pelo iluminismo,era portadora das idéias dos projetos revolucionários. Trazia com ela a preocupação essencial desse momento da história dos museus: a vontade de se apropriar, coletivamente, do patrimônio julgado útil a todos. (Valente, 2003:32)

O Conservatoire des Arts et Metiers, juntamente com outros museus semelhantes (por exemplo, o Franklin Institute, nos EUA, criado em 1824), funcionavam como “verdadeiras virtrines para a indústria”: “A ideia de educar o cidadão comum (educação de massa) e fazer com que o público conhecesse e ‘experimentasse’ o progresso científico e tecnológico colocavam-se como objetivos para essas instituições” (Cazelli et al., 2003:87). Outros importantes museus de ciência também foram criados no final do século XVIII e durante o XIX em toda Europa e EUA, como o Museum National d’Histoire Naturalle, em Paris (1793), a Academy of Natural Sciences, em Filadelfia (1812) e o Natural History Museum, em Londres (1881), compartilhando os mesmos ideais de instrução e pesquisa. Lopes (2003:77) enfatiza que, no século XIX, os museus participavam ativamente do movimento educacional da época e eram reconhecidos como “agentes” desse movimento, juntamente com as universidades e as sociedades acadêmicas.A questão educacional aparecia como algo estruturador de toda a nova sociedade que se implantava, com a queda das monarquias e a ascensão

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da burguesia. A educação era vista como signo da modernidade. As exposições dos museus de ciência nos séculos XVIII e XIX tinham uma clara intenção “normatizadora e civilizadora” (Cazelli et al., 2003: 87, apud Kuhlmann Jr., 2001:9).

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Em Glasgow, no século XIX, a palavra “cientista” foi cunhada durante criação da Associação Britânica para o Progresso da Ciência. Temas científicos começaram a apresentar um aspecto mais público, conforme suas consequências práticas se tornavam mais evidentes no cotidiano (Primon et al., 2000). Nesse período, as publicações tornam-se mais especializadas e frequentes, já demonstrando uma intenção de difusão das ideias e descobertas científicas. A valorização de grupos sociais como o dos cientistas e artistas teve na burguesia o seu maior público. E apesar do desejo dos museus servirem ao “povo”, será a burguesia e alguns grupos seletos que irão usufruir as instituições museológicas nesse período. Como nos conta Valente, até a primeira década do século XX, os museus de arte não se empenhariam na democratização das exposições: “o acesso do grande público só ocorria aos domingos e, por vezes, um dia na semana [...] Na realidade, a função social da instituição foi a de integrar a burguesia que aspirava alcançar a aristocracia” (Valente, 2003:33). Ou seja, os museus, nessa época, serviam, principalmente, a uma burguesia que almejava aos valores aristocratas e seus símbolos de poder, e a artistas e cientistas que procuravam o museu como fonte de estudo. No Brasil, ao final do século XIX, a República deu oportunidade às províncias de constituirem seus próprios quadros institucionais acadêmicos. Nesse período, proliferaram pelo país escolas de engenharia, faculdades de medicina, museus de história natural e institutos ligados à saúde. Segundo Dantes (2005), as instituições de maior prestígio nesse momento da história brasileira foram as que atuaram na área de saúde pública. Alguns museus, criados ainda no Império, como o Horto (posteriormente denominado Jardim Botânico do Rio de Janeiro), criado em 1808; o Museu Real (posteriormente Museu Nacional de História Natural), criado em 1818, no Rio de Janeiro; e o Museu Paraense Emilio Goeldi, criado em 1866, em Belém, Pará, são exemplos do movimento dos museus em prol da consolidação das ciências no Brasil.

Museus e Centros de Ciência no século XX: sistemas de comunicação, aprendizagem e divulgação científica Durante o século XX, mudanças no conceito e nos objetivos da instituição “museu” deram origem a novas abordagens comunicativas nesses espaços. Tradicionalmente voltado para as coleções e a pesquisa, um importante redirecionamento no foco de trabalho dos museus foi uma maior preocupação em se dirigir de forma mais eficiente a um público amplo e diversificado, e a estabelecer uma relação mais estreita com as comunidades locais. Os museus de ciência foram pioneiros na utilização de novas estratégias comunicativas. Na primeira metade do século, o Deutsches Museum, Alemanha (inaugurado em 1903) e o Palais de la Decouverte, na França (inaugurado em 1937), começaram a adotar estratégias de mediação que são usadas até hoje. O Deutsches Museum desejava tornar a ciência e a tecnologia compreen-


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síveis para o cidadão comum, através da introdução de novas formas de apresentação tais como exposições participativas, experiências ativadas por visitantes e/ou conduzidas por mediadores. Oskar von Miller, diretor do Museu na época, fazia uso extensivo de demonstrações, modelos seccionados, diagramas, tabelas, desenhos, linhas de tempo e/ou qualquer outro recurso museográfico que ajudasse na compreensão do visitante sobre os objetos da exposição. As legendas não continham o jargão dos cientistas e curadores. Miller também “evitava vitrines de vidro o quanto fosse possível, e a equipe de atendimento do museu era composta, sobretudo, de demonstradores e mediadores, em detrimento de guardas de sala” (Studart, 2006, apud Alexander, 1983: 353-4). Na segunda metade do século, a abertura do Exploratorium em São Francisco em 1969, revolucionou a noção de interatividade nos espaços museológicos. As teorias educativas vigentes (em especial a do “construtivismo”) encontram nos centros de ciência um local de experimentação e estudo. O espaço museal passa a ser considerado um “sistema de comunicação” (Schiele, 2001; Valente, 2003:40), no qual elementos diversos entram em pauta nessa relação: o objeto, o espaço museal, o público, os profissionais que planejam as exposições, o conteúdo temático, os mediadores-intérpretes, entre outros. Esta relação específica que se realiza no espaço museal precisa ser “negociada” entre os diferentes atores. Os estudos de recepção, pesquisas de público e de avaliação começam a ser realizados para dar suporte a esta “negociação” entre os profissionais dos museus e o público. O entendimento do museu como um espaço de educação não formal, onde a aprendizagem se dá de forma livre e associada aos interesses de cada um, também abre um amplo campo de estudos sobre a natureza da aprendizagem nos espaços museais. Marandino (2001), em sua tese de doutorado, cita a autora inglesa Hooper-Greenhill, especialista em educação e comunicação em museus, mencionando que essa pesquisadora considera duas abordagens principais de comunicação nas exposições: a abordagem transmissora e a abordagem cultural. HooperGreenhill faz uma revisão da literatura sobre os processos comunicativos nos museus, afirmando que o modelo transmissor é o mais usado nesses espaços. Esse modelo entende a comunicação “como um processo de concessão e de envio de mensagens e transmissão de idéias, de uma fonte de informação para um receptor passivo”, com objetivos de “controle” (Hooper-Greenhill, 1994:16). Por outro lado, na perspectiva da abordagem cultural, a realidade é moldada por meio de uma negociação contínua. Nesse caso, a comunicação é vista como um processo de troca e de participação. As pesquisas de público com base na abordagem cultural tornam-se fundamentais para compreender como o visitante constrói o sentido para si e quais as implicações disso para o planejamento das atividades nos museus (Hooper-Greenhill, 1994:17). A pesquisadora britânica faz uma crítica aos profissionais de museus responsáveis pelo planejamento de exposições, afirmando que grande parte dessa atividade ainda é elaborada sem levar em conta o público que irá visitá-las. Após a Segunda Guerra Mundial, a afirmação social da ciência e da tecnologia no mundo contemporâneo coloca a ciência em um novo patamar.Torna-se crucial o modo pelo qual a sociedade percebe a atividade científica e absorve seus resultados, bem como os tipos e canais de informação científica a que tem

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acesso (Albagli, 1996: 396). Foi nesse contexto que afloraram iniciativas orientadas para a popularização da ciência e da tecnologia.

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A divulgação científica supõe uma “tradução”, ou “reinterpretação”, de conteúdos expressos em linguagem especializada, técnica, acadêmica, para uma forma de expressão acessível ao público leigo, não especializado, sobre aspectos da ciência no mundo contemporâneo. De acordo com Albagli (1996: 397), a divulgação científica abarca questões de ordem cívica (desenvolvimento de uma opinião pública informada sobre os impactos do desenvolvimento científico e tecnológico sobre a sociedade), de mobilização popular (participação da sociedade na escolha de opções tecnológicas e formulação de políticas públicas), e educacional (compreensão do público leigo a respeito do processo científico). A mídia e também os museus e centros de ciência estão entre os principais meios de divulgação da ciência. Os museus, por serem espaços de educação não formal e sistemas complexos de comunicação, podem contribuir para despertar nos indivíduos o interesse e a curiosidade sobre os processos e temas científicos, oferecer informação acessível e promover uma maior familiaridade com assuntos relacionados à ciência e à tecnologia por meio de diversas abordagens comunicativas. Desafios para os museus e centros de ciência no séculoXXI: diversidade e responsabilidade cidadã Ao longo do século XX, vimos coexistir diferentes abordagens museográficas e comunicativas que ainda são amplamente usadas nos dias de hoje: exposições onde o foco principal está no objeto e outras, onde o foco principal está na interação. São comuns exposições que enfatizam ideias, mensagens e temas usando abordagens comunicativas por meio de informação textual, mediação humana (intérpretes, guias, atores), recursos audiovisuais, jogos, etc. Encontramos museus de ciência onde a ênfase é dada em aspectos históricos por meio da coleção e outros em que o foco é direcionado a aspectos educativos e/ou na divulgação da ciência e da tecnologia. Existem também aqueles em que todas essas abordagens estão presentes ao mesmo tempo. No século XXI, podemos dizer que começa a se firmar uma tendência de colocar o sujeito (visitante-usuário do museu) no centro da exposição (ou programas) e, a partir dele, desenvolver uma apresentação que desperte o seu engajamento com o material exposto e a realidade que o cerca. Gostaria agora de abordar, neste artigo, algumas questões fundamentais para a atividade dos profissionais dos museus. Não tenho aqui a pretensão de responder todas estas perguntas, mas, sim, levantar o debate. Com que concepção de museu, educação, história da ciência e divulgação científica estamos trabalhando? Como esses conceitos se articulam no contexto do museu? É preciso ter clareza que as ações do museu (e seus produtos) dependem diretamente de como entendemos o papel dessas instituições no mundo con-


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temporâneo, como concebemos educação, divulgação científica e história no contexto museal, e o quanto somos capazes de articular essas áreas com o nosso conceito de museu, sem perder de vista o compromisso social da instituição. O Instituto Brasileiro de Museus / Ibram trabalha com uma definição de instituição museológica que enfatiza as funções e responsabilidades do museu no mundo contemporâneo: - o trabalho permanente com o patrimônio cultural, em suas diversas manifestações; - a presença de acervos e exposições colocados a serviço da sociedade com o objetivo de propiciar a ampliação do campo de possibilidades de construção identitária, a percepção crítica da realidade, a produção de conhecimentos e oportunidades de lazer; - a utilização do patrimônio cultural como recurso educacional, turístico e de inclusão social; - a vocação para a comunicação, a exposição, a documentação, a investigação, a interpretação e a preservação de bens culturais em suas diversas manifestações; - a democratização do acesso, uso e produção de bens culturais para a promoção da dignidade da pessoa humana; - a constituição de espaços democráticos e diversificados de relação e mediação cultural, sejam eles físicos ou virtuais. (Sistema Brasileiro de Museus, 2005)

Nas exposições dos museus de ciência ou de história das ciências a ênfase é dada nos grandes cientistas, suas invenções e descobertas, e nos “triunfos” da ciência. Por meio de narrativas, os museus constroem significados, reforçam identidades, e privilegiam certos aspectos em detrimento de outros. Não é comum encontrarmos exposições que consigam falar sobre o conhecimento científico relacionando também outros aspectos da cultura e da sociedade (aspectos filosóficos, econômicos, sociológicos, artísticos, entre outros). São muitas as questões sociais, éticas e políticas que envolvem as escolhas do que deve ou não ser exibido e falado em uma exposição de museu. Bennett, pesquisador e curador do Museu de História da Ciência da Oxford University, em seu artigo “Museus e a História da Ciência” também comenta o “conflito de interesses” existente nas decisões sobre o que será ou não apresentado em uma exposição. Ele cita que, em muitos museus de história da ciência, os objetos não são usados para questionar e ampliar o entendimento sobre o passado, de forma que este ilumine o presente (Bennett, 2005: 606). O autor acredita que, de maneira geral, os objetos científicos, em muitos museus, são expostos para serem vistos mais como “ornamentos” do que como instrumentos pertencentes a uma atividade científica contextualizada em certo período da História. Para Francisco Régis Ramos, historiador e professor na Universidade do Ceará, um museu de história deve exercer um papel crítico e atuante e ser capaz de partir do presente para se entender o passado: Se pouco refletimos sobre os objetos [que nos cercam no dia a dia], a nossa percepção dos objetos expostos [em um museu] será também de

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reduzida abrangência. Sem o ato de pensar sobre o presente vivido, não há meios de construir conhecimento sobre o passado [...] Conhecer o passado de modo crítico significa, antes de tudo, viver o tempo presente como mudança.... (Ramos, 2004: 21)

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Ramos busca nas ideias de Paulo Freire sobre educação, inspiração para se trabalhar o ensino de história no ambiente museal, principalmente no que se refere à ênfase dada por Freire no papel da educação para a cidadania. As correntes mais recentes da Museologia enfatizam a importância do papel social do museu, isto é, museus que colaborem com a inclusão social e cultural, com a formação de indivíduos criativos que possam - ao ampliar sua visão de mundo através do contato com os recursos do museu - exercer sua consciência crítica. A ideia de museu como um local aberto, livre de discriminações, atento às necessidades do seu público usuário, está em consonância com o pensamento de Freire sobre a importância do diálogo e do respeito no processo educativo. Ramos propõe uma pedagogia museal que ele chama de metodologia do “objeto gerador”, criada a partir do método da “palavra geradora”, de Paulo Freire: O trabalho com o objeto gerador parte de exercícios que enfocam a experiência cotidiana e insere-se, portanto, na pedagogia da provocação, como diria Paulo Freire. A partir do vivido, é gerado o “debate de situações-problemas”. Quando há comparações entre objetos do passado e os do presente, a noção de historicidade começa a ser trabalhada de modo mais direto. (Ramos, 2004 : 34)

Nesse sentido, a proposta de trabalho com “objetos geradores” busca aprofundar as relações entre pesquisa histórica, ensino de história, museologia e pedagogia e contribuir para o debate sobre o ensino de história no espaço museológico. Valente também chama a atenção para o fato de que a falta de “atualização” da relação objeto–tempo, passado-presente, no museu, produz uma situação, no mínimo, anacrônica (Valente, 2003:43). Se o museu apenas mostrar o passado tal como era, sem procurar relacioná-lo ao presente, provavelmente não conseguirá obter um resultado fecundo em termos de uma reflexão útil para a realidade atual. Podemos então dizer que uma abordagem histórica simplesmente “cronológica” e “factual” em uma exposição histórica (seja de arte, ciência, história social, etc.), é uma abordagem que pouco contribui para a formação de cidadãos críticos. Como o museu pode atender às necessidades e interesses de um amplo e diversificado público e exercer de forma efetiva o seu papel social? No século XXI, um dos principais desafios das instituições museológicas é efetivar a sua devida contribuição social para o desenvolvimento da sociedade, em um mundo globalizado e, ao mesmo tempo, repleto de diversidades. Thuillier, filósofo francês, questiona se a divulgação científica, tal como é feita, de fato ajuda a promover o aprendizado da ciência, ou a cultivar o espírito crítico, como crêem alguns. O verdadeiro saber, para ele, é aquele com o qual as pessoas são capazes de lidar no seu dia a dia: “Se o público não sabe lidar com o saber ou criticá-lo, estamos exibindo uma espécie de ‘vitrine da ciência’ – um saber que pode ser apenas contemplado...” (Thuillier, 1989:23).


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O autor afirma que é necessário distinguir “vulgarização da ciência” e “cultura científica”. Enquanto o primeiro conceito tem o foco na ciência contemporânea, os últimos resultados dos diferentes ramos da ciência e suas aplicabilidades para a sociedade, o segundo busca informar sobre o avanço do conhecimento científico ao longo da história e suas articulações com outras áreas (economia, filosofia, arte, política, etc.). Ambas as correntes, todavia, devem ser capazes de estimular a formação do “senso crítico”: mostrar o saber científico de modo crítico; apresentar o significado dos resultados da ciência e suas implicações; mostrar não somente os triunfos da ciência, mas também suas dúvidas e lacunas; articular a ciência com outras áreas do conhecimento; todas essas questões devem ser levadas em consideração na concepção e planejamento de exposições em museus e em centros de ciência. Como colocar em prática essas ideias em um museu ou centro de ciência? Seria necessário, antes de tudo, que os profissionais dessas instituições tivessem uma atitude engajada, aberta e participativa frente ao seu papel educativo e social. Com a finalidade de ajudar o cidadão a formar um juízo em relação a assuntos científicos diversos e a exercer seu espírito crítico, Thuillier sugere: Para os problemas importantes [da humanidade], não há solução neutra: os problemas são sempre mais complicados do que o modelo científico. A saída talvez consista em visar não a objetividade, a neutralidade, mas em fazer várias pessoas, com pontos de vistas variados, falarem sobre um assunto. (Thuillier, 1989:23)

Pontos de vistas variados; diversidade; estímulo ao senso crítico; abertura; respeito a diferentes opiniões; confronto de ideias; contextualização cultural e histórica; olhares multidisciplinares; consciência cidadã; estas e outras estratégias e valores devem estar presentes nas exposições dos museus, caso queiramos que estes espaços sejam promotores da cidadania. Em 2003, membros brasileiros do Comitê de Educação e Ação Cultural do ICOM - Conselho Internacional de Museus (Ceca-Brasil) prepararam um documento para ser apresentado na Conferência Anual do Ceca no México, sobre o tema “Conceitos educacionais que moldam as realidades no museu: missão possível!”. O referido documento do Ceca-Brasil (Studart, 2003) intitulou-se “Conceitos que transformam o museu, suas ações e relações”. Este texto recebeu uma forte aprovação dos colegas presentes no encontro. Alguns conceitos transformadores da realidade interna e das ações das instituições museais foram apontados: preocupação com a cidadania, inclusão social, diversidade cultural, tolerância, solidariedade, participação, interação, interdisciplinariedade, curadoria conjunta, produção cultural museal, e responsabilidade social. O texto, realizado coletivamente pelos membros do Ceca-Brasil, enfatiza que os museus devem trabalhar na perspectiva do exercício da cidadania. A complexidade de funções e as responsabilidades sociais que o museu deve assumir neste novo século exigem do profissional de museu uma atenção permanente e reflexões sobre as mudanças no meio em que vive, assim como sobre os interesses e necessidades do público. Uma questão que se coloca para os atuais museus de ciência é, principalmente, como conjugar educação, divulgação científica e história da ciência em

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seus espaços. Citarei dois exemplos de instituições estrangeiras, na Inglaterra e na França, que buscam colocar em prática ações e estratégias que vêm sendo defendidas por especialistas em diversos artigos e livros.

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O Science Museum, em Londres, adota a “diversidade” para lidar com essa questão. Lá, coexistem exposições e atividades dedicadas a diferentes temas e abordagens, acontecendo simultâneamente. Por exemplo, “Launch Pad” e “Flight Lab”, exposições interativas, abordam conceitos e experimentos relacionados à ciência e à tecnologia de forma lúdica e com objetivos claramente educativos. Exposições temporárias, como “Big Bang”, buscaram tratar de questões ligadas à ciência atual e à divulgação científica. Outras exposições, de longa duração, colocam as coleções do museu em foco, como “The Secret Life of the Home” e “Science in the 18th Century”: a primeira apresenta, de forma acessível e lúdica, diversos objetos que fazem parte do lar e suas utilidades; a segunda, mais tradicional, apresenta em vitrines instrumentos científicos de rara beleza produzidos em épocas passadas, deixando clara a existência de uma relação entre ciência, tecnologia, arte e design. Além da diversidade de exposições, o Science Museum também adota diversas estratégias de mediação, como palestras, demonstrações, teatro, presença de “explainers” nas exposições interativas (nome dado aos mediadores nesses espaços), utilização de terminais de computadores, projeção de filmes, painéis explicativos, sítios eletrônicos como o “Ingenious” (que traz imagens e pontos de vistas diferentes, visando criar um debate sobre ciência e cultura), todos contribuindo para atender à diversidade de opiniões, estilos de aprendizagem e interesses de um amplo e variado público. A Cité des Sciences et de l’Industrie - Universcience, o monumental centro de ciências francês, localizado em Paris no parque La Villette, além de exposição interativa de longa duração (“Explora”), de exposição especificamente planejada para o público infantil (“La Cité des Enfants”) e de exposições temporárias sobre temas diversos, possui outros espaços que têm como foco principal apresentar a ciência contemporânea e seus impactos, como “Science Actualité” (exposição e sítio eletrônico) e “Cité de la Santé” (um ambiente dedicado a questões relativas à saúde). A Cité des Sciences et de l’Industrie não possui coleções de equipamentos e instrumentos científicos, como o Science Museum. Mas procura refletir sobre ciência no contexto da cultura, e enfatizar questões relativas à divulgação científica e educação em ciências. Uma das principais críticas aos centros de ciência do tipo “hands-on”, espalhados por todo o mundo, refere-se à falta de contextualização dos aparatos científicos e relação com a cultura e a realidade local onde estão inseridos. Hoje em dia, estudos de público e avaliação que investigam a aprendizagem em museus apontam para a necessidade de que os módulos expositivos nesses espaços façam ligações com o cotidiano, a fim de que as pessoas possam estabelecer associações com o mundo que as circundam. As instituições acima citadas (o Science Museum e a Cité des Sciences et de l’Industrie - Universcience) foram selecionadas pelo fato de serem dois ótimos exemplos de utilização de diversas idéias defendidas no campo dos museus e centros de ciência. Esses espaços recebem grande aporte de recursos financeiros do Governo em seus respectivos países (Reino Unido e França), apoio de patrocinadores, entre outras fontes de renda, para realizar seus programas e


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atividades. Estas instituições têm papel estratégico (portanto, político) no conjunto das ações educativas, culturais e de divulgação da ciência. Não devemos, todavia, vincular a questão da pertinência das ações e competência das estratégias adotadas a uma questão financeira. Nem, tampouco, reduzir a uma questão de recursos humanos. Temos, no Brasil, excelentes profissionais de museus, competentes e criativos, capazes de desenvolver práticas museais inovadoras, e agências de fomento que trabalham com seriedade dentro de uma política científica, cultural e educacional. Podemos citar iniciativas exemplares em nosso país, como o projeto de popularização da ciência “Ciência Móvel”, do Museu da Vida/COC/Fiocruz, inspirado no Museu de Ciências e Tecnologia da PUC/RS, Porto Alegre; o pioneiro “Projeto Clicar” de inclusão digital da Estação Ciência (São Paulo); a premiada exposição multimídia sobre nanotecnologia – “Nanoaventura” – desenvolvida pelo Museu Exploratório de Ciências da Universidade de Campinas/Unicamp, que utiliza um conceito de interatividade em equipe para estimular a compreensão da nanotecnologia; o Espaço Ciência em Recife, com suas diversas atividades de arte e ciência, inclusão e preservação ambiental; a criação da ABCMC - Associação Brasileira de Centros e Museus de Ciência, uma associação que, entre outros, promove a articulação entre instituições e profissionais da área no Brasil. Gestores do Instituto Brasileiro de Museus / Ibram apontam para a necessidade de se construir, na atualidade, modelos democráticos de gestão cultural. Um dos desafios atuais é, segundo eles, o encontro de “um ponto de equilíbrio dinâmico, no qual a participação da iniciativa privada, das comunidades populares e dos movimentos sociais não implique a exoneração do Estado do papel que lhe cabe na preservação da memória e na garantia do caráter público das ações culturais” (Storino et al., 2007). Concluindo, museus e centros de ciência possuem missão e objetivos específicos, mas também amplos e ousados e, portanto, essas instituições devem definir, com clareza, planejamento acurado, que lugar almejam ocupar entre os equipamentos culturais e educativos das cidades que fazem parte, que serviços desejam oferecer para os diversos públicos, que resultados esperam alcançar, o que priorizar, e “como fazer” para atingir essas metas. E conscientes do seu papel social, cultural e educativo, desenhar as estratégias necessárias para se tornarem verdadeiramente participativas na formação de uma sociedade mais esclarecida e articulada. Referência ALBAGLI, Sarita (1996) Divulgação Científica: informação científica para a cidadania? Ciência da Informação. IBICT. Brasília.Set./Dez. v.25, n.3, p.396-404. ALEXANDER, Edward P. (1983). Museum’s Masters.Their Museums and Their Influence. Nashville, Tennessee: American Association for State and Local History. BENNETT, Jim (2005). “Museums and the History of Science”. ISIS. Chicago. Dec. vol.96, n.4, p.602-608. CAZELLI, Sibele; MARANDINO, Martha e STUDART, Denise C. (2003) “Educação e Comunicação nos Museus de Ciência: aspectos históricos, pesquisas e

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Museus e centros de ciência na esteira da diversidade e da cidadania

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Denise C. Studart

La Cité des Sciences et de l´Industrie - Universcience: http://www.cite-sciences.fr Projeto Clicar, Estação Ciência: http://www.projetoclicar.org.br Science Museum: http://www.sciencemuseum.org.uk Sistema Brasileiro de Museus: http://www.museus.gov.br Artigo recebido em janeiro de 2012. Aprovado em março de 2012

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MUSEOLOGIA, COMUNICAÇÃO MUSEOLÓGICA E NARRATIVA INDÍGENA: A EXPERIÊNCIA DO MUSEU HISTÓRICO E PEDAGÓGICO ÍNDIA VANUÍRE12 Marília Xavier Cury

Universidade de São Paulo

RESUMO: O presente artigo apresenta a participação de um grupo Kaingang em processo expográfico no Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre. Discutimos como a Museologia pode se apropriar de situações culturais que envolvem a musealização como processo dinâmico e interativo e o museu como fenômeno em construção. O caso apresentado tem como objetivo reafirmar a ideia de patrimônio e musealização como conceitos que se constroem contemporaneamente na esfera coletiva, o que equivale a dizer que as distâncias semânticas entre os contextos da vida coletiva e museu devem ser enfrentadas e incorporadas ao processo de discussão sobre eficácia comunicacional e política de formação de coleções. PALAVRAS-CHAVE: Exposição antropológica. Exposição indígena. Narrativa expositiva. Kaingang. Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre.

ABSTRACT: This paper presents participation of a group in the process expography Kaingang in the History and Educational Índia Vanuíre. We discuss how to Museology can take ownership of cultural involving musealization as dynamic and interactive process as phenomenon and the museum under construction. This case report aims to reaffirm the idea of heritage and musealization as concepts that are built simultaneously in the collective sphere, which is to say that the distances between the semantic contexts of collective life and the museum must be addressed and incorporated into the process of discussion effective communication and training policy collections.

KEYWORDS: Anthropological exhibition. Indigenous exhibition. ������������������ Narrative of exhibition. Kaingang. Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre.

As ideias aqui expostas são resumida e parcialmente publicadas em Ceca Proceedings 2011, Zagreb, Croácia, com o título Education and the Cooperative Method at Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre. 12


Marília Xavier Cury

Introdução Não há mais espaço para pensar a sociedade como algo harmonioso, porque a diversidade e diferenças existem, assim como as divergências e os conflitos. A diversidade e a diferença estão em todas as partes, mas nem sempre são percebidas e/ou valorizadas. A globalização investe na (suposta) apreensão do diferente, tornando-o apaziguado e integrado a um lugar comum, e na transnacionalização cultural, como se houvesse uma linha invisível que une todas as culturas por meio dos intercâmbios, sempre nutridos pela sedução ou pelo atraente. A globalização simula – considerando a circulação de ideias e pessoas – um acesso fácil a versões simples do diverso e do múltiplo. Segundo Nestor García Canclini (1999), a equalização elimina o discordante ao simular uma homogeneidade ou ao impor uma subordinação mascarada, como aquela entre países “centrais” e “periféricos”, relação artificial, hierárquica, autoritária. A equalização, ainda, elimina as sutilezas e cria uma “atmosfera” tranquilizadora, minimizando pontos de resistências e o compromisso com o(s) outro(s) diferente(s) – e ele(s) existe(m). A equalização é simulação de estar com o(s) outro(s) construindo uma reconciliação (Garcia Canclini, 1999: [2]). As hegemonias dominantes operam motivadas por uma lógica de manutenção desta situação de controle favorável a elas. Os museus contemporâneos fazem, em grande medida, parte disto e, ao mesmo tempo, vivem num processo de transição entre dois paradigmas: o tradicional – o da manutenção, por meio de certos mecanismos – e o emergente – o do diverso, por meio político. Lauro Zavala ([2003]) afirma que essa mudança na Museologia e, consequentemente, nos museus decorre das transformações que ocorrem nas ciências sociais há 30 anos. Para ele os museus vivem hoje uma transição entre esses dois modelos. Resumida e parcialmente, o modelo tradicional funda-se na autoridade do museu e, obviamente, de seus especialistas. A experiência de visitação é fortemente definida pela transmissão de conhecimento produzido pelo museu e obtenção de conteúdos pelo público. O público, qualquer categoria, é inserido no museu, uma vez que há uma adequação de linguagem como, muitas vezes citada, “facilitadora” da transmissão de mensagens. Neste modelo o ensino formal pode ter clara vinculação com os objetivos e metas da instituição museu pelo apelo conteudístico e didatismo. Por outro lado, esse modelo propicia ações de acessibilidade de alcance limitado, porque não inclui necessariamente, pois introduz o excluído no museu. O modelo emergente não abre mão da autoridade da instituição e de sua equipe, mas a recoloca para outra finalidade educacional.As condições de produção do museu são conhecidas e debatidas – a filosofia sobre o ato de preservar, a política de musealização, objetivos, os critérios de atuação etc., a circunstância que configuram a instituição museu enfim –, dando espaço à participação efetiva nos processos de musealização e patrimonialização, à valorização da subjetividade e às relações intersubjetivas no espaço do museu. Nessa perspectiva, o público é ativo (proativo ao invés de reativo) e agente no processo de musealização porque faz parte dele. Por outro lado, a experiência cultural vivenciada no museu é ritualística, sensorial, afetiva, emocional, física e fractal. O caráter educacional do museu passa a ser autônomo, pois desvinculado de estratégias fixas e normativas e estrutura programática, como aquela que cabe ao ensino formal ou

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disciplinar ou ao museu tradicional. O comunicador e o educador de museu são autoridades relevantes que emergem a partir dessa nova concepção que se engendra. Cabe a eles uma ação articuladora entre o conceito de patrimônio e iniciativas de patrimonialização, colecionamento, construção de memórias e identidades por meio de processos comunicacionais que problematizem o museu e o façam ganhar sentido social. A comunicação (a museológica, inclusive) já nos convenceu de, pelo menos, quatro coisas: (1) que há a pluralidade e a fragmentação e que a polissemia é inerente ao processo de recepção, (2) a diferença é um valor, (3) a identidade é construção relacional, ou seja, precisamos do diferente para construí-la e (4) que o exercício democrático revela os conflitos e disputas, os jogos de poder e as negociações e as contradições sociais. O museu deve sempre considerar as diferenças de perspectivas e circunstâncias e as parcialidades próprias das contextualidades, de um lado. De outro, deve entender e difundir a idéia de que faz interpretações da mesma forma que os diferentes públicos que visitam (ou não) a instituição. A validação em museus é polemizada, porque seu discurso é construção de conjeturas, e valem as indagações: quais são elas e como são construídas. Devemos investir na diversidade e nas diferenças, porque promovem a criatividade, a inovação, a audácia, o diálogo, a negociação. Ainda, fazem aflorar as contradições, os conflitos e jogos de interesse e poder presentes na nossa sociedade e que estão incorporados no patrimônio cultural musealizado e naquele musealizável. Há uma globalização, não podemos negar, mas há um lugar vago, um lugar em processo de construção que o museu deve ocupar como espaço de sociabilidade, cultura, educação e de participação. O caso que apresentamos é uma possibilidade para discussão de como os processos museológicos podem ser engendrados em contextos locais e em respeito a outras estéticas, memórias coletivas e visões de mundo. Uma cidade, um museu, uma exposição Tupã é uma cidade planejada por João Ribeiro doVal, Eurípedes Soares da Rocha e Luiz de Souza Leão, empreendedores da “Empreza de Melhoramentos da Alta Paulista”. Compraram terras que foram loteadas a partir do traçado urbano desenhado em 1929, com ruas e avenidas com etnônimos indígenas brasileiros. A infra-estrutura foi instalada de acordo com o planejamento. Luiz de Souza concluiu a implantação do projeto de cidade com a inauguração do Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre. O Museu foi criado e inaugurado em 1967 com a presença de Vinicio Stein Campos (1908 – 1990), então Diretor da Divisão de Museus do Estado de São Paulo. Os denominados Museus Históricos e Pedagógicos constituíram uma rede paulista que visava a, segundo Stein Campos,“preservar a história da cidade e do patrono [do museu]” (apud Misan, 2008: 176). Foram implantados entre 1950 e 1970. A rede era composta por 79 museus, sendo 53 instalados em diversos municípios. Inicialmente faziam parte do Serviço de Museus Históricos da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Posteriormente, em 1968,integraram o DEMA – Departamento de Museus e Arquivos da SEC – Secretaria de Estado da Cultura.


Marília Xavier Cury

Foto 1 – Cerimônia de inauguração do Museu Índia Vanuíre, 1968. Da esquerda para a direira: Mitsue Maeda, Nereide Teresinha Celli de Mendonça, João Geraldo Iori, Oscar Elias Bueno, Luiz de Souza Leão, Sergio Cunha, Nair Ghedini, Ronaldo Goy, Vinicio Stein Campos. Foto: Acervo do Museu Índia Vanuíre.

Em 1980 o Museu Índia Vanuíre recebeu um prédio próprio edificado em terreno, ambos doações de Luiz de Souza Leão ao município. Ele mesmo definiu as linhas do acervo: histórico municipal e etnográfico. A escolha dos nomes da cidade e das ruas e avenidas e o recorte etnográfico para o Museu têm a mesma intenção, homenagear os índios brasileiros. Em 1998 a rede de museus históricos e pedagógicos se dissolve, pois essas instituições são municipalizadas, à exceção de alguns como o Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre em Tupã. O Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre13, em vias de modernização, teve como uma de suas estratégias de planejamento a concepção e a abertura de uma exposição de longa duração em 201014.Tupã situa-se no centro-oeste do estado de São Paulo, na chamada Alta Paulista, região ocupada a partir do início do século XX, com a apropriação de território onde viviam índios Kaingang. As primeiras notícias sobre os Kaingang na região datam de 1773. O primeiro contato aconteceu em 1810. O processo de colonização foi iniciado no final do século XIX. Até então, o oeste do estado de São Paulo era um “sertão desconhecido habitado por índios”. A Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, 1904, atravessou a região no sentido do Mato Grosso, para aproximá-lo do litoral. A cafeicultura viu no lugar as condições ideais para sua expansão. Para tanto, foram auspiciadas pelo Estado expedições aos rios Aguapeí e do Peixe, 1905 e 1907, ações do CGG – Comissão Geográfica e Geológica, para conhecimento da região. Os Kaingang resistiram à ocupação do território onde viviam há 3.000 mil anos, de acordo com pesquisas arqueológicas. Mas, renderam-se pelo esgotamento imposto, sobretudo, pelas doenças contagiosas para as quais não tinham defesas. O ano de 1912 foi considerado, pelo SPI (Serviço de Proteção aos Índios) o marco da “pacificação”. Os Kaingang sobreviventes foram alocados em dois Postos Indígenas, hoje TI – Terras Indígenas Icatu e Vanuíre. A Aldeia Indígena Vanuíre é próxima 20 km de Tupã, município instalado em terras que outrora fizeram parte do território de “perambulação”15 kaingang. 13

Museu vinculado à UPPM – Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico da SEC – Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. É administrado pela ACAM Portinari – Associação Cultural de Apoio ao Museu Casa de Portinari, organização social de cultura com sede em Brodowski, São Paulo, sob direção de Angélica Fabbri e Luís Antônio Bergamo. 14 15

Sob concepção e coordenação de Marília Xavier Cury. Área na qual circulavam para a obtenção de alimentos, cf. Robson A. Rodrigues.

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Como pressuposto do processo, a nova exposição de longa duração deveria dar conta do acervo do Museu, problematizando-o, ao mesmo tempo em que deveria sustentar uma expografia atualizada, em face do “estado da arte” do design de exposições contemporâneas no Brasil. Desta forma, e considerando as condições museográficas, chegamos à seguinte estrutura conceitual por módulos e setores: (I) processo histórico – (1) história de Tupã e (2) TI Vanuíre; (II) mostras do acervo do Museu – (3) Índios no Brasil, (4) Representações no acervo indígena (plumária, tecido e cestaria)16.A exposição, aberta à visitação em outubro de 2010, intitula-se Tupã Plural, pela formação intercultural a partir da chegada de imigrantes espanhóis, letos, japoneses, portugueses, italianos, árabes ao território, além, óbvio, dos Kaingang e dos Krenak, parcela do povo que escolheu a Aldeia Vanuíre para morar, como veremos. A exposição é iniciada por “Creio em Tupan”, expressão de Luiz de Souza Leão que representa a sua crença na permanência da cidade em oposição a outros núcleos que se formavam à época junto à linha do trem. O circuito expositivo segue para o setor Aldeia Indígena Vanuíre, Índios no Brasil, Representação Plumária no Acervo Indígena e Representação Tecida e Cesteira no Acervo Indígena17. A articulação discursiva é a seguinte: uma cidade foi criada em uma região já habitada por índios Kaingang (e outros), estes resistiram e lutaram pelo seu território.Vencidos pela violência, doenças e mortes, os remanescentes em número reduzido foram aldeados, ou seja, ficaram restritos a pequenas e limitadas partes daquilo que antes fora seu rico e amplo território simbólico, de sociabilidade e sobrevivência. A TI Vanuíre é um dos aldeamentos, originalmente chamada de Posto Indígena Pirã administrado pelo SPI. O processo, simplificado como “pacificação”, teve uma heroína, a pacificadora Vanuíre, de fato Kaingang já integrada à cultura ocidental chamada pelo SPI para atuar como tradutora e agente das táticas do Serviço para contato e aproximação de grupos indígenas arredios. Como forma de compromisso, o discurso expositivo considerou os Kaingang como parte da história pregressa e atual. Para tanto, esse povo é apresentado no setor “Creio em Tupan” – inevitável, pois antes de Tupã aqui estavam os Kaingang – e destacados em um espaço – conceitual e físico – exclusivo, ao lado dos Krenak, com quem os Kaingang dividem o espaço da Aldeia Vanuíre. Nossa preocupação foi e é evitar formas de apresentação que reforcem o ideário do índio como parte do passado. Tomemos os livros didáticos como exemplo. As culturas indígenas são colocadas no(s) primeiro(s) capítulo(s). Outro exemplo recai sobre alguns museus, na maioria históricos, onde a participação indígena na constituição da cultura brasileira faz parte da introdução, nunca da trama principal. Seguindo o circuito da exposição Tupã Plural, temos os módulos Índios no Brasil18 – para fazer informar sobre a abrangência e diversidade indígena no território brasileiro, a partir de ilustrações de José Lanzellotti19 adquiridas pelo Conselho Estadual de Cultura, São Paulo, em 1972 – e Representação de O desenvolvimento destes setores só foi possível graças a participação da etnóloga Sonia Ferraro Dorta, profunda conhecedora de coleções etnográficas indígenas brasileiras. 16

17

Curadoria de Sonia Ferraro Dorta.

Este módulo ficou menor do que o planejado devido a pesquisa etnográfica necessária e recursos para a execução de um multimídia. 18

19

Composição artística feita por Luciano Pessoa.


Marília Xavier Cury

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Mapa 1 Província de São Paulo, 1884.

Mapa 2 Distribuição dos índios no Brasil meridional.Von Ihering, 1907.


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Foto 2 Expedição ao Rio Aguapeí ou Feio.

Foto 3 Bugreiros – caçadores de índios – com ossadas de Kaingang. Déc. 1910. Foto: Acervo Museu Índia Vanuíre.


Marília Xavier Cury

artefatos significativos de diferentes povos indígenas presentes no Museu índia Vanuíre, de acordo com a tipologia plumária, tecida e cesteira, destacando a qualidade e abrangência das coleções etnográficas. No Quadro 1 podemos ver o desenvolvimento conceitual da exposição Tupã Plural mais detalhado e avaliar a inserção dos Kaingang no conjunto. No todo conceitual, aparentemente, a presença Kaingang é pequena ou se perde. Desde o início do processo de concepção tivemos o cuidado de valorizar as participações Kaingang e Krenak por meio de recursos expográficos. A primeira estratégia adotada foi iniciar a exposição Tupã Plural com os Kaingang, ao contar brevemente a história de Tupã para, então, retomá-los num espaço e setor conceitual próprios. No primeiro momento, utilizamos um recurso tecnológico criado para a situação. Trata-se de uma maquete do território multimídia20. Outras estratégias pensadas para alcançar nossos objetivos foram a sequência e a posição estabelecidas e a metragem quadrada dedicada aos Kaingang na exposição. Quanto à sequência, estando em segundo lugar no circuito expositivo traçado, o visitante, ao entrar no setor, já está ambientado e ciente da lógica organizativa da exposição, preparação que acontece no início da mesma. A posição e a metragem, por sua vez, não poderiam ser mais privilegiadas, pois o visitante entra em um salão amplo e encontra à sua frente o setor Aldeia Indígena Vanuíre com a subdivisão Bravos Kaingang – “Tahap”! A cor utilizada e a iluminação corroboram com um impacto visual, aspecto da ambiência importante para motivar o visitante para um envolvimento e empatia. O vídeo preparado com depoimentos de Kaingang21 escolhidos dá vida e dinamismo ao espaço. Os artefatos em exposição – parte acervo tombado pelo Museu, parte produção para a exposição – constituem-se em apelo patrimonial e aguçam a curiosidade dos visitantes e as memórias coletivas do produtor cultural, os Kaingang. Passamos a apresentar, para discussão, o processo de concepção e montagem do setor dedicado aos Kaingang da TI Vanuíre na exposição Tupã Plural, o qual denominamos Bravos Kaingang – “Tahap”!

Foto 4 Aspecto geral do setor Bravos Kaingang – “Tahap”! Foto: Marília Xavier Cury.

Maquete física de parte do território sobre a qual são projetadas imagens apresentadas por locução. Produção Estúdio Preto e Branco.Vide parcial e fragmentariamente em www.pretoebranco.com.br. ��

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Produção Estúdio Preto e Branco.Vide parcial e fragmentariamente em www.pretoebranco.com.br.

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MÓDULO I

SETOR

SUBDIVISÃO

PROPOSTA

“Creio em Tupan”

Tempo e território

Território e cronologia da criação de Tupã, desde 1884 Discussão sobre o processo histórico com a participação quando os Kaingang são mencionados em mapas Kaingang. Reflexão sobre a relação da cidade com os índios e o ideário construído sobre eles. Relação entre ocupação e exploração/desmatamento.

Permanência

O empreendedorismo e a chegada de imigrantes

Cidadão Benemérito O fundador

Aldeia Indígena Vanuíre

PROBLEMÁTICA

Tupã como um projeto empreendedor. A agricultura e a participação dos imigrantes O empreendedor e sua personalidade

Lição Constitucionalista

A participação na Revolução Constitucionalista de Orgulho dos habitantes de Tupã 1932

Aldeia IndígenaVanuíre

“Pacificação” Resistência e “Resgate Cultural” Aldeia Integrada

Cronologia da colonização do território, conflitos, intervenção do SPI, “pacificação”, aldeamento, resistência cultural e processo identitário. Reflexão sobre a relação da cidade com os índios e o ideário construído sobre eles.

Escola Estadual Indígena Índia Vanuíre e o Vanuíre Futebol Clube Bravos “Tahap”!

II

Índios

no Brasil

Kaingang. Relação com o território, subsistência, organização social, demografia, impacto com a colonização e aldeamento, desterritorialização e construção identitária

Os Borun do Watu. Expropriação do território, êxodo, chegada à Aldeia “Ererré”! Vanuíre, lugar de memória, desterritorizalização e construção identitária

Situação histórica.

Lanzellotti – Um Síntese da diversidade Narrador Visual

Diversidade e quebra de paradigma do índio genérico. Homenagem ao ilustrador, ciência do patrimônio adquirido pelo Estado.

Brinquedos Indígenas Representação Plumária no Acervo Indígena

Representação Tecida e Cesteira no Acervo Indígena

Situação histórica, com suporte da arqueologia. Organização social. Narrativa Kaingang na 1ª pessoa: depoimentos, memórias, lembranças. Diferenciação entre território, propriedade e posse. Etnogenese.

Macro-Jê

Kayapó (do Xingu), Kayapó, Kayapó Metyktire, Rikbaktsa, Suyá, Xavante, Karajá

Tupi

Tapirapé, Kaapór (Urubu), provavelmente Asuriní do Tocantins, Guajajára, provavelmente Mundurukú,Wajãpi

Aruák

Mehináku (Alto Xingu), Waurá,Yanomámi,

Prov. Ayoreo/Paraguai

Provavelmente Ayoreo/Paraguai

Plumária como complemento decorativo

Guajajára, Karajá, Bororo, etnia da língua Akwén ou Timbira, provavelmente Tapirapé.

Cestaria

Mobiliário e Utensílios Domésticos em Geral: Cozinha, Armazenagem e Conforto Pessoal Asurini, Bororo, provavelmente Canela, etnia do Alto Xingu, provavelmente etnia do Alto Rio Negro, Kaingang, Kaingang (do Sul), Xavante Obtenção e preparo do alimento: Pesca e Processamento da Mandioca e Cereais Bakairí, Kaingang, Karajá, Xavante,Yanomámi Asuriní, Kamayurá, Karajá, Karib Indumentária e Artefatos de Uso Ritual e Pessoal: Máscaras Xinguanas (indumentária ritual de dança), Instrumentos Musicais, Adornos Corporais, Utensílios de Uso Pessoal Asuriní, Kaingang (de Santa Catarina), Karajá, Mawé (Sateré), Xavante,Yawalapiti Artefatos domésticos e rituais especiais para Comércio Baníwa, Guajajára Artefatos de toucador: fios de fibra vegetal e algodão como elementos de entramação formando campos decorativos Karajá, Tiriyó, Waiwái

Tecido

Conforto Pessoal Baníwa, Kaingang Vestuário e Adorno Guajajára, Karajá, provavelmente de Etnia norteamazônica de família linguística Karib Meios de Transporte Chiquitano (Bolívia), Tukáno

Quadro 1- Estrutura da exposição Tupã Plural

Narrativa Krenak na 1ª pessoa: depoimentos, memórias, lembranças. Diferenciação entre território, propriedade e posse. Etnogenese.

Ciência do patrimônio museológico do Museu, comunicar conhecimento etnográfico produzido em pesquisa de coleções museológicas.


Marília Xavier Cury

Os Kaingang da TI Vanuíre Desde a decisão de inserir a TI Vanuíre na estrutura narrativa da exposição de longa duração Tupã Plural (e, consequentemente, a inserção de seus principais moradores – os Kaingang e os Krenak) tínhamos em mente a adoção do método cooperativo como forma de trazer para ao Museu narrativas sustentadas pelo EU/NÓS como pessoa pronominal. Acontece que os Kaingang sofreram violência física e moral por décadas, de forma a temer a transmissão de suas tradições aos seus descendentes. Até hoje, muitos Kaingang mais antigos evitam falar das tradições com seus filhos e netos, como temor pelo mau que isso possa provocar a eles. Michael Pollak (1989) sustenta que experiências traumáticas provocam travas em processos de rememoração. Na Aldeia Vanuíre o tempo passou, não há mais punição, mas o medo persiste levando ao esquecimento ou apagamento as memórias do grupo. Prática de memória e memória coletiva reprimidas. A memória não foi exercitada livremente, impactando negativamente o exercício coletivo. Os Kaingang foram aldeados numa pequena área – o que equivale a dizer que foram desterritorializados no seu lugar – cerceados e impedidos de certas práticas culturais e religiosas e do uso da língua. Candire (Maria Cecília de Campos) – índia já falecida, a última a dominar a tradição cerâmica na Aldeia Vanuíre – fora exceção. Educou sua filha Ena e seu neto Zeca dentro da tradição que conhecia. Ainda, estimulou que os mais jovens seguissem as tradições, sabendo que muito se havia perdido. Hoje há alguns grupos Kaingang de Vanuíre que buscam a tradição a sua maneira, ora reunindo memórias fragmentadas, ora buscando ouvir aqueles que viveram em outros tempos e que conviveram com outros já falecidos. De maneira geral, um dos grupos – liderado por quatro gerações de mulheres de uma mesma família – está reinventando uma tradição e criaram a escola voluntária Kaingang. Nessa escola falam Kaingang (talvez o maior patrimônio deles), ensinam danças e cantos, fazem artefatos, convivem e cultivam uma “kainganidade” que, segundo eles, não espelha o passado porque o momento é outro. Para as apresentações de danças que fazem para eles mesmos e, por convite, para os não-indígenas, usam apenas dois tipos de pinturas corporais – masculina e feminina – para criar uma identidade visual facilmente reconhecível entre eles e entre os outros culturais, mas nada que remeta à dualidade cosmológica de outrora. Também, criaram vestimentas que usam nas apresentações para as quais são convidados, com versões masculina e feminina. Outro grupo Kaingang é composto por professores desse povo que trabalham na escola indígena22. Esses professores percorrem outro caminho para a construção de identidade: a interação com outros Kaingang de outras aldeias e estados e a bibliografia. Esse segundo grupo, mais tímido, é rechaçado pelo primeiro, mais radical em seus métodos de consolidação identitária. O que pode parecer uma radicalização justifica-se pelo fato de que a TI Vanuíre é, igualmente, ocupada por índios Krenak que, na década de 1960, refugiaram-se aí devido aos problemas que vinham sofrendo para reocupar, após demarcações oficiais, as suas terras no estado de Minas Gerais. Os Krenak passam, também, por essa reconstrução cultural, reinventando-se. Ensaiam suas danças e cantos, fazem artesanato, inventam pinturas corporais, buscam seus Ensino Fundamental.

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Fotos 5 - Da esquerda para a direita, Vanuíre (déc. 1910-1920), Candire (déc. de 1980) e Ena (2010). Fotos: Acervo do Museu Índia Vanuíre.

mitos, visitam as terras Krenak em Resplendor, Minas Gerais, e outras que reivindicam – como o Parque Estadual Sete Salões, carregadas de simbolismo – etc. Os Krenak são expansivos e comunicativos, criaram uma identidade visual competente – diríamos que têm um marketing forte – e articulam-se de forma a absorver muitos Kaingang, pois a maioria daqueles que vivem na aldeia são parte Kaingang, parte Krenak, fruto de casamentos inter-étnicos. Os casamentos são aceitos, mas cada indivíduo, concluímos, tem que optar por sua identidade étnica, o que ocorre por influência da família (principalmente das mulheres) ou, na ausência dessa intervenção, pelo envolvimento com o outro. Se o convívio existe com certa tranquilidade, há uma “guerra” identitária na Aldeia Vanuíre, o que é necessário, pois identidade é construção inter- relacional com o diferente com o qual se compara. No caso, os dois grupos buscam afirmações e é muito conveniente que estejam compartilhando estes processos, referenciando-se e apoiando-se. O que pode parecer disputa, para os não-indígenas que os julgam como desunidos, é, na verdade, processos de construção de identidades e capacidade de reconfiguração de suas práticas a partir das relações intergrupais. E os Kaingang “radicais” estão reafirmando sua opção e chamando os demais a seguir certas atitudes que os diferenciem por completo dos Krenak. Por exemplo, um Kaingang não deve cantar ou dançar Krenak, de acordo com os critérios daqueles do primeiro grupo. Poderíamos enquadrar essa atitude como identidade de resistência (CASTELL, 2006) criada por atores que se encontram em posições desvalorizadas e necessitam estabelecer trincheiras, uma vez que se sentem diminuídos, porque são constantemente taxados como aculturados, seja pelos não-índios ou pelos Krenak. Para nossa surpresa, a aldeia “kaingang” tem um cacique Krenak que, segundo ele, vê o interesse do todo. Na aldeia as casas são de alvenaria, do tipo popular, projetada e construída pelo governo. Os índios possuem uma alimentação retradicionalizada, ou seja, a mesa é composta, por exemplo, por yamin (milho vermelho) – que é congelado para estar disponível durante o ano todo –, a tapioca, o peixe ensopado com banana verde ou assado na folha de bananeira, o arroz, o feijão e o refrigerante.


Marília Xavier Cury

O artesanato é realizado pelas duas etnias de forma parecida, mas com suas diferenças. Para tanto, usam fibras vegetais, sementes e penas de galináceos que tingem ao gosto colorido. É realizado, – não somente, mas particularmente – para o comércio e, embora algumas peças sejam usadas rotineiramente por eles, a maior parte da produção destina-se a uma demanda comercial, de acordo com as expectativas do cliente não-índio. Então, encontramos arcos e flechas, (um tipo de) sarabatanas, lanças etc., objetos fora de uso por eles que, para o comprador, pode ser ora elemento decorativo, ora brinquedo. Mas, produzem e, também, instrumentos musicais que fazem parte das danças e cânticos que praticam. A produção desse artesanato para comércio, e às vezes sem contexto, como é o caso da sarabatana, foi promovida pelo Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre há décadas, o que se mantém, devido à aceitação, como uma das formas de obtenção de renda. Há artesãos habilidosos na aldeia e o artesanato é ensinado nas duas escolas – a oficial (de todos, com predomínio cultural Krenak) e a voluntária (“alternativa” dos Kaingang). Uma das artesãs não é índia. Essa mulher é casada com um hábil artesão, com quem aprendeu algumas técnicas, além da aprendizagem em um curso. Para o setor expositivo Aldeia Indígena Vanuíre (subdividido entre Bravos Kaingang. “Tahap!” e Os Borun do Watu. “Ererré!”) optamos por colocar as duas etnias lado a lado no espaço, com os Kaingang – os primeiros a chegar no território – à entrada do setor. A situação de justaposição de Kaingang e Krenak justifica-se não somente porque as duas etnias vivem juntas na mesma aldeia, mas como respeito às buscas identitárias que acontecem entre elas em relação mútua. Por outro lado, o setor expositivo Aldeia Vanuíre está, por sua vez, em posição privilegiada em relação ao setor conceitual anterior, “Creio em Tupan” de abordagem histórica. Não queremos com isso afirmar que os índios não fazem parte da história. Ao contrário, destacamos que a história deles é anterior e cruza-se, com consequências, com a história do colonizador, seguindo no presente. A nossa intenção foi fugir de certos modelos recorrentes de apresentação do índio, que o coloca numa perspectiva evolucionista. O índio genérico sempre faz parte da introdução, mas nunca do enredo principal. Estão sempre no passado ou no início, nunca no processo. Evitando outro erro comum, adotamos a concepção de etnogenese de Bartolomé. Para o autor “a etnogênese apresenta-se como processo de construção de uma identidade compartilhada, com base em uma tradição cultural preexistente ou construída que possa sustentar a ação coletiva” voltada a uma nova e criativa configuração social (2006, p.43) que mantenha um grupo numa posição desejada. Assim, supomos, demos uma resposta afirmativa à falsa dicotomia que separa, julgando positiva e negativamente, respectivamente, os povos ou grupos que preservam as tradições daqueles que absorveram elementos ocidentais, ou seja, aqueles aculturados. Há um senso comum que os separa, valorizando os primeiros, desvalorizando os segundos. O mais complexo nesse processo expográfico foram as discussões levadas a cabo pela equipe do Museu e os Kaingang e Krenak sobre o que ia para a exposição e por quê, ou seja, o que seria musealizado porque é um patrimônio e o que é patrimônio para eles. Foram meses e muitas conversas e vivências conjuntas para chegarmos às opções de cada grupo. As discussões foram antecedidas pelo entendimento do que seja um museu e uma exposição. Então,

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passamos a discutir o que é patrimônio para cada etnia e, então, como comporíamos o setor expositivo com as subdivisões. Como motivação argumentamos que aquilo que fosse produzido para a exposição seria preservado no Museu para seus filhos e netos. Procuramos esclarecer, sempre, que aqueles artefatos não seriam comprados e tampouco comercializados e, sim, doados para que eles tivessem voz no Museu. Eles alcançaram, com clareza, a consciência de que há algo da tradição que ficou no passado – e que não poderia ser revivido – e que há algo novo em constituição. Assim, integrou a exposição (e o acervo do Museu Índia Vanuíre) o artesanato atual, inclusive o realizado para comércio, pois para eles não há a distinção que fazemos. Mas, entrou, também, as danças e cantos, os grafismos, frutos de um processo de etnogênese, da mesma forma que expressões de uma tradição remota como a língua, o hábito de vincular-se ao lugar onde o umbigo foi enterrado após o nascimento e a roça doméstica – para os Kaingang – e a pesca com a mão – para os Krenak – por exemplo. Anteriormente a essa constatação, tentamos motivá-los a produzir certos artefatos de que tomamos ciência pela bibliografia como cultura material Kaingang e Krenak. Levamos para mostrar livros e pesquisas acadêmicas sobre cestaria e grafismos, para que fossem reconhecidos e reproduzidos, o que não aconteceu. Por exemplo, os Kaingang originalmente23 têm sua organização social estruturada em dois clãs exogâmicos que se opõem e se complementam simultaneamente: Kamé e Kainru-Kré. Esses são gêmeos ancestrais, entidades civilizadoras e estruturadoras da concepção dual do universo e da vida social. O dualismo está presente no cotidiano e no artesanato. Por um artefato podemos identificar o clã (Veiga, 2000; Silva, 2005) do proprietário ou as alianças em construção entre clãs (Silva, 2005). Os kaingang da TI Vanuíre não identificaram as formas e os grafismos de acordo com os clãs e, mais ainda, desconhecem quase por completo essa concepção cosmológica, assim como outros aspectos da cultura Kaingang ancestral. A princípio isto causou certa decepção entre os membros da equipe responsável pelo processo expositivo que tinha a ilusão de encontrar um passado Kaingang diluído no cotidiano. Certamente que se sentimos um problema, esse problema foi nosso, baseado em uma expectativa, pretensão de fazer a tradição pelo outro e no equívoco de que tradição é algo dado e estático e não construído de forma dinâmica. Também, caímos involuntariamente na armadilha de que identidade é algo que se perde e, por isso, pode ser recuperado. Óbvio que a equipe de profissionais responsável pelo processo se viu, com frequência, em dificuldades, ora no fogo cruzado identitário, ora nas suas próprias contradições e preconceitos, o que tratamos de superar. Durante o processo houve muita negociação entre Kaingang e Kaingang, entre Kaingang e Krenak, entre a equipe e os Kaingang e Krenak e entre os membros da equipe, entre os que acreditavam na proposta do módulo expositivo Aldeia Indígena Vanuíre e os que não acreditavam na relevância de expor culturas indígenas que “não existem mais”. De fato, se sabemos que as culturas não são cristalizações, nem todos estavam preparados para tanta transformação, o que foi um aprendizado. A maior lição veio dos próprios Kaingang, da resistência que mantiveram por anos durante a exploração do oeste de São Paulo e no aldeamento em que foram confinados. Mas, sobretudo, veio da coragem por aquilo que eles denominam como “resgate cultural”. 23

Outras aldeias Kaingang ainda possuem essa visão cosmológica.


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Foto 6 Vitrina com artefatos históricos do acervo do Museu Índia Vanuíre. Foto: Marília Xavier Cury

Foto 7 Vitrina com artefatos contemporâneos. Foto: Marília Xavier Cury


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Bravos Kaingang. “Tahap!”: a construção da narrativa

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Há, basicamente, três métodos para a produção de exposições: o autocrático, o em equipe e o cooperativo. O método autocrático é centralizado no curador. O método em equipe reúne diferentes profissionais para dar conta da construção de experiência patrimonial do público na exposição museológica. O método cooperativo incorpora ao método em equipe representantes da cultura tratada na formulação da enunciação expositiva. A incorporação coloca a narrativa expositiva na primeira pessoa, EU/NÓS, ao passo que no processo em equipe a narrativa é colocada na terceira pessoa, ELE/ELES. O setor Aldeia Indígena Vanuíre da exposição de longa duração Tupã Plural foi pensado desde o início da concepção como uma ação em cooperação. Há décadas que os Kaingang e Krenak são convidados pelo Museu Índia Vanuíre para se apresentarem em festejos, principalmente no Dia do Índio em 19 de abril. Nessas oportunidades faziam apresentações musicais e de danças e comercializavam artesanato.A aceitação das peças era tanta que, muitas vezes, atendiam ao convite certos do bom retorno comercial decorrente das vendas. Numa dessas apresentações, quando cantavam uma música da Xuxa, a condição indígena dos Kaingang e Krenak foi duramente questionada pelos espectadores não-indígenas. Esse fato provocou um movimento que tanto os Kaingang, quanto os Krenak, chamam de “resgate cultural”. Desde então, procuram os mais velhos da aldeia para conhecer as tradições dos antepassados e se organizam em torno das culturas. As memórias até então oprimidas se manifestam lentamente. Assim, a equipe responsável pela exposição Tupã Plural percebeu que poderia colocar em avaliação algumas relações e promover outras. Para avaliar, a exposição deveria colocar em pauta a relação romantizada que a cidade tem com os indígenas, o entendimento sobre a “pacificação” dos Kaingang e a colonização da região e o sentimento de comiseração com que tratam os indígenas locais. Para promover, a exposição seria uma excelente oportunidade para que os Kaingang, e em decorrência os Krenak, vivessem um sentimento de empoderamento numa relação equilibrada, porque em pé de igualdade, com a população de Tupã e da região. O “resgate cultural”, situação em elaboração, foi o fator favorável para que os Kaingang e Krenak participassem como protagonistas do discurso museológico tomando a frente das decisões referentes à narrativa. Vendo de outro ângulo, a experiência com a exposição potencialmente seria um fator que movimentasse de alguma forma o processo identitário e a manifestação da memória reprimida. Para tanto, o Museu Índia Vanuíre conta com suportes de memórias que são os objetos museológicos de origem Kaingang, patrimônio cultural reunido por meio do colecionamento. Entendemos o museu como lugar de representação e construção de memórias e ao se auto-representar os Kaingang estariam provocando a construção memórias individuais e coletivas. Com o método cooperativo não sabemos onde vamos chegar, mas chegamos. As inúmeras conversas e formas de aproximação permitiram que a narrativa fosse se consolidando. Aos poucos percebemos que as memórias dos antepassados estavam aprisionadas e que a exposição seria uma excelente estratégia para torná-las ativas. Mais do que uma consciência sobre as potencialidades da memória, a participação deflagrou uma necessidade de falar pelas sucessivas gerações que viveram a expropriação do território de


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forma violenta, a privação de certas práticas culturais e religiosas, a imposição de outra estrutura econômica, as punições e humilhações etc. As conversas revelaram o que queriam dizer sobre o quanto sofreram. Esta foi a linha conceitual do setor expográfico. Os depoimentos gravados em vídeos foram especiais. Desenhamos roteiros individualizados, mas alguns depoentes prepararam os seus. Alguns surpreenderam, pois a expectativa era que não falariam e falaram por horas em roteiros minuciosamente arquitetados por eles mesmos, sem pausa ou hesitação. Decidimos por gravar, também, processos como o de preparação de uma refeição e para a dança.

Ilustração 1 Plano urbano de Tupã: homenagem do fundador de Tupã aos índios brasileiros. 1929. Acervo Museu Índia Vanuíre.

Quanto à produção de artefatos, deixamos os artesãos livres para escolherem o que quisessem preparar. No entanto, encomendamos algumas peças como cerâmicas para a Ena, filha de Candire, chocalhos, roupas e adornos de danças e ralador de mandioca. Esperávamos peças de artesanato semelhantes àquelas que já conhecíamos, mas fomos surpreendidos novamente pela quantidade, variedade e criatividade. O conteúdo definitivo do setor foi formatado pela equipe responsável, respeitando os anseios dos Kaingang de falar sobre o sofrimento vivido e maus tratos recebidos. Para aprofundar essa concepção, buscamos na bibliografia conhecimento arqueológico que sustentasse a idéia de assentamento pré-colonial, ocupação territorial, demografia e organização social (Rodrigues, 2007). O conhecimento antropológico sustentou aspectos da sociabilidade, cosmologia e religião e transformações culturais decorrentes do aldeamento (Pinheiro, 1992 e 1999; Veiga, 2000; Silva, 2005). Selecionamos os objetos kaingang tombados pelo Museu e os colocamos em frente às peças produzidas usando vitrines especialmente desenhadas para essas finalidades. Os vídeos foram editados, mas os originais estão disponíveis para pesquisadores. Com o processo expográfico cooperativo as novas gerações kaingang que não vivenciaram o processo de “pacificação” rememoraram o passado por meio das memórias dos mais velhos e de seus antepassados. A sociedade do entorno pode conhecer uma versão para confrontar com as memórias que constrói também sobre a colonização e o desenvolvimento de cidades na região.

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O museu é um lugar único na sociedade, pois o que ele faz nenhuma outra instituição é capaz de fazer com a mesma eficácia. É um lugar privilegiado, pois é capaz de ativar memórias adormecidas, romper silêncios, iluminar caminhos, estimular e tirar da clandestinidade certas memórias.

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O museu é entendido por Pierre Nora (1993) como lugar de memória. Sem os museus os Kaingang de Vanuíre não poderiam ver certos objetos da cultura produzidos no passado. Sem os objetos, suportes de memórias físicas e simbólicas, parte do passado seria esquecido no que se refere à trajetória do grupo na região. Os objetos do passado são meios para a comunicação com outros tempos e vivências, para conhecer outros costumes que, embora distantes, não precisam estar inativos porque lembrados. Os objetos produzidos para a exposição, por sua vez, sustentam memórias do presente, a resistência e a capacidade de reinvenção dos Kaingang para continuarem a se considerar como tal. Cada objeto produzido registra esse empenho. Os espaços testemunham a memória. A Aldeia Vanuíre testemunha a ocupação de um espaço delimitado, restrito, mas revelador da resistência Kaingang. Também revela a memória dominante da mesma forma que a dominada. O museu opera como possibilidade de conhecer o passado. Mas, é uma rica possibilidade de, no presente, imprimir as memórias do que se vive. Se há um passado, há um presente e um futuro. Por outro lado, os museus são eficazes canais de comunicação para que os indígenas comuniquem-se e proponham bases de diálogo com as demais esferas da sociedade. Considerações finais Apresentamos um processo museológico vinculado a um museu local, com alcance regional para discutirmos o papel dos museus no mundo contemporâneo e como a Museologia deve se pautar para sustentar ações de cunho social e educacional. Outro aspecto que devemos relatar em outros artigos refere-se às mediações construídas em museus e, em especial, em situações cooperativas. No caso tratado, as mediações tiveram um papel fundamental e entendemos que as ações em equipe formada por museóloga, educadores e produtora cultural e outros profissionais24 aconteceram nessa dimensão, pois deviam gerenciar outros profissionais contratados, aproximando-os da proposta. Também, coube a eles a materialização da exposição, ou seja, a responsabilidade de colocar em cena as expectativas dos Kaingang e as nossas mesmas. Uma grande responsabilidade, sem dúvida. É muito importante registrar que as nossas visões, a de todos, são transformadas no decorrer do trabalho e que o processo é mais rico do que a própria exposição. De fato não é, pois a exposição está lá cumprindo o seu papel educacional problematizador e provocador de mudanças internas e externas. 24

Marilia Xavier Cury, Joana Ortiz, Tamimi David Rayes Borsatto, Marcelo Souza Damasseno, Valquiria Cristina Martins, Maria Odete Correa Vieira Roza, Raquel Maria F. Miguel S.de Luna, Lamara David Ruiz Estevam, Gessiara Castiglione Biazom, Pamela Adami de Souza Bonetti, Viviani Micheli Gonela Bononi, Anderson Cristiano de Souza.


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Foto 8 Crianças esperam pelo momento da dança. Foto: Marília Xavier Cury

Foto 9 Registro em vídeo dos Kaingang na Aldeia Vanuíre, Tupã, São Paulo. Foto: Marília Xavier Cury


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Referências BARTOLOMÉ, Miguel Alberto. As etnogêneses: velhos atores e novos papéis no cenário cultural e político. Revista Mana, Rio de Janeiro, v.12, n.1, p.39-68, 2006.

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Castells, Manuel. O poder da identidade. São Paulo, Paz e Terra, 2006. García Canclini, Nestor. Gourmets multiculturais. La Jornada Semanal, 5 dic. 1999. www. Jornada.unam.mx/1999/12/05/sem-nestor. p. [2]. MISAN, Simona. Os museus históricos e pedagógicos do estado de São Paulo. Anais do Museu Paulista, XVI, 2, p. 175-204, 2008. NORA, Pierre. Entre Memória e história. A problemática dos lugares. Projeto História - Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993. PINHEIRO, Niminon Suzel.Vanuíre. Conquista, colonização e indigenismo: oeste paulista, 1912-1967. 1999. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista. Assis. PINHEIRO, Niminon Suzel. Etnohistória Kaingang e seu contexto: São Paulo, 1850 a 1912. 1992. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista. Assis. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.2, n.3, p.3-15, 1989. RODRIGUES, Robson A. Os caçadores-ceramistas do sertão paulista: um estudo etnoarqueológico da ocupação Kaingang no vale do rio Feio/Aguapeí. 2007. Tese (Doutorado em Arqueologia) – MAE-USP, São Paulo. Silva, Sergio Batista. Etnoarqueologia dos grafismos Kaingang: um modelo para a compreensão das sociedades Proto-Jê meridionais. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2005. 366 p. Veiga, Juracilda. Cosmologia e práticas rituais Kaingang.Tese (Doutorado) – Universidade de Campinas, 2000. 304 p. ZAVALA, Lauro. La educación y los museos en una cultura del espetáculo. In: ENCUENTRO NACIONAL ICOM/CECA MÉXICO. La educación dentro del museo, nuestra propia educación, 2., 2001, Zacatecas. Memoria. [Zacateca]: ICOM México, CECA, [2003]. p. 19-31. Artigo recebido em fevereiro de 2012. Aprovado em abril de 2012


A NARRATIVA DE ARTE MODERNA NO BRASIL E AS COLEÇÕES MATARAZZO, MAC USP

Ana Gonçalves Magalhães Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

RESUMO: Pesquisa em andamento sobre as coleções Matarazzo, do acervo do MAC USP. A partir de um projeto de reavaliação crítica da catalogação do acervo do Museu, enfocam-se as aquisições de obras italianas realizadas pelo casal Francisco Matarazzo Sobrinho e Yolanda Penteado entre 1946 e 1947, para constituir o núcleo inicial do antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo. Trata-se de sua procedência, suas relações com o meio artístico brasileiro e com o chamado “Retorno à Ordem”. Tais aquisições permitiram uma reavaliação deste termo e das relações da crítica italiana Margherita Sarfatti e o “Novecento Italiano” com o Brasil.

ABSTRACT: Ongoing research about the Matarazzo collections, now belonging to MAC USP. The project started out through the critical revaluation of cataloging system of the Museum, and tackled the acquisitions of Italian works the couple Francisco Matarazzo Sobrinho and Yolanda Penteado realised between 1946 and 1947, for the first nucleus of the collection of the former São Paulo Museum of Modern Art. The research dealt with their provenance, their relationship with Brazilian artistic milieu and the so-called “Rappel à l’Ordre”. They allowed us to revaluate this term and the relationship between Margherita Sarfatti and the “Novecento Italiano” with Brazil.

PALAVRAS-CHAVE: Coleções Matarazzo. Arte Moderna Italiana. Margherita Sarfatti. Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM). Modernismo no Brasil.

KEYWORDS: Matarazzo Collections. Italian Modern Art. Margherita Sarfatti. São Paulo Museum of Modern Art (MAM). Brazilian Modernism.


A narrativa de arte moderna no Brasil e as coleções Matarazzo, MAC USP

O MAC USP

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A história do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) construiu-se a partir de uma narrativa complexa, tanto do ponto de vista das obras reunidas em seu acervo, quanto institucionalmente. Considerando-se sua história institucional, ela se desdobra em dois aspectos que nos permitem adentrar pela narrativa de arte moderna e contemporânea no Brasil para reavaliá-la à luz de novos elementos. O primeiro deles advém justamente do fato de se tratar de um museu universitário25, o que lhe consolidou uma estrutura de pesquisa acadêmica importante e que já demonstrou seus frutos na reintepretação da História da Arte no Brasil 26. O segundo, certamente central para o argumento que se construirá aqui, diz respeito à vinculação da história institucional do MAC USP à do antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) e à Bienal de São Paulo e, por consequência, à Fundação Bienal de São Paulo. A criação do Museu na USP, em abril de 1963, deveu-se à transferência de parte do acervo do antigo MAM à universidade, ainda em setembro de 1962, resultante da criação da Fundação Bienal de São Paulo, em maio, e sua dissolução, em dezembro daquele mesmo ano. Esses acontecimentos, narrados pela historiografia brasileira em tom polêmico e pleno de conflitos (Amaral, 2006: 238-279; Osório e Fabris, 2008), fizeram do MAC USP o repositório mais importante das principais iniciativas e atividades para divulgação de arte moderna no Brasil até o início da década de 1960. Além de ter recebido um acervo de arte moderna internacional e nacional da maior relevância, sua trajetória na universidade fez dele um espaço privilegiado de divulgação de arte moderna e contemporânea, bem como de encontros de artistas. Como proposto por seu primeiro diretor, Walter Zanini (1963-1978), o MAC USP constituiu-se em um “laboratório de experimentações”, e desde 1964, mediante a criação de programas de exposições voltados a jovens artistas, continuou a atualizar seu acervo angariando a aproximação da produção artística nascente em seu cerne. Pode-se dizer que o MAC USP foi, sobretudo na década de 1970 (anos mais duros de repressão a qualquer forma de manifestação de liberdade, por conta da instauração da ditadura militar no Brasil), um lugar de referência para a troca entre o ambiente artístico brasileiro e o estrangeiro. Assim, à época da publicação do primeiro catálogo geral de seu acervo, Zanini (1973) propunha-se a uma dupla tarefa: de projetar o museu retrospectivamente, por meio do acervo recebido do antigo MAM de São Paulo, atualizando a pesquisa em torno da História da Arte Moderna no Brasil; e Sobre a problemática de se considerar o MAC USP um museu universitário – e não um “museu na universidade” - vejam-se os argumentos de Aracy Amaral (2006: 207-212). Neste texto, a professora Aracy Amaral (então diretora do museu) procura contextualizar o MAC USP dentro da universidade, comparando-o ao modelo norte-americano de museu universitário de arte. No último caso, os acervos são reunidos a partir da instauração de um departamento de artes e de história da arte, e o museu surge como infraestrutura e apoio à pesquisa acadêmica. Amaral aponta para o fato de os museus universitários no Brasil terem sido iniciados a partir de doações de coleções privadas, de modo a garantir sua preservação por via de orçamento público. Ao longo deste artigo, espero poder dar alguns elementos para a reavaliação desta questão. 25

Falo da implantação da carreira docente no MAC USP – seguindo as reformulações propostas pelo Conselho Universitário da USP para todos os museus da universidade – em 2005. Tal decisão emergiu do reconhecimento de um corpo de pesquisadores que já trabalhava com os acervos dos museus da universidade, em atividades que envolviam também a docência e a formação em nível de pós-graduação. No caso do MAC USP, esse procedimento dá origem à Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica, cujos docentes vêm, a partir de sua atividade como pesquisadores, desenvolvendo pesquisas inéditas sobre o acervo do museu. 26


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prospectivamente, ao promover a atualização de seu acervo, com a assimilação das principais tendências da arte contemporânea27. Esse duplo papel, adormecido nas duas últimas décadas, começa a ser resgatado pelo atual diretor, Tadeu Chiarelli (2011), quando o MAC USP ganha nova sede, no Parque do Ibirapuera. Parece oportuno que a pesquisa junto ao acervo reavalie a narrativa de arte moderna projetada a partir do museu, objeto mais fundamental deste trabalho. Reavaliação Crítica e Atualização da Catalogação do Acervo do MAC USP Em 2008, demos início a um projeto de pesquisa cujo objetivo principal era, primeiramente, reavaliar os procedimentos de catalogação do acervo do MAC USP e permitir a atualização de sua base de dados, de modo a se editar nova versão do catálogo geral do acervo do museu. Ao longo de sua existência, o museu havia tido ao menos três ocasiões para documentar seu acervo. Como já mencionado, organizou-se o primeiro catálogo geral do acervo em 1973, que, como o próprio Walter Zanini observa em seu texto de apresentação, resultou mais em um inventário do que em um catálogo de tipo raisonné 28. Já Perfil de um Acervo, organizado por Aracy Amaral (1988), além de inventariar obras incorporadas ao patrimônio do museu até 1986/87, procurou atualizar o conhecimento sobre as principais peças do acervo com uma série de verbetes escritos com a colaboração de vários pesquisadores e autores. O último catálogo geral do acervo do MAC USP, organizado por Ana Mae Barbosa (1992), beneficiou-se em grande parte pela primeira revisão catalográfica do acervo do museu, feita a partir de 1985, com a implantação da Seção de Catalogação. Nessa estruturação, a documentação primordial sobre as obras foi sistematizada pela primeira vez. Dezessete anos depois, e diante do fato de que conjuntos relevantes do acervo jamais haviam sido catalogados29, parecia essencial pensarmos na publicação atualizada do catálogo geral do acervo do museu. Mas o fim do processo, que anteriormente entrevia a publicação do catálogo geral em papel, desde então tem sido revisto e deverá resultar numa ferramenta de consulta on-line, na página de internet do MAC USP. O processo de reavaliar a catalogação do acervo do museu partia do pressuposto de que o inventariamento do acervo não era um procedimento neutro, na medida em que trabalhávamos com categorias bastante distintas, balizadas por paradigmas muito diferentes daquilo que entendemos por arte. O acervo do MAC USP formou-se em um contexto que determina um divisor de águas conceitual importante na História da Arte. Isto é, de um lado, temos objetos de arte produzidos a partir de um conjunto de preceitos modernistas capaz de O primeiro catálogo somava 2.401 obras no acervo do museu, dez anos depois de sua criação na universidade, ante as 1.691 obras recebidas do antigo MAM de São Paulo. 27

Zanini (1973: 5): “O Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo edita este primeiro catálogo com as referências técnicas básicas das obras de suas coleções e obviamente destinado a servir de elemento de apoio à publicação de outros, de tipo raisonné, parciais ou completos.” [grifo meu]. Atente-se também para o fato de Zanini referir-se ao acervo do MAC USP como “coleções”, no plural – o que refletia a realidade do processo de origem do museu na universidade. 28

Caso da coleção conceitual do MAC USP, composta de aproximadamente 1.500 obras, como hoje estima a equipe da professora Cristina Freire, que trabalha alimentando uma base de dados à parte da Seção de Catalogação, devido à necessidade da criação de campos distintos e recatalogação de algumas obras, gerando novo número de tombo. 29

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descrever o que designamos como Arte Moderna; de outro, um segundo período que tem início com o questionamento e a destruição desse conjunto anterior de preceitos, testando os limites da instituição museal, que é o da Arte Contemporânea. Portanto, qualquer critério a ser adotado na descrição de nosso acervo, em um procedimento aparentemente simples – o da constituição de uma ficha catalográfica com o detalhamento técnico das obras –, requer uma discussão conceitual mais profunda, uma vez que as novas práticas artísticas, instauradas sobretudo a partir da década de 1960, passaram a abranger uma gama de suportes que não eram minimamente previstos até então dentro do campo da arte (o vídeo, a publicação de artista, a performance, para citar apenas alguns) 30. Além disso, será preciso também rediscutir, justamente dadas as novas práticas contemporâneas, critérios e metodologias de documentação, conservação e catalogação de acervos não contemporâneos. Em relação à arte moderna, o acervo do MAC USP já nos coloca alguns problemas nesse sentido. Tomemos dois exemplos: “Duke Size” (1946), de Kurt Schwitters e “A Santa da Luz Interior” (1921), de Paul Klee. A obra de Schwitters é descrita como “recortes de papel e papelão sobre papel” no campo “técnica” de sua ficha catalográfica. Se pensarmos no contexto a partir do qual o artista criou e no significado do procedimento de colagem na elaboração de seu trabalho, tal descrição de sua técnica, pretensamente neutra, parece adequar seu gesto e sua proposição à tríade pintura/escultura/gravura, consolidada na grande narrativa da arte moderna. Ao fazermos uma consulta ao arquivo do artista, no Sprengel Museum de Hannover, descobrimos que o termo utilizado no campo “técnica” da ficha catalográfica de obras congêneres é “colagem”, com um campo adicional de descrição de “tipo”, logo abaixo, que as designa como “Merz-Zeichnung”31. No caso de Paul Klee, sua “Santa da Luz Interior” é uma litografia publicada originalmente num álbum de artistas gráficos da Bauhaus (onde Klee era professor), em 1921, com tiragem de 100 exemplares. Tal informação não aparece em nenhum lugar em nossa ficha catalográfica, e mais uma vez perdemos seu contexto de produção32. Há, atualmente, uma plataforma internacional organizada pelo International Council of Museums (ICOM), do qual o MAC USP faz parte, na qual se discute justamente procedimentos de documentação, conservação e catalogação de proposições e obras de arte contemporânea. Disponível em: www.incca.org, para o International Network for the Conservation of Contemporary Art. 30

A terminologia foi criada pelo próprio artista para descrição de suas obras a partir das “Merz-Bilder”, de 1916-17 em diante. No processo de inventariamento e catalogação da obra de Schwitters, efetuada por seu filho Ernst Schwitters, a partir dos anos 1950, e posterior doação de seus arquivos e espólio ao museu de Hannover, optou-se por se manter a referência original. Particularmente no caso da obra do MAC USP, que isto não esteja minimamente presente na ficha catalográfica é de se questionar, pois nosso “Merz-Zeichnung” (literalmente “Desenho Merz”, como é descrito na ficha catalográfica do inventário de Ernst Schwitters) foi doado ao acervo do antigo MAM de São Paulo, por ocasião de sua apresentação na mostra retrospectiva de Schwitters como Representação Nacional alemã, na VI Bienal de São Paulo, em 1961 – momento em que sua obra estava em pleno resgate e que o comissário alemão,Werner Schmalenbach, estava iniciando o trabalho de elaboração do catálogo geral da obra do artista.Vejam-se ainda os modos de descrição de obras congêneres de Schwitters em acervos como o do MoMA, em Nova York. Um “Merz-Zeichnung” ou colagem de Schwitters é descrito tecnicamente como “Cut-and-pasted colored and printed papers on paper with cardstock border” [papéis impressos cortados e colados sobre papel e borda de papelão].Tal descrição serve à adequação das obras de Schwitters à categoria “prints and drawings”, que em português – e a partir do modelo do antigo MAM de São Paulo – chamaríamos de “gravura” (voltaremos a esta questão mais adiante). Disponível em : www.moma.org, Kurt Schwitters. Acesso em 16/01/2012 às 15h43. 31

A litografia foi originalmente publicada em Neue europäische Graphik, 1. Mappe: Meister des Staatlichen Bauhauses in Weimar, 1921. O MoMA, que possui uma tiragem da mesma litografia, optou por adicionar tal informação ao título da obra e descrevê-la tecnicamente apenas como “litografia” ( www.moma.org, Paul Klee). Mas se pensarmos nas discussões recentes sobre a catalogação de publicações de artistas contemporâneos, teremos de rever também os casos modernistas. O recurso à publicação de álbuns de gravuras 32


Ana Gonçalves Magalhães

Outra questão que se apresentou em relação à revisão catalográfica e à própria avaliação do acervo do MAC USP diz respeito às suas “lacunas”. Tal termo está aqui citado entre aspas, pois o trabalho com o acervo do museu tem demonstrado o quanto ele pode ser problemático. Se o MAC USP sofreu, ao longo de sua existência, com a ausência de compreensão por parte das instâncias superiores da universidade em relação a uma política de aquisição de obras – como apontado por Amaral (2006: 238-279) e Chiarelli (2011) –, suas “lacunas” não podem ser tomadas apenas dentro dessa dimensão. Sugiro revê-las aproximando-as da noção de descontinuidade, tal como conceituada por Foucault. Michel Foucault (2008) fez a crítica à história das mentalidades em sua visão do discurso da história enquanto disciplina acadêmica, por via daquilo que os historiadores da escola dos Annales designavam como a “longa duração” – e que, portanto, implicava trabalhar com a noção de continuidade. Ele propõe, então, uma análise da disciplina que pudesse incorporar e interpretar a descontinuidade. Foucault começava analisando as regularidades discursivas, isto é, a elaboração mesma dos procedimentos do historiador, e a formação do objeto do discurso ou o objeto de estudo do historiador. O autor atentava para o fato de como a descrição do objeto levava necessariamente à construção do discurso. Em última análise, Foucault partia da aporia do discurso historiográfico em trabalhar com a noção de descontinuidade, ao mesmo tempo em que ela já estava dada pelo próprio objeto de estudo do historiador. Foucault (2008 : 17) definia assim a noção de descontinuidade: (…) la notion de descontinuité prend une place majeure dans les disciplines historiques. Pour l’histoire dans sa forme classique, le discontinu était à la fois le donné et l’impensable: ce qui s’offrait sous l’espèce des événements dispersés – decisions, accidents, initiatives, découvertes; et ce qui devait être, par l’analyse, contourné, réduit, effacé pour qu’apparaisse la continuité des événements 33.

Sua tese é muito relevante para pensarmos o contexto de um acervo museal, no qual convivemos necessariamente com a descontinuidade e temos de trazer à tona o que Foucault (2008, p. 28-29) chama de “espaços brancos” 34 deixados pelas narrativas de história da arte construídas numa instância extralocal/extramuseu. Trabalhar com o acervo de um museu significa, antes de tudo, confrontar-se constantemente com sua relação com seu território, sua dimensão local, bem como reinterpretar o papel e o lugar dado a determinadas obras e a certos artistas em outros contextos. Portanto, trata-se de um constante exercício de reavaliação da grande narrativa de História da Arte. é bastante frequente no período modernista e também serviu como divulgação de novas práticas artísticas e de circulação das obras. Ainda no acervo do MAC USP, veja-se o caso de “Mãe” (1916) de Karl Schmidt-Rottluff, publicada em Zehn Holzschnitte von Schmidt-Rottluff, em tiragem de 75 exemplares, em 1919. “(...) a noção de descontinuidade tem um papel maior nas disciplinas históricas. Para a história em sua forma clássica, o descontínuo era, ao mesmo tempo, o elemento dado e o impensável: aquilo que se oferecia sob espécie de acontecimentos dispersos – decisões, acidentes, iniciativas, descobertas; e aquilo que devia ser, pela análise, contornado, reduzido, apagado para que aparecesse a continuidade dos acontecimentos.” [tradução da autora] 33

“C’est définir un emplacement singulier par l’extériorité de se voisinages; c’est – plutôt que de vouloir réduire les autres au silence, en prétendant que leur propos est vain – essayer de définir cet espace blanc d’où je parle, et qui prend forme lentement dans un discours que je sens si précaire, si incertain encore.” [“É definir um lugar singular pela exterioridade das vizinhanças; é – mais do que querer reduzir os outros ao silêncio, pretendendo que seu propósito é vão – procurar definir este espaço branco de onde falo, e que toma forma lentamente num discurso que eu sinto tão precário, tão incerto ainda.”]. [tradução da autora] 34

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Nesse sentido, o caso do acervo modernista do MAC USP é exemplar e oferece um campo muito fértil de reflexões, justamente por ser ele um acervo “datado” (Amaral, 2006: 270). Em primeiro lugar, suas obras modernistas foram angariadas e reunidas no processo mesmo de construção de uma história da arte moderna, no qual a crítica formulava os termos de conceituação dos processos criativos em andamento e em que artistas e obras ainda estavam a ser postos à prova do tempo 35. Ele, ao que parece, encontra-se assim inacabado e sugere narrativas em aberto, confrontando-se com a visão exterior de museu, que o coloca sempre como um ente autônomo, quase um não lugar, e de aspecto universal. Situações como essa (local) permitem reavaliar o lugar de “museus-modelo” da História da Arte e questioná-los em sua forma monolítica. Entretanto, o acervo modernista do MAC USP não esteve aberto a narrativas infinitas, uma vez que se constituiu dentro do contexto do modernismo paulista e sua relação com o ambiente internacional, que também tentou estabelecer um modelo local, como veremos. É diante da elucidação do curso dessa narrativa que poderemos também pensar no que ele poderia ser daqui para diante. As Coleções Matarazzo e a Catalogação do acervo do antigo MAM Como já mencionado anteriormente, o processo de transferência do acervo do antigo MAM de São Paulo não foi simples, tendo em vista que resultou de problemas dentro da própria estrutura do antigo museu. A compreensão desses acontecimentos, ao que parece, tornou-se mais clara a partir da implantação dos arquivos das instituições culturais neles envolvidas e a possibilidade de cruzamento da documentação do antigo MAM de São Paulo, dispersa entre elas – o próprio MAM, o MAC e a Fundação Bienal de São Paulo36. Que a transferência do acervo do antigo MAM de São Paulo havia sido iniciada pela doação das Coleções Francisco Matarazzo Sobrinho e Francisco Matarazzo Sobrinho e Yolanda Penteado era notório e bastante mencionado pela historiografia da arte que se ocupou dessas questões. Entretanto, há ainda de se rever como tal acontecimento foi interpretado: em geral, os especialistas tendem a tratar as Coleções Matarazzo como conjuntos privados, que não possuíam relação direta com o acervo do antigo MAM de São Paulo, cuja doação à Universidade de São Paulo parece ter servido como pretexto (forçado) para a efetivação da transferência do acervo do antigo MAM à Universidade. De fato, Se considerarmos que boa parte das obras modernistas que entraram no acervo do museu vem das edições da Bienal de São Paulo, entre 1951 e 1963. ��

Aracy Amaral (1988) e as pesquisas recentes, não publicadas, de Marcelo Mattos Araújo (2002), Regina Teixeira de Barros (2002) e Ana Paula Nascimento (2003). Além disso, encontramos nos fundos do antigo MAM e no fundo Francisco Matarazzo Sobrinho (Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal de São Paulo) documentos que comprovam a dificuldade de seus administradores e diretores em angariar recursos para suas atividades. Desde 1955, à época da III Bienal de São Paulo, havia solicitação de aportes grandes de orçamento governamental, em nível municipal, estadual e federal, para manter as atividades da Bienal e do museu em funcionamento. A separação entre o evento Bienal e o antigo MAM também parece ter sido consequência natural da impossibilidade do museu em operacionalizar a Bienal de São Paulo com sua estrutura e orçamento. No entanto, tal decisão é tomada, talvez diante de algumas orientações e exemplos internacionais do mesmo período. O MoMA, como nos conta Russel Lynes (1973: 385-387), responsável desde sua criação até os anos 1950 pelo envio da Representação Nacional norte-americana para a Bienal de Veneza (e para a Bienal de São Paulo), abre mão dessa função, e um grupo de conselheiros se reúne para a criação do Arts & Artists International – até hoje responsável por promover o concurso que leva à escolha da Representação Nacional norte-americana nesses eventos. 36


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são três os documentos cartoriais de incorporação do acervo do antigo MAM de São Paulo à Universidade, dois deles datando antes mesmo da dissolução do museu e da criação do MAC USP, quais sejam, das doações Francisco Matarazzo Sobrinho e Francisco Matarazzo Sobrinho e Yolanda Penteado. A primeira, que recebeu o número de tombo 1963.1 no acervo do MAC USP, passou à universidade em 3 de setembro de 1962. Quanto à segunda (número de tombo 1963.2), embora o documento cartorial date de 15 de janeiro de 1963, suas obras só foram efetivamente tombadas pela USP em 197637. Entretanto, ao iniciarmos a pesquisa relativa à documentação das primeiras aquisições do casal Matarazzo, ficou claro que as obras ali compreendidas eram parte integrante do acervo do antigo MAM de São Paulo. Mais do que isso, elas haviam sido adquiridas com o fim único de constituir o núcleo inicial do acervo do antigo MAM de São Paulo38, e ao longo da década de 1950, estavam constantemente presentes nas mostras de acervo do museu. Principalmente o conjunto sobre o qual nos detivemos até agora, isto é, o de 71 pinturas italianas adquiridas entre 1946 e 1947, ajudou-nos a estabelecer um percurso mínimo da catalogação do acervo do antigo MAM. Além das fichas catalográficas do museu que haviam sido resgatadas na organização da Seção de Catalogação do MAC USP, a partir de 1985, encontramos ao menos três outros documentos que compreendem o processo de catalogação das obras do antigo MAM, e que serviram de base para a elaboração das fichas catalográficas39. O primeiro deles é uma lista de 15 páginas datilografadas em que vemos a descrição básica das obras compradas entre 1946 e 1947, cuja organização inicia-se pelo sobrenome, seguido do nome do artista, com dados do título da obra, ano, dimensões, técnica, procedência e histórico de exposições40. Os outros dois documentos são duas versões de um livro de tombo do acervo do antigo MAM41. Na primeira versão, o livro de tombo era um fichário, cujas páginas constituíam as fichas catalográficas das obras. Elas encontravam-se A coleção Francisco Matarazzo Sobrinho e Yolanda Penteado, constituindo o total de 19 obras estrangeiras, resultou dos acordos de separação entre Ciccillo e Yolanda. No Fundo Francisco Matarazzo Sobrinho do Arquivo Histórico Wanda Svevo – Fundação Bienal de São Paulo, encontramos três versões de um documento cartorial determinando os termos da divisão das obras entre o casal. Uma das cláusulas da versão final dizia respeito justamente ao usufruto das obras por Yolanda Penteado. Isto é, desde a primeira versão do documento, já em 1959, determinava-se que as obras seriam doadas à USP, mas que Yolanda poderia usufruir delas até sua morte. Ela, no fim das contas, acabou antecipando a passagem das obras à universidade, pois o fez antes de morrer. 37

Cartas dos artistas Mario Sironi e Felice Casorati a Livio Gaetani (Pastas dos respectivos artistas, Seção de Catalogação, MAC USP). Na carta ao conde Livio Gaetani, datada de 23 de outubro de 1946, Felice Casorati diz: “Sono lieto di avere ceduto a un prezzo eccezionale il mio quadro destinato ad un museo [grifo meu] e sopratutto di aver fatta cosa gradita alla signora Margherita Sarfatti alla quale sono devotamente affezionato.” [Estou contente de ter cedido a um preço excepcional o meu quadro destinado a um museu e sobretudo de ter feito algo do agrado da senhora Margherita Sarfatti, a quem sou devotamente afeiçoado]. [tradução da autora]. Casorati está falando da compra do quadro “Cabeça em armardura” (1963.1.41, 1946, óleo/tela), que passou ao acervo do MAC USP como coleção Francisco Matarazzo Sobrinho. 38

Chamava-nos a atenção, de início, que as fichas catalográficas do antigo MAM fossem idênticas às primeiras fichas MAC USP. Percebemos também que as primeiras fichas é que foram usadas para atualizar as informações sobre as obras do acervo, uma vez que os dados iniciais, que eram datilografados, passaram a ser inseridos à mão (à caneta ou mesmo a lápis). Essas fichas é que foram usadas para a revisão catalográfica em 1985, com a elaboração da nova ficha MAC USP em papel. 39

Eva Lieblich, “ESPECIFICAÇÃO DAS OBRAS PERTENCENTES AO ACERVO DO MUSEU: Conforme número de tombo”, c. 1951, Pasta Francisco Matarazzo Sobrinho – Seção de Catalogação; originalmente no FUNDO MAMSP, Arquivo MAC USP. 40

Organizados em fichários, os livros encontram-se hoje na Seção de Catalogação do MAC USP; originalmente no FUNDO MAMSP, Arquivo MAC USP. 41

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divididas a partir dos seguintes critérios:

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a) no primeiro nível: havia uma separação entre o acervo estrangeiro e o acervo brasileiro; b) no segundo nível: havia uma separação dentre os seguintes suportes: pintura, escultura e gravura; c) O terceiro nível de organização, daí, era o de ordem alfabética de so- brenome de artista. Na segunda versão do livro de tombo do acervo do antigo MAM, também montado em um fichário, ele era organizado em dois volumes: o primeiro compreendia as obras de pintura e escultura, e o segundo, as obras em papel – mas sempre respeitando internamente a divisão obra estrangeira e obra brasileira. Voltando à questão do termo “gravura”, nesse contexto, ele designava toda sorte de obra sobre suporte de papel (colagem, desenho, gravura em metal, xilogravura, aquarela, etc.). Tais categorias de suporte são as mesmas utilizadas nas diferentes sessões das edições da Bienal de Veneza, desde sua origem, e, consequentemente, das edições da Bienal de São Paulo, pelo menos em sua primeira década de existência; bem como era por meio delas que se estabeleciam as premiações desses certames. Por fim, lembremos que, em sua origem, o MoMA em Nova York teve sua infraestrutura curatorial e de conservação e documentação organizada a partir dos mesmos preceitos. Ele tinha (e tem até hoje), portanto, um departamento de pintura e escultura, e um departamento de “prints and drawings”. De fato, o MAC USP, de algum modo, preservou a mesma estrutura, se pensamos que nossos laboratórios de restauro foram assim divididos: laboratório de pintura e escultura e laboratório de papel. Diante desses novos documentos e a partir de uma entrevista feita em junho de 2010 com a primeira secretária do antigo MAM, Eva Lieblich Fernandes, foi possível tentar estabelecer uma cronologia do processo de documentação e catalogação das obras do museu. Assim, considerando-se que as aquisições italianas feitas pelo casal Matarazzo, entre 1946 e 1947, são muito bem documentadas, dispúnhamos já de um conjunto de correspondências, telegramas, listas de obras e recibos de galerias italianas que nos permitiu reconstituir boa parte da dinâmica dessas aquisições. Elas se concentraram entre setembro de 1946 e julho de 1947. Além desse material, o caderno de viagem de Yolanda Penteado a Davos, na Suíça, sistematiza as aquisições que ela pessoalmente teria controlado ao final, antes do despacho para o Brasil42. Por fim, e antes do processo de documentação dessas obras dentro do acervo do antigo MAM, há a coluna do crítico paulista Sérgio Milliet no jornal O Estado de São Paulo, que noticia a chegada das obras ao Brasil e sua apresentação à sociedade paulistana, na mansão do casal Matarazzo, como núcleo inicial do acervo do museu a ser criado43. ��

A carta do conde Livio Gaetani (genro de Margherita Sarfatti) a Ciccillo Matarazzo, procedente de Roma e datada de 19 de junho de 1947, sugere que ele e a mulher Fiammetta entretiveram Yolanda, quando de sua passagem pela capital italiana. Fundo MAMSP, Caixa 006, Pasta 040, Arquivo MAC USP. O caderno de viagem de Yolanda Penteado se encontra na Seção de Catalogação do MAC USP. 43

Sérgio Milliet, “O Museu de Arte Moderna”, O Estado de São Paulo, 04 de março de 1948 e “O Museu de Arte Moderna”, O Estado de São Paulo, 10 de setembro de 1948, Fundo Rodrigo Mello Franco de Andrade / Inventário / Museu de Arte Moderna (São Paulo), Caixa 756, Arquivo IPHAN, Rio de Janeiro. Na segunda coluna, Milliet escreve: “Com relação ao primeiro item, pode-se afirmar que o núcleo inicial, formado pelas doações do casal Francisco Matarazzo Sobrinho – Iolanda Penteado, já permite dar ao público uma excelente idéia da pintura contemporânea francesa, italiana e brasileira.”


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A entrevista com Eva Lieblich e o reconhecimento de sua autoria da lista datilografada, mencionada anteriormente, permitiram sugerir uma data para o documento: fevereiro de 1950. A depoente considerou como a data de produção do documento uma inscrição à mão, de sua autoria, ao final dele.Todavia, o documento contempla informações sobre exposições em 1951. Como Eva Lieblich trabalhou no antigo MAM até a chegada de Lourival Gomes Machado, tendemos a considerar que ele seja mesmo de 1951. Em seguida, encontramos nos fundos do antigo MAM uma série de documentos – sobretudo memorandos – produzidos pela segunda secretária e futura documentarista do museu, Ethelvina Chamis, que nos dão notícias de empréstimos das obras para exposições, controles mais ou menos sistemáticos do inventário do acervo e procedimentos de conservação. No entanto, entre 1951 e 1960, não encontramos na documentação a correção à lista feita por Eva Lieblich, nem tampouco fichas ou outras formas de catalogação. Tendemos a pensar, diante da semelhança e correções feitas a lápis nos livros de tombo, passadas a limpo na ficha catalográfica MAM, que os livros foram elaborados entre 1960 e 196244. Sejam as duas versões do livro de tombo, sejam as fichas MAM, esses documentos respeitam a organicidade da lista originalmente elaborada por Eva Lieblich, uma vez que o número de tombo das obras no antigo MAM é gerado a partir do número sequencial nela atribuído – mesmo fora da ordem cronológica. Outro aspecto relevante é a categorização das obras tomando por base o suporte (como visto anteriormente) e sua nacionalidade: não se designam as inúmeras nacionalidades dos artistas do acervo em seu número de tombo, mas a separação entre acervo ESTRANGEIRO e acervo BRASILEIRO é um dado importante. Os números de tombo do acervo no antigo MAM, portanto, são assim codificados: PE = Pintura Estrangeira; PB = Pintura Brasileira; EE = Escultura Estrangeira; EB = Escultura Brasileira; GE = Gravura Estrangeira (isto é, qualquer obra sobre suporte de papel); GB = Gravura Brasileira (idem). Essas abreviações antecedem o número da obra no acervo do antigo MAM. Por exemplo, a obra “A Adivinha” (1924) do italiano Achille Funi, adquirida pelo casal Matarazzo em Milão, em 1946-47, aparecia em sexto lugar na lista de Lieblich. Nos livros de tombo do antigo MAM, bem como na ficha catalográfica MAM, ela recebe, portanto, o número de tombo: PE-006. O que parece curioso é que tal divisão entre “estrangeiro” e “brasileiro” persiste até a publicação do primeiro catálogo geral do acervo, já no MAC USP (Zanini, 1973), apesar de as obras receberem nova numeração de tombo. Ela 44

Uma vez que contemplam, por exemplo, o bronze de “Formas Únicas de Desenvolvimento no Espaço” de Umberto Boccioni. Embora adquirido por Matarazzo da viúva de Marinetti, Benedetta Marinetti (então proprietária dos originais de Boccioni), na Bienal de Veneza em 1952, o gesso da obra jamais esteve em depósito no antigo MAM, e uma tiragem em bronze foi realizada em 1960 para que fosse incorporada ao acervo do museu. Efetivamente, o gesso de Boccioni foi transferido para o MAC USP como parte da Coleção Francisco Matarazzo Sobrinho, e o bronze como Coleção MAMSP. Pasta do artista, Seção de Catalogação, MAC USP.

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agora enfatizava a origem da doação da obra e a história de sua entrada no acervo do museu na universidade. Tal sistema, embora bastante usual nos procedimentos de catalogação de acervos, mais uma vez marcava os recortes entre as coleções Matarazzo e a coleção MAMSP.

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Assim, o que esse conjunto inicial de pinturas italianas adquirido entre 1946 e 1947 nos revelou é uma dupla interpretação desses objetos, a sobreposição – se assim podemos dizer – de seu percurso, e a sobrevivência de uma separação entre aquilo que a historiografia brasileira considerou sempre como arte internacional (ou “estrangeira”) e como arte brasileira. Ou seja, os números de tombo dessas obras no antigo MAM e no MAC USP refletem duas camadas de categorização: no antigo MAM, sua descrição pelo suporte (pintura, escultura e gravura) parecia ser um dado fundamental na interpretação desses objetos, determinando para eles, em cada categoria, os paradigmas a partir dos quais eles eram entendidos como arte; no MAC USP, seu pertencimento a um conjunto maior – o lote da doação – imprime um dado a mais a esses objetos, que sugere que eles sejam vistos em relação a outras obras de suportes diversos e nacionalidades distintas. Isto é, se o contexto para a descrição (e aí como nos sugere Foucault) da interpretação de nossos Gino Severini, ou nossos Ardengo Soffici, ou da “Natureza-morta” de Giorgio Morandi da Coleção Francisco Matarazzo Sobrinho, no antigo MAM, era a pintura, no MAC USP, elas necessariamente tinham uma história comum e nos levavam (e de fato levaram) para outro momento, que era a história de sua recepção e da relação com o meio artístico italiano com o modernismo brasileiro. Ainda no que diz respeito a um segundo nível de descrição dessas peças como “pintura estrangeira” ou “pintura brasileira”, essa divisão persistiu e deve ser analisada também como um dispositivo conceitual de apreensão desses objetos pela historiografia brasileira. Sua persistência é de chamar a atenção, e os catálogos gerais do MAC USP que procuraram lhe dar alguma interpretação ou inteligibilidade são aqueles que justamente fazem essa separação. Embora Walter Zanini (1973, p. 293-451) cautelosamente apresente o catálogo geral como uma base de inventário (e as obras apareçam numa lista organizada por ordem alfabética de sobrenome do artista, independentemente de sua origem – brasileira ou estrangeira) a parte final de reproduções de obras importantes do acervo está dividida entre “Reproduções de Obras de Artistas Estrangeiros” e “Reproduções de Obras de Artistas Brasileiros”. O catálogo organizado por Amaral (1988) também apresenta as obras do MAC USP dentro desta divisão: “Acervo Internacional” e “Acervo Nacional”. Tal organização, aparentemente neutra, não parece ser assim e precisaria ser revista como uma questão conceitual importante para a historiografia brasileira. Em primeiro lugar, há de se considerar que o momento mesmo de formação de nossa experiência modernista se deu no contexto de afirmação do conceito de identidade nacional, no entreguerras do século XX que, por sua vez, caracterizou o chamado ambiente do “Retorno à Ordem”. Aquele período foi marcado pela rejeição a toda sorte de internacionalismo e experiências artísticas transnacionais, pois ao mesmo tempo significou o banimento, em determinados territórios, das vertentes vanguardistas. Basta pensarmos em alguns exemplos de exposições e instituições de promoção da arte moderna atuantes na Europa, naquela época, e


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como elas trataram essa questão. Tanto as edições da Bienal de Veneza quanto as exposições universais corroboraram para a afirmação das identidades nacionais, pois seu modelo de organização é o do pavilhão nacional. Além disso, e especificamente no caso da Bienal de Veneza, os prêmios-aquisição nas categorias pintura, escultura e gravura (em italiano,“bianco nero”) também estavam divididos em prêmios nacionais e prêmios internacionais – modelo depois também adotado para os prêmios regulamentares da Bienal de São Paulo, ao longo da década de 1950. Mesmo no pós-II Guerra Mundial, quando há o resgate das vanguardas do início do século XX e tende a se valorizar precisamente seu caráter internacional (sobretudo no caso das tendências abstratas e do surrealismo e dada), essas experiências aparecem, no contexto das grandes mostras internacionais, circunscritas ao pavilhão nacional. No caso da Bienal de Veneza, em seu processo de redenção dos anos negros do Fascismo, a partir de 1948, há um programa sistemático de apresentação das tendências vanguardistas dentro de recortes nacionais. É o caso, por exemplo, das mostras retrospectivas de Pontilhismo francês e de Divisionismo italiano, na Bienal de Veneza de 1952, que são colocadas lado a lado de forma que pudessem ser percebidas as especificidades de cada caso45. A Bienal de São Paulo procurou seguir essa tendência, ao tentar negociar com as representações nacionais a vinda de mostras importantes de vanguardas históricas, ao longo da década de 195046.

Achille Funi, “A Adivinha”, 1924, óleo/ madeira, Coleção Francisco Matarazzo Sobrinho, MAC USP, Foto: Rômulo Fialdini

45

Catálogo geral da XXVI Biennale di Venezia, 1952 texto introdutório de Rodolfo Pallucchini (sobretudo p. XVIII-XXIII) e texto de Marco Valsecchi sobre o Divisionismo italiano (p. 390-394). É provável, inclusive, que a aquisição de nosso Giacomo Balla, “Paisagem” (1907/08, óleo/tela, Coleção Francisco Matarazzo Sobrinho) – um quadro típico da fase divisionista do artista – tenha sido adquirido por Matarazzo nessa ocasião. 46

A historiografia brasileira é unânime em reconhecer o papel didático que essas mostras tiveram, e que elas estão associadas principalmente à gestão de Sérgio Milliet como diretor artístico do antigo MAM (1953-1957). Por exemplo, na II Bienal de São Paulo, as retrospectivas do cubismo francês e do futurismo italiano.

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O que esses elementos revelam, portanto, é que houve um modelo de gestão deste acervo modernista que parece ser mais intrinsecamente vinculado às noções de arte moderna em circulação nos anos 1940-50, e que talvez não seja completamente exterior – como quer a historiografia brasileira até então – ao meio artístico brasileiro.

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Esses são os fundamentos que puderam ser apontados a partir do estudo do primeiro conjunto de obras adquirido pelo casal Matarazzo na Itália. Dentre as 448 obras brasileiras e estrangeiras das Coleções Matarazzo, é possível distinguir programas diferentes de aquisição – isto é, baseados em premissas diversas daquilo que se entende por arte moderna. Nesse sentido, elas são terreno fértil para o estudo do debate da questão do realismo e da pintura social, no final da década de 1930 e início da década de 1940; e a chegada do debate sobre o abstracionismo e a arte concreta entre nós. Há quatro conjuntos de aquisições que marcam esses elementos. Os dois primeiros foram os de obras compradas entre 1946 e 1947, na França e na Itália, por intermédio, respectivamente, do pintor Alberto Magnelli e da crítica Margherita Sarfatti. Os dois outros, também adquiridos na França e na Itália, entre 1951-52 (ou seja, após a criação da Bienal de São Paulo) são marcados por outras tendências da arte moderna. Sem ter ainda chegado a fundo na análise do perfil de todas as aquisições Matarazzo, podemos já rever alguns pontos da história da criação do antigo MAM de São Paulo. A historiografia é unânime em citar o modelo norte-americano do MoMA como aquele que serviu de base para a criação dos dois museus congêneres no Brasil (de São Paulo e do Rio de Janeiro). Entretanto, apesar da presença de Nelson Rockefeller no Brasil em 1946 (no mesmo momento em que é presidente do MoMA e secretário de Estado norte-americano) e a doação de 13 obras para o incentivo à criação dos museus de arte moderna em São Paulo e no Rio de Janeiro, seja o conjunto de aquisições já estudado, seja a cultura institucional que se estabeleceu pelo menos no antigo MAM de São Paulo, parecem tomar mais o ambiente europeu – italiano, precisamente – do que o ambiente norte-americano como modelo. As Obras Italianas das Coleções Matarazzo Trataremos agora das primeiras aquisições do casal Matarazzo, realizadas entre 1946 e 1947, na Itália. A partir da revisão catalográfica desse primeiro lote de compras, conseguimos estabelecer o número de 71 obras adquiridas por Matarazzo em galerias milanesas e romanas, ou diretamente de artistas ou colecionadores italianos no período. A historiografia brasileira que procurou tratar dessas aquisições aponta a crítica italiana Margherita Sarfatti (1880-1961) como a consultora do casal Matarazzo para tanto47. Na documentação das aquisições italianas feitas entre 1946 e 1947, de fato, há um telegrama de Sarfatti para Matarazzo, em que ela orienta o industrial a entrar em contato com seu genro, na Itália48. Por outro lado, há uma série de 47 48

Testemunho, inclusive, dado por Yolanda Penteado (1976) em sua autobiografia.

Margherita Sarfatti [telegrama] 16 de setembro de 1946, Montevidéu [para] Francisco Matarazzo Sobrinho, São Paulo. 1f. Seção de Catalogação MAC USP - Pasta MAMSP-MAC.


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telegramas do secretário de Ciccillo na Metalúrgica Matarazzo, datados ainda do primeiro semestre de 1946, dirigidos a galerias milanesas, solicitando obras disponíveis para compra. E o primeiro deles é dirigido ao Studio di Arte Palma, cujo diretor era Pietro Maria Bardi. Amaral (1988) destaca ainda a atuação de Enrico Salvatore Vendramini, embora nada se saiba sobre ele. A documentação hoje em depósito no MAC USP (Seção de Catalogação e Arquivo), e seu cruzamento com outros arquivos aqui e na Itália, não nos disse muito sobre esse personagem. É certo que algumas obras foram compradas por ele, que parecia submeter sua lista de aquisições ao genro de Sarfatti, o conde Livio Gaetani. Além disso, é possível que houvesse uma ligação dele com Pietro Maria Bardi. Margherita Grassini Sarfatti era jornalista e crítica de arte, de proeminente família judia vêneta. Em 1902, depois de se casar com o advogado Cesare Sarfatti, fixa residência em Milão, onde convive com um ciclo de artistas e intelectuais de vertentes socialistas e colabora com o jornal Avanti!, no qual, a partir de 1909, publica uma coluna sobre arte. Em 1912, conhece Benito Mussolini, com quem inicia uma relação amorosa que duraria até 1933. Como crítica de arte, é fundamental seu papel na criação do grupo Novecento, em 1922. O grupo se reformula em 1925, e passa a ser conhecido como Novecento Italiano. Em 1924, dedica-se a escrever a biografia de Mussolini, Dux, e no ano seguinte assina o Manifesto degli Intteletuali Fascisti. Com a aproximação de Mussolini ao governo de Hitler, e a publicação das Leis Raciais na Itália, em 1938, Sarfatti é obrigada a deixar o país. Entre 1939 e 1947, Sarfatti viveu entre a Argentina e o Uruguai. Na literatura internacional, pouco se sabe sobre suas atividades na América Latina e seus contatos com o meio artístico latino-americano49. No caso argentino, tais relações já começaram a ser analisadas (Gutman, 2006), principalmente a partir do contexto de uma exposição do grupo Novecento Italiano, em Buenos Aires, ocorrida em 1930. De fato, as obras compradas na Itália compõem um panorama da arte moderna italiana entre 1920 e 1940, no qual domina o «Novecento Italiano», definido como uma arte de caráter figurativo em que a noção de realismo retoma certos traços de uma arte dita clássica que deveria guiar o estilo dos artistas reunidos sob este rótulo. Se o termo «Novecento Italiano» havia sido usado por Margherita Sarfatti, a partir sobretudo de 1926, para denotar as novas tendências daquilo que ela chamava de «classicità moderna», este tomou logo uma dimensão nova, mais oficial, no contexto de uma política sistemática de promoção da arte moderna italiana representando o regime fascista no estrangeiro. A partir de 1927, uma série de exposições nas diversas capitais européias – começando por Paris – se empenha assim em popularizar a arte e os artistas italianos desse período, resultando em aquisições de obras para coleções públicas50. Liffran (2009) apenas menciona o exílio da crítica entre a Argentina e o Uruguai, e Cannistraro & Sullivan (1993: 531), que cita o fato de Ciccillo Matarazzo a ter contratado para adquirir obras na Itália. Nos dois casos, o período de exílio é o menos estudado, e seu envolvimento com as aquisições Matarazzo é apenas citado e, mesmo assim, faz-se uma confusão entre o antigo MAM e o MASP (Liffran, 2009: 713). 49

Exemplares dos catálogos dessas exposições podem ser encontrados, hoje, no Fundo Margherita Sarfatti do Museo d’Arte Moderna e Contemporanea di Trento e Rovereto, Rovereto, Itália. Chamo a atenção para o catálogo da exposição 22 Artistes Italiens, na Galeria Berheim Jeune & Cie, em 1932, com texto de apresentação de Waldemar George. Para tal mostra, o galerista e colecionador Vittorio Barbaroux, então proprietário da Galleria Milano, cedeu parte de seu acervo. Doze obras foram adquiridas pelo colecionador Carlo Frua de Angeli (membro do Comitê França-Itália desde 1929) para doação ao estado francês. Retomaremos, adiante, a história dessas aquisições. 50

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O período dominado pela noção de arte moderna italiana promovido por Margherita Sarfatti termina precisamente com a exposição «Novecento Italia-

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no» que teve lugar em Buenos Aires, na Argentina, e em Montevidéu, no Uruguai, em 1930. Embora a mostra não tenha sido realizada no Brasil, ela permitiu os primeiros contatos oficiais dos intelectuais e dos artistas brasileiros com Margherita Sarfatti, que esteve no Rio de Janeiro, em São Paulo e em cidades históricas de Minas Gerais, antes de sua chegada a Buenos Aires. A visita de Margherita Sarfatti ao Brasil rendeu ao menos três artigos seus: “Paesaggi e Spiritii di Brasile” (SARFATTI, 1930a), “L’Arte Coloniale nel Brasile” (SARFATTI, 1930b) e “La Povertà delle Terre Ricche” (SARFATTI, 1930c). João Fabio Bertonha (2001,p. 31) lembra ainda outro artigo de Sarfatti, publicado em 1931, e sugere sua visita ao Brasil como observadora e representante oficial do governo fascista italiano. De fato, alguns jornais de 1930 noticiam sua chegada no navio Conte Verde, ao lado de um herói italiano da I Guerra Mundial (Enio Bucchi). Ela é recebida também como mãe de um herói de guerra – seu filho Roberto Sarfatti, morto prematuramente nos Alpes em 1917, inspirou a criação da mais alta medalha de honra do exército fascista, em 1922 51. Há ainda uma série de cartas trocadas entre ela e seu segundo filho, Amedeo Sarfatti (que também exilou-se no Uruguai nos anos em que a mãe está na América do Sul), cuja primeira estadia no Brasil ocorreu entre novembro de 1926 e maio de 1927, como funcionário da instituição financeira Assicurazioni Generali , para montar as sucursais da empresa em São Paulo e no Rio de Janeiro. Essas correspondências sugerem duas coisas importantes: teria sido ele, Amedeo, o primeiro a intermediar a relação da mãe com um editor brasileiro para a publicação da versão brasileira de sua biografia de Mussolini (Dux); ele ainda alerta a mãe sobre a falta de habilidade/interesse do embaixador italiano no Brasil em propagar as ideias fascistas, e que tal fato precisava ser levado ao conhecimento de Mussolini. Considerando-se o acesso privilegiado que Sarfatti tinha a Mussolini, é difícil não pensar que as informações dadas por Amedeo não tivessem contribuído para a nomeação de um novo embaixador italiano no Brasil, pró-fascista, isto é, o embaixador Attolico, em 1927. Além disso, a partir de 1928, marca-se a chegada ao Brasil dos “cônsules fascistas” (Bertonha, 2001, p.112-117), em especial a figura de Serafino Mazzolini, novo cônsul de São Paulo, herói da I Guerra Mundial e da Marcha sobre Roma. Finalmente, a visita de Sarfatti parece fazer parte de um programa maior de propaganda do fascismo no Brasil, a partir de 1930, com a vinda de fascistas ilustres, culminando com o voo espetacular feito por Italo Balbo, que terminou em território brasileiro, em 1931. Mas já em meados da década de 1920 é possível acompanhar a presença de alguns artistas brasileiros no ambiente milanês e no grupo em torno de Margherita Sarfatti. É o caso de Hugo Adami (que participou da primeira exposição do Novecento Italiano no Palazzo della Permanente em Milão, em 1926) e Paulo Rossi Osir (formado na Academia Brera na década de 1910 e retornado a Milão em 1927). O último, como já pesquisado na historiografia brasileira, desempeSobre sua visita ao Brasil, cf. por exemplo,“Conhecida escriptora italiana chegou ao Rio, a bordo do ‘Conte Verde’”, Correio da manhã, 21 de agosto de 1930 – recorte encontrado no Fundo Margherita Sarfatti, Museo di Arte Moderna e Contemporanea di Trento e Rovereto, Itália. 51


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nhará papel chave na criação do grupo Santa Helena, em São Paulo, em 1934, ao lado do artista italiano Vittorio Gobbis, bem como na formação do Salão de Maio e da Revista do Salão em 1937 Maio e da Revista do Salão em 1937. Rossi Osir identificou um estilo de valores próximos dos que eram promovidos pelos artistas reagrupados em torno de Sarfatti, dentro de um grupo de pintores que compartilhava os ateliês no Palácio Santa Helena, no coração de São Paulo, em 1934, e do qual participavam os artistas Alfredo Volpi e Fulvio Pennacchi, de origem italiana. A exposição das obras desse grupo de artistas no Salão de Maio de 1937 foi comentada pelo crítico Mário de Andrade em uma série de artigos, seguidos por resenhas de Sérgio Milliet. Milliet, por exemplo, utilizou uma terminologia típica do contexto italiano dos anos 1930 para definir o grupo Santa Helena (MAGALHÃES, 2010). O primeiro artigo de Mário de Andrade os nomeou «Família Artística Paulista», a partir de uma sugestão de Paulo Rossi Osir, que os via como a versão brasileira da «Famiglia Artistica Milanesa» - expressão emprestada das exposições organizadas pelos sindicatos fascistas na Itália52. A coleção comprada na Itália para o antigo MAM tem, portanto, uma relação direta com o meio artístico brasileiro dos anos de 1930, e aparece como o produto das trocas que se estabeleceram no entreguerras entre os artistas e críticos brasileiros e o meio artístico italiano. Mais precisamente, ela foi concebida, mesmo no contexto do pós-guerra, em referência às coleções privadas de arte moderna italiana, cuja promoção havia sido assegurada por uma política cultural colocada em prática pelo ministro da Educação Nacional Italiana, Giuseppe Bottai (1939), com o objetivo de apoiar a formação das coleções privadas de arte moderna italiana para alimentar as coleções públicas daquele país. Essa política parece caracterizar uma segunda fase de promoção da arte moderna italiana pelo regime fascista .

Virgilio Guidi,“Pintores ao ar livre”, 1919, óleo/tela, Col. Francisco Matarazzo Sobrinho, MAC USP; Foto: Rômulo Fialdini Para ampla análise das relações entre o Grupo Santa Helena e o Novecento Italiano, veja-se Chiarelli (1995).Vejam-se ainda Paim (2002) e Ribeiro (1995). 52

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Além dos nomes, as obras escolhidas para a coleção Matarazzo reverberam de imediato a linguagem plástica divulgada por via da noção de “Novecento Italiano”, visto que, em alguns casos, parecem ter sido compradas expressamente porque havia outras obras desses artistas muito próximas que tinham sido exibidas nas mostras internacionais e oficiais do regime fascista no período. Um bom exemplo é “Pintores ao ar livre” (1919) de Virgilio Guidi, adquirida para a coleção Matarazzo. Outras versões apareceram em mostras como a Bienal de Veneza ou a Quadriennale di Roma, nos anos 1930. Também são notáveis as semelhanças entre obras adquiridas por Matarazzo e obras dos mesmos artistas que se viam, naquele momento, em representativas coleções privadas italianas. É o caso da coleção do galerista Vittorio Barbaroux, de Milão – exposta em 1947 em Buenos Aires -, do também galerista Carlo Cardazzo, de Veneza, e homens da elite milanesa, cuja atuação como patronos das artes resultou, mais tarde, em doações de suas coleções a acervos públicos italianos. Um caso interessante é o da coleção Boschi Di Stefano (Garberi, 1974). O casal Antonio Boschi e Mariedda di Stefano formou uma coleção significativa do dito “Novecento Italiano” a partir de 1927, adquirindo obras importantes, como uma grande composição de gladiadores de Giorgio de Chirico (anteriormente na coleção de Léonce Rosenberg). No pós-guerra, eles continuam a acompanhar a evolução da arte italiana, e (como Matarazzo) adquirem obras dos primeiros abstratos italianos e, mais tarde (anos 1960), de artistas conceituais italianos. Assim, as coleções Boschi Di Stefano e Matarazzo realmente se aproximam muito e refletem o espírito de uma época e certa noção de modernismo na Itália, que se construiu dos anos 1920 até a década de 1960. Mas há de se marcar uma diferença fundamental entre esses dois colecionadores: Antonio Boschi e sua mulher eram realmente aficionados de arte e constituíram, desde sempre,

Ottone Rosai, “Estalagem”, 1932, óleo/tela, Col. F.Matarazzo Sobrinho, MAC-USP, Foto: R. Fialdini


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uma relação de proximidade muito forte com os artistas que colecionavam; já Matarazzo organizou “sua” coleção com o fim preciso de criar o antigo MAM, no quadro de um projeto maior da elite paulistana, de se afirmar cultural e politicamente como ponta de lança da cultura brasileira no processo de modernização do país. O aprofundamento da pesquisa recentemente levou à descoberta de pelo menos seis obras da coleção Matarazzo que provêm diretamente da coleção de Carlo Cardazzo. Além das fotografias da casa e da galeria Il Cavallino (Barbero, 2008), onde pudemos localizar as obras em questão, há uma troca de correspondência entre o galerista/colecionador e o artista Arturo Tosi que confirma o envolvimento de Cardazzo com as aquisições Matarazzo53. Esse dado é bastante relevante em relação ao perfil do conjunto de obras adquiridas. Carlo Cardazzo, assim como o casal Boschi Di Stefano, também começa a formar sua coleção no final dos anos 1920 e início da década de 1930 (Fantoni, 1996). Sobretudo a partir de 1931, quando se torna amigo próximo do pintor Giuseppe Cesetti, Cardazzo reúne uma coleção notável, guiado por seu amigo pintor, que serviu muitas vezes de intermediário das aquisições – como no caso de “Il Bottegone” [Estalagem] (1932) de Ottone Rosai, hoje na coleção Matarazzo, adquirida por ele diretamente do artista. Cardazzo foi antes colecionador e abriu sua primeira galeria (Il Cavallino) em Veneza, em abril de 1942, depois do enorme sucesso alcançado por sua coleção em duas mostras de destaque no ano anterior. Uma seleção de 100 obras de sua coleção foi exposta em abril de 1941 na Galleria d’Arte di Roma, e depois exibida numa grande mostra de coleções privadas em Cortina d’Ampezzo, no norte da Itália54. Nas duas ocasiões, “Il Bottegone” de Ottone Rosai foi exibido. Cardazzo recebeu um prêmio do Ministério de Educação Nacional pela alta qualidade de sua coleção e por suas iniciativas55. A coleção Cardazzo é uma das várias coleções privadas do período que viriam a ser mostradas ao público na Galleria d’Arte di Roma, entre 1940 e 1942, assim como a coleção do advogado Rino Valdameri56 - da qual também provém, ao menos, “A Madalena” (1929) de Piero Marussig, hoje na coleção Matarazzo. A gestão da Galleria d’Arte di Roma foi, no início dos anos 1930, entregue a Pietro Maria Bardi pelo Sindicato Fascista dos Artistas de Roma, e seu sentido era, efetivamente, a promoção da arte moderna italiana, tal como comprova seu programa de exposições até os anos 1940. Ao observarmos a atividade desses colecionadores e o perfil de suas coleções, encontramos certamente forte semelhança em relação ao conjunto adquirido por Matarazzo entre 1946 e 1947. Mas o fato de um conjunto significativo advir da coleção Cardazzo distingue-a das demais, até porque também A correspondência entre Arturo Tosi e Carlo Cardazzo foi consultada no Arquivo da Galleria Il Cavallino,Veneza, em maio de 2011. 53

Para uma análise sobre a mostra de Cortina d’Ampezzo e as exposições de coleções privadas italianas no contexto da Galleria d’Arte di Roma, veja-se Giacon (2005). 54

A repercussão da mostra da coleção Cardazzo na Galleria d’Arte di Roma é enorme, haja vista o número de artigos em jornais e revistas dedicados a ela. Cf., por exemplo, Attilio Crespi, “La Collezione Cardazzo (con 9 Illustrazioni)”, Emporium: Rivista Mensile Illustrata d’Arte e di Cultura, anno XLVII, no. 6, vol. XCIII, junho, 1941, pp. 283-293. 55

Também bastante comentada pela imprensa do período. “A Madalena” será escolhida para ilustrar álbum dedicado a um panorama da arte moderna italiana, organizado pela famosa Galleria Il Milione. Barbaroux & Giani (1940), tavola 86. ��

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tal coleção, em sua origem, tem suas particularidades. Isto talvez provenha do fato de Cardazzo haver constituído sua atividade de colecionador e editor em Veneza, cujo paradigma maior de divulgação de arte era a Bienal Internacional de Arte. Ao tratar do contexto de sua atividade, os especialistas assinalam o papel fundamental que Cardazzo representou na retomada de um projeto que havia se iniciado nos anos 1910/20, de promoção da arte moderna italiana, por via da doação da duquesa Felicita Bevilacqua La Masa do Palazzo Ca’ Pesaro à prefeitura de Veneza. Um elemento importante a ser discutido no contexto da coleção Matarazzo, bem como no ambiente que ela reflete é o que exatamente ela exprime como “Novecento Italiano”. O termo, inicialmente criado por Margherita Sarfatti para designar um grupo de artistas que havia retomado valores fundamentais da arte clássica mediterrânea (italiana), mediante a reinterpretação de alguns mestres importantes do Renascimento Italiano, nos anos 1930 ganha outra dimensão. Se Sarfatti havia concebido um projeto de movimento artístico que viria a refletir a Nova Itália e se tornar a arte oficial do regime fascista, o que acontece, de fato, é outra coisa. Isto é, a partir de 1930, com a realização da última mostra por ela organizada, em Buenos Aires, depois de intensa campanha em várias capitais europeias, seu projeto passa a ser atacado pela alta cúpula fascista, em especial na figura do ideólogo Roberto Farinacci. Sarfatti declina a passos galopantes, começando pela perda de seu posto como colunista do jornal de Mussolini, e aos poucos sua participação é negada nas comissões de organização de todas as mostras oficiais do Regime, e sua voz de crítica de arte não pode mais ser ouvida em nenhum veículo de comunicação italiano (Liffran, 2009). Esse período culmina, portanto, com seu exílio na América do Sul (entre Montevidéu e Buenos Aires), momento também das aquisições Matarazzo. Ao mesmo tempo, e no contexto da criação da exposição nacional oficial do regime fascista, isto é, a Quadriennale di Roma, em 1931, bem como nas mostras promovidas sobretudo a partir de 1929 pelo Regime no exterior, o termo “Novecento Italiano” circula e é usado para designar a nova arte italiana, certamente, mas em sentido muito mais frouxo, que incluía, por exemplo, uma participação de aerofuturistas (de quem Martinetti permanecia sempre como porta-voz). Ou seja, o que Margherita Sarfatti havia concebido como “Novecento Italiano” era uma pintura bastante construída, de composição muito equilibrada, e que, de qualquer modo, refletia sua longa relação com o grande centro propagador das ideias modernistas (Paris) e com artistas internacionais, mesmo os vanguardistas. No fim das contas, o que lhe importava era muito mais a qualidade das obras, que se retraçava justamente pela relação que esses artistas mantinham com a grande tradição da arte. No que concerne à noção de “Novecento Italiano” em circulação nos anos 1930, a coleção Matarazzo apresenta ainda algumas afinidades com as coleções de arte italianas doadas à França no mesmo período (Fraixe, 2010). No verão de 1932, uma doação feita oficialmente pelo industrial milanês Carlo Frua de Angeli permitiu ao Museu das Escolas Estrangeiras Contemporâneas (Jeu de Paume) acolher 12 telas expostas pouco tempo antes na galeria Georges Bernheim, com a colaboração da galeria do milanês e também colecionador Vittorio Barbaroux: a sala italiana que havia sido aberta no final do ano reunia ao lado do núcleo histórico do Novecento (Funi, Borra, Marussig, Sironi) o grupo dos chamados Italianos de Paris (como Campigli, De Chirico, De Pisis e Tozzi).


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Piero Marussig, “A Madalena”, 1929, óleo/tela, C. Francisco Matarazzo Sobrinho, MAC USP; Foto: R.Fialdini

Renato Guttuso, “Natureza-morta com Lâmpada”, 1940, óleo/madeira, Coleção Francisco Matarazzo Sobrinho, MAC USP, Foto: Rômulo Fialdini


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Essa doação parece abrir uma década de atividades de trocas culturais entre a França e a Itália, seladas a partir do Comitê França-Itália, cujo foco era o debate em torno de uma raiz latina comum. Criado às vésperas da Primeira Guerra Mundial, em seguida adormecido como organismo paradiplomático, o Comitê França-Itália retoma suas atividades em 1929 para favorecer uma aproximação cultural entre esses dois países. Em 1933, o conde Emanuele Sarmiento, encarregado da propaganda do comitê, ofereceu ao Museu de Grenoble 20 quadros dos chamados Italianos de Paris (sobretudo De Pisis e Tozzi), mas também dos aerofuturistas Fillia e Prampolini. Seguiu-se então a dupla exposição de arte italiana antiga e moderna apresentada no Petit Palais e no Jeu de Paume em setembro de 1935, para celebrar os acordos entre Pierre Laval e Benito Mussolini. Resultam delas duas doações que selaram a amizade franco-italiana. As doações sucessivas permitem medir o papel do Comitê França-Itália dentro da nova política cultural e também ver como a ideia de latinidade foi testada em larga escala dentro do domínio das artes visuais: a doação Sarmiento à cidade de Paris, composta de mais de 70 peças, compreendia assim os artistas da Escola de Paris e os artistas italianos, demonstrando a superioridade dos últimos ao desenhar além das fronteiras os contornos de uma nova arte latina supranacional (Fraixe, 2011). É necessário, então, distinguir dois momentos na afirmação dessa arte “clássica” e “latina/mediterrânea”, entre as décadas de 1930 e 1940. No primeiro momento, parece haver um investimento significativo de promoção da nova arte italiana internacionalmente, por meio das inúmeras mostras organizadas pelas instituições oficiais do país – tal como a Bienal de Veneza, que é responsável por uma série delas – e que resultariam, também, em doações oficiais importantes (caso das doações Sarmiento, Borletti e Frua de Angeli para a França). O segundo momento, já no contexto de uma Itália associada à Alemanha hitlerista e inimiga dos aliados, caracterizou-se por uma política de incentivo interno às coleções privadas de arte moderna italiana – como visto com a política de Giuseppe Bottai. Certamente, a que parece melhor refletir esse ambiente é a coleção do galerista Carlo Cardazzo, bem como suas atividades. O que parece comum a esses três países, fora as semelhanças entre coleções de arte moderna italiana, é a noção de uma arte clássica, de raízes latinas, que revive a grande tradição da pintura renascentista italiana na origem da arte moderna. Em torno desta questão, veem-se as mesmas redes agirem seja na Itália, na França e no Brasil, o que engendra, do ponto de vista artístico, trocas fecundas que demandam ser mais bem estudadas. Faz-se preciso considerar, por fim, que as aquisições Matarazzo parecem acompanhar a evolução das obras dos artistas, bem como a atualização das tendências da arte moderna italiana, no final da década de 1930 e início da década de 1940. Assim, aparecem obras de artistas ligados ao grupo Corrente, como Aligi Sassu e Renato Guttuso. Nota-se a mesma atualização quando analisamos artistas dos quais a coleção é composta de um conjunto significativo, como Felice Casorati ou Mario Sironi. Nos dois casos, a escolha tende a acompanhar quase que didaticamente o desenvolvimento da poética do artista. De Sironi, por exemplo, temos uma composição autenticamente novecentista em “Pescadores” (1924), e outra que parece resultar de suas reflexões em torno


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Mario Sironi, “Pescadores”, 1924, óleo/tela, Col. Francisco Matarazzo Sobrinho, MAC USP; Foto: R. Fialdini

Mario Sironi, “Invocação”, 1946, guache/papel/madeira, Col. F. Matarazzo Sobrinho, MAC USP. Foto: R. Fialdini


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da pintura mural com aproximação a uma linguagem mais expressionista em “Invocação” (1946). Além disso, o conceito original sarfattiano de “Novecento Italiano” é colocado em xeque, se considerarmos justamente a presença de nomes da chamada Scuola Romana, como Mario Maffai e Scipione, de tendência mais expressionista e antinovecentista. Vale aqui lembrar o que talvez seja um dos principais destaques dessa coleção, este legitimamente sarfattiano e muito diverso da linguagem plástica posterior do artista (mais apreciada pelo colecionismo privado milanês dos anos 1930, a exemplo do casal Boschi Di Stefano): a “Adivinha” (1924) de Achille Funi, que se aproxima muito da “Mulher velada” (1922, óleo sobre cartão), da coleção pessoal de Margherita Sarfatti (Magalhães, 2011). Esses indícios nos levam a reconsiderar o papel de Sarfatti e de sua noção de Novecento Italiano junto ao meio artístico brasileiro e à consolidação do primeiro núcleo de acervo de arte moderna do antigo MAM, além de investigar melhor as conexões de seu genro e ex-senador italiano Livio Gaetani, no momento das aquisições Matarazzo, com a alta elite milanesa e romana, que havia constituído o colecionismo de arte moderna italiana, nos anos 1930, e como esta refletia uma política de difusão da arte moderna italiana no contexto internacional.

Mario Mafai, “Rapaz [Cabeça de Balilla]”, 1935, óleo/cartão, Coleção Francisco Matarazzo Sobrinho, MAC USP. Foto: Rômulo Fialdini


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NARRATIVA SOBRE ARTE POPULAR: ESTUDO DE CASO SOBRE TESAURO E EXPOSIÇÕES PERMANENTES ELABORADAS PELO CENTRO NACIONAL DE FOLCLORE E CULTURA POPULAR57 Elizabete Mendonça

Universidade Federal de Sergipe RESUMO: Este artigo visa a apresentar um estudo das narrativas relacionadas à arte popular elaboradas pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), tendo como objetos de estudo o Tesauro de Folclore e Cultura Popular Brasileira, as exposições permanentes de 1980, 1984 e 1994 e as obras de Boaventura da Silva Filho, componentes dessas três exposições. O Tesauro e as exposições permanentes são aqui considerados como ações de documentação e de difusão vinculadas às políticas públicas, desenvolvidas pelo governo federal, para valorização e salvaguarda das referências culturais populares. Investigar as diretrizes, as categorias privilegiadas e suas (re) conceituações como suportes conceituais que determinam tais ações, assim como o uso de termos relacionados à arte popular como instrumento de representações socioculturais que marcaram a trajetória dos estudos de folclore e de cultura popular, foi o caminho escolhido para analisar os contextos específicos da organização institucional do período dos folcloristas, até 1980, e dos antropólogos e museólogos, a partir de 1982. Com base nessa problematização, pautada na análise das mudanças conceituais e de políticas institucionais do CNFCP, buscou-se estabelecer uma abordagem inter-relacional entre tesauro e exposições permanentes dentro de um “sistema arte-cultura”.

ABSTRACT: This paper investigates the narratives related to folk art established by the Brazilian Folklore and Popular Culture National Center (CNFCP — Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular). Its objects of study are the Thesaurus of Folklore and Brazilian Popular Culture, the 1980, 1984 and 1994 permanent exhibits, and the works of Boaventura da Silva Filho, which were part of the three exhibits.The thesaurus and the permanent exhibits are here considered documentation and dissemination actions linked to public policies developed by the federal government in order to value and protect popular culture references. In order to analyze the specific contexts of the institutional organization of the folklorists’ period, until 1980, and that of the anthropologists and museologists, from 1982 on, the study investigated the guidelines, privileged categories and their (re) conceptualizations as conceptual supports that determined those actions.The investigation also encompassed the use of terms related to folk art as an instrument of sociocultural representations that marked the evolution of folk and popular culture studies. Based on this problematization, guided by the analysis of CNFCP’s conceptual and institutional policy changes, the study tried to establish an inter-relational approach to the thesaurus and the permanent exhibits within an ‘art-culture system’.

KEYWORDS: Tesauro, Exhibition, Folk Art, Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.

PALAVRAS-CHAVE:

Tesauro, Exposição,Arte Popular, Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.

57 Este artigo é um extrato da tese Tesauro e exposições permanentes de folclore e cultura popular: narrativas sobre arte popular elaboradas pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (1980-2004[2006]), defendida em 2008, no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - com ênfase na linha de pesquisa Imagem e Cultura - pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. O mesmo foi apresentado na mesa-redonda denominada “Olhares sobre o Museu de Folclore Edison Carneiro”, que integrou o Seminário “Destinações da cultura popular em museus” realizado em abril de 2010 pelo CNFCP/Iphan.


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Definindo o objeto de estudo

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Os objetos de estudo deste artigo serão o Tesauro de Folclore e Cultura Popular Brasileira58 e as exposições permanentes de 1980, 1984 e 1994, elaborados pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/Iphan/MinC (CNFCP). Seu objetivo será refletir sobre a apropriação das categorias artesanato e arte popular pelo Tesauro de Folclore e Cultura Popular Brasileira e suas articulações com as narrativas relacionadas à arte popular construídas nas três exposições permanentes. O Tesauro e as exposições permanentes foram considerados como ações de documentação e de difusão vinculadas às políticas públicas, desenvolvidas pelo governo federal, para valorização e salvaguarda das referências culturais populares. Investigar as diretrizes, as categorias privilegiadas e suas (re)conceituações como suportes conceituais que determinam tais ações, assim como o uso de termos relacionados à arte popular como instrumento de representações socioculturais que marcaram a trajetória dos estudos de folclore e de cultura popular, foi o caminho escolhido para analisar os contextos específicos da organização institucional do período dos folcloristas, até 1981, e dos antropólogos e museólogos, a partir de 1982. Com base nessa problematização, pautada na análise das mudanças conceituais e de políticas institucionais do CNFCP, buscou-se estabelecer uma abordagem inter-relacional entre tesauro e exposições permanentes dentro de um “sistema arte-cultura” (Clifford, 1994). Para uma análise comparativa das categorias usadas tanto no tesauro quanto nas exposições, foram privilegiadas quatro obras de Louco, nome adotado pelo artista popular baiano Boaventura da Silva Filho, cujas peças fizeram parte dessas três exposições. O recorte temático no objeto de estudo Na definição da UNESCO, Tesauro representa um vocabulário controlado e dinâmico de termos relacionados semântica e genericamente cobrindo um domínio específico de conhecimento, [funcionando como] um dispositivo de controle terminológico usado na tradução da linguagem natural dos documentos, dos indexadores ou dos usuários numa linguagem do sistema (linguagem de documentação, linguagem de informação) mais restrita, [permitindo assim maior comunicação] (Unesco, 1973: 6 apud CNFCP, 2004).

Este instrumento terminológico de indexação tem um caráter inédito nas áreas de conhecimento denominadas folclore e cultura popular brasileira, constituindo-se em importante ferramenta para a organização dos conteúdos temáticos dessas áreas, “possibilitando maior agilidade e eficácia no tratamento e recuperação da informação” (CNFCP, 2004). ��������������������������������������������������������������������������������� A equipe de desenvolvimento deste tesauro teve um caráter interdisciplinar com participação de profissionais efetivos ou contratados do CNFCP ligados à Biblioteca Amadeu Amaral (BAA), ao Museu de Folclore Edison Carneiro (MFEC) e ao Setor de Pesquisa. A maioria da equipe, bem como a coordenação metodológica, ficou a cargo da BAA – idealizadora da proposta.


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Os termos a que me propus estudar fazem parte da publicação, em cd-rom, dos resultados da primeira etapa do projeto, lançada em 19 de maio de 2004, durante as comemorações da Semana Internacional de Museus, bem como a sua revisão presente numa segunda versão, lançada em 2006. A segunda versão hoje está disponível no site da instituição. É importante frisar que, embora a terminologia aplicada no Tesauro se constitua a partir de diferentes domínios que caracterizam o folclore e a cultura popular, tornou-se necessário fazer um corte temático privilegiando-se, dentre os termos associados à arte popular, aqueles que dizem respeito ao indivíduo produtor (Artesão e Artista popular), ao produto (Objeto artesanal) e ao processo (Técnica artesanal). A escolha desses quatro termos justifica-se pelo fato de estarem diretamente associados às categorias Arte e Técnica, utilizadas como classes nos sistemas classificatórios criados anteriormente pela instituição. É importante destacar que, se por um lado, a Biblioteca Amadeu Amaral (BAA) foi o setor responsável pela coordenação de conteúdo, e que com base em seu acervo e nas experiências anteriores de elaboração de classificações contribui para a classificação e conceituação dos termos, por outro lado foi o Museu de Folclore Edison Carneiro (MFEC) que, por meio da constituição do seu acervo, propiciou a inclusão de todos os termos referentes aos artefatos. Nas exposições permanentes, o foco foi centrado nos núcleos expositivos denominados Artesanato, Indivíduo e Coletividade e Arte que integraram, respectivamente, as mostras inauguradas em 1980, 1984 e 1994. Em todas, foram destacadas as obras de Louco, denominadas Oxalá Cristo Grande, Painel dos arrependidos, Cabeças entalhadas em raiz e Ceia. Esta abordagem comparativa entre as diretrizes, categorias privilegiadas, apropriações, mudanças conceituais e sua aplicação na classificação das obras de Louco, fundamenta a suposição de que tanto um tesauro quanto uma exposição são formas de reafirmação de conceitos e suporte de representações socioculturais que refletem o papel do CNFCP na utilização, conceituação e articulação dos termos associados à arte popular. Fronteiras terminológicas: as formas de apresentação dos conceitos associados ao domínio da arte Neste artigo não está sendo trabalhado a definição de conceitos mas as narrativas sobre arte popular. Neste contexto, é comum apenas ser associada a vinculação da categoria artesanato as ações desenvolvidas pelos folcloristas, considerando que a ideia de produção artística individualizada no contexto dos estudos de folclore era desconsiderada ou desvalorizada. Entretanto, textos comprovam que esta premissa é equivocada. Existem várias referências, exposições temporárias, etc. que incluem ações efetivas de pesquisa e de valorização no campo da arte. O importante, neste contexto, é buscar entender o que eles consideravam arte popular. Como a exposição permanente de 1980 reflete a compreensão que tinham desse campo. Além de estabelecer um paralelo entre esta exposição e as posteriores, buscando assim entender se existem diferenças entre o que era representativo do campo da arte na perspectiva folclorista e o

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que hoje é pela perspectiva antropológica. Estas perspectivas em questão são dadas pelos agentes do que Clifford (1994) chama de “sistema arte-cultura”.

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James Clifford, ao explicar o sistema arte-cultura, evidencia os processos institucionais e ideológicos envolvidos nos processos de apropriação material e simbólica dos objetos, assim como acumulação e classificação dos mesmos. Entretanto, o autor ressalta que os parâmetros de tais processos não são universais e que as mudanças de classificação fazem parte do processo de transformação dos pressupostos teóricos, da rede institucional de exposições e de publicações. Para Duvignaud (1994) as categorias classificatórias não se reduzem à simples constatação de uma diferença entre elas: ultrapassam, seguidamente, a ideia que fazem desses sistemas. Nesta perspectiva, iniciando pela perspectiva dos folcloristas foram analisados alguns exemplos do uso da categoria arte, começando pela proposta de Museu Ergológico Brasileiro, de Gustavo Barroso (1945). Na classificação dos objetos citada nessa publicação, Barroso divide a nomenclatura de todas as classes com a palavra arte (arte da habitação, arte naval, arte da pescaria, arte da caça, arte do preparo do alimento, artes domésticas, artes do artesanato), entretanto a categoria é equiparada às habilidades, aos ofícios, que representariam a “origem, a evolução e as finalidades” de um saber popular específico. Nesta perspectiva, o autor não trabalha a ideia de particularidade da produção de um indivíduo, ele enfoca somente o coletivo. Dialogando com essa perspectiva, a proposta de classificação decimal do Folclore (Salles, 197) aplicada durante anos na Biblioteca Amadeu Amara também demonstra esta mediação e ambiguidade na própria nomenclatura da classe específica do universo que se estuda nessa apresentação:Artes e Técnicas. Sob o número 398.6, esta classe é definida como “Ergologia folclórica. Incluía técnicas e indústrias populares, artesanato, etc.”. As sub-classes (ou termos) são Generalidades; Aspectos gerais; Arquitetura; Escultura e ex-votos; Cerâmica; Desenho. Pintura e decoração; Xilogravura; Tecnologia; Manufaturas; Instrumentos musicais; Máquinas e instrumentos de trabalho. Percebe-se que estas nomenclaturas valorizam as técnicas e objetos. Os demais termos reafirmam a aceitação da coletividade. Analisando textos, relatórios, listagens de peças e exposições da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, percebe-se que esta postura, tão voltada a uma compreensão de arte restrita a habilidade, sem destaque para a individualização, não é tão fechada. Existe sempre uma tensão entre o que é o artesanato anônimo e a valorização do caráter individualizado. A começar por dois trechos da Carta do Folclore de 1951: o primeiro aborda as manifestações folclóricas não anônimas desde vinculadas a “aceitação coletiva [...] e essencialmente popular” como fatos folclóricos, o segundo afirma a importância da criação de museus folclóricos “dedicado ao folclore e às artes populares”. Um documento redigido provavelmente no dia da criação do Museu, também o trata como “museu de arte e técnicas populares”. Está sempre nítida a dialética e a dicotomia entre Técnica e Arte. A mesma controvérsia é encontrada se confrontarmos três documentos (datados de 1963, 1965 e 1972) relativos às exposições temporárias realizadas pela Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Os dois primeiros documentos


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são relativos ao período anterior à criação do Museu, entretanto, já citam o termo Arte popular. No primeiro documento, de 1963, são listados 34 itens agrupados pelo nome do estado ou da localidade de origem, indicando apenas o nome de alguns autores: Ernestina (de Recife), Mestre Nosa (de Juazeiro) e Chico Santeiro (de Natal). No segundo documento, de 1965, 22 itens são listados aleatoriamente, porém ao contrário do anterior o nome do estado ou da localidade não está expresso em todos (nem na maioria) e a indicação de autoria continua estando presente apenas em algumas peças, sendo eles: Zé Caboclo (de Caruaru, Pernambuco),Anésia Silveira (de Santa Catarina),Vitalino Filho (de Caruaru, Pernambuco) e Mestre Nosa (de Juazeiro). No documento de 1972 o critério de agrupamento foi a técnica de produção, tendo sido indicados 32 itens, dos quais apenas as 15 produções de cerâmicas receberam indicação da localidade de origem e somente as de Caruaru receberam indicação de autoria: João Ezequiel, Lauro Ezequiel, Maria das Neves e Zé Caboclo. Outro exemplo disto encontra-se na apresentação do livro “Cerâmica popular do Nordeste”, publicado pela Campanha um ano após a criação do Museu de Folclore. Esta apresentação, redigida por Renato Almeida (1969: 9-13), é focada na produção de cerâmica, objeto de estudo publicado no livro. Entretanto, permite-nos pensar como os folcloristas entendiam o campo da produção de artesanato e da arte popular. Para o autor, o produto artesanal, mesmo tendo sido produzido por mãos diferentes, o que lhe atribui um caráter individualizado, sempre é “feit[o]s dentro de formas que representam experiência e imitação coletiva”, não caracterizando um autor, mas uma região ou uma comunidade. Para eles, mesmo sendo encontrado nesse tipo de produção um “certo sainete individualizado”, não se foge ao “sentido folclórico”. O interessante do texto - e por extensão do livro - é que apesar de definir a arte popular como eminentemente folclórica e desvalorizar a individualidade da concepção, o autor frisa a proteção ao artista popular e o livro prioriza, não apenas o objeto e seus tipos de produção, mas os indivíduos, destacando as formas individualizadas de produção, em especial dos figurativistas: Antônio Leão, Lídia, José Antônio, José Rodrigues, Zé Caboclo e Manuel Eudócio. Renato Almeida, no relatório de atividade da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, diz que é perceptível a existência de arte popular, entretanto ela ainda é tão ínfima que não merece ser estudada.Talvez fosse nessa vertente que os folcloristas acreditassem e por isso não se preocupassem em individualizar a produção, destacando apenas nomes já consagrados em alguns circuitos de arte, como é o caso ícone dos ceramistas figurativos de Caruaru. Nesta vertente, ainda na apresentação do livro “Cerâmica popular do Nordeste”, Almeida (1969: 9) fala sobre o “grande interesse (sic) e a curiosidade crescente em torno da arte e dos artistas populares”, afirmando que “os estudos de Folclore [...] não herdaram aquêle (sic) interesse dos etnógrafos pela cultura material do povo, suas artes e técnicas, enfim sua ergologia”. Este interesse, entretanto, é destacado na proposta de Gustavo Barroso para a criação de um Museu Ergológico Brasileiro. Embora as propostas de Barroso não tenham sido adotadas pelo Museu de Folclore Edison Carneiro, é interessante comparar as suas concepções de arte com as dos folcloristas que dirigiam a Campanha. Tanto um quanto outros, consideravam que esta arte representava uma expressão coletiva. Porém, enquanto Barroso a concebia como sinônimo de habilidades ou ofícios manuais,

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os folcloristas a distinguiam da técnica, atribuindo-lhe uma marca individualizada desde que reconhecida pela coletividade. Portanto, para os folcloristas, arte e técnica representavam coisas distintas, porém com valores equivalentes.

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Assim como os exemplos acima, a exposição de 1980 também é um reflexo do entendimento que os folcloristas tinham de Artesanato e Arte popular. O núcleo referente a esta temática demonstra esta tensão. É o maior e apresenta diferenciações quanto a forma museográfica e o texto do catálogo. A museografia privilegia o acervo em base, sem vitrines. O texto, apesar de destacar os processos artesanais e a função utilitária e/ou figurativa, não deixa de indicar vários “artesãos folclóricos”. Este núcleo não cita as categorias artistas ou arte popular, trata do “artesão folclórico” e “artesanato folclórico”. Esta perspectiva que a princípio parece distante dos exemplos dados acima, após algum tempo de análise, indica uma abordagem igual, já que os nomes dos artesãos folclóricos citados no texto são de artesãos ou áreas já consideradas “expoentes da criação plástica brasileira”. Não está sendo afirmando aqui que eles não privilegiassem a produção anônima, por meio do discurso da criação individual subordinada ao coletivo. Também não estamos negando afirmações, como a de Guacira Waldeck (2002), de que nas exposições não era comum os artesãos/artistas populares serem identificados. O que está sendo frisado é que sempre existia o espaço para a produção individualizada e que este espaço não era tão pequeno como pensamos. Na exposição de 1980, portanto, o núcleo Artesanato estabelece uma mediação entre técnica coletiva e expressão individual aceita pela coletividade. Esta prerrogativa encontra-se inclusive na definição de artesão folclórico presente no texto de Vera de Vives. Voltando esse debate para as exposições permanentes de 1984 e de 1994, assim como, para a versão do tesauro elaborada década de 1980 e 1990 e as publicadas em 2004 e 2006, pode-se dizer que imprimisse com clareza a abordagem no campo da arte. Nas exposições os núcleos que enfocam a técnica estão marcadamente divididos, sendo chamados de: “Homem na transformação da natureza e na produção da cultura” em 1984 e “Técnica” em 1994. Enquanto os núcleos referentes ao domínio da arte são denominados: “Indivíduo e Coletividade” (1984) e “Arte” (1994). Os núcleos relacionados à Técnica, apesar de informarem os autores das peças, enfocam a relação com o meio ambiente, os produtos culturais feitos pelo homem como formas de representações dos mecanismos utilizados para propiciar sua sobrevivência, adaptação ao meio natural, demonstrando como cada grupo social acaba estabelecendo uma relação diferenciada com o meio ambiente. Os núcleos relacionados a Arte, entretanto, enfocam a capacidade de releitura, criação e expressão de determinados indivíduos dentro da coletividade e falam textualmente sobre a inserção deles “no universo da arte popular”. É interessante observar que várias obras presentes na exposição de 1980 se repetiram na exposição de 1984 e 1994. A diferença dessa abordagem para a de 1980 é que os artistas, mesmo sendo parte da coletividade, são personificados, têm rosto e individualidade ressaltada. Na versão do tesauro elaborada ao longo das décadas de 1980 e 1990 percebe-se a ampliação quantitativa dos termos antes utilizada na classificação de-


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cimal publicada por Vicente Salles. O foco central sai da habilidade, da técnica, da coletividade. O conceito Arte, com uma série de Termos Específicos, é incluído. As versões do tesauro de 2004 e 2006 volta a restringir os termos ao universo do folclore e da cultura popular tradicional brasileira, mantendo, no entanto, termos associados ao universo conceitual da arte, tal como: Artista popular. Como afirma Guacira Waldeck (2002: 89), atualmente as exposições e publicações, espaços fundamentais e já bastante referenciados na individualização moderna da arte e do artista, incluem o artista popular. Esses termos, no entanto, não podem ser analisados isoladamente já que fazem parte de um sistema terminológico que expressa uma classificação pautada em uma rede conceitual. Para melhor visualização dessa rede, segue uma tabela e uma listagem dos termos selecionados para a análise de Artesão, Artista popular, Objeto artesanal e Técnica artesanal, com seus termos ascendentes diretos e respectivas notas de aplicação, termos genéricos, específicos e associados: CATEGORIAS CONCEITUAIS

TERMOS PRESENTES NO TESAURO

Entidade

Indivíduo

Pessoa

Artesão Artista popular

Processo

Artefato

Objeto artesanal

Atividade produtiva

Técnica artesanal

Observa-se que Artesão e Artista popular são considerados Termos Específicos (TE) de Pessoa que, por sua vez, é um TE de Indivíduo. Objeto artesanal é um TE de Artefato. Técnica Artesanal é TE de Atividade produtiva. Indivíduo e Artefato integram a categoria conceitual Entidade e Atividade produtiva integra a categoria Processo. Estas categorias representam conceitos de grande abrangência e apresentam em sua estrutura diversos termos específicos. Com a estratégia adotada de trabalhar as grandes categorias conceituais mestras dos tesauros e ter como parâmetro os acervos institucionais, pode-se dizer que nesta versão, ao contrário da versão anterior, a categoria Técnica foi mais trabalhada. A categoria Arte não foi trabalhada como termo definido. Ela foi alvo de inúmeros debates sobre o modo como deveria ser abordada, sem que, entretanto, se tenha chegado a um consenso. Ela é vista pelas coordenadoras metodológicas e de conteúdo do projeto como uma área de conhecimento periférica, ou seja, uma categoria que não está dentro da área núcleo do Tesauro (folclore e cultura popular brasileira), formando-se “paralelamente ao núcleo, acrescentando a este último novos aspectos ou ainda corrigindo-os” (Jaenecke: 1994: 5 apud Pinho: 2006: 24). Isto não quer dizer que a concepção de arte não esteja presente no Tesauro, uma vez que nele se encontram termos como Artista Popular que apresentam em sua definição a ideia de inferência de marca própria e diferenciadora. Segundo Mariza Coelho (2008), a catalogação de uma publicação que aborde a arte popular é mais fácil, pois o termo escolhido será determinado pelo enfoque dado pelo autor da obra.

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A indexação da informação, um dos objetivos do tesauro, por meio desses conceitos demonstra que a arte popular, assim como qualquer forma de expressão artística, faz parte de um sistema cultural (Bourdieu: 1987; Geertz: 1997) e que o critério de determinação do que é inserido em cada categoria, ou seja, os termos inclusos, os conceitos e as relações que lhes são atribuídas, aproximam-se do que Clifford (1994) define como “sistema arte-cultura”. Usado no tratamento, organização e recuperação das informações, o tesauro, neste contexto, expressa e reafirma conceitos que estabelecem as fronteiras entre os termos presentes no campo da Arte Popular. Estudar esses termos significa analisar o papel desse instrumento terminológico nas áreas de folclore e cultura popular. Embora as definições e a discussão sobre as fronteiras entre “arte” e “objeto artesanal”,“técnica artesanal”,“artista popular” e “artesão” expressem uma visão hierárquica e dominante, é importante ressaltar que, na perspectiva do indivíduo que exerce essa atividade, raramente a instância do trabalho manual ou mecânico (‘artesanal’) é separada do trabalho intelectual, possuindo ambos igual dignidade (Porto Alegre: 1985). Bourdieu (1987:159) afirma isto ao dizer que: [...] todas as relações que uma dada categoria de intelectuais ou artistas pode instaurar com as demais categorias constitutivas da sociedade intelectual ou artística ou com o público externo a esta sociedade e, a fortiori, com qualquer instância social externa – quer se trate de poderes econômicos com dimensão cultural como os marchands ou os editores, de poderes políticos, e até de instâncias de consagração cultural cuja autoridade deriva seu princípio de fora do campo de produtores, a exemplo das Academias – são medidas pela estrutura do campo na medida em que dependem da posição que esta categoria particular ocupa na hierarquia que se estabelece do ângulo da legitimidade cultural no interior do campo das relações de produção e difusão dos bens simbólicos. A sociologia da produção intelectual e artística constitui seu objeto próprio e, ao mesmo tempo, seus limites, ao construir o sistema relativamente autônomo das relações de produção e circulação dos bens simbólicos.

Ao ser individualizado o artista popular se afirma como indivíduo singular na sociedade. Porém, como afirma Nobert Elias, o “indivíduo está sempre ligado à rede de relações, o que implica a regulação social de sua trajetória. O que é preciso levar em conta é a questão pautada entre o artista e a sociedade” (apud Zoladz 2004: 184). Sendo assim, neste contexto de múltiplos sentidos sociais, encontra-se o artista popular/artesão e sua produção, entretanto, é importante frisar que: Os próprios artistas populares não foram absolutamente agentes passivos de seu processo de gradual reconhecimento. Pois também por seu lado experimentavam mudanças em relação ao seu meio cultural, fazendo uma sínapresentação formal própria, como qualquer outro artista, das transformações que viam acontecer diante de seus olhos e que também os motivavam. (Frota: 2005, 31)

Como a noção clara desse homem brasileiro como produtor de cultura tem um papel determinante, que dentre os produtos feitos por ele está a arte popular e que ela é um importante instrumento de pesquisa, o CNFCP procura, desde 1982, uma perspectiva etnográfica, num exercício descritivo que Geertz (1978: 20) sugere como tentar ler, assume então a finalidade de descobrir a realidade – ou construir suas formas, tentativas, de leituras. Rosza vel Zoladz (2007) afirma que a participação social do artista, além de sua relação com o mercado e com as formas de criação, é primordial no debate sobre quem é artista. Qual a sua identidade? E qual o seu papel no imaginário brasileiro?


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Pelo que se percebe o campo da arte em alguma medida sempre estivera presente nas exposições da instituição, sendo que os problemas que acompanham as definições de folclore e cultura popular aparecem também no que se pretende definir como Arte Popular. À oposição arte popular/arte erudita e arte/artesanato que, embora atualmente contestada, fundamentou durante muito tempo a concepção destas formas de expressão. Estas discussões também são recorrentes nas obras de autores como Gilberto Freire, Mário de Andrade, Luís Saia, Augusto e Aberlado Rodrigues, Clarival do Prado Valadares, Renato Almeida, Cecília Meireles, René Ribeiro, entre outros, assim como em documentos elaborados pelo então Centro Nacional de Referência Cultural, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e por estudos desenvolvidos por pesquisadores atuais. Entretanto, Dickie (apud Gell, 2001: 176) diz que: Uma obra pode estar, a princípio, fora do circuito oficial da história da arte, mas, se o mundo artístico coopta essa obra e a faz circular como arte, então ela é arte, porque são os representantes do mundo artístico, ou seja, artistas, críticos, comerciantes e colecionadores, que têm o poder de decidir essas questões, não a “história”.

Desse modo, pode-se dizer que estes conceitos são categorias socialmente produzidas e sujeitas a reformulações, de acordo com o contexto histórico-cultural. Sem esquecer que entre os representantes do mundo artístico incluem-se jornalistas, museólogos, curadores, marchands, historiadores, antropólogos, folcloristas, designers, decoradores, profissionais que, em seus trabalhos, estabelecem hierarquias e atribuem valores estéticos e de mercado às produções artísticas assim como estabelecem formas de sua difusão.Alfred Gell (2001) destaca, no entanto, o seu valor sociológico, que ultrapassa a estética. A análise sociológica permite a compreensão da atribuição de valores que envolvem a legitimação das produções artísticas, sem os quais os artefatos não se caracterizam como objetos artísticos nem seus produtores como artistas. É neste processo de atribuições de valores que as exposições permanentes e o Tesauro auxiliam o CNFCP a funcionar como uma “zona de contato” (Clifford: 1997), ou seja, como um espaço social marcado por diálogos provisórios onde pessoas de diferentes grupos sociais têm a oportunidade de trocar experiências com os objetos/ coleções, com a equipe do museu e, também, com os demais visitantes. James Cllifford ressalta que no caso dos museus “sua estrutura organizacional como coleção transforma-se numa relação viva, seja ela histórica, política ou moral: instaura-se então um outro jogo de trocas, repleto de poderes”. Na compreensão dessa apresentação, incluem-se nestes parâmetros as coleções/acervos do MFEC e da BAA. As obras de Louco Boaventura da Silva Filho nasceu no ano de 1932, em Cachoeira, e faleceu na mesma cidade em 1992. Antes dos seus 30 anos sua principal profissão era de barbeiro, entretanto complementava sua renda familiar confeccionando cachimbos de casca de cajá. Os primeiros cachimbos eram lisos, depois passou a esculpir “uns rostos na frente do cachimbo” (Louco Filho, 2006). Posteriormente, largou a profissão de barbeiro para esculpir blocos de madeira, respeitando a forma das raízes ou dos troncos de jacarandá, vinhático,

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sucupira e jaqueira - matéria-prima de sua produção -, talhando santos, orixás, anjos, cristos, batedores de atabaques, figuras bíblicas, fantásticas e míticas. Características marcantes, sempre presentes em suas obras desta fase, são as cabeças talhadas, cabelos em escamas, braços e pernas alongados, olhos entreabertos e narizes longos e afilados. Segundo seu relato a Selden Rodman (apud Frota, 2005: 279), a ideia de seu nome artístico, Louco, surgiu no momento em que “pára de raspar cabeças para esculpir blocos de madeira” e seus vizinhos, por esse motivo, passaram a dizer que ele era louco. Para esses vizinhos era loucura optar pela produção de escultura em madeira como forma de renda familiar, principalmente tendo como fonte de inspiração a influência popular local europeia e africana. Porém, foi essa releitura das influências de seu meio que diferenciou sua produção59. Todo esse contexto local é visivelmente presente nas obras de Louco. Suas obras refletem bem as múltiplas significações construídas em torno dos aspectos materiais e imateriais da vida social do município de Cachoeira, seu principal pólo de trabalho e socialização. Frota (idem), no entanto, informa que seu renome como artista teve início em 1965, quando levou suas obras para vender no Mercado Modelo, em Salvador, onde seu trabalho foi reconhecido e incentivado por nomes como Jorge Amado e Mário Cravo Jr. Seu trabalho influenciou os demais artesãos de Cachoeira: seu filho Celestino da Silva (Louco Filho) que herdou seu apelido, o irmão Maluco (já falecido) e os sobrinhos Maluco Filho, Doidão e Bolão. Três outros filhos também seguiram esta linha de trabalho. Treze obras de sua autoria compõem o acervo do Museu de Folclore Edison Carneiro, a saber: DENOMINAÇÃO

Cristo Cabeça de Cristo Ceia Sant’Ana Mestra Cristo – Sorriso do Mundo Ceia Anjo Gabriel, Anjo Belo e Adoração Painel dos Arrependidos Cristo, São José e Nossa Senhora Oxalá Cristo Grande Cabeça de Cristo Anjo de Candomblé Cabeças entalhadas em raiz

NÚMERO DE TOMBO

72.46 74.105 74.106 74.107 74.110 75.106 75.107

LOCALIZAÇÃO ATUAL

Reserva técnica Reserva técnica Reserva técnica Reserva técnica Reserva técnica Exposição Permanente Reserva técnica

75.108 Exposição Permanente 75.109 Reserva técnica 75.110 75.111 75.112 80.376

Exposição Permanente Reserva técnica Exposição Permanente Reserva técnica

59 Este quadro exemplifica a fala de Arriscado Nunes (1995) que afirma que, nas últimas décadas, a transdiciplinaridade no campo dos estudos culturais tem revelado uma mudança central e decisiva no modo como as culturas são definidas e representadas e que a própria definição de cultura vem apontando para dimensões como descentralização, heterogeneidade, hibridismo, dominação e resistência, o que indica a crescente necessidade de se traduzirem conceitos que signifiquem conexão, ligação e articulação.


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A obra denominada Cristo (72.46) foi incorporada ao acervo em 1972. Segundo Livro de Tombo é uma doação da Bahiatursa (Empresa de Turismo da Bahia S/A). As demais foram doadas em 1974, conforme Termo de Cessão do Departamento de Ação Cultural/Ministério da Educação e Cultura à Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. O Departamento de Assuntos Culturais cedeu, por meio desse termo, 146 peças. Várias dessas peças fizeram parte da exposição “7 brasileiros e seu universo: artes, ofícios, origens, permanências”. O interessante dessa análise é pensar justamente sobre as peças de Louco que fizeram parte dessa exposição e posteriormente foram cedidas para o acervo da então Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro e participou das três exposições permanentes que estudamos. Ao longo desse período, as mesmas peças participaram de discursos institucionais diferenciados. Começaremos esta análise por meio da publicação da exposição “7 brasileiros e seu universo: artes, ofícios, origens, permanências”, ou seja, pela exposição que possibilitou a aquisição dessas peças e que não foi elaborada pela Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Sua publicação apresenta textos de Clarival do Prado Valladares, Lélia Coelho Frota, Luís da Câmara Cascudo, Luiz Felipe Baeta Neves, Luis Saia, Márcio Sampaio, Napoleão Figueiredo, Veríssimo de Melo, bem como catálogo com dados biográficos e obras de Benedito, Dezinho de Valença, G.T.O., Louco, Maria de Beni, Nhozim e Nô Caboclo. Indica Gisela Magalhães e Irma Arestizábal como organizadoras da exposição e coordenadoras do catálogo. A apresentação redigida por Renato Soeiro, então diretor do Departamento de Assuntos Culturais e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, cita a exposição como parte dos planos do Programa de Ação Cultural de “divulgação dos valores artísticos brasileiros” e completa: além dos artesãos – quase todos de renome internacional - destacamse os artistas, cuja inquietação criadora tem-nos deixado em constante mobilidade dentro e fora do País. Ao lado dos mestres dessa galeria, estão os folcloristas e críticos, cujo amor à obra dos primeiros construiu igual monumento em grandeza. Através de sua palavra, revela-se a herança brasileira – o seu instinto, o seu vigor, a sua raça (Magalhães; Arestizábal, 1974: 9).

É interessante verificar que a proposta da exposição e, consequentemente, da publicação, como explicita Soeiro, é conjugar as reflexões dos folcloristas e dos críticos de arte. Esta ação é demonstrada na página 12, onde se lê: Da mesma maneira que esta exposição procura documentar a criatividade de alguns artistas de diferentes zonas do País, também os depoimentos refletem diferentes concepções dos seus autores. Os textos não constituem uma publicação com temática preestabelecida, e, sim, uma tomada de conhecimento através de nossos estudiosos.

Os títulos dos textos também dizem muito. De oito títulos, seis explicitam o conceito de arte, arte popular ou artista popular. Lélia Coelho Frota apesar de não usar estes conceitos no título do artigo, demonstra que os aborda quando denomina seu artigo “Criação individual e coletividade”, praticamente o nome

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atribuído ao núcleo expositivo da exposição permanente de 1984: “Indivíduo e coletividade”, desenvolvido durante o período em que a autora foi diretora do então Instituto Nacional de Folclore – atual CNFCP.

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Inseridos nesse contexto, os folcloristas e os críticos de arte que têm voz nessa exposição são agentes sociais que integram um sistema arte-cultura. A exposição caracteriza-se como um processo institucional e ideológico vinculados aos processos de acumulação e classificação material e simbólica de objetos. O Programa de Ação Cultural, por sua vez, é a instituição que articula estes processos e implementa as ações de políticas públicas. Os sete artistas representando os universos brasileiros, pelo simples fato de serem selecionados, ganham outra dimensão simbólica. Deste, cinco são da região Nordeste: Pernambuco (Nhô Caboclo e Benedito), Maranhão (Nhozim), Piauí (Dezinho) e Bahia (Louco). As exceções são Minas Gerais (G.T.O.) e Goiás (Maria Beni). Essa exposição tem como sub-título os termos: artes, ofícios, origens, permanências. Com exceção do conceito de arte, os demais são fortemente marcados nos discursos dos folcloristas. Entretanto, como explicitado anteriormente, o conceito de arte não é ignorado pelos mesmos. A junção desses quatro conceitos reunidos, nessa exposição, articulam todos os parâmetros de inserção e diálogo entre os folcloristas e diversos agentes das políticas públicas voltadas aos setores artesanais. Existe, sim, um foco de ação de valorização maior dos folcloristas ao objeto considerado artesanal e não artístico, mas também existe a pré-disposição ao diálogo, valorização e inserção de objetos considerados “arte popular” no acervo institucional. Mas, é interessante perceber que mesmo a curadoria estando a cargo de uma arquiteta com um olhar vinculado à noção de arte, o reconhecimento de folcloristas é marcado pela inclusão dos mesmos na definição da linha dessa exposição, assim como a cessão das obras à Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Essas obras, inclusive, tornam-se estratégicas, todas as obras de Louco já são incorporadas ao acervo com autor identificado. Várias de suas obras são catalogadas com títulos, fato que atribui a ela um caráter interpretativo diferenciado do artesanato. Toda exposição permanente da instituição a partir de 1980 conta com peças suas. Mesmo no módulo Artesanato da exposição de 1980, onde foi abordado como um artesão folclórico, existe no catálogo referência a seu nome e sua produção. Ele nunca foi um artesão anônimo dentro de uma exposição. A partir das novas políticas de documentação e de exposição permanente assumida em 1982 pela instituição a acentuação do individual e artístico em paralelo ao coletivo se acentuou.

Paralelos entre termos do Tesauro e das exposições permanentes do CNFCP em relação às obras de Louco Em um paralelo com as definições dos termos do Tesauro de Folclore e Cultura Popular Brasileira, Louco mesmo quando definido na exposição permanente como Artesão folclórico explicitava o que hoje está definido como Artista popular, pois naquele momento Vera de Vives que escreveu o texto considerado catálogo da exposição já inferia marcas próprias e diferenciadoras ao


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trabalho desse artista. É interessante perceber neste caso que já naquela época, na qual tão corriqueiramente diz-se que os folcloristas não valorizavam essa dimensão, percebe-se no texto do catálogo da exposição esta ênfase. O “artesanato folclórico” exposto não valorizava apenas a técnica, o ofício, mas, também, as marcas próprias, a individualidade. Caso o paralelo seja feito com o vocabulário controlado da Biblioteca Amadeu Amaral publicado por Vicente Salles também se pode visualizar esta ênfase: a classe 398.6 Artes e Técnicas, a categoria Arte esta marcadamente junto a Técnica e engloba, entre outros, os diferentes tipos de artesanato. Continuando nesse paralelo com base nos demais termos do Tesauro, podem-se estabelecer diversos relacionamentos entre as questões de individualização e coletividade. Restringindo essa meta às análises aqui propostas destacam-se quando se documenta ou expõe as obras de Louco termos como Atividade produtiva, Técnica artesanal e Entalhe, Artefato, Objeto artesanal e Escultor. Atividade produtiva inclui não apenas as atividades de ordem econômica, mas também as de ordem “social e/ou cultural que se configura pela produção de bens ou utilidades para satisfazer as necessidades humanas”. Cruzando esta definição com a de Técnica artesanal verifica-se que esta necessidade também “pode ter finalidade [...] artística”. O termo Entalhe é aqui incluído por ser a técnica artesanal “que consiste em esculpir [...] madeira”, ou seja, a dominada por Louco. Ao último está diretamente relacionado o termo Escultor, que é a pessoa que domina esta técnica. Artefato no Tesauro caracteriza-se como “forma individualizada de cultura material”, na qual se inclui o Objeto artesanal - “a forma não individualizada, que escapa à produção em série, oriundo de um saber advindo da tradição e vivência do indivíduo em seu grupo”. Objeto artesanal aqui tem um caráter tanto de tradição coletiva como de individualidade. Marcadamente se Louco continuasse a produzir cachimbos, como no início da sua carreira, hoje provavelmente ele estaria dentro da categoria artesão e não de artista popular. Foi sua releitura de seu contexto e o reconhecimento a ele atribuído por um grupo de intelectuais que ofereceu a este indivíduo um espaço no domínio da arte popular. Neste contexto, pode-se dizer que os problemas que acompanham as definições de folclore e de cultura popular aparecem também no que se define como, Objeto artesanal,Técnica artesanal,Artesão e Artista popular. Nesta perspectiva, pode-se observar a presença de diferentes concepções das categorias Folclore, Cultura popular, Arte, Técnica, Arte popular, Artesão, Artista popular, Objeto Artesanal, além das de Patrimônio e Mercado.Todas essas categorias são portadoras de conteúdos simbólicos que se expressam nos sistemas de classificação, colecionismo e exposição de interesses culturais, políticos, econômicos. Essas categorias aparecem no campo discursivo com vários significados, remetendo a diferentes formas de valoração e a novas qualificações. As narrativas construídas a partir dessas categorias possuem um caráter dinâmico e implicam em diferentes modos de classificação, de acordo com o contexto e projetos políticos de cada momento. No caso em questão, pode-se dizer que um dos principais objetivos do CNFCP, ao longo de sua história, foi direcionar

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o olhar para determinadas referências tradicionais da cultura popular, exaltando seus valores simbólicos.

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Em todos os momentos, os argumentos utilizados para legitimar o que deveria ser considerado como pertencente ao âmbito da arte ultrapassavam a materialidade e a estética do objeto, investindo-o de uma aura criativa, poética e informativa, assinalando a presença de algo diferencial. Isto demonstra que, apesar de pouco divulgadas, existem singularidades nos discursos sobre o campo da arte nas narrativas elaboradas pelos folcloristas e antropólogos. De modo geral, a adequação do antigo INF a uma perspectiva antropológica é considerada uma ruptura conceitual com as políticas e ações até então vigentes. No entanto, percebe-se que a maioria das ações subsequentes são, muitas vezes, desdobramentos ou revisões daquelas vigentes no período em que os folcloristas estiveram à frente da instituição. Estes desdobramentos, entretanto, não significam uma evolução linear de concepções e práticas de classificação, coleção e exposição sobre folclore e cultura popular brasileira, mas campos de conflito, de (des)estabilizações e de reafirmação dos grupos de intelectuais e profissionais que dirigiram a instituição. Os folcloristas, ativos à frente da instituição até 1982, foram agentes fundamentais do processo de reconhecimento do folclore. Um dos seus objetivos era indicar os indivíduos e grupos, cujos conhecimentos tradicionais deveriam ser reconhecidos como componentes da identidade nacional. Deste modo, embora reconhecessem a dimensão da criação artística, não a tinham como “carro chefe” de suas ações, pois seu foco estava centrado no que era visto como conhecimento coletivo e nas manifestações consideradas valores do espírito. Os museólogos e antropólogos ampliaram o paradigma que até então havia orientado os modos de pensar e agir da instituição e estabeleceram novas diretrizes para a construção do sistema classificatório e para a concepção das exposições. Sob este novo olhar, a narrativa, que pressuponha uma identidade nacional homogênea, foi desconstruída, dando lugar a uma abordagem que privilegiava a diversidade cultural. Um dos reflexos dessa nova abordagem foi a valorização da cultura material como foco de ação institucional e a construção de novas narrativas sobre arte nas quais se valorizava a autoria, a criação e a individualidade. Mais uma vez, não se pode dizer que esta mudança de foco está restrita ao período posterior a 1982, pois durante o período da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro o foco já havia sido ampliado das linguagens musicais para os folguedos e no período seguinte o então Instituto Nacional de Folclore ampliou os estudos e as ações para o campo da cultura material, porém ainda muito ligada às categorias artesanato e técnica. É interessante observar que esta valorização do artesanato tradicional não se dá somente nesta instituição.Vários outros programas governamentais, sobretudo na esfera federal e estadual, foram criados ao longo dos anos. Um dos principais intuitos desses programas é geração de renda e melhoria de qualidade de vida dos produtores por meio da inserção de seus produtos em um mercado mais amplo. Para isso, oferecem aos artesãos suporte para produção, difusão de saberes, divulgação, comercialização, gestão e associativismo. Nestes programas, de modo geral, não se faz distinção entre artesanato e arte popular, considerando-se os dois termos como equivalentes. É importante destacar que nas exposições e no Tesauro estes termos não são utilizados como equivalentes. Sua base conceitual, perpassada por um discurso institucionalizado e acadêmico, tem o propósito de valorizar a arte popular e o artesanato de cunho tradicional


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Artigo recebido em janeiro de 2012. Aprovado em fevereiro de 2012


A PATRIMONIALIZAÇÃO DA MEMÓRIA DA CULTURA POPULAR BRASILEIRA NO MUSEU DE FOLCLORE EDISON CARNEIRO60 Vânia Dolores Estevam de Oliveira Universidade Federal de Goiás

RESUMO: Texto focalizando as ações do Museu de Folclore Edison Carneiro de 1968 a 1984, à luz dos conceitos de memória social (HALLBWACHS), de patrimônio e de vontade de memória (NAMER). O período em pauta compreende duas fases da atuação institucional, aqui denominadas de ‘folclorista’ e ‘antropológica’, que refletem as mudanças nos rumos da política cultural praticada durante o período militar.

ABSTRACT: Text focusing on the actions of Edison Carneiro Folklore Museum from 1968 to 1984, under the concepts of social memory (HALLBWACHS), cultural heritage and ‘will of memory’ (Namer). The period in question consists of two phases of institutional practice, which reflect changes in the direction of cultural policy practiced during the military period in Brazil.

PALAVRAS-CHAVE: Museu de Folclore Edison Carneiro. Memória Social. Patrimônio. Museologia .Museus de folclore

KEYWORDS: Edison Carneiro Folklore Museum. Social memory, Cultural heritage. Museology; Folklore museums

60 Este texto é inspirado no capítulo 3 da tese de doutoramento em Memória Social, sob o título Museu de Folclore Edison Carneiro: poder, resistência e tensões na construção da memória da cultura popular brasileira, defendida em junho de 2011 pela UNIRIO, sob orientação da profa.Vera Dodebei.


A patrimonialização da memória da cultura popular brasileira no museu de folclore Edison Carneiro

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Este texto visa discutir as interfaces entre memória social, patrimônio constituído, e museus ou “casas do patrimônio” como resultantes da vontade de memória das pessoas e instituições, tendo como foco o Museu de Folclore Edison Carneiro, de 1968 a 1984. Na primeira fase, o Museu refletia o pensamento museal dos folcloristas e funcionava como ‘laboratório’ para estudantes de Museologia. A segunda fase, denominada ‘antropológica’, acontece em tempos de abertura democrática, em que a cultura popular é entendida como marca da diversidade e produto cultural. A perspectiva será sobre a ação museológica ao longo da trajetória do Museu. Como suporte teórico, os conceitos de memória social (Halbwachs, 1952 e 1990), de lugar de memória (Nora, 1993) e de vontade de memória (Namer, 1987). As ideias de Chauí (1989) e Ortiz (1994) vão iluminar a compreensão sobre a política cultural voltada para a cultura popular no Brasil. Memória social, ou memória coletiva é a memória da sociedade, ou “da totalidade significativa em que se inscrevem e transcorrem as micro memórias pessoais, elos de uma cadeia maior” (Duarte, 2003: 306). O patrimônio é uma “categoria de pensamento extremamente importante para a vida social e mental de qualquer coletividade humana”, que pode ser observada em todas as sociedades através da história, não só as modernas e ocidentais (Gonçalves, 2003: 22), mas, ao contrário do que pensamos, não faz parte do mundo natural, sendo uma construção histórica. E por ser assim, tanto a memória coletiva quanto a individual, é preexistente ao patrimônio, que é o mediador entre as representações da memória preservadas nos museus. O patrimônio, como “mediador entre a memória social e os museus [...] e demais instituições de memória, constrói, forma as pessoas” (Gonçalves, 2003: 27), conformando também as sociedades em todas as suas formas. No Brasil a institucionalização do patrimônio e a proliferação dos museus ocorreram trilhando caminhos paralelos, embora por trajetórias distintas. Ao lado das primeiras incursões voltadas para a preservação, ao longo dos séculos XVIII e XIX, e início do XX, surgem também os primeiros museus. A Inspetoria Nacional de Monumentos, reconhecidamente um dos principais antecedentes da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Magalhães, 2004 e Chagas, 2003), é criada no Museu Histórico Nacional em 1934. Com o Estado Novo institui-se o tombamento, com a edição do Decreto Lei 25, de 1937, e é também quando o fenômeno museu toma grande impulso. O projeto político de identificação nacional pelo conhecimento e exaltação dos feitos heróicos do passado, já via nos museus um importante instrumento. Chagas (2003: 50) afirma que a “cidadela do patrimônio” contém o museu “e suas especificidades, como uma espécie de bastião”, e tem “frequentemente contribuído, de dentro para fora e de fora para dentro, para forçar as portas e dilatar o domínio patrimonial”. A partir do Estado Novo os museus passam a servir de bastiões aos propósitos patrimoniais e, desde então, esta parceria vem se aprofundando, até que nos anos 1980, o patrimônio passou a integrar o discurso museal com mais ênfase. O desejo preservacionista é comungado pelas duas instituições, e vem servindo como anel de compromisso nessa união. Contudo, se patrimônio e museu vivem um longo casamento, com os conflitos inerentes ao matrimônio,


Vânia Dolores Estevam de Oliveira

folclore e patrimônio não se falaram durante um bom tempo, salvo nas exceções que sempre ocupam as brechas propiciadoras das mudanças de paradigmas. As expressões da cultura ligadas às massas populares rurais ou urbanas não fizeram parte das preocupações preservacionistas dos ideólogos do patrimônio no Brasil, à exceção de Mário de Andrade, de uma minoria no interior do próprio IPHAN, e claro, dos folcloristas. A razão parece residir nas motivações que conduzem à preservação de determinados bens em detrimento de outros. Para que a ação preservacionista seja iniciada, não é suficiente a ameaça de perda ou dano; “é preciso, e esse não é um ponto sem importância, que o sujeito da ação identifique no objeto a ser preservado algum valor [...] Perigo e valor. Perigo e valor imaginados são as palavras-chave para a ação preservacionista” (Chagas, 2003: 33). Decorre daí a popularidade do conceito e expressão “lugar de memória” entre os técnicos que atuam em instituições de memória. A instituição de “lugares de memória” é ocasionada pela ameaça, ou pela perda efetiva dos elementos que conformam a memória social,“verdadeira, intocada [...], integrada, ditatorial e inconsciente de si mesma, organizadora e todo-poderosa, espontaneamente atualizadora...” (Nora, 1993: 8). No Brasil - sob inspiração do Romantismo, a princípio, e depois das ações da UNESCO - coube ao Movimento Folclórico Brasileiro61 essa primazia do olhar preservacionista sobre o folclore e a cultura popular, em que se vislumbravam também valores e perigos. As ideias de fragilidade, ameaças de desfiguração e perda definitiva permeiam os escritos e anotações de campo dos estudiosos do folclore. Os estudiosos do folclore que formavam aquele Movimento criaram sua representante institucional, a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro em 1958, que investiu nos museus como fortes aliados, estimulando e apoiando a criação de museus em todo o país. Após os rumos tomados pelo golpe militar de 1964, e com a ameaça de desmantelamento da Instituição, em 1968 é firmado um convênio entre a Campanha e o Museu Histórico Nacional (MHN), para instalação do Museu de Folclore, graças ao empenho de Renato Almeida (1895-1981), líder do Movimento Folclórico e terceiro diretor executivo da Instituição. A “vontade de memória” (Namer, 1987) da Instituição se concretiza na criação do Museu, reunindo e organizando um minucioso arquivo com os documentos relativos à sua história, divulgando e publicando o conhecimento produzido até então. O medo da perda iminente e do apagamento levou à criação de um lugar para guarda e preservação das manifestações da cultura popular, na forma de objetos, indumentárias de folguedos, quadrinhas, cantos e depoimentos gravados. Com a criação do Museu de Folclore, a “memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto” como reação à iminência da destruição. Neste caso, um “lugar de memória”, segundo conceituado por Nora (1993: 9), com a configuração de museu. A instalação do primeiro núcleo do Museu de Folclore aconteceu em “pavilhão” no Parque do Museu da República, que nessa época constituía uma seção do MHN. Concretizava-se, também, desse modo a expressão museológica do pensamento de Gustavo Barroso sobre o nacional: a elite e o povo estavam finalmente lado a lado, representando e reconstruindo a memória brasileira (Abreu, 1990: 69). Em relatório escrito três anos após a criação, o espaço é assim descrito: “prédio ����������������������������������������������������������������������������������������������������������������� Sobre o Movimento Folclórico Brasileiro, a obra mais completa até o momento é a de Luís RodolfoVilhena (1997).

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Confluências Interdisciplinares entre Ciência da Informação e Museologia

de 5 cômodos, assim distribuídos”: 3 salas para exposições, 1 copa, “atualmente, servindo de escritório”, 1banheiro “em estado precário” e 2 áreas externas descobertas (Carvalho, 1971: 1).

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A notícia da inauguração do Museu de Folclore traz um resumo do que foi apresentado nos “vários mostruários do Museu” em sua primeira exposição, “com as suas coleções dispostas, conforme o gênero: instrumentos musicais, cerâmica figurativa e utilitária, objetos de pano e madeira, cestaria, esculturas etc., dentro do critério regional” (Noticiário, 1968: 176). O acervo reunido para a inauguração do Museu de Folclore contava, pelo menos, com dois mil e setecentos objetos (Noticiário, 1968: 105 e Nascimento, 1988: 6), compreendendo “extrema variedade de peças, oriundas de diferentes pontos do território nacional, havendo predominância da ergologia folclórica nordestina”. Reunia “peças de Vitalino [...], Ezequiel, Marluce etc.”, além de utensílios utilitários em madeira, “peças típicas do gaúcho (coleções de punhais de prata?), bombachas, peças de couro etc., de cultos afro-brasileiros, trançados, cestaria etc.” (Salles, 1968: 1). O Museu de Folclore da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro estava criado. Agora se tratava do mais difícil: dar continuidade à sua existência e ampliar suas instalações e área de atuação. O segundo diretor do Museu de Folclore foi o pernambucano,Aécio de Oliveira, que em 1969, ainda estudante do Curso de Museus, foi “nomeado diretor” do Museu de Folclore pelo Comandante Léo Fonseca e Silva62. Segundo Aécio de Oliveira, os alunos utilizavam o nascente Museu como uma espécie de “laboratório, um centro de estudos experimentais da Faculdade de Museologia”. Elaboravam e montavam exposições temporárias e davam início à documentação do acervo repassado pela Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (Especialista, 1969). O primeiro livro de registro data de 1969 (Carvalho, 1971: 2-5). A visitação do pequeno museu,“apesar de pouco conhecido e sem nenhuma divulgação” ultrapassava os 11 mil visitantes.Tinha então apenas três funcionários: uma museóloga, uma recepcionista e um guarda de sala (Carvalho, 1971). Em 1972 o Museu deixaria o “pequeno pavilhão”, sendo deslocado para o térreo do prédio anexo do Museu da República, ocupando “três salas de exposições, um gabinete e uma pequena sala para as pesquisas feitas por estudantes” (Mseu, 1972: 2). O Museu de Folclore prossegue divulgando e promovendo o folclore, apesar das limitações físicas e financeiras. Os relatórios, mesmo frisando o espaço exíguo, trazem as notícias de cursos, conferências, palestras e exposições internas e itinerantes, como na sede do Museu Histórico Nacional, no Instituto de Educação e na Associação Brasileira de Imprensa (Noticiário, 1969: 180). O Museu também participava dos eventos cívicos que foram uma das marcas do regime militar, sobretudo voltados para o público infanto-juvenil, integrando-se às comemorações oficiais dessas datas, como se pode observar na figura 1, em que ao fundo se vê o mencionado ‘pavilhão’. Mas a situação da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro foi ficando bastante precária. Em 1971 fora perdida a sede “por falta de recursos” (Nascimen ���������������������������������������������������������������������������������������������������� As relações de parceria e cooperação entre a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro e o antigo Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, também podem explicar a nomeação de Aécio de Oliveira. Este vinha do Museu de Antropologia do IJNPS, criado no bojo do Movimento Folclórico.


Lena Vania Ribeiro Pinheiro

to, 1988: 8). Na tentativa de driblar as dificuldades, realizavam-se pesquisas em parceria com outras instituições, publicava-se a Revista Brasileira de Folclore63, e apoiavam-se as iniciativas voltadas para a criação de museus de folclore pelo Brasil afora.

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Figura 1 Apresentação de dança de Pau de Fitas em frente ao Museu de Folclore, em comemoração ao 7 de setembro (Noticiário, 1970: 264)

A construção da memória do Movimento Folclórico Brasileiro e da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro percorreu vários caminhos e se utilizou de diversos instrumentos. Passou pela apropriação da noção de patrimônio, pela utilização da Revista Brasileira de Folclore como lugar de celebração da memória, e pela produção de farta documentação sobre os estudos de folclore, buscando construir no futuro a valorização do fato folclórico. À semelhança do que Chagas (2003: 144) designou de “vontade de formar e produzir continuidades”, a concretização da “vontade de memória” do Movimento Folclórico Brasileiro passou sobretudo pelos museus. Exemplo disso encontra-se em uma das várias propostas de reformulação da Campanha, com vistas a uma mais sólida institucionalização, que aponta para o caráter imaterial de alguns aspectos da cultura, que só a partir de 2000, com a edição do Decreto 3.551, que instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial, passa a ser considerado pelos órgãos de preservação do patrimônio cultural: Folclore não é visto apenas em Museus. Mas ninguém discute a importância desses órgãos e do acervo que neles, somente neles, devem ser guardados. [...] Sem museu não se estuda folclore, sobretudo num país de dimensão continental como o nosso, onde as áreas devem ser determinadas com atenção e o material classificado detalhadamente dividido em duas grandes seções: artística e utilitária, envolvendo também cultura material e espiritual64, cada qual com suas subdivisões necessárias (Proposta, [1972]).

A construção da memória institucional passou também pela negociação e por algumas concessões ao Estado autoritário, que lhe deu apoio enquanto interessaram as ações rumorosas da Campanha no sentido de uma reinterpretação das “categorias de nacional e do popular”, que permitisse “concretizar a realização de uma identidade ‘autenticamente brasileira’” através da ideologia da integração nacional (Ortiz, 1994: 130). ��������������������������������������������������������������������������������������������������� A Revista Brasileira de Folclore, editada duas ou três vezes por ano, era um importante canal de divulgação dos fatos e feitos do folclore. ������������������ Grifo da autora.


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A questão do nacional e do popular é uma questão política que vem sendo reinterpretada a cada momento histórico pelos grupos sociais que conformam a nação (Ortiz, 1994: 8). Ortiz afirma que “existe uma história da identidade e da cultura brasileira que corresponde aos interesses dos diferentes grupos sociais na sua relação com o Estado” (Ortiz, 1994: 9). Os folcloristas perseguiam uma identidade nacional genuinamente brasileira, e o regime militar dos anos de chumbo trabalha a memória nacional como prolongamento da memória coletiva popular. Sendo assim, o projeto dos folcloristas, devidamente apropriado e reinterpretado pelo discurso do Estado corresponde então aos interesses do projeto militar. É o que Pollack (1989: 8-11) chama de enquadramento da memória, ações que buscam “manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum, em que se inclui o território”. Esse trabalho de enquadramento tem limites impostos, tanto pelas circunstâncias quanto pelas regras internas do próprio grupo e, “além de uma produção de discursos organizados em torno de acontecimentos e de grandes personagens, os rastros desse trabalho de enquadramento são os objetos materiais: monumentos, museus, bibliotecas etc.” (Pollack, 1989: 10-11). Apesar dos museus construídos como rastros do enquadramento, o prestígio e a eficácia da estratégia da Campanha vão decaindo com o passar do tempo. A política para a cultura vai se mostrando insustentável na medida em que surgem os grupos e movimentos sociais que clamam por mais liberdade de ação. Os antigos estudiosos do folclore vão perdendo lugar com a morte e com a própria idade. Da mesma forma, na disputa de poder pela formação ideológica do nacional, já vinha de longe uma oposição às ideias dos folcloristas. Assim foi com Florestan Fernandes e a escola paulista de sociologia, que combatia o caráter conservador dos que consideravam o folclore como o saber tradicional, rotulando-o de atraso e retardamento cultural. Assim foi também com o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), que reuniu intelectuais de destaque na formação do pensamento social brasileiro65. Criado em 1955, com a finalidade de fundamentar ideologicamente a política nacional-desenvolvimentista do governo JK, propugnava que desenvolvimento econômico e social e fortalecimento da nacionalidade caminhavam juntos. Foi fechado pelas lideranças do golpe militar de 1964. Outro movimento que fortaleceu o combate às ideias dos folcloristas foi o Centro de Cultura Popular (CPC), criado no âmbito da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1962, “como ação revolucionário-reformista definida dentro de quadros artísticos e culturais, alimentados pela ideologia nacionalista que transpassa a sociedade brasileira como um todo” à época (Ortiz, 1994: 69). Os CPCs criticavam e questionavam a concepção conservadora que dominou os estudos de folclore. Eles acreditavam no poder conscientizador e formador de opinião da arte e, sobretudo, que “fora da arte política não há arte popular”, acrescentando que era dever do homem brasileiro “entender urgentemente o mundo em que vive” para “romper os limites da presente situação material opressora” (Calicchio, 2011). O Conceito de cultura popular se confunde com o de conscientização, como função política. O intelectual deve organizar a cultura, “tornando-se povo” ������������������������������������������������������������������������������������������������������� Como Anísio Teixeira, Ernesto Luís de Oliveira Júnior, Hélio Cabal, Hélio Jaguaribe, Roberto Campos, Roland Corbusier e Temístocles Cavalcanti.


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(Ortiz, 1994: 71-72). Seu objetivo era atingir as massas, levando a intelectualidade a com elas interagir no sentido da “desalienação da cultura”66. Nos primeiros dias seguintes ao golpe militar, a UNE foi incendiada e todos os CPCs fechados. A estratégia da Campanha, embora desgastada, sai vitoriosa, e a institucionalização tão almejada vem com a saída de Renato Almeida em 1974, quando o também folclorista Bráulio do Nascimento assume seu lugar na direção executiva da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, a convite de Manuel Diégues Júnior, que assumiu o Departamento de Assuntos Culturais (DAC) do Ministério da Educação e Cultura. A Campanha prosseguia sob os cuidados dos folcloristas e, desse modo, tinha continuidade o projeto do Movimento Folclórico Brasileiro. A gestão de Bráulio do Nascimento caracteriza-se por uma estratégia de fortalecimento, para levar a Campanha a recuperar “o tempo perdido” (Nascimento, 1988: 8). A partir de 1975 a ação governamental na área da cultura se intensifica. Elabora-se o Plano Nacional de Cultura - “primeiro documento ideológico que um governo brasileiro produz e que pretende dar os princípios que orientariam uma política de cultura” - e são criados os principais órgãos da área cultural, como a Embrafilme, a Pró-Memória e a Funarte (Ortiz, 1994: 85-86). E museus, muitos museus, dentre eles os de folclore. Popular significa tradicional, e se identifica com as manifestações culturais das classes populares, que em princípio preservariam uma cultura “milenar”, romanticamente idealizada pelos folcloristas. Dentro dessa perspectiva, o popular é visto como objeto que deve ser conservado em museus, livros e casas de cultura, alimentando o saber nostálgico dos intelectuais tradicionais (Ortiz, 2001: 160).

A ação, agora com maior apoio do governo, é mais ostensiva. Aqui é possível perceber como as ligações pessoais dos intelectuais brasileiros com a política ajudaram a conduzir os rumos da cultura no país (Miceli, 1979), e de como o governo continuava se valendo de intelectuais de destaque em seus campos de atuação para executar sua política de cultura. A intervenção pessoal do folclorista Manuel Diégues Júnior à frente do Departamento de Assuntos Culturais do Ministério da Educação e Cultura consolida a institucionalização da Campanha67. Diégues transfere pela portaria número 235, de 21 de novembro de 1974, o antigo prédio da Casa da Guarda presidencial, para sede da Campanha, que próxima ao seu Museu de Folclore, ganha maior visibilidade. O período de obras de restauração e adaptação às novas funções foi de intensa realização de exposições externas e itinerantes, e enquanto acontecia a reforma, o Museu de Folclore permaneceu instalado em dependências do Museu da República. Na nova sede foi montada uma exposição de longa duração. (figura 2). �������������������������������������������������������������������������������������������������������������� A proposta do CPC atraiu artistas e intelectuais, entre os quais Ferreira Gullar, Francisco de Assis, Paulo Pontes, Armando Costa, Carlos Lira e João das Neves. ������������������������������������������������������������������������������������������������������ Aqui vale lembrar que Diégues fez parte do Movimento Folclórico Brasileiro e “juntamente com Renato Almeida [...], Edison Carneiro, Joaquim Ribeiro e Simeão Leal [compôs] a Comissão que elaborou o projeto de Lei de criação da Campanha e de seu regulamento” (Nascimento, 1974: 1).

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Figura 2 Croqui da exposição permanente de 1975. Desenhista: não identificado. Acervo CNFCP

Contudo, as obras de construção do Metrô do Rio de Janeiro causam danos à estrutura recém reformada e inaugurada, e o prédio teve que ser fechado em sua maior parte para nova reforma que durou quase três anos, entre negociações e obras propriamente ditas. E novamente foram feitas exposições, muitas exposições... “no museu, [...] na Gulbenkian, [...] na própria Funarte, [...] na Biblioteca Nacional, na sessão de Música” (Nascimento, 1988: 21). Em 1976 a Campanha foi incorporada à Funarte, alcançando sua institucionalização. Nesse mesmo ano, através da Lei 6.353, de 13 de julho, a denominação do Museu é alterada para Museu de Folclore Edison Carneiro, em homenagem ao segundo diretor-executivo da Campanha, que havia falecido quatro anos antes. A sede da Campanha estava fechada para obras e o acervo do Museu de Folclore Edison Carneiro crescia, necessitando de mais espaço. Celia Corsino (2007), que dirigiu o Museu de 1978 a 1982, frisa que o Museu “não tinha uma área de exposição permanente, somente um depósito de objetos [e vivia] de exposições temporárias em diversos lugares”. O acervo do Museu ocupava duas pequenas salas nos fundos do prédio da Campanha, mas a equipe organizava exposições itinerantes em vários locais e “com os temas mais diferentes possíveis e sempre com o acervo do museu”, o que segundo Ferreira (2010: 3) “foi fundamental para que [o Museu] tivesse conseguido aquele espaço [da antiga garagem do Palácio], porque o museu estava sempre mostrando acervo, serviço, vontade”. Por isso a documentação do acervo museológico tomou grande impulso nessa fase. O acervo crescia e, mesmo restritos a um espaço de reduzidas dimensões e quase impróprio às atividades técnicas, os funcionários e estagiários que atuavam no Museu, voltaram-se para aprimorar a técnica de


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documentação do acervo. A interferência de Diégues também é decisiva para a aquisição da antiga garagem e instalação da primeira exposição de longa duração do Museu de Folclore Edison Carneiro em espaço próprio, inaugurada em 14 de março de 1980. Ali também foi instalada a área de trabalho dos técnicos, aí incluído um laboratório de conservação e restauro. Quando o folclore e a cultura popular passam a integrar a estrutura da Fundação Nacional de Arte (FUNARTE), e o Museu é transferido para a antiga garagem do Palácio do Catete, local de grande visibilidade dentro do Parque, a arte popular reunida e preservada pela Campanha, vem ocupar o mesmo espaço institucional e, simbolicamente, o mesmo patamar das chamadas artes plásticas e eruditas. Sobre a questão do espaço, Halbwachs (1952: 143) afirma que “não há memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial”, por ser o espaço uma “realidade que dura” e que está presente em todas as atividades humanas. O espaço não é suficiente, mas é condição necessária para a construção e reconstrução da memória. Isso parece explicar a preocupação de indivíduos e instituições quanto à delimitação de seu lugar no território. E, de fato, só quando adquire seu espaço físico em definitivo, ao lado da institucionalização, é que a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro e o Museu de Folclore ganham efetivamente seu espaço social e simbólico no imaginário popular. A partir de então, como Instituto Nacional do Folclore (INF), consagrou-se nas instâncias de estudo e disseminação da cultura popular, tanto no cenário nacional quanto no internacional. A exposição de 1980 organizou-se nos seguintes núcleos temáticos: Lúdica Infantil, Medicina Popular, Danças e Folguedos, Instrumentos Musicais, Literatura de Cordel, Religiosidade Popular e Artesanato. Esta exposição ganhou um volume da Coleção Museus Brasileiros, edição da Funarte (figura 3).

Figura 3 Capa do volume 5 da Coleção Museus Brasileiros (FUNARTE, 1981). Fotógrafo: Francisco Moreira da Costa. Acervo da autora.

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Esta publicação, além da consagração do antigo ‘Patinho Feio’, representa o reconhecimento do acervo de cunho popular como expressão artística, e prenuncia as mudanças no terreno cultural introduzidas por Aloísio Magalhães na Secretaria de Cultura do MEC, que naturalmente vão se refletir no Instituto Nacional de Folclore.

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No tocante à Museologia, as informações continuam apontando para um Museu que se valia muito da mão de obra dos estagiários de Museologia, interessados na aplicação prática das técnicas aprendidas. A tradição do período anterior, de território aberto aos estudantes de Museologia, vinha se repetindo. Daí a realização de muitas exposições temporárias e itinerantes, e nessa época, as atividades educativas e culturais ganharam grande impulso, inclusive com ações consideradas “de ponta [na época] como o atendimento a deficientes – principalmente de síndrome de Down”(Corsino, 2010: 4). A presença de estudantes, com o idealismo, o destemor e o vigor próprios da juventude, fazia com que o Museu fosse um espaço privilegiado de liberdade e experimentação. A exposição de 1980 pode ser tomada como exemplo dessa liberdade de experimentação, em que o Museu inovou em termos expográficos, com a exposição de objetos museológicos fora de vitrines. Com certeza uma ousadia, em momento de ousadias e questionamentos no território museal, mas em tempos ainda marcados pela predominância dos cânones museológicos da tradição barroseana. Nessa exposição também foi ensaiada alguma contextualização de objetos e a utilização de materiais um tanto inusitados, como seixos e barro no fundo de vitrines, numa tentativa de “aquecer” a frieza do mobiliário de fórmica (Ferreira, 2010: 8). O apuro técnico foi a marca desse período, e novas experimentações foram sendo feitas também no campo da conservação, como o uso de sílica-gel no fundo de vitrines para retirar o excesso de umidade. O empenho no aperfeiçoamento da documentação também se impôs porque o fazer museal relativo aos objetos começava a evidenciar que quando era preciso recorrer à documentação para fundamentar ações educativas e elaborar exposições que não fossem simples mostruário de objetos, faltavam informações básicas, como material, técnica, data de fatura, o contexto em que foi produzido e o histórico do objeto. No campo da política, a partir de 1975, o país entra na fase de redemocratização, na “chamada distensão” do governo Geisel, em resposta às exigências sociais de liberdade e direitos civis, pois “predominavam movimentos sociais que visavam à ampliação do espaço de discussão e dos centros de decisão nas instituições públicas e privadas” (Chauí, 1989: 50-53). O projeto estatal de liberdade vigiada pode explicar o retorno de Bráulio do Nascimento à cena institucional, e a nomeação de Manuel Diégues Júnior, um dos mais influentes membros do Movimento Folclórico Brasileiro, para o Departamento de Assuntos Culturais do Ministério da Educação e Cultura. A postura institucional, de adaptação à nova conjuntura, demonstrando o “conformismo”, por um lado, e a “resistência”, por outro (Chauí, 1989), puderam preencher as brechas que eram deixadas pelo regime ditatorial, que foi se apropriando da cultura popular em nome da identidade nacional, que desde sempre perseguiu o ideário folclorista. Assim, os lugares de memória puderam proliferar-se, como sonhavam os folcloristas, e como interessava aos representantes do


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regime militar, para promover a propalada “integração nacional” pelo estímulo controlado à cultura popular. Bráulio do Nascimento deixa a direção executiva do Instituto Nacional do Folclore em 1982, após uma gestão que foi marcada pelo fortalecimento e projeção do Instituto Nacional do Folclore em nível nacional, e pela consolidação do Museu de Folclore Edison Carneiro. Sua saída significou também o encerramento da era folclorista na condução dos destinos da Instituição, dando lugar à Antropologia e à política do patrimônio cultural. A política governamental para a cultura seguia sob nova orientação. Os intelectuais conservadores são substituídos por intelectuais mais jovens com perfil mais executivo, “aquele que representa a possibilidade real de consolidação de uma organicidade política e ideológica: os administradores” (Ortiz, 1989: 108). Aloísio Magalhães é um profissional com tal perfil e assume a Secretaria de Assuntos Culturais do Ministério da Educação e Cultura em 1979. A novidade desse período é que no plano trienal para a educação e cultura, apresentado pelo MEC em 1982, pela primeira vez desde 1964, “a Cultura Popular foi incorporada oficialmente ao projeto estatal”. Novos termos são incorporados ao texto oficial, como ‘comunidade’, ‘participação comunitária’, ‘criatividade’, entre outros absorvidos do jargão da oposição e da Teologia da Libertação (Chauí, 1989: 88-89). Sinalizava-se, já, para o uso do conceito antropológico de cultura nas políticas de patrimônio, e que viriam a sedimentar-se anos mais tarde. A atualização do conceito resulta na ampliação dos conceitos de bem cultural e de patrimônio cultural68, e que na Museologia vinha se impondo desde a Mesa Redonda de Santiago do Chile em 1972. Conceitos como identidade nacional e fato folclórico69 deixam de ser o centro das atenções. A memória e o patrimônio reinam soberanos a partir de então. A política de “patrimônio” adquire uma nova dimensão. Calcada na noção antropológica de cultura, desloca-se da aceitação de um produto único, de valor “excepcional”, e passa a ser pensada como um processo, um ressignificar-se, um fazer-se a cada modalidade de interação, a cada configuração de posições e a cada contexto histórico (Simão, 2003: 59)

Nesse cenário Aloísio Magalhães foi um dos atores principais. Empresário, designer gráfico e artista plástico renomado, com trânsito e experiência na esfera pública, é incontestavelmente um dos grandes nomes na política de patrimônio, inaugurando a fase ‘moderna’ do SPHAN, assim como o fez Rodrigo Melo Franco de Andrade, na chamada “fase heróica” do órgão de preservação (Ortiz, 1989: 124 e Simão, 2003: 60). Sua atuação não se pautou pela procura da identidade nacional, mas centrou-se nas discussões em torno da diversidade cultural característica dessa identidade, procurando integrar o patrimônio edificado, ou de “pedra e cal”, com a pluralidade das manifestações culturais, sobretudo da cultura popular. ���������������������������������������������������������������������������������������������������������� Esse processo só vem a explicitar-se na Constituição de 1988, que em seu capítulo III, Seção II, artigo 216, define patrimônio cultural (Brasil, 1988: 35), e só se constitui, reconhece e atribui novas dimensões ao patrimônio cultural com a edição do Decreto 3551, em 2000. ������������������������������������������������������������������������������������������������������������� A Carta do Folclore Brasileiro (1951) estabeleceu que “constituem o fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservado pela tradição popular e pela imitação e que não sejam diretamente influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam ou à renovação e conservação do patrimônio científico e artístico humano, ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica”.

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Por essa nova ótica “administrativa”, difusão e consumo passam a ser definidores da política cultural. Em tempos de movimentos sociais cada vez mais fortes, o acesso à cultura adquire significado de democratização, e nesse contexto, a quantidade importa mais que a qualidade. O consumo está associado à capacidade de “vender” cultura, transformando os bens da União, assim como os produtos da cultura popular, em “bens rentáveis”, trazendo com isso tanto dividendos aos cofres públicos, quanto melhores condições de subsistência às comunidades mais pobres. A Secretaria de Assuntos Culturais do MEC, de Aloísio, “define durante este período duas linhas mestras de sua política: a institucional e a comunitária”. A institucional voltava-se principalmente para a promoção de eventos e a comunitária, visava a garantir mercado para as produções populares (Ortiz, 1989: 119). Ortiz levanta duas hipóteses prováveis para essa política cultural voltada para o consumo e a rentabilidade dos bens culturais. A primeira seria consequência do momento de crise econômica. A cultura, que nunca foi prioridade, passa para segundo plano, seguindo a educação e a saúde, áreas historicamente menos favorecidas no orçamento da União, derivando daí a redução orçamentária e a preocupação com a rentabilidade dos equipamentos culturais. A outra hipótese baseia-se na ascensão dos movimentos sociais, cada vez mais fortes e reivindicativos na luta pela liberdade política e por melhores condições de vida. Em sua ação cultural voltada para a vida comunitária, o Estado busca envolver as lideranças das “comunidades de base”. Uma política cultural comunitária proporcionaria ao Estado a possibilidade de intervir numa esfera da vida social sem abrir mão de sua política econômica recessiva. A valorização da chamada cultura de subsistência não seria um passo possível nessa direção? (Ortiz, 1989: 123)

Sem dúvida, o envolvimento das lideranças comunitárias possibilitaria ao “Estado autoritário [...] não só absorver as manifestações populares (cultura e esporte), mas sobretudo ‘controlá-las’ enquanto seu promotor”. O interesse em deixar de ser apenas incentivador, como no pós 1964, para ser promotor da cultura popular, “surgiu à medida que se desenvolviam movimentos sociais populares de oposição, tornando-se necessário contê-los” (Chauí, 1989: 88-89). Os novos rumos dados ao Instituto Nacional do Folclore correspondem à mudança da política cultural como um todo, que já começava a impor-se, e vem expressa na fala de Aloísio Magalhães, em 1980. Ocorre, entretanto, que o conceito de bem cultural no Brasil continua restrito aos bens móveis e imóveis, contendo ou não valor criativo próprio, impregnados de valor histórico essencialmente voltados para o passado, ou aos bens da criação individual espontânea, obras que constituem o nosso acervo artístico [...] quase sempre de apreciação elitista. Aos primeiros deve-se garantir a proteção que merecem e a possibilidade de difusão que os torne amplamente conhecidos. [...] quanto aos segundos, basta assegurar-lhes a liberdade de expressão e os recursos necessários à sua concretização. [...] Permeando essas duas categorias, existe vasta gama de bens - procedentes sobretudo do fazer popular - que, por estarem inseridos na dinâmica viva do cotidiano, não são considerados bens culturais nem utilizados na formulação das políticas econômica e tecnológica (MAGALHÃES, 1985: 52-53 apud FONSECA, 2003: 67).


Vânia Dolores Estevam de Oliveira

Por indicação de Aloísio, Lélia Coelho Frota (1938 - 2010) assume a direção do Instituto Nacional de Folclore em 1982. Poeta, antropóloga, historiadora e crítica de arte, Lélia diplomou-se em Museologia em 1964, após usufruir de uma bolsa do governo francês para estagiar no Museu de Artes e Tradições Populares, criado em Paris por George Henri Rivière, e onde travou conhecimento com o Museu do Homem, idealizado e criado por Paul Rivet. Dentre os cargos que ocupou, destaca-se a presidência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Dedicou-se aos estudos de cultura popular, tendo se tornado uma das suas maiores especialistas (Sá, 2007: 139 e 169). Apesar de curta, a gestão de Lélia até hoje é considerada um grande marco na trajetória institucional. Esse é um período em que se operou uma grande mudança conceitual na Instituição, que passa por uma revisão geral de suas concepções museológicas e museográficas, pela introdução de novos projetos e pela incorporação de novos profissionais, agora empenhados em cunhar uma feição mais antropológica ao Museu. Com isso, reaproximou o Instituto Nacional do Folclore das universidades e centros de pesquisa70, de que se afastara desde que o estudo do folclore havia perdido toda a legitimidade junto a essas instituições. Para Mendonça (2008: 19-20), em sua análise do período de Lélia, as ações desenvolvidas pelo Instituto foram submetidas “a um processo de reconceituação [que] implicou numa ruptura com os modelos conceituais adotados pelos folcloristas e a introdução da categoria cultura popular, adotada pela antropologia”. Ao trazer para o INF a nova postura do governo para a cultura, Lélia Coelho Frota elege o Museu de Folclore Edison Carneiro como ponta de lança da sua atuação, e “aposta na transformação do Museu como o grande emblema da transformação da mudança de abordagem conceitual do Instituto”, e palco privilegiado para mostrar o novo discurso do Instituto Nacional do Folclore (Ferreira, 2007: 15), por sua comunicação direta com o público. Ricardo Gomes Lima (2008: 12), que veio para a Instituição trazido por Lélia, lembra que “o Museu aparecia para ela como campo vasto, [que ela queria semear] e ao mesmo tempo, um campo estratégico para refletir, assim, a cara dessa mudança institucional”. A nova direção do INF fortalece ainda mais o Museu de Folclore Edison Carneiro, criando ali a divisão de Antropologia, que introduzia a moderna pesquisa etnográfica em suas atividades, no intento de dar-lhe mais cientificidade. Note-se que até então o Museu respondia pelas atividades de preservação do acervo, de elaboração e montagem de exposições, e pelas ações educativas. Lélia promoveu com isso a aproximação dos profissionais do Museu com os núcleos de pesquisa já existentes no Instituto Nacional do Folclore. Com Lélia o termo folclore é praticamente banido do discurso oficial (Ferreira, 2010: 15). O termo só é utilizado quando se refere a programas e projetos do passado. Quando se refere ao presente, as expressões são cultura popular, cultura material, arte popular etc. A política institucional, agora trabalhando com o novo conceito de cultura em voga entre as ciências sociais fortalecidas, distancia-se do folclore e de suas instâncias estaduais as comissões de folclore. A reformulação da exposição de longa duração foi a linguagem escolhida �������������������������������������������������������������������������������������������������� Vilhena (1997: 28) aponta em seu trabalho que em diversos momentos os folcloristas participaram intensamente dos debates que definiram a constituição do campo das ciências sociais no Brasil.

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para transmitir ao público a mudança de postura e o realinhamento institucional, sugerindo o papel atribuído ao Museu, de veículo e vitrine das novas ideias. É comprado o imóvel contíguo à sede do Instituto Nacional de Folclore.A direção inicia o movimento interno de mudanças e o Museu é um dos principais instrumentos utilizados para operacionalização e divulgação dessa mudança. Através de um processo, que durou dois anos, de restauração e adaptação, e de elaboração e montagem de outra proposta expográfica, o prédio recém-adquirido é ocupado com a nova exposição de longa duração. Essa exposição de longa duração71, inaugurada a 10 de agosto de 1984, consistia de quatro grandes módulos temáticos: Ritos de Passagem (nascimento, casamento e morte), O Mundo Ritualizado das Festas, O Homem na Transformação da Natureza e na Produção da Cultura, e Indivíduo e Coletividade. Em exposição estavam 400 obras, e nessa época o acervo já atingia a marca dos 10 mil itens. De partida, o longo discurso de Lélia na cerimônia de inauguração é bastante elucidativo como narrativa de sua gestão. Esse discurso é quase um relatório, já que em seguida ela se afasta da direção. Sua fala aponta para o papel do Museu no contexto das novas diretrizes, e expressa suas preocupações museais, que naquele momento especial espelhava as preocupações da equipe do Museu e da comunidade museológica empenhada em mudanças. No Brasil, a classe lutava pela regulamentação da profissão e no mundo nascia o movimento da Nova Museologia. Ao abrir sua fala, Lélia Coelho Frota situa o Museu de Folclore Edison Carneiro como parte do “corpo vivo” do Instituto Nacional de Folclore e cita como objetivos “o entendimento, registro, apoio, divulgação e restituição às fontes das diversas manifestações de cultura popular em nosso país” (Frota, 1984: 1). Esclarece que o objetivo primordial é o “entendimento do homem brasileiro”, considerando a pluralidade da identidade cultural brasileira. Mais adiante, ela parece fazer questão de negar o distanciamento e a ruptura das ideias mestras sob as quais nasceu a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, quando afirma que obedece “à precisa recomendação da Carta do Folclore de 1951, que entende a nossa matéria como integrante das ciências antropológicas e culturais” (Frota, 1984: 2). Nessa fala e no Seminário realizado para apresentar e discutir a nova exposição do Museu de Folclore, Lélia torna visível a preocupação em enfatizar a continuidade de uma ação, mais do que as rupturas. E segue citando outros pontos da Carta e alguns “ilustres antecessores”, como Cecília Meirelles, Edison Carneiro, Câmara Cascudo. Ela frisa também a “permanente preocupação de integrar instituições e valores locais nos Estados [e municípios] com a ação federal” (Frota, 1984: 2-3). Após esse preâmbulo ela sintetiza o significado do Museu (e o grifo é dela) já fazendo menção ao papel social assumido pelo Museu, que já integrava o discurso do Estado, e já vinha frequentando as discussões e questionamentos do campo museológico desde a década de 1970, quando se iniciaram as inquietações em torno da função social do museu e da Museologia. ������������������������������������������������������������� A dissertação defendida em 2007 por Rita Gama, com o título “Quantos folclore brasileiros? As exposições permanentes do Museu de Folclore Edison Carneiro em perspectiva comparada”; e a tese de doutorado de Elisabete Mendonça: “Tesauro e exposições permanentes de folclore e cultura popular: narrativas sobre arte popular elaboradas pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (19802004[2006])” defendida na Escola de Belas Artes da UFRJ, em 2008, são alguns exemplos de pesquisas feitas tendo as exposições do Museu de Folclore Edison Carneiro como tema.


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Penso, portanto ter procurado deixar claro o que, para nós, é o significado do Museu de Folclore Edison Carneiro: o de um instrumento científico, educacional e divulgador, em diversos níveis, do fazer do homem brasileiro, no sentido de suscitar, dentro de nossas possibilidades, uma maior solidariedade social. (Frota, 1984: 3)

Lélia assinala que na proposta da exposição que se inaugura, o homem brasileiro é “compreendido em seus variadíssimos contextos sócio-culturais, dentro do pluralismo que constitui a maior riqueza e fonte da nossa identidade cultural”. O foco deixa de ser o fato folclórico e muda para o homem, o produtor desse fato; a pluralidade substitui a tradição que traduz unidade nacional; a visão agora admite múltiplas leituras ou ‘traduções’ (Frota, 1984: 1). No que tange à Museologia, não se trata mais de uma exposição sobre o objeto, mas sobre o homem, ator e produtor de cultura. O texto de abertura da exposição aponta para o novo partido teórico conceitual adotado, que “apresenta objetos/documentos que significam a visão de mundo e as formas de viver e relacionar-se de brasileiros pertencentes às mais diversas áreas culturais do país” e que são expressões materiais de algo que “continua vivo e se transformando lá fora, no contexto sociocultural onde os homens e as mulheres lhe dão vida e significado” (Instituto, 1982: 8-9). A proposta conceitual da exposição trazia agora a maioria dos objetos fora de vitrines. No módulo “O Mundo Ritualizado das Festas”, a nova proposta “abre um espaço para o carnaval, tema antes considerado pela instituição como fora dos seus limites de atuação. Este tema é também um exemplo da busca pela contemporaneidade da cultura popular” (Mendonça, 2008: 76). Tema que também pode servir de exemplo da “preocupação de ‘desnordestinizar’ a imagem corrente do folclore junto ao público” (Silva, 2008: 125). Preocupação que se percebe em todas as áreas de ação, desde a documentação, até as ações educativas e de difusão cultural. O Museu de Folclore Edison Carneiro adquire cada vez maior visibilidade. Seu corpo funcional, sobretudo os museólogos, passa a vê-lo para além de um simples repositório da cultura material, e procura formas de apresentar o acervo em exposição como testemunho de contextos sócio-econômico-culturais, como resultado da experiência do viver. Com isso busca atualizar-se nos métodos de documentação, conservação e exposição. O Seminário realizado em 1984 para apresentar a nova concepção da exposição de longa duração, dá amplo destaque às mudanças na técnica aplicada à preservação do acervo, especialmente no tratamento documental do acervo, que incorpora os novos recursos de som e imagem, e tem como propósito uma contextualização do objeto (Ferreira, 1984: 5). Da mesma forma que narra os avanços no uso de técnicas de conservação, uma grande preocupação da Museologia no período. Em sua fala, Lélia dá conta do quanto o Instituto Nacional de Folclore se engajou e participou da política cultural traçada pelo Estado. Ela aponta como “uma das principais preocupações não só deste Instituto como da própria Secretaria da Cultura [...] a questão da produção de artesanato e da identidade cultural” (Frota, 1984: 4) e narra a realização de Seminário sob a coordenação do Núcleo de Cultura Material do Instituto Nacional de Folclore, que chegou ao seguinte “consenso sobre a matéria: a elevação da qualidade de vida não

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pode ser dissociada das identidades culturais específicas dos grupos e indivíduos que produzem artesanato” (Frota, 1984: 4-5). Lélia discorre que a partir das recomendações oriundas desse Seminário também é criado o projeto Sala do Artista Popular (de 1983), “um espaço de frente de rua no Instituto Nacional do Folclore à disposição de grupos e indivíduos produtores de cultura popularpara que aí tenham a oportunidade de comercializar livremente o que fazem - sem separar o produtor do seu produto” (Frota, 1984: 4). Desde então a Sala do Artista Popular (SAP) é um programa que além das exposições temporárias onde se exibe a produção de artistas e comunidades artesanais situadas em seus contextos, e são disseminados os estudos do Centro, destina-se também à divulgação e escoamento da produção artesanal e artística popular. No que diz respeito ao Museu de Folclore Edison Carneiro, especificamente, é importante mencionar que nesse período a forma e a política de aquisição de acervo também sofreram um processo de transformação. A aquisição voltou-se para o preenchimento de lacunas percebidas no acervo, numa relação direta com o que se considerou representativo da cultura popular brasileira. Tinha também o intuito de coletar acervo que viria compor a exposição de longa duração, inaugurada em 1984. Tendo isso em vista, os profissionais do Museu passaram a preocupar-se com a “programação da aquisição de acervo” (Ferreira, 1984: 5-7), com base em critérios definidos de maneira mais formal. Como fruto dessa fase foi elaborado o documento “Critérios de incorporação e empréstimo de objetos”, que se pautou na legislação básica da FUNARTE, nos textos da Associação Brasileira de Museologia (ABM) e no documento “Ética de Aquisições”, do ICOM, entre outras publicações disponíveis à época. Este documento constitui-se num registro da preocupação do corpo técnico do Museu com o estabelecimento de uma política norteadora da formação de seu acervo baseada em critérios mais técnicos, prevendo até a recusa de objetos sem a devida documentação, que viessem a causar interferência ou desvalorização das manifestações populares, ou cuja doação estivesse condicionada a situações especiais de guarda ou exposição. Além disso, nessa fase se estabelece a rotina de aquisição de obras a cada nova exposição na Sala do Artista Popular, para incorporação ao acervo do Museu de Folclore Edison Carneiro. Considerando que o programa SAP já possui mais de vinte e cinco anos de atuação ininterrupta, sua importância social e econômica para o artista popular tem sido evidenciada e sua contribuição para a formação do acervo do Museu, considerável. No mesmo ano de inauguração da nova exposição, Lélia Coelho Frota deixa a direção do Instituto Nacional de Folclore72. Apesar da breve permanência à frente do INF, a narrativa institucional desde então vem repetindo que sua influência perdura nas ações do órgão, pelo menos até a inauguração da próxima exposição de longa duração (Lima, 2008: 8), em 27 de dezembro de 199473. As novas tendências apontadas pela Nova Museologia foram também preponderantes nessa permanência das ideias da museóloga Lélia Coelho Frota. Memória é construção, que envolve escolhas e disputas de diferentes grupos por diferentes memórias, em diferentes tempos. Assim vão-se construindo ���������������������������������������������������������������������������������������������������������� Aloísio Magalhães que, à frente da Secretaria de Assuntos Culturais do MEC, havia indicado a museóloga e antropóloga para a direção do Instituto Nacional do Folclore, morre em Pádua, na Itália, em 1982, quando tomava posse como presidente da Reunião de Ministros da Cultura dos Países Latinos. ������������������������������������������������������������������ Exposição ainda em cartaz por ocasião da elaboração deste texto.


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camadas de memórias que tendem a realçar determinadas lembranças e, igualmente, a apagar outras tantas. Para que uma determinada vontade de memória prevaleça há que prevalecer uma outra vontade, a vontade de esquecimento. A memória em sua construção exige que essas camadas sejam articuladas e discutam entre si. Nesta breve reconstrução da memória do Museu de Folclore Edison Carneiro, enfocando parte de sua trajetória, algumas camadas dessa memória foram reviradas e articuladas, na tentativa de resgatar algumas lembranças, talvez veladas por vontades de esquecimento.

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ARTE DOMÉSTICA E IMAGEM DA NAÇÃO: UM OLHAR SOBRE OS MUSEUS-CASA DE RUI BARBOSA E DE BENJAMIN CONSTANT

Marize Malta

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO: Muitos objetos cotidianos e domésticos que pertenceram a indivíduos do passado, ao serem musealizados, desenvolveram uma simbologia visual para futuros cidadãos brasileiros. A casa com sua decoração de interior, móveis, objetos, ou seja, com toda a sua arte doméstica, predispunha-se a ter papel significativo no projeto nacional de ordem e progresso, cumprindo um papel primordial de representante da pátria que, na sua forma institucionalizada e preservada se transformaria em museu-casa. A partir da análise das configurações dos museus-casa de Rui Barbosa e de Benjamin Constant, pretende-se lançar luz, elucidar acerca da tipologia museu-casa e refletir sobre questões como categorias artísticas, reconstituições de ambientes, domesticidade e publicidade, relação de objetos e pessoas, imagens da nação.

ABSTRACT: Many everyday and domestic objects which belonged to individuals in the past developed a visual symbology for future Brazilian citizens when they became museum pieces. The house with its interior decoration, furniture and objects, that is with all its domestic art, predisposed a significant role in the national project of order and progress thus playing an important role in representing the country, when in an institutionalized and preserved form it became a house museum. By analysing the configuration of Rui Barbosa and Benjamin Constant's house museums the text aims to shed light on house museum typology and reflect on issues such as artistic categories, interior decoration reconstructions, domesticity and publicity, the relationship between objects and people, images of the nation.

PALAVRAS-CHAVE: arte doméstica, museus-casa, imagem da nação

KEYWORDS: domestic art, house museums, the nation’s image


Marize Malta

Grande parte dos acervos existentes nos museus do Rio de Janeiro refere-se a objetos e obras produzidos principalmente no século XIX e início do século XX, doados, em sua maioria, por particulares e colecionadores (Knauss, 2001: 23-44), membros da boa sociedade residente no Rio de Janeiro, de modo a garantir a perenidade de determinada imagem de si próprios, mas que acabaram por se transformar em representantes da cultura material de toda a nação. As peças oitocentistas74 seriam as que, quantitativamente, mais corresponderiam ao desejo de memória preservada da nação. Não por acaso, boa parcela desses objetos está situada em museus cujos imóveis foram construídos no século XIX, museus motivados, por vezes, pela criação de um lugar de memória (Nora, 1984) e que se constituíram em uma espécie de panteão de heróis nacionais lidos por meio dos seus objetos pessoais e dos espaços contemporâneos a eles.

Fig.1 Salão nobre com paredes forradas em veludo, teto em estuque policromado, piso em tábua corrida sobreposto com tapete de decoração floral, espelhos bisotados, tapeçaria Gobelin, conjunto de estofado em cetim lavrado, lustre de bronze dourado, jarrão japonês e escultura em bronze sobre pedestal de mármore. Museu Casa de Rui Barbosa. Foto: Marize Malta

Muitos objetos cotidianos e domésticos que pertenceram a indivíduos do passado, ao serem institucionalizados e exibidos, desenvolveram uma simbologia visual para os futuros cidadãos brasileiros que, pela observação das peças expostas publicamente, corroboravam um desejo de construção de uma memória social (Halbwachs, 1990), válida para toda uma coletividade. Nesse processo, as coisas materiais auxiliavam a desenvolver formas não convencionais de comunicação e de exercícios de poder. Assim, reforçava-se a ideia de que objetos possuíam um papel importante na vida das pessoas75 e na construção da memória da nação. ��������������������������������������������������������������������������������������������������������� Tomamos como premissa o longo século XIX, que abarca fins do século XVIII até fins da República Velha. 75 Alguns trabalhos, nos últimos anos, têm se debruçado sobre a relação dos objetos com as pessoas e reavaliado sua importância para a construção da autoimagem de seus proprietários (Cohen, 2006 e Jones, 2007).

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Arte doméstica e imagem da nação: um olhar sobre os museus-casa de Rui Barbosa e de Benjamin Constant

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Esses artefatos compunham as mais variadas categorias e conforme classificações que recebiam eram predestinados a certos tipos de museu: de história; artes visuais; antropologia e etnografia; arqueologia76. A divisão levou a que certos grupos de artefatos só fossem acolhidos se condizentes com a natureza da instituição. O procedimento realçou as compartimentações disciplinares do conhecimento, os conceitos dominantes da boa arte e do bom objeto, dispersando o conjunto de coisas com que se conviviam e que foi amealhado ao longo de uma vida. Quadros e esculturas iriam para museus de belas artes, borboletas para o museu de história natural, vasos marajoaras para museus de antropologia, xícaras e jarrinhas para o museu histórico. Dessa maneira, todas as peças que estiveram reunidas, algum dia, dispersaram-se e cada subgrupo de artefatos procurou dar conta de uma determinada identidade, fragmentando a relação objeto e memória e personalidade que, de forma ampla, complexa e dinâmica, dava-se na cotidianidade dos espaços de moradia.

Fig.2 Canto da sala de entrada com paredes em pintura decorativa pompeiana, piso em tábua corrida, bergère em couro capitonê, abajur de pé. Museu Casa de Rui Barbosa. Foto Marize Malta

Oscar Wilde, em 1890, afirmava que a arte mais francamente decorativa era a arte com que se vivia (2002). Wilde falava, portanto, de uma arte próxima, ao alcance das mãos, corriqueira, uma arte banal, uma arte doméstica. Os objetos de casa se colocavam como referências próximas, frutos de uma cultura material compartilhada nas práticas do vivido. Esses objetos, bem como o espaço que os circundava e o modo como estavam dispostos, foram, no século XIX, alvo de um projeto social que delegava ao lar a missão de educar os futuros cidadãos, transpondo para a arte doméstica os primeiros ensinamentos estéticos que iriam conformar espíritos civilizados e refinados (Malta, 2011a). A 76 Atualmente está vigente a seguinte tipologia de coleções: antropologia e etnografia; arqueologia, artes visuais (inclui as artes aplicadas); ciências naturais e história natural, ciência e tecnologia; história; imagem e som; virtual; biblioteconômico; documental; arquivístico (GUIA DOS MUSEUS BRASILEIROS, 2011: 19-20).


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casa com toda a sua decoração, formada por padrões, cores, materiais e formas diversas, predispunha-se a ter papel significativo no projeto nacional de ordem e progresso, cumprindo uma função primordial de representante da pátria que, na sua forma institucionalizada e preservada se transformaria em museu-casa. Por outro lado, os museus, segundo Gaskel (1992: 235-271), seriam repositórios de dois tipos de objetos: de peças obsoletas que representam um determinado ofício, um acontecimento, um comportamento (museus históricos, museus de tradição popular, etc.) ou de coisas de valor estético (museus de belas artes). Nesse universo, os museus-casa se estabelecem em terreno delicado e instável porque lidam com tipos de objetos que podem ser uma coisa e outra ou nem uma coisa nem outra: podem ser arte em casa ou uma casa ‘com arte’ ou um museu em casa, dificultando aproximações para o estudo de seu acervo. A maioria dos museus-casa, no Brasil, relaciona-se ao século XIX, reforçando a ideia de que a casa, a domesticidade e a decoração existiriam como manifestação consciente somente nos oitocentos. Se nos valermos da quantidade de casas históricas preservadas, cujos acervos correspondem a épocas anteriores ou posteriores ao século XIX, elas estão em desvantagem, predominando aquelas que correspondem ao período imperial e início da República. No Rio de Janeiro, frente ao papel desempenhado pela cidade para a história política do país, há bons exemplos de casas históricas, muitas delas musealizadas. Porém, poucas possuem acervos materiais de época, preservam os ambientes interiores do século XIX e correspondem a escolhas de uma única família, de modo que se tenha um universo controlado para uma análise complexa da arte doméstica oitocentista. Cumprindo esses requisitos, encontramos os museus-casa de Rui Barbosa77 e de Benjamin Constant78, cujas decorações domésticas foram até hoje pouco exploradas pelas histórias – social, cultural e da arte. O museu-casa de Rui Barbosa situa-se na rua São Clemente, 134, no bairro de Botafogo, e o museu-casa de Benjamin Constant está na rua Monte Alegre, 255, em Santa Teresa. Ambas as instituições são federais, submetidas ao Instituto Brasileiro de Museus e recebem visitantes que ainda hoje se surpreendem com aqueles interiores cuidadosamente montados com cores, móveis e objetos tão diferentes dos usados hoje em dia. Ao adentrarmos nesses museus, temos a sensação de que atravessamos um portal do tempo. Em seus ambientes, encontramos vestígios de outra época, observamos como decoravam as casas, que móveis e objetos foram escolhidos, usados e arranjados para satisfazerem necessidades estéticas, operacionais, psicológicas e simbólicas da família que ali viveu. Uma arte doméstica parece se materializar. Passeando pelos espaços das casas de Rui Barbosa e de Benjamin Constant não encontramos apenas objetos de estilo, ligados à leitura da tradição da história da arte. O valor das peças não está, de imediato, em suas qualidades estéticas. As peças se exibem pelo valor do proprietário para a história nacional, são símbolos de seus gostos e modos de vida. São objetos relíquias, diferentes de peças localizadas em museus de arte e de artes decorativas. ������������������������������������������������������������������� Para maiores informações, visite o site www.casaruibarbosa.gov.br ������������������������������������� Para maiores informações, visite o blog http://www.museubenjaminconstant.blogspot.com/

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Fig.3. Biblioteca de Rui Barbosa com os altoarmários-bibliotecas envidraçados, escrivaninha ao fundo, cadeiras e poltronas em madeira e couro de sola gravado e esculturas em bronze. Museu Casa de Rui Barbosa. Foto: Marize Malta

Nos museus de arte houve pouco espaço reservado para os ditos objetos decorativos, pois se acreditou que estariam deslocados, em lugar impróprio. Como não houve nem há no Brasil museus dirigidos às artes decorativas, os móveis e acessórios oitocentistas foram levados para museus de interesse histórico, desenvolvendo a ideia de que os museus históricos seriam o lugar natural de destino desses objetos.79 O acervo do museu-casa tem valor documental relevante, representa um gosto datado e individualizado de determinada família. A princípio, os objetos não fazem parte do acervo porque um curador os escolheu, mas porque os moradores, segundo convenção, necessidades cotidianas, estilo de vida, oferta da época e gosto, elegeram aqueles objetos. Os acervos, assim, podem nos sugerir como era a dimensão decorativa a partir das práticas do vivido. Pelo menos é o que a museografia nos faz acreditar. Diferentemente de peças transpostas para museus históricos, caso em que tomam mais facilmente a classificação de semióforos80, estamos diante de móveis em seu lugar de idealização, uso e convívio. Sentimos que eles estão em casa. Contudo, ao considerá-los documentos, ao desejarmos melhor compreendê-los e, por meio deles, chegarmos perto das pessoas que os usavam e de seus hábitos cotidianos, alguns incômodos se apresentam. 79 O uso da expressão ‘meramente decorativo’, no decorrer do século XX, apontou para uma condição do objeto como algo inútil. Paralelamente, aquilo que ‘não seria mais necessário’ iria para o museu ou viraria coisa de museu. Na sequência desse raciocínio, aquilo que fosse simplesmente decorativo seria predestinado ao museu e um objeto decorativo seria próprio para ser um dia musealizado. Ele já seria potencialmente peça para museu. ����������������������������������������������������������������������������������������������������� Objetos que não servem para serem usados, mas só para serem expostos ao olhar (Abreu, 1996: 43-44).


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Fig.4 Dormitório do casal Maria Augusta e Rui Barbosa, com paredes em papel de parede, janelas com sanefas, cama em latão, genuflexório, cômoda-toalete com bacia e gomil, um par de cadeiras de quarto, crucifixo, arandelas em opalina. Museu Casa de Rui Barbosa. Foto: Marize Malta.

Quando entramos em um museu-casa, tendemos a colocar nossa própria e única experiência de habitar como ponto de partida para analisar o ambiente doméstico estranho ao nosso tempo. Ficamos curiosos em saber como então moravam os que um dia foram os donos daquelas coisas e transitavam naquele espaço. Somos imbuídos de um forte voyeurismo na medida que temos a sensação de invadir a intimidade de outros. O museu, todavia, só permite ao visitante a fantasia do voyeur. A questão é o que permitir ao voyeur observar, o que ocultar e o que deixar à vista, o que fechar e o que abrir ou, em termos expográficos, o que priorizar, apresentar: uma casa antiga, uma coleção de objetos, um acervo histórico ou uma recolha de coisas curiosas, dentre tantas outras possibilidades. Dificilmente encontramos uma museografia que enfatize a pouco explorada arte doméstica. Normalmente não se contextualiza o uso e a forma dos objetos dispostos. No geral, as legendas, colocadas ao lado de cada objeto (que segue a tradição das obras de arte), traduzem em palavras o que os olhos já observaram.Algumas informações são ampliadas, como data ou fabricação do objeto (Sèvres, Gobelin, Companhia das Índias...). Esse processo induz acreditar que as peças falam por elas mesmas. Para o visitante, alguns objetos só são entendidos ao se recuperar as práticas sociais com que esses objetos conviviam e serviam. Quando certas práticas não estão mais na ordem do dia, viraram coisas do passado, os objetos relacionados a elas podem parecer estranhos aos olhos do tempo recente. É o caso, por exemplo, das rasteiras cadeiras de costura, das escarradeiras, das peniqueiras, das mesas-trinchantes.


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Fig.5 Copa com piso em ladrilho hidráulico, azulejo a meia altura, bancada com pia sobre base em madeira pintada a óleo, filtro de água, identificador de chamada. Museu Casa de Rui Barbosa. Foto: Marize Malta

Fig.6 Sala de visitas com paredes forradas em papel, piso em tábua corrida, conjunto de canapé e cadeiras em madeira e couro de sola gravado, mesa e recamier, tela com moldura dourada. Museu Casa de Benjamin Constant. Foto: Marize Malta


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Os espaços, dinâmicos no cotidiano, parecem estatizados nos museus. Preservando inalterados, objetos e arranjos apresentam ideia de aprisionamento do tempo. Esse desejo de tentar suspender a voracidade do tempo passa a impressão de uma fictícia segurança: toda vez que o visitante volta ao museu encontra a peça exatamente no mesmo lugar. Nada mudou. O museu reforça a ideia de uma instituição que tem o poder de imunizar o desgaste daquilo que está sob seu jugo, de oferecer ampla segurança e que, portanto, é o lugar refratário ao passar do tempo. Quando objetos entram por suas portas parece que foram banhados por um elixir e agraciados com a vida eterna. Da manipulação cotidiana, as peças se estatizaram para serem usadas visualmente. Ao terminarmos uma visita a museus-casa, saímos convencidos de que assim vivia aquela família. Entretanto, diante da necessidade de segurança dos museus, dificilmente chegamos perto de uma organização cotidiana. As pessoas daquele tempo se foram. Seus pertences, enclausurados em vitrines. Aquilo que era devidamente guardado, posto fora do alcance dos olhos de estranhos, pode ser evidenciado, vir a público. Aquilo que se tinha por hábito deixar à vista, pode ser ocultado em uma reserva técnica. Com essas acomodações, a decoração passa a ser de outro tempo. Mais uma questão que os museus-casa nos coloca, é que a casa parece sempre estar arrumada para um dia de festa, mesmo que não esteja enfeitada para tal81. Tudo parece extremamente arrumado e esperando os convidados. A arrumação, contudo, não foi realizada pelos moradores originais, mas por profissionais que têm como tarefa a preservação daqueles espaços e coisas. Tudo é apresentado no seu estado quase novo – bem polido, bem lustrado, bem restaurado, como se as coisas fossem imunes ao desgaste. Essa condição nos leva a questões tais como: será que todos os móveis tinham aparência de novo? não existiria uma convivência entre os antigos e gastos objetos com os mais recentes? não haveria momentos de desalinho dos móveis e dos objetos? e ainda, o que hoje é considerado arrumado tinha a mesma disposição no passado? São perguntas que estão relacionadas à preocupação com a autenticidade, valor com que a tradição da história da arte se ocupou, principalmente em relação aos objetos de arte. Em alguns catálogos de museus, a situação do objeto enquanto coisa célebre acirra-se. Podemos encontrar itens de destaque do acervo vistos isolados, seguindo prática dos estudos de artes decorativas. Raramente observamos estudo do conjunto das peças de determinado cômodo, o papel de cada objeto dentro do conjunto, a forma de arranjo, a hierarquia, a importância para os moradores, como percebiam os objetos e como os usavam, que sentidos lhes atribuíam, etc. Essa dimensão cultural e material das relações dos objetos entre si e do seu convívio com as pessoas é suprimida do público. Não se encontra a arte doméstica. Os museus, desde sua origem (Chagas, 1997: 177-199), foram predestinados a abrigar a conjunção entre memória e poder. Os móveis, as peças decorativas, a decoração de interiores seriam repositórios de memória e afiançariam �������������������������������������������������������������������������������������������������������� Durante os dias de festa, era comum enfeitar a casa com arranjos florais que podiam pender dos tetos, estar fixados em paredes, acompanhar os movimentos das sanefas das cortinas, circundar em festões as mesas, dialogando com buquês e corbeilles assentes em mesas, consoles e pedestais. Além disso, conforme o número de convidados e tipo de cerimônia, o arranjo e o número dos móveis se modificavam, o que levava a encontrar uma ambiência bem diferente daquela comum ao dia a dia.

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a perpetuação da história de homens públicos, como resultado de negociações políticas que escolheram consagrar um ou outro cidadão para simbolizar a história nacional, na sua versão desejada.

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Se os museus podem ser fontes para pesquisas históricas “a produção do conhecimento histórico deve ser indissociável do conhecimento (histórico) da produção do documento, no seu sentido mais amplo” (Meneses, 1994: 24). É preciso conhecer os passos da construção da memória de cada decoração-museu. Cada museu teve sua história de formação do acervo, mostrando que a decoração em museu possui tempos diversos e o que se apresenta ao visitante é um somatório de tempos sobrepostos e justapostos. O museu-casa de Rui Barbosa foi inaugurado em 13 de agosto de 1930 e o museu-casa de Benjamin Constant abriu suas portas em 18 de outubro de 1982, apesar de ambas as casas serem contemporâneas e tratarem de ambientes de fins do século XIX. A casa de Benjamin Constant foi a primeira a ser alvo de interesse de preservação pela União, logo após a morte de seu patrono, em 1891, mas só se transformou em museu muitas décadas depois. A recém-fundada República, a partir da sua primeira Constituição, determinava a compra da casa, que permaneceria em usufruto da viúva de Benjamin, Maria Joaquina. A intenção de transformar a casa de Benjamin Constant em um monumento da República apontava para um projeto de construção de novos heróis, fazendo com que na primeira Constituição provisória da República a compra da casa fosse assinalada.82 Da mesma época também datou a proposta da conversão da casa em museu, projeto que Demétrio Ribeiro apresentou ao Congresso Nacional. Já o interesse pela preservação da casa de Rui Barbosa e de sua biblioteca datam de 1923 e promoveu menor intervalo de espera entre a compra do imóvel e sua abertura enquanto museu. A aquisição da casa de Rui Barbosa foi decorrente do projeto nº 114 do Senado, apresentado em 1923 pelo senador Antônio Azeredo que sugeria a compra do imóvel com mobiliário, biblioteca, arquivo, manuscritos e obras inéditas. Entretanto, o desejo de preservação do patrimônio intelectual de Rui já se antecipava pelos procedimentos dos familiares, principalmente pelas ações de Maria Augusta, a viúva. Ela solicitou um levantamento dos títulos de todos os livros do marido, de modo a justificar a importância daquele acervo para a nação. Cada livro constou nominalmente no inventário de Rui Barbosa. Em 1924, alguns decretos permitiram abertura de crédito para a concretização do projeto83 e segundo depoimento de João e Octavio Mangabeira, envolvidos com o projeto: “Realizada aquisição, o Governo destinará o edifício e as instalações ����������������������������������������������������������������������������������������������������� A casa em que residia Benjamin Constant e a família não era própria. O imóvel pertencia a Antônio Moreira da Costa Santos, cujas iniciais estão marcadas no gradil do balcão de um dos quartos da casa. Após a União comprá-la, a viúva Maria Joaquina e, depois, a filha solteira Araci, ainda nela residiram, por usufruto, até 1961. 83 Decreto n. 4.789, de 2 de janeiro de 1924, que Autoriza o Poder Executivo a adquirir a casa em que residiu, o senador Ruy Barbosa, com mobiliario, bibliotheca, archivo, etc, assinado pelo presidente Arthur Bernardes. Decreto n. 16651, de 23 de outubro de 1924, que Abre, ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, o crédito especial de 2.965:000$, para pagamento em apólices da Dívida Pública Interna, das despesas com aquisição da propriedade intelectual das obras do senador Ruy Barbosa e da casa em que o mesmo residiu, nesta cidade, com a biblioteca, os manuscritos e arquivo. Os decretos podem ser acessados pelo site da Fundação Casa de Rui Barbosa, no item Sobre a Fundação e Cronologia Institucional. Disponível em: < http:// www.casaruibarbosa.gov.br>. Acessado em janeiro de 2012.


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Fig.7 Sala de jantar com paredes forradas em papel, piso em tábua corrida, armário de canto para guardar remédios, bufê, rede, mesa com cadeiras, cadeira de balanço e canapé em madeira e palhinha, lustre em cristal gravado. Museu Casa de Benjamin Constant. Foto: Marize Malta

Fig.8 Gabinete de Benjamin Constant, com paredes forradas em papel, piso em tábua corrida, lustre à gás, armáriobiblioteca, escrivaninha sobreposta por caixa, castiçal com manga, portaretrato e porta-cartões, cadeiras em madeira e palhinha. Museu Casa de Benjamin Constant. Foto: Marize Malta


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atuais para servir de museu-biblioteca, como homenagem à memória daquele ilustre brasileiro, ou a dar o destino que julgar mais conveniente”. (Mangabeira; Mangabeira, 1924: 63)

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Em ambos os casos foi a ação no mundo da política, da ação pública, dos personagens – Benjamin Constant e Rui Barbosa – que fez com que se pensasse em preservar suas memórias. A diferença em relação a outros projetos de construção da história da nação está na opção de escolher não coisas do mundo oficial, mas as casas em que moraram para simbolizarem sua existência, considerada de grande importância para a nação, para o âmbito da res publica.84 Não se tratava de erigir esculturas monumentais, de construir bens tangíveis, para que suas memórias encontrassem resguardo e servissem de lembretes para gerações futuras em praças, avenidas ou largos. Não bastava posterizar em esculturas públicas as imagens de Rui Barbosa e Benjamin Constant por meio da interpretação de determinado artista. Preservava-se o que era próprio de suas vidas familiares, aquilo que materialmente circundava suas vidas domésticas, privacidade, íntimo. Também não era o caso de apenas recolher objetos pessoais que dessem conta de representá-los e expô-los em vitrines ou seções de grandes museus. Eram suas casas que ocupavam o espaço do monumento, ou seja, elas se transformavam em monumento, em história, em lugar de memória. As duas propriedades são tombadas pelo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no livro de tombo de bens históricos – a casa de Rui em 11 de maio de 1938 (também inscrita no livro de belas artes) e a de Benjamin em 2 de abril de 1968. Elas foram preservadas pelo vínculo com seus antigos donos e não por um possível valor artístico dos ambientes interiores e objetos de uso, sua arte doméstica. Por mais que não fosse contemplada como valor artístico ou histórico, a arte doméstica seria a melhor representante de uma casa como ideia de memória, pois ninguém pensa em casa vazia. Pessoas moram com coisas e nos intervalos de espaço entre as coisas. Após a morte de Rui Barbosa, em 1923, sem que houvesse uma ação efetiva para a manutenção dos móveis e objetos na casa, seus bens foram dispersos entre herdeiros e em leilão, evento ocorrido em 23 de dezembro de 192485. Parte dos objetos permaneceu com Maria Augusta, a viúva, que, mudando para uma casa menor no bairro de Copacabana, restringiu o número de peças com que iria conviver. Somente entre 1926 e 1930, tendo importante articulador o presidente Washington Luís86, deu-se por concluída a aquisição do imóvel, a reconstituição do terreno original e o início da recolha dos móveis e demais objetos que comporiam a decoração da casa, para dar conta da museografia de um museu-casa, o primeiro do país. Alguns itens não pertencentes a Rui foram adquiridos para montar a incipiente ambientação87. Em 13 de agosto de 1930 84 Os dois acervos, que representariam seus donos, considerados heróis republicanos, foram construídos a partir do período imperial, compreendendo móveis e objetos anteriores e posteriores à República. Não cabe, assim, uma tentativa de classificar seus interiores e objetos como imperiais ou republicanos. �������������������������������������������������������������������������������������������������������� O anúncio do leilão e o seu catálogo foram publicados no Jornal do Comércio de 21 de dezembro de 1924. 86 Decreto n. 17.758, de 4 de abril de 1927, que Crea o Museu Ruy Barbosa e approva o seu regulamento. Decreto n. 5.566, de 5 de novembro de 1928, que Autoriza o Poder Executivo a despender a quantia de 350:000$000, para attender á acquisição do mobiliario que pertenceu a Ruy Barbosa e a despezas complementares da installação da Casa de Ruy Barbosa. Ambos assinados pelo presidente Washington Luis. ��������������������������������������������������������������������������������������������������� A aquisição ou doação dos objetos que pertenceram à casa de Rui Barbosa foi fruto de um processo


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inaugurava-se o museu-biblioteca, assim chamado porque os 37 mil livros de Rui Barbosa nunca saíram da casa, e foram o primeiro grande alvo de interesse de preservação, muitos permanecendo nos lugares designados por seu dono. A ideia de cultuar o homem público por meio de sua casa e livros se materializava. No caso do museu-casa de Benjamin Constant foi preciso esperar um pouco mais a abertura do museu. Em 18 de outubro de 1982, o jornal Tribuna da Imprensa anunciava: “Museu vai homenagear político republicano. A Fundação Pró-Memória do MEC vai inaugurar hoje, no Rio, o novo museu Benjamin Constant, montado no próprio sobrado onde morou o republicano”88. Ao afirmar que o museu de Benjamin Constant instalava-se na casa em que o próprio havia morado, chamava-se a atenção para a situação: sua antiga casa abrigaria o seu museu ou o museu ficaria em sua própria casa. Ao se optar por preservar as casas de dois cidadãos ilustres, referendava-se a valorização dos lugares em que passaram boa parte de suas vidas, envolvendo privacidade, intimidade, familiaridade. Casas não representavam apenas ideias em materialidades, cujos significados foram atribuídos por outras pessoas, mas continham espaços e coisas impregnadas da vivência dos moradores. Cada canto ou cada coisa possuía sentido para Rui Barbosa e para Benjamin Constant. Acreditava-se que o objeto seria evocador de lembranças, um intermediário do pensamento de seus donos. Atribuíam-se aos espaços de vida doméstica o poder de evocar com mais fidelidade e maior facilidade o caráter dos dois ilustres brasileiros. Os espaços de trabalho ou de convivência pública, em que a impessoalidade dominava, opunham-se aos espaços da morada, impregnados com exclusividade pelas características dos moradores, sendo ‘naturalmente’ fiéis mediadores de suas memórias. As casas ofereciam a oportunidade de irem além dos personagens Rui Barbosa e Benjamin Constant, levando o público a conhecer Rui e Benjamin. Fazer da casa um monumento, símbolo de seus eminentes moradores, implicava assumir vários compromissos. Ao se escolher a casa como geografia de memória, era preciso apresentá-la de modo que o público a reconhecesse como tal. Haveria a necessidade de remontar todos os ambientes nos mínimos detalhes para a casa se mostrar verossímil. É bastante flagrante observarmos, por exemplo, as reportagens em jornais que anunciavam abertura ou reabertura do Museu Benjamin Constant, entre os anos de 1980 e 1990. Em praticamente todos eles a questão da reconstituição era demarcada e apontava para o quanto de confiável o público estava sendo convidado a ver. Expressões como “todos os seus ambientes reconstituídos”89, “no interior totalmente reconstituído com móveis de época”90, “remontado exatamente como no século XIX”91 nos fazem perceber que a reconstituição fazia parte de um movimento de afirmação do próprio sentido de museu-casa. No folheto explicativo sobre o museu, que circulava nos primeiros anos de 2000, registrava-se que o museu-casa fora gradual. A mobília do quarto do casal, por exemplo, só chegou ao museu em 1952. �������������������������������������������������������������������������������������������������������� Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 18-10-1982. [Arquivo do IPHAN, Caixa 0714, pasta 2706/02, fl.269] ����������������������������������������������������������������������������������������������������� Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 25-05-1991.[ Arquivo do IPHAN, Caixa 0714, pasta 2706/02, fl. 289] ����������������������������������������������������������������������������������������������������� Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17-01-1987, Caderno da Cidade. Coluna Serviço, p.6. [Arquivo do IPHAN, Caixa 0714, pasta 2706/02, fl. 287] ������������������������������������������������������������������������������������������������������ O Globo, Rio de Janeiro, Rio Show, 24-05-1991. [Arquivo do IPHAN, Caixa 0714, pasta 2706/02, fl.288]

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(...) criado em 1982 pela então Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e Fundação Nacional Pró-Memória com o propósito de reconstituir o ambiente familiar e o contexto sociocultural em que viveu uma das figuras de maior destaque da história republicana do país.

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Portanto, caso um dito museu-casa não apresentasse imagens reconstituídas de ambientes domésticos, perderia sua razão de ser e sua autenticidade, firmadas sobre lugares e objetos autênticos, como muitos museus históricos no século XIX se propuseram (Haskell, 1993: 279-303). O museu-casa de Rui Barbosa passou por ampla reforma nos anos 1960 e início dos anos 7092. Os papéis de parede foram trocados (Casa Davi), estofados e cortinas reformados (Libonatti), trazendo nova atmosfera à casa, aproximando-a de um universo doméstico convincente, mas sem um compromisso histórico estrito. No entanto, naquele momento, a casa não podia ser visitada e compreendida na sua totalidade, pois se usava parte do imóvel para instalação dos serviços administrativos da instituição (sobrado, área de serviço e algumas outras salas). Cômodos de menos importância social, como quartos de vestir e dependências de empregados, não precisavam ser mostrados. Acreditava-se que os aposentos sociais de recebimento seriam suficientes para compreender a casa93. A imagem da decoração das casas deveria passar uma atmosfera de harmonia, ordem, felicidade, amor, fatores considerados inerentes à família e ao lar ideais, ambos construídos no século XIX. Para isso a reconstituição dos ambientes era imprescindível – quanto mais as imagens conseguissem transmitir esse paradigma, melhor transmitiriam seu discurso. A mesma crença que atribuía aos quadros de gênero ou de naturezasmortas suportes fiéis da realidade (Alpers, 1999), alcançaram as práticas museográficas e, desse modo, quanto mais naturalista a casa fosse, mais evocativa de realidade seria, mais o visitante acreditaria na presença (mesmo fantasmagórica) de seus antigos donos, mais ele se convenceria de que Rui Barbosa chegaria a qualquer momento ou de que Benjamin Constant adentraria pelo seu gabinete. Como um quadro de gênero de interior doméstico94, aqueles interiores eram representações. Simulavam uma determinada realidade, construída de acordo com tempos e sujeitos envolvidos e práticas de olhar. Certamente, para que o público pudesse usufruir dessa intimidade, a casa não podia mais ser casa. O que era pessoal virara público, o acervo dirigia-se ao público, a casa se transformava em um símbolo coletivo. Facilitava-se a preservação do mito através de suas fantasmagorias, além de sua própria imagem como fantasma (Evres, 1997: 221-224), pois não custa lembrar que fantasmas são presenças invisíveis e exclusivas das habitações onde moraram quando vivos. No caso do museu de Benjamin Constant, coube basicamente à museóloga Hercília Canosa Viana empreender a árdua tarefa de transformar aqueles espaços ������������������������������������������������������������������������������������������������ As informações acerca da história da museografia da Casa Rui foram pesquisadas pela museóloga Cláudia Barbosa Reis e reunidas em texto não publicado, datado de maio de 2007. A cópia do texto foi cedido pela museóloga, a quem muito agradeço pela gentileza. ����������������������������������������������������������������������������������������� Hoje no Museu Casa de Rui Barbosa o número de cômodos acessíveis ao visitante aumentou significativamente, mesmo que ainda exista um ou outro recinto na ala de serviço que permanece fechado. Podem-se ver banheiros, cozinha, gabinete íntimo, quarto de empregada, além dos cômodos de recepção e trabalho. ����������������������������������������������������������������������������������������������������� A respeito da relação entre as representações dos interiores domésticos em pintura e a pintura nos interiores domésticos em fins do século XIX (Malta, 2011b: 867-873).


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vazios e abandonados95 em imagens que demonstrassem não só a vida familiar de fins do século XIX, mas a vida da família Benjamin Constant. A museóloga, nos idos anos de 1970, lançou mão da memória dos familiares, visto serem praticamente inexistentes fotografias do interior da casa e documentos que servissem de indícios quanto à disposição dos móveis. Acompanhando os ofícios enviados ao Iphan, é possível mapear o percurso da museóloga para transformar o vazio em um convincente lugar de memória familiar dessa época – um museu-casa. Foram recolhidas peças e reunidas sob determinado arranjo para aparentarem o que teria sido a casa de Benjamin, mas, potencialmente, deveriam representar uma casa para toda a nação. D. Hercília contou com o neto Benjamin Constant Fraenkel, que não conheceu o avô, mas viveu na casa por alguns anos, no início do século, e formou uma imagem do avô pelos relatos de parentes e amigos da família. Uma série de cartas de Benjamin Neto à museóloga, pertencentes ao arquivo do museu, oferece as pistas de suas memórias e de onde certas escolhas museológicas se basearam. Há até desenhos rabiscados de objetos, elementos arquitetônicos, arranjos de móveis, alguns dos quais serviram até como modelo para reproduções. Peças foram doadas, paulatinamente, pelos herdeiros. A casa, assim, é também resultado da vontade dos herdeiros em ver preservada a memória de seu antecessor. A própria museóloga foi doadora de peças para compor a reconstituição dos ambientes da casa de Benjamin Constant, como cadeiras, armário, garrafas, limpa-pés, que constam nas fichas museográficas e documentos dos arquivos do museu. Ao inserir objetos domésticos em museus, novas imagens eram construídas, de modo que outros significados lhes fossem atribuídos. Seu sentido doméstico se coletivizava, sua inserção decorativa se transformava. Os móveis, os objetos e seus arranjos transformavam-se em novos documentos, pois eram (...) antes de mais nada o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. (Le Goff, 1996: 547)

Tanto no museu-casa de Benajmin Constant quanto no de Rui Barbosa, cada geração de museólogos recebeu peças de doadores ou descendentes, recuperou revestimentos antigos, vestiu os espaços, permitindo reinventar a autenticidade do acervo e reforçar a veracidade do lugar. Novas decorações eram propostas a partir das recentes aquisições, das necessidades de preservação, dos conceitos museológicos, reinventando a arte doméstica do passado. A combinação de coisas certas nos ambientes condizentes não é nada fácil de se encontrar.Tal qual uma boa peça teatral, a museografia de um museu-casa dramatiza uma história imaginada e cada geração escreve a sua versão da história, procurando convencer de suas verdades. Se cada geração do passado desenvolveu sua idealização de casa e toda casa muda com o tempo, a arte doméstica constrói-se na mobilidade, na natureza modificante da orquestração de objetos, revestimentos e sensações promovidas pelo conjunto em disposição. ������������������������������������������������������������������������������������������������������ O imóvel foi devolvido ao Estado em 1961, após morte de Aracy, filha solteira de Benjamin Constant, mas somente na década seguinte se iniciaram os trabalhos para transformar a casa em museu.

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Fig.9 Dormitório do casal Maria Joaquina e Benjamin Constant, com paredes forradas em papel, piso em tábua corrida, cama em ferro, portatoalha, criado-mudo com castiçal e porta-retrato, mesa-toalete com toalha, bacia, pincel e navalha e, assente à parede, par de espelhos para toucador. Museu Casa de Benjamin Constant. Foto: Marize Malta

Fig.10 Quarto de costura, com paredes forradas em papel, piso em tábua corrida, baú sobre pedestais, estante em ferro e madeira, mesa com máquina de costura, cadeiras, armário, tela com moldura dourada e arandela em vidro. Museu Casa de Benjamin Constant. Foto: Marize Malta


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A natureza instável do museu-casa, ao mesmo tempo que se aproxima das práticas vividas, dificulta encarar a arte doméstica como uma produção artística e cultural digna de figurar nos livros de arte. Não se sabe o autor da obra (a decoração da casa foi feita a muitas mãos) e a obra (os ambientes interiores com coisas) se reinventa e se modifica conforme os tempos, desestabilizando uma pretensa autenticidade que a legitimaria na seara da tradicional história da arte. Ao mesmo tempo, cada intervenção realizada nos museus-casa de Rui Barbosa e de Benjamin Constant atualizou seus espaços e aparências, aproximando-os das expectativas dos visitantes, de uma recepção coletiva. Se, para os céticos, aquela arte doméstica remodelada se distanciava da casa ‘original’ desses homens notáveis, ela se aproximava de uma imagem de nação. As ambiências se fizeram com objetos ‘autênticos’, que pertenceram aos patronos dos museus, e outros de diversas procedências, sendo conformados e dispostos por intenções de pessoas e épocas distintas, constituindo-se como obra coletiva e, como tal, predisposta a se constituir como representante da nação. Assim, a arte doméstica encontrada nos museus-casa de Rui Barbosa e de Benjamin Constant é imagem-síntese de tempos e espaços e nela cada um de nós pode se ver espelhado. Passeando pelos cômodos do museu, podemos até distraidamente dizer: “Entre, que a casa é sua!” Referências ABREU, Regina. A fabricação do imortal. Rio de Janeiro: Rocco: Lapa, 1996. ALPERS, Svetlana. A arte de descrever; a arte holandesa do século XVII. São Paulo: EdUSP, 1999. COHEN, Debora. Household gods: the british and their possessions. New Haven/ London:Yale University Press, 2006. CHAGAS, Mário de Sousa Chagas. O museu-casa como problema: comunicação e educação em processo. Seminário sobre museus-casa, Rio de Janeiro, 1997, p.177-199. EVRES, Ana Cristina. Museu-casa, museu-templo – quando o mito vira fantasma na Casa de Benjamin Constant. In: SEMINÁRIO SOBRE MUSEUS-CASAS, 1., 1995, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: FCRB, 1997. GASKELL, Ivan. História das imagens. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. GUIA DOS MUSEUS BRASILEIROS. Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2011. HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo:Vertice, 1990. HASKELL, Francis. Museums, illustrations and the search for authenticity. In: ______. History and its images: art and the interpretation of the past. New haven: London:Yale University Press, 1993. JONES, Robin D. Interiors of Empire: objects, space and identity within the indian subcontinent, c.1800–1947. Manchester: Manchester University Press, 2007. KNAUSS, Paulo. “O cavalete e a paleta: a arte de colecionar no Brasil”. Anais do

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Artigo recebido em janeiro de 2012. Aprovado em março de 2012


O MUSEU E A SUA ARQUITETURA NO MUNDO GLOBALIZADO: ENTRE INFORMAÇÃO E VIRTUALIDADE José Cláudio Alves de Oliveira

Universidade Federal da Bahia

RESUMO: O presente texto faz uma reflexão sobre a arquitetura do museu, implicada nas suas construções feitas pelo homem, que vem das formas presenciais, em pedra, ao museu no ciberespaço. Entre as suas formas arquitetônicas paira uma questão que implica no desenvolvimento do museu na era da globalização: a disponibilidade de informação sobre os objetos dos acervos.

ABSTRACT: This text makes a reflection on the architecture of the Museum, implicated in their constructions made by man, which comes from the presence forms, in stone, to the Museum in cyberspace. Among its architectural forms an issue that involves the development of Museum media in the era of globalization: the availability of information about the objects of collections.

PALAVRAS-CHAVE: Museu. Globalização. Arquitetura. Informação

KEYWORDS: Museum. Globalisation. Architecture. Information


O museu e a sua arquitetura no mundo globalizado: entre informação e virtualidade

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Em seu clássico texto Marshall McLuhan (1999) explica que a natureza do meio afeta a natureza e o impacto da mensagem. Esse pensamento, frequentemente citado, comumente é interpretado erroneamente. A compreensão superficial entende que o meio é o importante e que a mensagem não tem maiores consequências. Qualquer pessoa que tenha passado um tempo observando neve na televisão sabe o que ela tem de falso, como teorizou, num ar metafórico o canadense McLuhan (1999: 21). Entretanto, nos últimos tempos, as pessoas têm estado sujeitas a uma cansativa e enganosa ênfase sobre a tecnologia web das mídias, a despeito das mensagens. O que McLuhan realmente pontualiza são os nexos entre meio e mensagem. Tendo em conta os museus “reais” ou digitais, os museólogos, técnicos de museus e conservadores de acervo deveriam recordar a indicação do referido autor e examinar de que maneira o método da comunicação, o meio e a web devem conectar-se com a mensagem dos artefatos e das ideias. A aproximação filosófica reconhece que o meio pode mudar e mudará. Essa troca não poderá ser impedida dada à evolução da tecnologia em todos os campos. Mais que lamentar as trocas nas mídias, os museólogos, técnicos e profissionais de museus devem examinar de que maneira isso pode afetar na comunicação que o museu proporciona. Para Xavier Lussà (2002), a partir da década de 1990, nasce um novo conceito de museu que decorre do nascimento de uma nova sociedade: a sociedade da informação, e da sua cultura. Estas se definem por uma mudança contínua que afeta todas as esferas da vida e, decorrentemente, também de uma mudança continua do sentido e valor. Por uma multiplicidade cambiante e não hierárquica de pontos de vista e formas culturais particulares; e então, por uma desvalorização do conhecimento, da sua permanência e sacralidade. O conhecimento diz respeito à vida e à ação. Já não é mais um objetivo em si mesmo por que já não conhece verdades absolutas” (Lussà, 2002). 96

O Museu Digital está, aqui, ligado diretamente a web, de um lado significando uma interface com os museus presenciais, por outro, criando o próprio cibermuseu, aquele que não possui uma interface presencial, num sentido metafórico, ou seja, designando os seus acervos para uma ordem digital e criando uma qualidade que tem o objetivo de manter a relação de semelhança com as origens daquilo que se conhece como museu. Não se trata, portanto, dos aspectos digitais em CD ROMs, DVDs e quiosques multimídia de exposições incorporados a acervos. Muito menos das virtualidades registradas em livros, revistas, catálogos e álbuns, que são, na prática, mais antigos do que os Museum bus, Eco-museus e Museus comunitários. Estes remontam à década de 1940, quando André Malraux publicou o seu livro Le musée imaginaire 97, em 1947, referenciando a possibilidade de o museu se estender na sua comunicação, a partir das fotografias dos seus objetos em catálogos. A idéia de Malraux é possibilitar ao turista, ao estudante e ao curioso conhecerem o museu a distância, sem visitar o “museu real”. (Malraux, 1947: 98). ���������������������������������������������������������������������������������������������������� Texto traduzido no próprio site da revista, com algumas incorreções no português preservadas aqui pelo autor. Disponível em : <http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/404nOtF0und/ 404_17.htm> Acesso em setembro de 2002 ������������������������������������������������������� O Museu Imaginário, já com tradução para o Português.


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Mesmo tendo como base uma das tecnologias mais avançadas da sua época (a fotografia), a ideia de Malraux é precedida por outras noções que lidam com os conceitos de “imaginário” e “virtual”. Desde a virtualidade criada pelos antigos gregos, a ideia do museu imaginário, virtual, tem sido experimentada. A ideia de uma “reprodução”, e.g., não é nova. Tornaram-se comuns cópias ou miniaturas de obras intransportáveis ou raras, as quais resultam na construção de maquetes e modelos, que passam de modelo único para várias réplicas em variados materiais diversificados. A partir da imprensa, que permitiu a reprodução de imagens em grandes quantidades, as gravuras se converteram em suportes decisivos para a disseminação da cultura artística pelo mundo todo. La función del grabado, por ejemplo, en la conquista y colonización de América por los europeos fue enorme. Recordemos simplemente los millares de Biblias ilustradas que los indígenas asimilaron, reprodujeron y transformaron con tanta creatividad en las más variadas formas artísticas a través del nuevo continente. En el Siglo de las Luces se construyeron las primeras “bases de imágenes” a partir del grabado, que sirvieron a los enciclopedistas, naturalistas y viajeros para ilustrar en forma sistemática sus ideas y descubrimientos. Estos grabados eran en sí mismas obras de arte de altísimo costo. (Battro, 1999: 13). 98

Ao pé da letra, e buscando em um dicionário, o conceito do termo virtual, percebemos que ele é aplicado àquilo que “existe como faculdade, porém sem exercício ou efeito atual”, ou seja, algo “suscetível de se realizar; potencial”. Que na filosofia referencia “o que está predeterminado e contém todas as condições essenciais à sua realização”, uma oposição, nessa acepção, ao potencial e ao atual, real. Que na informática “se vincula ao que resulta de ou constitui uma emulação, por programas de computador, de determinado objeto físico ou equipamento, de um dispositivo ou recurso, ou de certos efeitos ou comportamentos seus”. (Dicionário Aurélio Digital). Hoje o conceito de virtual é extensivamente trabalhado, principalmente com o advento da “Realidade Virtual”, a partir da década de 1980, em vários laboratórios das áreas da aeronáutica e astronomia, depois aplicável diretamente ao desenvolvimento e incremento da Internet. Autores com interesses nos mais diversos campos do conhecimento humano nos oferecem reflexões sobre este assunto. O termo ganhou grande visibilidade em razão do aperfeiçoamento tecnológico, mais precisamente com a revolução da informática combinada com as telecomunicações que, juntas, fizeram surgir a telemática. Para compreender o conceito do virtual é necessário reconhecer que o termo aparece com essa importância no mundo atual em razão das novas tecnologias, mas na realidade ele é recorrente à história humana. Pierre Lévy (1996) lembra que, para a filosofia escolástica, “é virtual o que existe em potência e não em ato [...] a árvore está virtualmente presente 98 A função da gravura, por exemplo, na conquista e colonização da América pelos europeus foi grande. Recordemos simplesmente os milhares de Bíblias ilustradas que os indígenas assimilaram, reproduziram e transformaram com muita criatividade nas mais variadas formas artísticas através do novo continente. No século das Luzes se construíram as primeiras bases de imagens, a partir da gravura, que serviram aos enciclopedistas, naturalistas e viajantes para ilustrar, de forma sistemática, suas ideias e descobrimentos. Essas gravuras eram em si mesmas obras de arte de altíssimo custo. Disponível em: <http://www.byd.com. ar/articulos.htm>. Acesso em 19 de janeiro de 2006.

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na semente. Em termos rigorosamente filosóficos, o virtual não se opõe ao real, mas ao atual: virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras de ser diferentes” (Lévy, 1996: 15). Ou seja, a sociedade é sempre virtual. Ela vive de expectativas mais ou menos incertas, imaginadas, tanto faz se há ou não mídia eletrônica no jogo. É por isso que pode ser representada tão bem em ambientes técnicos virtuais. Para Lévy a distinção entre o virtual e o atual acontece na medida em que, diferentemente do possível, não contém em si o real finalizado, mas sim um complexo de possibilidades que, de acordo com as condições e os contextos, irá se atualizar de maneiras distintas. O autor afirma com propriedade que não há nada de fundamentalmente novo no fato de se produzir textos, sons ou imagens pelo computador para serem reproduzidos nos suportes clássicos. Para ele, “considerar o computador apenas como um instrumento a mais para produzir textos, sons ou imagens sobre suporte fixo (papel, película, fita magnética) equivale negar sua fecundidade propriamente cultural, ou seja, o aparecimento de novos gêneros ligados à interatividade”. É nesse campo de possibilidades permitidas pelos dispositivos interativos que se encontra “a nova plasticidade do texto ou da imagem”. “A tela informática é uma nova máquina de ler”. E nesse modo de ler, ver e ouvir o mundo permite-se uma “edição e uma montagem singular”, ou seja, de forma única e irrepetível. No entanto, nunca é demais reafirmar que, se a questão da virtualidade e suas implicações são novas para o mundo contemporâneo, ainda estamos diante de um conceito que, no uso corrente, está relacionado ao ilusório e ao falso. Mas em relação à noção de “virtual” o que nos interessa aqui é a possibilidade dos museus tradicionais poderem também ser “visitados” na forma de museus virtuais. (Almeida Filho, 1998: 11).

Na atualidade, museu é sinônimo de coleção, de acervo, de documentação, conservação, exposição e informação de qualquer tipo de objeto, organizado por alguém ou por uma instituição, com ambição de apresentar ao público, criar formas educativo-pedagógicas, pesquisa e extensão. E esse novo museu, que está no ciberespaço, o virtual, prescinde do espaço físico onde estão as “coisas” que devem ser vistas. Os museus presenciais não poderiam fugir da ótica da modernidade. Com a cibercultura eles também buscaram o ciberespaço e, neste, o desenvolvimento das suas potencialidades museísticas, como a exposição, informações de suas ações culturais e educativas e do acervo como um todo.Tudo isso leva crer que, além da interface, o museu assumiu essa nova estrada que, para André Lemos, “atua, consequentemente, como um ‘mediador cognitivo’”. (Shneiderman apud Lemos, 1997: 4) Essa mediação é criada através de uma ação global com múltiplos agentes, iniciada pelo usuário através de uma manipulação direta (“direct manipulation”) da informação [...] que pode ser definida em três critérios: uma representação contínua do objeto de interesse; ações físicas por intermédio de botões, e não por sintaxes complexas: e o impacto imediato na manipulação de “objetos-ícones” virtuais. Esses “objetos-ícones” são considerados virtuais, no sentido em que eles simulam objetos reais e se comportam como tais. (idem: 4)


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Essa noção entre o real e o virtual é vinculada também na teoria do método construtivista em Stockinger (2004: 23), que detalha, em sua mais recente obra, a relação sistema/ambiente, demonstrando as possibilidades de coexistência e trocas. A passagem de uma visão estática para uma visão dialética e evolucionária, emergentista e construtivista, ocorre na teoria de sistemas quando a unidade do “todo e as partes” é substituída por uma diferenciação entre “sistema e ambiente”, sendo que neste ambiente se encontram também outros sistemas que co-evoluem. (Stockinger, 2004: 8).

Paul Virilio (1999: 30) e Jean Baudrillard (2011:14) acreditam que as tecnologias da virtualidade possam ser destinadas não somente à simulação da realidade, mas também à sua substituição. Porém, esse não é, de forma alguma, o propósito do presente artigo, pois se tem aqui plena consciência de que a satisfação proporcionada pelo contato direto com os objetos e o prazer de estar num edifício fisicamente real são, afinal, insubstituíveis, e que o mesmo sucede com a leitura de livros de arte ou catálogos. Trata-se enfim de aspectos ambientais diferentes embora com sistemas possivelmente partilhados (Luhmann, 1996:27) e por que não dizer iguais. A diferença entre sistema e ambiente deve ser distinguida de outra, igualmente constitutiva: a diferença entre elemento e relação. “Em ambos os casos a unidade da diferença deve ser pensada como sendo constitutiva. Não há sistemas sem ambientes nem ambientes sem sistemas, e não há elementos sem conexões relacionais ou relações sem elementos”. (Stockinger, 2003: 24).

O recinto museu ganhou diversas formas através dos tempos. Passou a acompanhar as novas tecnologias, avançando por essa via a sua comunicação com o público, seja por meio de exposições dinâmicas – procurando um público ativo e não passivo –, seja via Internet, com o seu marketing (Lévy, 1999: 23), a sua programação, divulgação, debates, ou através de CD ROMs. (Oliveira, 2009: 9). Museus do mundo inteiro já passaram há algum tempo a tornar a herança cultural que guardam e a arte contemporânea que fomentam amplamente acessíveis por intermédio da rede global. Com isso alargaram suas atuações, conseguindo um grau de atenção que jamais teriam alcançado com os meios convencionais. É claro que todo apreciador da arte e os estudiosos dos objetos, que não seja um couchpotato 99 notório, gostariam muito mais de viajar para conhecer todos os acervos e exposições interessantes. Mas, quem é que pode se permitir a esse luxo? Graças à Internet existe agora, pelo menos, a possibilidade de atualização a distância, desde que as informações correspondentes estejam armazenadas na rede. (Haupt, 1998:12). A exemplo disso, desde abril de 2001, mais de mil museus de 34 países membros da Organização dos Estados Americanas (OEA) tornaram-se também on-line. 100 Os debates acerca da apresentação de museus na Internet ainda não terminaram. Os opositores temem que o público possa se contentar no futuro com visitas aos acervos e exposições no ciberespaço, deixando de ir ao museu presencial. Chamam à atenção, com razão, para o fato de que as imagens digitalizadas no �������������������������������������� Ao pé da letra seria o Telemaníaco.

���������������������������������������������������������������������������� Dados do ICOM – International Council of Museum. Em 2011. Disponível em <http://icom.museum/>

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monitor, mesmo no caso de um padrão técnico altíssimo, ainda só conseguem transmitir pouco do estilo sutil e nada na aura que um original possui. No entanto, os defensores idôneos da utilização das novas tecnologias no fundo nunca tiveram em mente substituir uma coisa pela outra. Seu intento é colocar um instrumento interessante da informação e da comunicação a serviço do trabalho em museus (idem). Essa mudança estético-cultural, ou seja, do processo em que o museu deixa de ser apenas o “edifício” para ser aberto em “uma janela digital” (Virilio, 1999: 40), sem sombra de dúvida urge por momentos de reflexões e debates, já que ele pode ser caracterizado pela dupla responsabilidade: a de preservar a integridade do objeto como elemento da nossa herança (memória social) e a de contribuir para o desenvolvimento da sociedade – a pesquisa do museu e as missões de educação pertencem à última. O equilíbrio entre essas duas responsabilidades e a sua implementação varia em tempo e espaço. O crescimento explosivo da World Wide Web – com seus recursos multimidiáticos e do hipertexto – transformou a criação e a representação do objeto museológico, seja ele artístico ou não, em acervos digitais. Desde 1992 a tecnologia de imagens, dos bits e, efetivamente, da Internet, combinaram-se para levar os museus mais perto das pessoas que talvez nunca tivessem a oportunidade de ver de perto as grandes e famosas exposições, tal como já atestava Malraux em 1947. Além disso, a Internet passou a oferecer um canal para que as pessoas também mostrassem os seus trabalhos de arte e as suas histórias de vida, e, certamente, muitas das quais nunca teriam entrado num acervo de um museu casa. Os museus de todos os tipos reagiram às novas oportunidades apresentadas pela Internet e, com isso, passaram por uma revolução na forma da divulgação dos seus acervos. Elizabeth Broun, diretora do National Museum of American Art, do Smithsonian Institution, em seu ensaio que elucida “O futuro eletrônico” de 1996, revela que a “nova mídia eletrônica oferece as últimas ferramentas necessárias para alcançar as pessoas em todos os lugares, por isso os acervos podem se encaixar em todos os tipos de experiências, além da visita direta ao museu”. Para Broun, o National Museum of American Art “está tão comprometido em compartilhar o que temos e o que sabemos com pessoas que talvez nunca irão pisar na entrada do museu, quanto em aprimorar a experiência dos visitantes das nossas galerias”. A autora registra que o pequeno percentual das coleções mostradas nas galerias pode “abrir uma janela para os depósitos e arquivos de pesquisa, oferecendo um contexto revigorante para visitantes locais e distantes” (Broun, 1996: 6). Além de oferecer exposição dos artefatos coletados, a Internet passou a possibilitar a expansão do papel educacional do museu. Em 1995, Richard Rinchart 101, gerente de informática e especialista em tecnologia educacional da Universidade da Califórnia no Berkeley Art Museu, Pacific Rim Archive, afirmava que a sua primeira exibição na Internet, denominada In a Different Light, foi rapidamente incorporada ao currículo da universidade. Ela trazia uma proposta de acervo virtual para criação de um banco de imagens, com intuito de desenvolver aulas. Uma espécie de processo museal. ��������������������������������������������������������������������������������������������������������� Em depoimento para a revista Internet World, em novembro de 1995, História da Internet, parte I, p. 18


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As questões acabaram sendo as mesmas que estavam sendo investigadas na sala de aula. O nosso site foi introduzido especialmente porque continha material não disponível em outro lugar. Com isso quero dizer ensaios full-text de curadores, entrevistas com eles e, nas páginas de exibição, hiperlinks para artes na Internet de relevância para os tópicos abordados – links que levantam questões impossíveis de serem transmitidas em uma impressão ou em formato CD-ROM. (Revista Internet World).

A grande vantagem de ter um museu digital (MD), segundo Rinchart, é a capacidade de alcançar públicos remotos, poder apresentar diferentes interpretações de exibições e coleções lado a lado e a natureza interativa do meio. Seja como for, a partir de 1992, exibições e coleções de instituições famosas como o Los Angeles County Museu, o Smithsonian Institution e os Museus do Vaticano (portal que abriga mais de dez galerias e MDs) passaram a ter uma nova arquitetura, dessa feita em um caminho criado a partir da Internet, divulgados em mailing lists, Usenet newsgroups, telnet, ftp, gopher e www. Outros sites, além dos que criaram interfaces com museus, passaram a apresentar indivíduos – como em memoriais – ou comemoraram eventos. Três exemplos são fundamentais: Ansel Adams (1902-1984) Home Page, que contava o percurso histórico desse fotógrafo que foi um dos mais premiados do século XX, renomado por suas fotografias em preto e branco (<http://www.anseladams.com/>); Leonardo Da Vinci Museum, <http://www.leonardo.net/>, que reúne várias imagens da arte e inventos de Leonardo, além da sua biografia; Memorial de Nagasaki, <http://www.exploratorium.edu/nagasaki>. – projeto do Exploratorium <http://www.exploratorium.edu/index.html>, trabalhado como um museu de ciência, arte e percepção humana – mostra fotografias da cidade japonesa destruída em 09 de agosto de 1945, contendo depoimentos de sobreviventes e comentários de pessoas que estudam questões bélicas. 102 Na década de 1990, enquanto alguns dos sites já ofereciam uma interatividade e uma gama de imagens de objetos dos acervos com qualidade, muitas páginas de MDs funcionavam – ainda o funcionam – como brochuras on-line e apresentavam apenas informações básicas para visitas ao museu presencial (MP). A exemplo, o Canadian Museum of Civilization (<http://www.civilization. ca/home>) que, à época, apresentava parcas imagens de objetos e nenhum texto, apenas verbetes. O High Museum of Art de Atlanta, <http://www.high.org/>, que oferecia aos visitantes um pouco mais da sua coleção, como fez o Andy Warhol Museu, <http://www.warhol.org/>, que foi mais brochura com listagens de suas obras por andar do que uma exposição com acervo e informações. Em 1995, o Museu Salvador Dali, <http://thedali.org/>, foi lançado com mais conteúdo que os demais museus digitais (MDs). Oferecia uma seleção mais sistematizada das obras de Dali acompanhadas com observações históricas.103 Ainda em 1995, o LACM Aweb (<www.lacm.org>) apresentava exposições digitais de obras de arte americana, islâmica antiga, oriental e do século ����������������������������������������������������������������������������������������������������� Os domínios das URLs dos dois primeiros foram modificados. Esses referenciais são de 1993. Apenas a Memória de Nagasaki encontra-se on-line com a mesma URL. (caso existam novos domínios mencionálos aqui, por favor) ������������������������������������������������������������������ Domínios aqui atualizados. As URLs de origem foram modificadas.

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passado, bem como informações sobre o que as pessoas esperavam encontrar enquanto navegavam pelo museu, mostrando, com isso, uma interação ainda maior com o observador que visitava o site. 104

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Para os amantes das artes, muitos sites de museus de arte foram colocados no ar em 1995. Um dos mais populares entre os internautas foi o WebMuseum, <http://www.ibiblio.org/wm/>, portal que hoje disponibiliza várias versões desenvolvidas em português, espanhol, francês e inglês. Na verdade, o WebMuseum funcionou, em 1995, como amenizador da carga do tráfego intenso das buscas sobre museus de arte. No Brasil, um dos WebMuseums, foi criado pelo Datacentro da PUC-RJ (<http://www.puc-rio.br/rdc/>), que iniciou o projeto em março de 1994, por sentir fragilidades nas apresentações da arte na rede. 105 Hoje, as exposições dos portais WebMuseum incluem artes que abrangem o período medieval à arte contemporânea, incluindo exposições especiais e fotografias, numa miscelânea que destaca cada etapa da história da arte. (grifos nossos). Um pouco diferente do Webmuseum, mas arquiteturalmente trabalhado como portal, elaborado na mesma época, é o http://www.christusrex.org/ que traz as obras das coleções dos museus do Vaticano. O site, ao contrário do Webmuseum, apresenta galerias e museus do Vaticano e as suas centenas de obras da arte sacra católica preservadas. Enquanto o primeiro portal faz uma miscelânea de obras artísticas, o Portal Musei Vaticani e Cappella Sistina traz links para as capelas, igreja, galerias e museus da cidade do Vaticano. (<http:// www.christusrex.org>). De todos os MDs, entre 1992 e 1995, o Louvre é o que mais chama a atenção, dada à proliferação de cópias sofridas na Web. Iniciou, em sua original versão, relativamente leve em termos de conteúdo, mostrando apenas um pequeno número de imagens dos seus acervos, com pequenos comentários em textos e breves históricos dos detalhes do palácio. A sua estética e apresentação multimidiática era em 1996 muito inferior à versão em CD-ROM. Hoje as cópias do Louvre on-line estão em número menor e bastante inferior ao site MD original. Em 1996, o Art Serve colocou no ar um banco de dados com mais de 800 links para imagens artísticas dos séculos XV ao XIX. O enfoque era a arquitetura mediterrânea e a arte pictórica de cunho religioso. O OTIS Project (em FTP), embora não fosse um MD, oferecia, já em 1997, uma série de informações sobre arte e relacionadas à arte conquistando muitas visitas dos internautas. Através das suas galerias, o observador podia acessar uma série de exposições catalogadas por meio ou conteúdo, incluindo colagens, formas, desenhos, pinturas e performance. Havia também uma seção chamada Synergy, que funcionava como coleção de projetos de arte criados por vários artistas que trabalhavam em cooperativa na Internet. A partir de 1997, além de MDs, vários outros projetos foram trabalhados com a proposta de evidenciar a história, o patrimônio cultural, englobando a arte, o folclore, a música etc., sem necessariamente se preocupar com uma organização museística da apresentação dos objetos e textos. Foram sites correspondentes a bibliotecas e temáticas como a dos “Manuscritos do Mar Morto”. ������������������ URL fora do ar. ���������������������������������������������������������������������������������������������������� Apenas o site do Datacentro está atualizado neste trecho. Um dos Webmuseums pode ser visitado no http://www.webmuseum.hpg.ig.com.br/ , é brasileiro.


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Entre 1997 e 1998, as outras ciências também passaram a fazer parte da web, com sites que incluíam a antropologia, botânica, geologia, ciências minerais, oceanografia e zoologia dos vertebrados. O Field Museum of Natural History em Chicago, e.g., criou o <http://fieldmuseum.org/>, que trouxe exposições que ofereciam uma ideia do que era a vida na época em que os dinossauros habitavam a Terra. A exposição, chamada “Do DNA aos Dinossauros”, era uma viagem interativa saída do Parque dos Dinossauros de Spielberg, conduzindo o observador de um período pré-histórico a outro, ao mesmo tempo em que mostrava vários dinossauros que existiram em uma época ou em outra. Uma das maiores instituições museísticas do mundo, o Smithsonian Institution (web e telnet) (<www.si.edu>), desde 1994 traz uma produção mais embelezada do que sistematizada, oferecendo links aos seus museus afiliados. Com sua renovação, em 2000, o site passou a disponibilizar buscas, links para bibliotecas, textos e debates sobre a cultura, a botânica, a antropologia e a história. Atualmente, o internauta pode ter o site em alemão, inglês, espanhol, francês, italiano, português, japonês, chinês, coreano e russo. No ano de 2004, o Patriarcado da Igreja Católica de Lisboa criou um portal projetando o índex e apresentação de duas mil peças de arte sacra das igrejas da diocese de Lisboa, que deveriam estar acessíveis na rede no mês de abril daquele ano. Porém, ainda não entrou no ar. O projeto, que conta com apoio financeiro de comunidades católicas, da Universidade Autônoma de Lisboa e do Instituto do Emprego e Formação Profissional, tem a intenção de “divulgar junto do público os tesouros que estão na posse da igreja” (<http://www.lusa. pt>). Todavia, do total das peças prometidas para o ciberespaço, somente cento e trinta e nove objetos estão disponibilizados com parcas informações. No Brasil, os primeiros museus a terem as suas interfaces na net foram o Museu do Ipiranga (<http://www.museudoipiranga.com.br/>), os museus da USP 106 , abrigados em um portal, e o Museu da República (<http://www.museudarepublica.org.br/>). Todos on-line em 1995. Mas o Brasil ficou marcado com um grande projeto museístico, iniciado em 1991, on-line desde 1997, o Museu da Pessoa (<http://www.museudapessoa.net>) cujo projeto, totalmente digital, proporciona não apenas a interação que ocorre efetivamente nos 98% dos museus que estão na Internet, mas também a participação do observador (internauta, cidadão comum) no acervo do museu, o que implica que qualquer cidadão do mundo pode ter a sua história retratada no site. Com o avanço da Internet no Brasil, o Museu da Pessoa lança seu primeiro site. Afirma sua vocação de museu virtual e inicia a captação de histórias via Internet, além de disponibilizar ao público parte de seu acervo de depoimentos, fotos e documentos (<http://www. museudapessoa.net>). Assim como o Museu da Pessoa, o Museu do Inconsequente Coletivo, o Museu Virtual das Artes (<http://www.elpais.com.uy/muva/>) e o Virtual Museum of Canadá (<http://www.virtualmuseum.ca/>) são museus criados para funcionar – em termos de busca, participação, criação de acervo e visitação – apenas na net. São os Cibermuseus (CMs), museus que, além de adotarem a Internet como principal meio, quebraram uma barreira que foi erguida na Idade Média, ������������������������������������������������������������������������������������������������� Não há mais o portal museus da USP, o caminho pode ser por intermédio do site da Universidade <http://www2.usp.br/publishing/insite.cgi>, em que há um link de opções de departamentos, dentre as quais estão os “museus e galerias”.

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quando os salões e “protomuseus” foram criados, a barreira da restrição. Com os museus abertos a todos, de forma universal, sem restrições de visitas e podendo o observador opinar e ter parte da sua memória preservada, o que era fechado a uma elite agora se transforma em uma condição mais democrática, possibilitada por esse novo espaço criado pela comunicação entre os computadores do mundo inteiro e formalizado em uma nova arquitetura, a digital. Museus e a sociedade contemporânea As atividades dos museus tendem a estender-se para além das suas finalidades básicas. Armazenar, apresentar e aumentar suas coleções, embora ainda sejam essas as características intrínsecas na maioria dos museus, os mantendo como espaços reservados a uma elite, ainda assim contam com a frequência de pesquisadores, massas de turistas e escolas. Foram os museus dos EUA os responsáveis em assumir o papel se convertendo em intérpretes de suas próprias obras para seus visitantes e em educadores do público, a respeito de informações de conteúdo mais elevado e de uma apreciação mais profunda da arte em geral. Assim, os programas de atividades dos museus nos EUA foram difundidos como metodologia e ganharam força na América Latina e alguns países europeus e africanos, com inclusão de palestras, conferências e aulas básicas para escolas, oficinas, instalações, contextualizações das mais variadas que fazem de seus acervos mais atrativos. Tudo isso trouxe consigo modificações à estrutura física dos museus, que agora requerem mais espaços em seus ambientes presenciais e em seus novos ambientes, os digitais. As novas perspectivas da função do museu, enquanto instituição social, abriram uma situação de crise na própria instituição, crise esta que se radica fundamentalmente nos problemas da adaptação de uma entidade de caráter não-tradicional às necessidades da dinâmica da sociedade. Em face dessa situação de crise do museu, realizaram-se – e estão se realizando – algumas experiências de tipo renovador, que afetam basicamente quatro aspectos do funcionamento da instituição: A projeção do museu sobre seus envolvimentos sociais e a dimensão pedagógica; As tentativas de ruptura formal com o museu tradicional; A questão arquitetônica, dos edifícios às homes; Os objetos. A projeção do museu sobre seus envolvimentos sociais e a dimensão pedagógica Em geral, as novas experiências realizadas não dizem respeito a apenas um desses aspectos isoladamente, mas antes a todo o conjunto ou, pelo menos, a mais de um componente. Contudo, todos os seus aspectos estão relacionados ao desenvolvimento das ciências humanas e sociais aplicadas e da arquitetura a partir da década de 1930.


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Em meados do século passado, especialistas da Museologia e Arquitetura foram encarregados de elaborar, com a colaboração de urbanistas, planos para a restauração, conservação e integração de sítios históricos. De todas as experiências realizadas e em termos de investimentos nos museus, a área que mais se destaca é a da pedagogia. São esforços no campo da museologia e museografia que correspondem à aplicação técnica básica ou moderna de tarefas da conservação do patrimônio total, a partir de projetos da educação, com ou sem o uso da exposição permanente. As tentativas de ruptura formal com o museu tradicional A ruptura entre o museu formal e os aspectos da criticidade ocorreu a partir da contextualização dos espaços e acervos trabalhados. Os espaços adotaram a concepção “extramuros”, e os acervos tiveram mais dinamicidade nas informações e flexibilidade nas exposições e monitoramento pedagógico. Com isso, a criação de Eco-museus e museus comunitários, dos museus de linha psicologista e dos museus lúdicos, na década de 1980. Na década de 1990, mais precisamente em 1994, os museus descobriram um novo espaço e arquitetura, o ciberespaço, que difundiu a sua imagem, seja como marketing, seja como forma comunicacional de expansão dos acervos. Do ponto de vista museu-público, vale lembrar que nos séculos XVIII e XIX as elites eram detentoras da pesquisa, da visita e de informações científicas mais precisas nos museus. O público era bastante restrito, até que se criaram as Associações de Amigos dos Museus, com todas as suas múltiplas formas associativas, cuja ação se traduziu no apoio econômico à instituição e na programação pública de seus objetivos culturais. Essas associações, dirigidas para diversos campos de ação, ocupam-se desde a captação de fundos para aquisição de alguma obra de arte valiosa e cara, até a preparação e inauguração de exposições nas salas dos museus, estimulando assim a difusão cultural e a projeção exterior da instituição para a qual trabalham. Porém, a partir das concepções do Eco-museu e do museu comunitário, a relação ficou ainda mais estreita. O museu vai ao público, trabalha com ele, é partícipe da vida de uma coletividade circunvizinha. Os projetos são também das associações de bairros e sindicatos que desenvolvem concepções museísticas, as quais valorizam o patrimônio cultural, sistematizam o turismo cultural local e preservam a memória social

A questão arquitetônica. Dos edifícios às homes Em museologia, quando se refere ao tipo de museu, está se objetivando a compreensão do espaço arquitetônico que guarda o acervo. Dessa forma, a tipologia arquitetônica vem sofrendo alterações desde a concepção dos museus abertos e da noção extramuros. Do ponto de vista básico, trabalhado na década de 1960, o tipo de museu mais em voga era o museu casa, também denominado residência histórica, que

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previa o respeito ao caráter de habitação, à manutenção da “atmosfera” original em 90% do partido arquitetônico. Depois, o edifício convertido, ou adaptado, que poderia ser a casa histórica remodelada, com a necessidade de superar a inadequação da arquitetura e adaptar os espaços ao novo uso. Por fim, o edifício concebido, criado especialmente para as coleções de um museu.

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A partir da década de 1970, essa configuração tomou outros caminhos, foram adicionados os museus ao ar livre, que envolviam arquitetura e paisagem natural e abrangiam o Museu in situ, o Museu Jardim e, a partir da década de 1980, o Eco-museu. Mas a partir da década de 1990, o “Museu Virtual”, da Internet, passou a configurar uma nova janela arquitetônica para os museus (Virilio, 1999), principalmente a se atentar para os museus que não possuem interface presencial. De toda forma, o ICOM vê os museus virtuais como novas formas de preservação e divulgação dos patrimônios históricos, artísticos e culturais. Ainda nesse caminho, não se pode perder de vista o museum bus e outros espaços passíveis de ser museus, como parques temáticos e zoológicos, considerados paramuseus. Assim, o seguinte quadro demonstrativo, mais amplo, com todos os tipos arquitetônicos dos museus, clareará a referência de cada conceito voltado ao tipo arquitetônico. (Quadro 1): TIPOS

FORMAS

Museu casa, residência histórica.

90% do partido arquitetônico original.

Edifício convertido ou adaptado.

Estrutura antiga ou nova aproveitada para museu, com bastante alteração no partido arquitetônico.

Edifício concebido

Criado especialmente para ser museu.

Museus ao ar livre

Museu In situ, Museu Jardim e o Eco-museu. Estruturas ao ar livre

Museu Virtual

Museus que advêm da concepção de Malraux e que podem ser estendidos para CD ROMs, DVDs e VHS, mas que, sempre off-line, não possuem novidade no suporte apresentado.

Museu Digital

MDs – que possuem interface presencial e estão on-line na WEB – e CMs que funcionam apenas na WEB.

Museum bus

Estrutura criada em um carro, com mobilidade.

Paramuseus

Parques temáticos e zoológicos. Estruturas possíveis de serem museus.

Quadro 1 - Tipos arquitetônicos dos museus. Fonte: A partir da tese de doutorado do autor

Nem sempre os museus foram instalados em edifícios concebidos para fins museológicos. Por vezes eram palácios que tinham servido de residência e foram adaptados à sua nova função de museu. O exemplo mais característico é o Louvre, que sofreu diversas alterações e uma severa adaptação para equilibrar o respeito devido ao edifício e as exigências de uma instalação moderna. Bons exemplos sobre esse caso são a utilização, como museu, do Castelo Sforzesco, em Milão, e do Palácio do Bagello, em Florença. A solução ideal, para o que esses dois exemplos apontam, consiste em consagrar um edifício antigo a uma só época ou estilo relacionados com o próprio edifício. É o caso do Museu Barroco, de


José Cláudio Alves de Oliveira

Viena, instalado em 1925, no Palácio do Belvedere e do museu de Ca Razzonico, em Veneza, que em 1922 reuniu as coleções do museu municipal em um palácio do Grande Canal. A história da arquitetura de museus, concebida como construção de edifícios especialmente destinados para esse fim, inicia-se no século XVI com a construção dos Uffizi, em Florença, por Vasari. (Os museus no mundo, 1979: 33). O projeto consistia numa ampla instalação: no andar térreo, os gabinetes de administração da cidade; no primeiro andar, as coleções de arte dos Medici. Com a mudança radical do conceito de museu, no século passado, os arquitetos, além de se colocarem completamente a favor da tradicional planta retangular com janelas de ambos os lados, típica dos palácios neoclássicos, começaram a perceber o problema da localização. Existe hoje a tendência de se escolher um local na periferia das cidades, tal como se faz com as cidades universitárias – a exemplo de Vitória da Conquista e Feira de Santana, no Brasil. Com essa medida, protegem-se os museus e seu conteúdo da poluição sonora e de resíduos porosos. Com a botânica e a distância dos centros das grandes cidades, a intenção é procurar converter os museus em centros culturais colocados a serviço não apenas da instrução pedagógica, mas também do repouso dos seus visitantes. A exemplo disso o Museu Yamato Bukakan, aberto em Nara, no Japão, em 1960, foi “projetado para apresentar a beleza da arte criada pelo homem em estreita harmonia com a beleza da natureza”. (idem). A mesma finalidade pode ser observada no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, no Brasil, cuja inovação, por meio da sua estética, dos vitrais, permite em seu interior a visão da paisagem marítima e terrestre que o circunda. Dos objetos à arquitetura Apesar de novas realidades espaciais e temporais oferecidas pelas novas tecnologias perpetuarem o dia a dia das pessoas, os museus presenciais, com suas construções sólidas, continuam sendo os locais que abrigam obras que pretendem ser vistas e fruídas lá onde estão. “Jamais, em proporção, as obras de arte atingiram tão elevado preço, jamais se viu tantos consumidores comprimirem-se nos museus”. (Debray, 1994: 239) Prova disto é o aumento quantitativo de museus no mundo, criando até mesmo as suas filiais, a exemplo do Rodin, em Salvador, no Brasil, e do Guggenheim em Barcelona. Frente aos museus do ciberespaço, cuja arquitetura chega até o observador, os museus presenciais possuem um caráter hipertextual mais rico do que o MD. Pode ser uma ilogicidade, mas é um fato. O pesquisador, em um museu presencial, pode ter uma biblioteca e o banco de dados iconográficos (BDI) inteiros à sua disposição, proporcionando suporte às informações sobre o seu objeto de pesquisa. Embora tenha que sair de casa, viajar e obedecer aos horários do museu. Isso porque o museu do ciberespaço ainda não abriga conteúdos informativos e perceptivos dos seus objetos em sua totalização. Os museus disponíveis na net ainda não possuem um terço de seus objetos disponíveis, o que é uma contradição com a mídia museu. A hipertextualida-

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de nos museus digitais possui um baixo valor quantitativo de informações sobre uma peça do acervo. Os objetos mais prejudicados são os escultóricos, sem a tridimensionalidade que o observador poderia perceber, analisar etc. Além de ainda não dispor de fontes bibliográficas em hipertexto sobre o acervo.

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Todavia, essa questão do conteúdo das informações dos objetos dos museus não tem caráter determinante, já que há exemplos de museus digitais com ótimos conteúdos destacados dos seus acervos, a exemplo do <http://www. louvre.fr/llv/commun/home.jsp>, do <http://www.moma.org/>, <http://www. metmuseum.org>, e dos museus criados para funcionarem somente no ciberespaço, e os dois bons exemplos são: <www.museudapessoa.net> e o <http:// muva.elpais.com.uy>. Os museus foram concebidos como um instrumento que relaciona estrutura arquitetônica, acervo (quando houver) e paisagem, de tal forma que os espaços interiores e as zonas de ar livre podem ser utilizados para um amplo programa de atividades culturais. Famosos arquitetos dedicaram suas atenções à construção de museus. Entre eles estão Henry Van de Velde, que planejou o Museu Folkwang, em Essen, na Alemanha, em 1902; Le Corbusier, que concebeu o Museu de Arte Ocidental de Tóquio, no Japão, em 1957; Carlos Niemeyer, que desenhou o Museu de Arte da Venezuela, em Caracas, em 1954 e o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, Rio de Janeiro, em 1991; e Frank Lloyd Wright, que desenvolveu o projeto do Museu Guggenheim de Nova York, em 1946. A planta dos museus define as características de circulação em seu interior, razão por que tem importância fundamental. O mais antigo é o de circulação linear, derivado da galeria concebida como edifício retangular alongado. Outra planta clássica é a derivada do átrio antigo, onde quatro galerias rodeiam um quadrilátero central que pode ser coberto. As plantas clássicas impõem um percurso e uma ordem ao visitante, o que permite expor as peças de acordo com uma sequência histórica ou uma coerência estilística, ou até mesmo projetar comparações entre grupos de obras com um objetivo didático de modo a exigir que os visitantes circulem num sentido previsto. Mas também se imaginaram outros modelos de circulação que deixam plena liberdade ao visitante, podendo este escolher um itinerário próprio – o chamado circuito randômico –, prescindindo, consequentemente, das áreas de exposição que não lhe interessam. Ambos os sistemas têm seus defensores. Aquilo que se poderia designar por “modelo livre” produziu plantas que derivam de um estudo da distribuição geométrica do espaço. Desse modo se criaram plantas que lembram tecidos celulares, a arquitetura hexagonal das colmeias, ou mesmo formas bizarras, como o Museu de Tournai, na Bélgica, projetado por Victor Horta, em que todas as salas podem ser vigiadas por um único guarda de acervo, como num sistema panóptico. Numa perspectiva mais globalizada, falamos hoje dos novos arquitetos: os webdesigns, responsáveis pelas homes dos museus no ciberespaço, relacionados com os problemas hipertextuais, das tendências voltadas para o entretenimento dos visitantes, mas ainda esbarrando na baixa qualidade de conteúdo científico disponibilizado sobre os acervos.


José Cláudio Alves de Oliveira

A dimensão espacial na tipologia arquitetônica é o referencial de uma mudança que supera o extramuros e passa a descartar a palavra “fronteira” (o muro). É a desterritorialização acompanhada pelo eco-museu, pelos museus comunitários e o museum bus, e que recai na sua projeção digital do mundo globalizado, onde essa clássica mídia estará nas telas dos computadores, dos smartphones e dos celulares, quebrando a rigidez arquitetônica de antes, mas ainda carente do tráfego de informações mais sólidas, causando, portanto, o deslocamento de pesquisadores aos ambientes de rígidos horários e sistemas arquitetônicos tradicionais. Referências ALMEIDA FILHO, Otávio. O museu virtual: um novo meio de experiência estética. Salvador: UFBA/Mestrado em Comunicação/FACOM, 1998. (Digitado) BATTRO, Antonio. Del museo imaginario al museo virtual. Buenos Aires: La Nación, 29 ago.1999. Disponível em: <http://www.byd.com.ar/articulos.htm>.Acesso em 12 set. 1999 BAUDRILLARD, Jean.Tela Total: Mito-ironias do Virtual e da Imagem. 5 ed. Porto Alegre: Sulina, 2011. 158 p. BROUN, Elizabeth.“Art, Electronic Outreach and American Democracy”. In: Leonardo on-line. Disponível em: <http://mitpress2.mit.edu/e-journals/Leonardo/isast/spec. projects/broun.html>.Acesso em 4 Agosto 2004 DICIONÁRIO Aurélio Digital.Virtual Disponível em <http://www2.uol.com.br/aurelio/fechado/index.html?stype=k&verbete=virtual>.Acesso em Agosto de 2003. DICIONÁRIO Houaiss Eletrônico. Interatividade. Disponível em <http://houaiss.uol.com. br/busca.jhtm?stype=k&verbete=interatividade&x=2&y=7> Acesso em janeiro de 2006 DICIONÁRIO Houaiss Eletrônico. Mídia. Disponível em <http://houaiss.uol.com.br/ busca.jhtm?stype=k&verbete=m%EDdia&x=10&y=5> Acesso em janeiro de 2004 HAUPT, Gehard. “Os museólogos exploram um novo meio. É a internet uma alternativa adequada para a difusão das artes e da cultura no mundo inteiro? A América Latina avança ousadamente pela rede global”. In: Humboldt, São Paulo, n 76, 1998, p. 12-16, 1998. LEMOS, André. Anjos interativos e a retribalização do mundo. Sobre interatividade e interfaces digitais.Artigo. UFBA. Salvador, 1997. Disponível em: <http://www.facom. ufba.br/ciberpesquisa/lemos/interativo.pdf>.Acesso em 27 de novembro de 2011 LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: 34, 1996. p.15 ______.Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: 34, 1999. P. 145-155 LUHMANN, Niklas.The reality of the mass media. Cambridge: Polity Press, 1996. 154 p. LUSSÀ, O design do museu na sociedade da informação. Salvador, FACOM/ UFBA, jun. 2002. Disponível em: <http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/404n OtF0und/404_17.htm>. Acesso em jul. 2002

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Artigo recebido em novembro de 2011. Aprovado em fevereiro de 2012


PÚBLICO, O X DA QUESTÃO? A CONSTRUÇÃO DE UMA AGENDA DE PESQUISA SOBRE OS ESTUDOS DE PÚBLICO NO BRASIL Luciana Sepúlveda Köptcke Fundação Oswaldo Cruz

RESUMO: O texto enfatiza a importância de constituir as práticas em curso no campo da avaliação e dos estudos de público nos museus brasileiros em objeto de estudo histórico e social, de forma a refletir sobre o sentido atribuído a estas práticas pelos atores do campo cultural e sua contribuição para os museus. Neste sentido, após definir o entendimento sobre museu, missão, vocação, estudos de público e sua relação com as políticas de democratização da cultura, a análise avança apresentando algumas experiências na área dos estudos de público e avaliação em museus brasileiros nos últimos 10 anos. Conclui propondo uma agenda de pesquisa com três eixos: análise do contexto de produção dos estudos, análise e sistematização dos resultados acumulados e análise dos seus usos, visando a apoiar uma prática consciente, crítico-reflexiva e questionadora entre gestores, profissionais e formadores da área museológica.

RÉSUMÉ: Le texte soutient qu´il est important de réfléchir sur les études de public et des évaluations dans les musées, à fin de développer une politique des publics critique et réflexive. Ainsi, après avoir défini ce que l´on entend par musée, mission institutionnelle, études de publics et ses rapports avec les politiques de démocratisation de la culture, on discute les présupposés politiques et scientifiques de ces pratiques considérant quelques expériences brésiliennes dans ce domaine depuis une décennie. En guise de conclusion, on présente une agenda de recherche pour les études des publics au Brésil à partir de trois axes : l’analyse des contextes de production des études, l’analyse des résultats et ses conséquences pour le monde des musées ; l’analyse des usages sociaux des ré-

PALAVRAS-CHAVE: Museus. Estudos de Público. Política Cultural. Democracia cultural.

MOTS-CLÉ: Musées. Etudes de Public. Politique Culturelle. Démocratie Culturelle.


Público, O X da questão? A construção de uma agenda de pesquisa sobre os estudos de público no Brasil

Missão, Função,Vocação de museu? Vocação, substantivo feminino de origem latina, remete a dois movimentos complementares: o ato de chamar e a escolha de quem responde ao chamado.

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A construção semântica usual do termo aponta a vocação como uma tendência, disposição ou pendor para alguma coisa, o que por extensão acabou designando talento ou aptidão (Aurélio, 1975:1482). É comum dizer,“fulano tem vocação para as Artes” como quem diz “tem talento ou leva jeito” para determinada atividade. No universo das reflexões museológicas, falar em missão é discorrer sobre o sentido da existência da instituição, propondo uma finalidade prioritária, definida a priori. Entende-se aqui que a vocação é de natureza diferente, pois constitui um processo dialético e histórico. O ponto de partida é o projeto político, manifesto na missão que orienta as ações e as formas de atuar. Esta atuação no mundo é apropriada de modos variados pela sociedade, a observação das formas de apropriação retroalimentam o projeto e a missão original e a releitura da missão sugere mudanças no projeto de origem. Uma nova etapa do processo se inicia. Este processo de construção contínua nem sempre é perceptível de imediato. O que vem à mente ao se falar em museu no início da segunda década do século XXI? A percepção da instituição resulta da justaposição de papéis, significados e modelos redesenhados ao fio do tempo, cristalizados nas definições, a exemplo da que segue, publicada no sítio do Instituto Brasileiro de Museus, em 2005: O museu é uma instituição com personalidade jurídica própria ou vinculada a outra instituição com personalidade jurídica, aberta ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento e que apresenta as seguintes características: I - o trabalho permanente com o patrimônio cultural, em suas diversas manifestações; II - a presença de acervos e exposições colocados a serviço da sociedade com o objetivo de propiciar a ampliação do campo de possibilidades de construção identitária, a percepção crítica da realidade, a produção de conhecimentos e oportunidades de lazer; III - a utilização do patrimônio cultural como recurso educacional, turístico e de inclusão social; IV - a vocação para a comunicação, a exposição, a documentação, a investigação, a interpretação e a preservação de bens culturais em suas diversas manifestações; V - a democratização do acesso, uso e produção de bens culturais para a promoção da dignidade da pessoa humana; VI - a constituição de espaços democráticos e diversificados de relação e mediação cultural, sejam eles físicos ou virtuais. Sendo assim, são considerados museus, independentemente de sua denominação, as instituições ou processos museológicos que apresentem as características acima indicadas e cumpram as funções museológicas.107

A definição acima marca as formas institucionais possíveis para o museu, afirma sua natureza pública, situa o objeto de sua prática e suas finalidades, sinalizando a vocação para comunicar, expor, documentar, investigar e interpretar. 107 Definições sobre Museu. Disponível em :<http:// www.museu.gov.br> Acesso em 09/02/2012.


Luciana Sepúlveda Köptcke

Bastante abrangente, deve ser compreendida não só como o reflexo de um projeto político, mas como o resultado de um processo de disputa simbólica onde se enfrentam usos e expectativas sociais constituídos historicamente. Nascido em terras européias, no bojo das revoluções ou no coração das dinastias esclarecidas, o museu herdou do iluminismo a crença na razão como operadora da verdade, da justiça social e política e a missão de construir e preservar um patrimônio cultural comum a todos os homens civilizados. A instituição com grande notoriedade e prestígio no século XIX, acompanhou de perto a expansão colonialista dos países Europeus antes de entrar em crise, nos anos 30 e 40, servindo aos regimes totalitários como instituições de propaganda e de estigmatização política, étnica e social. Posteriormente, competindo com os meios de comunicação de massa, os museus perderam prestígio social e investimentos, ao mesmo tempo em que sofreram duras críticas do movimento da contracultura de 68. Percebidos por intelectuais e artistas como inadaptados, ultrapassados e reprodutores de uma cultura elitista, será neste período que um movimento de ressignificação desponta em diferentes pontos do globo, recuperando prestígio, investimentos financeiros e vigor simbólico para a instituição (Ballé, 2000: 138). Os museus se formaram na esfera pública, articulando práticas e discursos sobre elementos da cultura. Constituíram-se como espaços de construção de conhecimento; de ressignificação de objetos; de interação social; de exercício de autoridade simbólica, servindo à construção da memória, à afirmação identitária, à popularização da ciência, à educação estética e na virada do século XX ao XXI, à inclusão social. Como camaleões, transformam-se, reinventam-se e redefinem, em permanente negociação, seu papel social. O museu, tal qual o concebemos hoje, é a combinação do humanismo da Renascença, das Luzes do século XVIII e da democracia do século XIX (Alexander apud Poulot, 2000: 25), no entanto, segundo Ballé (2000:141), ao final do século XX, o museu entrou definitivamente na sociedade, revendo as relações estabelecidas com o ambiente e afirmando sua vocação pública. O sentido da instituição e sua forma de operar mudam com o tempo e respondem à realidade de cada contexto político, social e cultural. Assim, com a Revolução Francesa, em 1789, surge o museu como espaço de ressignificação, transformando objetos monárquicos, feudais ou religiosos em “bens nacionais”. Vinte e nove anos após, no Brasil, o Decreto de criação do Museu Nacional em 1818, anuncia o projeto de desenvolvimento das ciências naturais nos trópicos, promovendo a construção de um patrimônio simbólico a serviço das elites que deveriam sustentar a implantação da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro e dotar a mais nova metrópole com os equipamentos culturais necessários (Koptcke, 2005:191). O Museu Nacional de História Natural do Rio ilustra uma experiência particular do projeto ideológico destas instituições que, no século XIX posicionadas como agentes de reforma social, atuaram como instrumentos civilizatórios para o Estado (Sandell, 2003:45). Sandell observa que no início de 2000, o Departamento de Cultura, Mídia e Esporte do Reino Unido convidava os museus a reconsiderar seu papel no combate a questões como más condições de saúde, alta criminalidade, problemas de fracasso escolar e desemprego, indicadores

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da exclusão social. Em diferentes países, estas instituições buscam estabelecer parcerias com os setores de saúde, assistência social, educação, dentre outros, visando a colaborar para o alcance de metas de inclusão social (2003:46). No início do século XXI, observa-se a intensificação e ampliação das expectativas do Estado e da sociedade com relação ao museu. Para além de templo, escola, fórum, centro cívico e ator de desenvolvimento urbano e econômico, as instituições museais acompanham o movimento geral de gestão intersetorial nas políticas públicas. No entanto, não só obedecem ao contexto sociocultural e político, como respondem à dinâmica do subcampo de produção simbólica onde se situam: museus de arte respondem às relações entre os artistas, críticos, gestores, acadêmicos, públicos, artesãos, fornecedores que operam neste espaço de produção de forma imbricada e interdependente (Becker, 1988). Neste sentido, o papel de um museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro não será o mesmo de um museu de História Natural ou de Antropologia. A relação entre o museu, educação e escola refletirá, por exemplo, em um programa disciplinar específico, no prestígio intelectual e social do campo de saber em determinado período, entre outros fatores que definem a prática interna e a posição ocupada pelo museu no universo em questão. Como se vê, os papéis sociais atribuídos aos museus são múltiplos, resultando de uma delicada tessitura de fatores relativos tanto à riqueza e tradição cultural acumuladas de um país ou região, quanto à situação econômica, educacional e política de cada grupo político e social onde se desenvolvem estas instituições. De forma que, falar do papel, da missão ou da função social do museu em geral não é possível. É sempre um recorte com base em alguma experiência situada no espaço e no tempo, atualizado pela noção de vocação, enquanto processo permanente e dialético da vida institucional.

Os Estudos de Público e a construção discursiva O entendimento das dinâmicas que caracterizam o museu nos países ocidentais, toma como ponto de partida a possibilidade do museu intervir e sofrer intervenções de outras instituições, das políticas de Estado e dos demais atores não só do seu campo específico como de toda a sociedade. Neste sentido, as relações reais e desejadas dos museus com seu público funcionam como molas propulsoras de mudanças para a instituição.Argumenta-se, neste texto, que não apenas as expectativas sociais delineiam outro conceito de museu e renovadas práticas e serviços referentes aos visitantes e não visitantes (público a conquistar), mas que ao colocar no público a centralidade da vocação institucional, ganham vulto os estudos voltados para estes e suas visitas, construindo um vasto campo discursivo apropriado pelos diversos atores envolvidos. Não há museu sem público – e representação sobre estes. A construção dos visitantes dos museus no plano das representações sempre existiu. Colecionadores, curadores, pesquisadores, artistas, profissionais de museus, educadores, gestores culturais, pais ou visitantes elaboram, de forma mais ou menos explícita, imagens parciais de um público ideal e de um comportamento desejável. Os responsáveis pelos estudos e avaliações nos museus, um corpo cada vez mais especializado, passam a participar das disputas simbólicas referentes aos diversos visitantes, não visitantes e usos sociais da instituição.


Luciana Sepúlveda Köptcke

A construção do campo dos estudos e avaliações ocorre principalmente dentro das universidades e dos museus, às vezes de forma integrada, com a participação dos gestores públicos, algumas vezes responsáveis pela demanda estruturada e sistemática de dados. As primeiras iniciativas de registro e identificação dos visitantes foram feitas por meio dos livros de visitante preenchidos pelos porteiros responsáveis pelas salas ou ainda pelos visitantes que assinavam o livro de ouro do museu. No Brasil, o registro do público remonta ao final do XIX, início do XX, como ilustra a presença de dados sobre o número dos visitantes aos museus por mês e ano, no Primeiro Anuário Estatístico do Brasil (AEB), referente ao período 1908-1912 (Köptcke, 2005:188). Diferentes campos disciplinares encontraram nas instituições museais terrenos de observação, contribuindo, ao longo dos últimos 80 anos, com a reflexão sobre a relação dos museus com a sociedade e suas formas de apropriação. As questões referentes à aprendizagem humana foram abordadas pela psicologia no início do século XX, definindo a visita como uma situação de educação fora da escola. Para os profissionais dos museus imbuídos de sua missão educativa, os estudos ofereceriam novas abordagens para a elaboração de exposições mais eficazes, no que se refere à aprendizagem. Após a segunda guerra, os estudos de público se beneficiaram das pesquisas sobre o tempo livre e sobre os meios de comunicação de massa, situando a visita dentre as escolhas do tempo livre e observando como a informação circula e como grupos e indivíduos se influenciam reciprocamente. Nesta linha, a teoria da comunicação abre uma possibilidade importante para abordar visitantes na sua relação com as exposições nos museus, culminado com os estudos de recepção iniciados a partir dos anos 70. As ciências sociais explicitaram com o trabalho de Bourdieu e Darbel (1965) a construção social das escolhas no campo cultural, no âmbito de uma problemática da dominação e da violência simbólicas. As práticas avaliativas e os estudos de público nos museus refletem, simultaneamente, as problemáticas e as teorias em curso nos diferentes campos do conhecimento bem como as expectativas sociais e as transformações na política cultural e na oferta museal, caracterizando uma espiral de demandas, retroalimentação e transformação. Os estudos de público podem ser descritos como processos de obtenção de conhecimento sistemático sobre os visitantes de museus, atuais ou potenciais, com o propósito de empregar o dito conhecimento na planificação e pôr em marcha atividades relacionadas com os distintos grupos de visitantes. Segundo a abordagem e os pressupostos teóricos escolhidos, as questões, metodologias e finalidades destes estudos formatam práticas passíveis de múltiplas categorizações. Cada tipo de estudo agrega características, nuances e perspectivas particulares que renovam e ampliam a percepção e a construção discursiva sobre o público. Neste sentido, Octobre (2007:96-97) propõe organizar os estudos relacionando os objetivos, o alvo e as perguntas. Com referência ao alvo, foram identificados quatro interlocutores para os quais os estudos costumam voltar-se: os efetivos visitantes das instituições culturais sejam, o público ou praticante; os grupos que por suas características sociais e culturais assemelham-se àqueles que visitam museus e constituem um público potencial a conquistar e

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o “não público”, ou seja, aqueles que se diferenciam dos potenciais visitantes e dos praticantes efetivos em seu perfil sociocultural e demonstram pouco ou nenhum interesse ou familiaridade quando indagados a respeito destas instituições. Finalmente, a população de referência que representa o universo a partir do qual se podem construir parâmetros de observação dos comportamentos estudados. Dependendo do alvo, os objetivos variam. Assim, junto ao público efetivo, tratando das práticas reais de visita, os objetivos são sintetizados em três grupos principais: as sociografias, que visam descrever o perfil e as modalidades de apropriação das instituições; os estudos de fluxo, que pretendem acompanhar a dinâmica das visitas ao longo do tempo, contabilizando quantas pessoas realizam tal prática; e os estudos de recepção, que buscam compreender as formas de apropriação e o sentido das práticas junto aos visitantes. Junto ao “público potencial”, a abordagem do marketing cultural foca na segmentação, buscando identificar necessidades e expectativas particulares a cada grupo de forma a adequar a oferta cultural, atraindo novos visitantes. Com relação ao não público, trata, principalmente, de conhecer as representações e atitudes daqueles que não visitam, não demonstram interesse nem valorizam a prática museal. Logo, se no século XIX as categorias de públicos restringiam-se aos estudiosos e curiosos, pesquisadores estrangeiros, visitantes ilustres, escolares e a massa ou popular, a fala dos especialistas e seus estudos introduzem novas categorias. Além do público real, potencial e do não público, fala-se também em neófito ou expert, considerando a familiaridade com os museus como dispositivo cultural. Distingue-se o primovisitante do fidelizado, referindo-se à assiduidade das visitas a uma instituição em particular, o público de proximidade ou de vizinhança dos turistas nacionais ou estrangeiros, o público escolar do espontâneo, o solitário daquele que visita em companhia de amigos ou de familiares. A construção de um público fragmentado no seu perfil e nas formas de visita respalda-se na psicologia cognitiva, sugerindo uma análise com foco na experiência de visita com seus contextos pessoal, físico e social (Lynn, Direking 1992). Também nas ciências sociais ecoará a desconstrução da idéia de um público geral, homogêneo e estável, apresentando o público da cultura como coalisões e agrupamentos efêmeros, fenômenos particulares da vida coletiva, diferentes de fazer parte da multidão ou de uma associação instituída (como um sindicato patronal) (Mouchtouris, 2003:7,8,16,17; Fabiani, 2007:21-22). O público deixa de ser um grupo construído de uma vez por todas para tornar-se um organismo vivo que se forma e se desfaz, composto de grupos sociais diferentes a cada período, sugerindo o uso do termo “públicos” no plural. Observa-se a especialização deste campo de estudo a partir dos anos 70 nos Estados Unidos e na Europa, retratando os últimos 42 anos, a história recente de uma prática e seus resultados, onde se fala de uma “política de públicos” (Fourteau, 2000: 236) percebida como uma “nova sensibilidade que leva em conta os públicos na elaboração das políticas culturais”.


Luciana Sepúlveda Köptcke

Quadro 1 – Categorização dos estudos de público segundo alvo, objetivos e perguntas* ALVO

OBJETIVOS

O público: os visitantes de um museu, visitantes de uma exposição ou de uma atividade particular no museu; praticantes efetivos.

Sociografia do público: Conhecer os perfis e as práticas de visita do público; Identificar fatores facilitadores e empecilhos do acesso aos museus; Acompanhar, caso os estudos se repitam, a evolução das práticas e a resposta à oferta cultural; Fluxo de frequência: Acompanhar o volume de visitas e sua variação; Análise de recepção: Compreender as modalidades concretas de apropriação das exposições, materiais ou atividades oferecidas pela instituição;

Público potencial: grupos que possuem características socioculturais semelhantes àquelas dos públicos efetivos dos museus, visitam instituições similares, podendo tornar-se visitantes ou público de uma dada instituição.

Identificar fatores que facilitariam a visita destes grupos; Conhecer os hábitos culturais e as preferências destes segmentos para melhor adequar a oferta e atrair estes segmentos; Conhecer as representações acerca dos museus e dos temas que tratam.

Não público: grupos que não costumam frequentar museus e manifestam disposição desfavorável a esta prática;

Conhecer os fatores externos (ex: falta de equipamento próximo) e atitudinais (ex: disposições de gosto, hábitos, preconceitos, experiências negativas) que impedem a visita; Identificar as características e expectativas que favoreçam a prática de visita, orientando ofertas mais adequadas ao perfil destes frequentadores.

População: Universo agrupando a população de certa localidade (cidade, estado, país) que serve como referência para estudar as características dos diferentes grupos de frequentadores.

Analisar como se situam os visitantes e o público potencial dos museus com relação à escolaridade, raça/cor; renda, estado civil, etc. comparados à população de referência? Conhecer as representações acerca dos museus e dos temas que tratam;

* Esta tabela faz referência ao trabalho de Octobre,(2007).

PERGUNTAS Qual o perfil dos visitantes? O nível escolar e o tipo de estudos interferem na frequência de visitas? A companhia de visita modifica as expectativas e a experiência da visita? Como as visitas se repartem ao longo do ano? Que eventos, internos ou externos ao museu, favorecem a intensificação das práticas? O que os visitantes esperam encontrar no museu X sobre o tema Y? O que os visitantes aprenderam durante a visita? Como interagem com os elementos da exposição? (Leem os textos? Utilizam mídias diversas? Demandam auxílio aos mediadores?) Qual o grau de satisfação dos visitantes diante da oferta? O que fazem estes grupos em seu tempo livre? O que costumam fazer com os filhos? O que esperam de uma atividade de lazer educativo? Que temas parecem prioritários para serem abordados em um museu? Que tipo de arte mais atrai estes grupos? O que pensam sobre os museus? O que costumam fazer no tempo livre? Qual o perfil sociocultural deste público? Qual a influência dos amigos e familiares nas práticas culturais destes grupos?

Como percebem as instituições culturais? Que valores atribuem à arte, à saúde ou à ciência? Qual a representação que a população acalenta sobre os museus?

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Da democratização à inclusão social

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A ideia da cultura como direito estabelece para as políticas culturais metas de democratização. O acompanhamento destas políticas e suas metas gerou a demanda por estudos que pudessem medir a mudança e inspirou a construção de teorias compreensivas das transformações social e cultural, para explicar como e por que elas se processam (Sandell, 2003:46-47). No entanto, constata-se que os estudos e pesquisas apresentam diferentes entendimentos e aplicações da ideia de democratização, democracia ou inclusão social. A explicitação destes conceitos facilita o entendimento daquilo que é medido, permitindo análises e usos mais pertinentes dos resultados pelos diferentes atores do campo. A ideia contemporânea de democracia se constrói na modernidade europeia com o fortalecimento do pensamento racional e da ciência, questionando a concentração de poder e os privilégios garantidos pelas tradições. Os interesses comuns presidirão os parâmetros do bem público, promovendo a igualdade dos indivíduos diante dos direitos civis, mesmo que ainda socialmente desiguais. A ordem social percebida como uma criação humana se transformará em objeto das ciências sociais e humanas ao final do século XIX e início do XX. Na França, o ministério de André Malraux, a partir de 1959, estende a ideia de democratização ao campo cultural (Octobre, 2007:92). Caberá ao Estado garantir a todos os segmentos sociais as condições de acesso a bens, equipamentos e práticas, empreendendo uma verdadeira “evangelização cultural” a fim de fortalecer a identidade do povo, sua integração cultural e coesão social. As políticas públicas em curso serão respaldadas no campo científico pelo trabalho o Amor pela Arte, de Bourdieu e Darbel (1969), abordando as desigualdades diante dos bens culturais e a análise de sua função social e simbólica no âmbito de uma problemática da dominação (Fabiani, 2007:19). A produção de Bourdieu e Darbel, assim como a pesquisa “As práticas culturais dos franceses”, (Donnat, 1998) realizada a cada 10 anos, a partir de 1973 até o final dos anos 90, ilustram o investimento da gestão pública na realização de pesquisas por reconhecidos especialistas, visando a apoiar a retórica da democratização, visto que trata de um processo que só pode ser percebido quando se mede e compara. Mas o que se entende, mede e compara para caracterizar a democratização da cultura? Observam-se pelo menos três abordagens dos processos de democratização ou das ações propostas para sua realização com base na acessibilidade. A primeira diz respeito ao acesso material que concerne à existência física e a distribuição territorial equânime dos equipamentos; a proposição de tarifas populares; a consideração das necessidades especiais dos visitantes (rampas, elevadores, textos em braile, etc.) nos espaços e equipamentos da cultura. A segunda faz referência à acessibilidade social e simbólica, às chances efetivas dos diferentes segmentos sociais de frequentarem os diversos espaços culturais. Se a resposta ao primeiro nível se situa nas ações de renovação, construção, multiplicação dos equipamentos e atenção às políticas tarifárias, no segundo nível trata-se de agir sobre as condições de produção do desejo de cultura, combatendo as causas da desigualdade. Busca apreender o sentido das práticas para aqueles que as praticam no contexto de um grupo social e compreender as vantagens sociais, culturais/simbólicas e econômicas que delas podem derivar


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para os diferentes grupos. Logo, a democratização diz respeito tanto à oferta (garantia da facilidade de acesso para aqueles que praticam ou que desejariam praticar) quanto à apropriação, à escolha e à fruição diversificada de variados elementos da cultura por diversos grupos sociais. A terceira abordagem mescla objetivos de aumento numérico de praticantes (volume dos que frequentam um equipamento) e a diversificação da estrutura social dos públicos em questão, gerando mal-entendidos e frustrações, pois não se observa uma relação de reversibilidade causal entre a diversificação da estrutura social dos públicos de um equipamento e seu aumento numérico. Da mesma forma, o aumento do número de visitas a um equipamento não significa o aumento de praticantes, mas pode apenas revelar a intensificação da prática entre os visitantes antigos. A questão da democracia nos museus, entendida pelo viés do acesso, reuniu iniciativas nos mais diversos campos e setores e inspirou ações de educação permanente, de popularização da ciência, de educação estética, de construção e expressão da memória. Foi também neste contexto que surgiram as práticas de mediação cultural visando a promover relações significativas entre o público e os objetos e equipamentos da cultura. No entanto, atividades como oficinas, estágios, cursos, ou a criação de um comitê assessor com participação de visitantes ou da comunidade não garantiram por si a diversificação da estrutura social ou o aumento do número de visitantes, sugerindo a necessidade de buscar novos referenciais explicativos para aprofundar o entendimento sobre as práticas de mediação cultural. Com os ecomuseus e museus comunitários, integrando a dimensão intangível do patrimônio, incorporou-se igualmente o direito à diversificação dos espaços museais e dos acervos musealizáveis como possibilidade de ampliar e renovar o acesso à produção cultural no e pelo museu, por diversos segmentos sociais e comunidades culturais. O foco das políticas começa a deslocar-se da democratização do acesso à cultura para a construção de uma democracia cultural, onde o cidadão não exerce apenas o direito de acessar os bens culturais, mas o de produzir, manifestar, expressar, celebrar sua criatividade, sensibilidade e memória nos museus, entendidos enquanto espaços públicos de compartilhamento legítimo da diversidade cultural. Entretanto, a problemática da democratização e da democracia cultural não esgotaram os desafios colocados para os museus. A cultura ganhou reconhecimento político no combate às iniqüidades, com o entendimento multicausal da exclusão social. Incluir socialmente implica garantir a todos a possibilidade de expressão e leitura do mundo, do acesso e entendimento crítico do infindável corpo de conhecimento produzido, de oportunidades de emprego, de boas condições de saúde, de relações sociais e afetivas saudáveis, indo além do conceito restrito de pobreza. A abordagem intersetorial dos problemas sociais alargou o espectro de atores necessários para sua resolução. A ideia de que os museus podem promover a inclusão social coloca outros papéis para a instituição que não se restringe a promover o acesso a seu acervo para aqueles em risco de exclusão social, mas deve desempenhar um papel direto no combate às desvantagens e discriminações sofridas por estes grupos (Sandell, 1998:45).

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Fabiani (2007:20) defende a necessidade de se construir novos instrumentos teóricos para abordar a dinâmica da apropriação dos espaços culturais, considerando que a teoria sociológica da legitimidade cultural encontra limites diante de uma realidade social que reconhece de forma explícita a cultura como campo de disputa, onde não caberia mais imaginar uma hegemonia da cultura erudita, implementada pela lógica da distinção e da boa vontade cultural. Neste sentido, não haveria um público da cultura homogêneo, obediente, estável, mas uma diversidade de relações entre grupos sociais e experiências culturais.

Os Estudos de público no Brasil, um objeto de investigação A história social dos estudos de público e da avaliação museal no Brasil resta a ser contada, do mesmo modo que necessitam serem sintetizadas e sistematizadas as lições aprendidas com estes estudos e pesquisas. Com o propósito de colaborar com a construção de uma agenda de pesquisa, realizou-se uma consulta não exaustiva às páginas encontradas no Google acadêmico no Brasil a partir de 2000, com os descritores estudos de público em museu e museus e públicos, obtendo 72 resultados. Ademais, foram analisadas 22 publicações, dentre livros, revistas e relatórios disponíveis. A leitura dos documentos revelou características referentes ao tipo de publicação, ao tipo de estudo com relação ao alvo e aos objetivos e sugeriu questões para pensar a dinâmica destas práticas e sua construção como objeto de pesquisa. Com relação ao tipo de publicação, foram identificadas seis categorias. A primeira reúne os textos publicados em Coletâneas/anais de trabalhos apresentados em eventos: seminários, workshop, encontros e congressos. Alguns eventos são organizados pelos museus com financiamento institucional e apoio de agências de fomento, a exemplo do Encontro de Pesquisa em Educação, Comunicação e Divulgação científica em Museus - EPECODIM (2001), com apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Rio de Janeiro e do Conselho Nacional de Pesquisa Científica. Outros são fomentados para os museus por instituições internacionais como o Workshop de Educação da Vitae (2003) ou os encontros do Committee for Education and Cultural Action - Ceca do International Council of Museums – ICOM, que ocorrem regularmente. Os trabalhos também são apresentados em eventos de diferentes áreas do conhecimento onde há pesquisas utilizando o museu como campo de investigação a exemplo do Encontro de pesquisa da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais; o Encontro Nacional de Pesquisa em Ciências da Informação - Enancib, a Associação Nacional de Pesquisa em Educação - ANPED, a Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS, o Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências - ENPEC, o Congresso Brasileiro de Pesquisas Ambientais e o Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares de Comunicação - Intercom. Muitos dos textos sobre avaliação e estudos de público em museus foram apresentados e posteriormente publicados em anais de eventos regulares de divulgação da ciência como a Red Pop, Rede Latino Americana de Popularização da Ciência, e o Congresso Internacional de Museus e Centros de Ciência. A análise do foco, dos objetivos e dos resultados destes estudos pode trazer informações sobre a relação dos museus com os


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diferentes campos de conhecimento e de práticas, pois permitem comparar com periodicidade regular (a periodicidade do evento) a presença e a natureza de trabalhos apresentados. Trata de uma produção heterogênea, oriunda tanto da academia quanto das práticas, bastante abrangente por reunir o resultado de estudos concluídos e o relato de experiências recém-iniciadas. Registra a reflexão dos profissionais que atuam na área museal e revela questões mais próximas da prática cotidiana. O segundo grupo agrega os relatórios de pesquisa, de circulação restrita aos profissionais das instituições que realizam estes estudos. Esta categoria sugere o interesse dos museus em produzir dados para o planejamento de suas ações. Foram encontrados relatórios densos como a avaliação de exposições e da ação educativa no Museu Lasar Segall de São Paulo, em geral com o apoio de uma agência de fomento, Vitae ou Fapesp. Além do foco no público efetivo, dentre os Relatórios, encontramos os trabalhos com foco na população, como as pesquisas realizadas no âmbito do CDHP- curso de habilidade em pesquisa da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. O CDHP oferece às instituições a possibilidade de obter um estudo populacional – em geral oneroso e tecnicamente complexo. Indicam o interesse das instituições museais por estes estudos e as estratégias encontradas para sua realização. A terceira categoria se refere aos artigos publicados em periódicos. Embora não exista uma publicação periódica especializada nos estudos de público e avaliação em museus, muitas instituições museais editam regularmente periódicos onde estes trabalhos encontram espaço. Tal é o caso dos Anais do Museu Nacional, dos Anais do Museu Paulista ou da revista MAST Colloquia do Museu de Astronomia e Ciências Afins. Encontramos ainda publicações de outras instituições que atuam no campo museal como a revista Musas, editada pelo Departamento de museus do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional- Iphan (atual Instituto Brasileiro de Museus), a Revista eletrônica do programa de pós-graduação em museologia da Universidade do Rio de Janeiro - Unirio e a revista Jovem museologia. As revistas da área das ciências sociais, como a Revista Brasileira de Ciências Sociais, a revista História, Ciências, Saúde Manguinhos, a Horizontes Antropológicos (Porto Alegre), a Mouseion e a Revista do Patrimônio Histórico do Iphan também reúnem estes estudos assim como aquelas voltadas para a educação e aprendizagem como Inovação e ensino de ciências e Ciência e Cognição. A análise das publicações periódicas sugere o grau de prestígio de um campo do saber e dos grupos que nele atuam. Revela, ainda, as abordagens consagradas, as inovações e os tópicos inexistentes ou não publicados pelas diferentes comunidades científicas. A quarta categoria agrupa os trabalhos acadêmicos, teses de doutorado, dissertações de mestrado e monografias. Foram identificados 16 trabalhos dentre os quais três trabalhos de conclusão de curso, nove dissertações de mestrado e quatro teses de doutorado, concluídos entre 2000 e 2011, nos cursos de artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sociologia da Universidade Federal do Paraná, bens culturais e projetos sociais da Fundação Getúlio Vargas, turismo, no Centro Universitário UMA, de Belo Horizonte, artes da Universidade de Brasília, sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho da Empresa, comunicação na Escola de Comunicação da UFRJ e ciências da in-

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formação no Instituto Brasileiro de Ciências da Informação Tecnológica- UFRJ, comunicação e artes, além de pedagogia na USP.

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Assim como os trabalhos publicados em periódicos, as teses revelam a dinâmica dos estudos sobre os frequentadores de museus no âmbito da academia e sua relação com o movimento mais abrangente de afirmação ou renovação das teorias explicativas dentro dos diferentes campos do conhecimento. O quinto grupo tratou dos textos publicados em livros e capítulos de livros. Foram quatro os livros que trataram do público de museus dentre aqueles identificados na busca realizada: Educação e Museu: a construção social do caráter educativo dos museus, Acces/Faperj (2003); Avaliação e Estudos de Público de museus e Centros de Ciência, Museu da Vida (2003); Museus, coleções e patrimônio, narrativas polifônicas, DEMU/IPHAN (2007); Museu lugar do público, Museu da Vida, Fiocruz (2009). Este tipo de publicação aponta as estratégias institucionais de criar espaço para esta produção, indicando o crescimento do interesse pelos estudos de público. O sexto grupo reuniu duas publicações especializadas: o Boletim do Observatório de Museus e Centros Culturais, com duas edições publicadas em 2008 pelo Museu da Vida e o Departamento de Museus e Centros Culturais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e os Cadernos do Museu da Vida (Núcleo de Estudos de Público e Avaliação em Museus), com três edições publicadas pelo Museu da Vida entre 2008 e 2010. Como o anterior, este grupo de publicações caracteriza um grau intenso de especialização institucional nas pesquisas de público e avaliação em museus. Referente ao alvo, os estudos de públicos efetivos são a grande maioria. Dentre estes, as famílias, os jovens, adolescentes e crianças, os portadores de necessidades especiais, os educadores, os educandos ou escolares, os mediadores, os pesquisadores, os públicos estimulados, os visitantes espontâneos, o público fidelizado e os neófitos constituem as categorias apresentadas. Alguns estudos de público potencial foram realizados junto a estudantes universitários, escolares, visitantes de jardins ou moradores de um bairro. Não foi encontrado nenhum estudo de não público. Com relação aos estudos populacionais destacam-se, a partir de 2000, aqueles de áreas geográficas da cidade do Rio de Janeiro, no bojo dos estudos realizados pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas, no âmbito do Curso de desenvolvimento de habilidades em pesquisa - CDHP, como o estudo das pesquisas Conhecimento do Museu da Vida junto aos moradores de bairros vizinhos ao museu, Comvida (2002) e a pesquisa domiciliar sobre percepção e visita a museus - Vamus (2008). Com relação às abordagens ou áreas do conhecimento, dentre os analisados, a produção mais intensa foi aquela relacionada às teorias da aprendizagem, à cognição, à psicologia cognitiva, à didática da matemática e da física. Entretanto, identificaram-se textos oriundos de áreas diversas, como a psicologia social, a história cultural, as ciências da informação, a teoria da comunicação e a teoria da recepção; as ciências sociais, a antropologia e a sociologia da cultura; a teoria da arte, a museologia, o turismo ou a filosofia. Os objetivos dos estudos relacionam-se ao campo de conhecimento. Neste sentido, foram identificados objetivos referentes à educação e à relação ensino-aprendizagem: identificar as concepções prévias sobre um determinado conceito ou assunto, avaliar um


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material ou as ações educativas; conhecer o perfil e as práticas educativas dos professores antes, durante e depois das visitas; avaliar a parceria escola-museu. As sociografias, com base nas ciências sociais e na sociologia da cultura, visam conhecer o perfil, as formas de apropriação, as expectativas, o hábito de visitas a museus e as práticas de lazer de públicos efetivos dos museus, do público potencial ou de uma população adstrita a um bairro ou cidade. Estudar a transferência da informação da exposição para o público retrata um enfoque das ciências da informação, enquanto que analisar a forma de apropriação de uma exposição recuperando o sentido atribuído à visita e a forma de visitar é um objetivo partilhado pela teoria da recepção e pela psicologia sociocultural. Revisar a produção bibliográfica sobre “os públicos” dos museus foi objetivo da museologia, das ciências sociais e da teoria da comunicação enquanto que discutir as relações entre diferentes segmentos sociais e o museu ao longo do tempo e identificar fontes documentais que informem sobre as práticas de visita e visitantes dos museus resultam de uma abordagem histórica. Descrever a visita como uma experiência recupera a abordagem filosófica e sua contribuição para a psicologia cultural. O presente texto propôs a análise exploratória de um corpo documental não representativo da produção no período em questão. Foram identificadas categorias referentes ao tipo de publicação, ao alvo, ao campo disciplinar e aos objetivos dos estudos cuja descrição revela a natureza e sugere o perfil de um campo de conhecimento em construção. No entanto, preferiu-se guardar a análise de frequências, sinalizando tendências sobre a natureza dos estudos, onde e por quem são produzidos dentre outras variáveis para um futuro estudo sistemático da produção brasileira no período observado. Uma agenda de pesquisa para os estudos de público coloca a necessidade de descrever e questionar o contexto de produção destes estudos: quem são os atores? Com que finalidade são realizados os estudos? O que favorece, em determinado momento, o investimento nestas práticas? A que ponto os estudos de público e a avaliação em museus dependem do investimento público na organização da oferta e da demanda? Qual a importância da academia? O aumento da formação de pós graduação – doutores e mestres - dentre os quadros das instituições museais brasileiras ocasionou aumento das práticas de estudo de público e avaliação nos museus? Os resultados dos estudos servem efetivamente para a gestão dos museus no Brasil? A política cultural implementada pelo Estado promove a realização de estudos de público e avaliação? A educação continua a ser o campo mais importante da pesquisa em museus? Os museus de ciência tendem a desenvolver estudos e avaliações referentes à educação e à relação ensino aprendizagem enquanto os demais privilegiam estudos com foco na ampliação quantitativa e no desenvolvimento de novas audiências? A abordagem intersetorial nas políticas públicas de saúde, educação, inclusão e desenvolvimento social definem novos papéis para os museus? Provocam a realização de uma nova geração de estudos com outras problemáticas? Além de refletir sobre o contexto de surgimento dos estudos de público, sobre como se desenvolvem e sobre os fatores promotores ou inibidores de seu crescimento, uma agenda de investigação sobre estas práticas precisa debruçar-se sobre a natureza do conhecimento que constroem: O público dos

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museus são múltiplos? Os museus são mais democráticos hoje do que no século XIX ou na década de 30? A maneira e o sentido da apropriação dos espaços e obras da cultura variam segundo a situação de visita? É possível aprender no museu? O que e como se aprende no museu? A escola favorece o acesso aos museus para crianças oriundas de grupos menos familiarizados com esta instituição? O professor constrói um papel pedagógico adaptado ao tipo de visita oferecida? Como os museus contribuem com as políticas de promoção da saúde, de popularização da ciência e tecnologia, da educação popular? Um terceiro bloco de reflexão deve indagar sobre o uso efetivo do conhecimento construído por estes estudos. Para que servem os estudos de público? Contribuem com a mensuração da democracia nos museus? Explicitam a situação do acesso à produção cultural erudita? Colaboram com o planejamento e a gestão dos museus, gerando informações que ajudem a ampliar o consumo cultural e a fortalecer os setores produtivos da cultura? Promovem a percepção do papel dos museus nas políticas sociais inclusivas? Geram dados sobre a mobilização e a participação de diversos grupos na fruição, na produção e na criação cultural? Podem revelar o potencial dos museus para atuar como determinantes culturais da saúde? Como ferramentas para a qualidade de vida e para a justiça social? Espera-se que as questões acima provoquem muitas outras, contribuindo com a construção de uma agenda de pesquisa para os estudos de público. Tais estudos e o conhecimento que produzem intervêm na concepção de ser/estar público e nas expectativas sociais face aos museus. Sua análise poderá revelar a relação entre a missão institucional e a realização de pesquisas e avaliação em museus, permitindo observar seus efeitos na orientação da política cultural, ou, ainda, do plano museológico do museu estudado, explicitando como operam tanto na construção vocacional da instituição quanto no plano discursivo das políticas culturais. Considerações finais A análise do surgimento dos estudos de público revela a imbricação entre as expectativas sociais referentes aos museus, os campos de pesquisa das diferentes ciências que encontraram nesta instituição um objeto de estudo, as escolhas políticas e as especificidades de cada tipo de museu e sua forma de operar no cotidiano. Neste sentido, acredita-se que os estudos de público incidem na dinâmica vocacional das instituições e participam da disputa pela hegemonia discursiva sobre quem e como se apropria socialmente os museus. Em seguida, a análise exploratória de 22 publicações e 16 trabalhos de conclusão de curso – graduação e pós-graduação - dentre o total de 94 documentos levantados sobre públicos e avaliações em museus, permitiu identificar algumas características deste campo no Brasil a partir de 2000. Finalmente, sugeriu uma agenda de investigação sobre os estudos de público composta por três eixos: análise do contexto de produção; análise da natureza do conhecimento construído e análise dos usos social, político, cultural e gerencial destes estudos visando a apoiar uma prática consciente, crítico-reflexiva e questionadora.


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GRADUAÇÃO EM MUSEOLOGIA: SIGNIFICADOS, OPÇÕES E PERSPECTIVAS

Lillian Álvares

Universidade de Brasília

RESUMO: Apresenta o Curso de Bacharelado em Museologia da Universidade de Brasília. Destaca que a primeira tentativa de implantar a graduação data de 1964, seguida por outras duas iniciativas de capacitação na área, em 1988 e em 1991. Somente com o Programa de Reestruturação das Universidades (Reuni), enfim foi concebida a graduação, a partir do consórcio interdisciplinar entre a Faculdade de Ciência da Informação e os Departamentos de Antropologia, de Artes Visuais e de Historia. Dentre as perspectivas que se avizinham ao aprendizado em Museologia o artigo trata das questões centrais dos novos modelos de aprendizagem, a responsabilidade cultural, a identidade nacional, as tecnologias da informação e a convergência entre arquivos, bibliotecas e museus.

ABSTRACT: Describes the implemmentation of the Bachelor Degree in Museology at the University of Brasilia. Reports on its´ history, which first, frustrated, initiative was in 1964, and that had two other previous attempts, in 1988 and 1991. However, only with the support of the Programme directed to the restructuring of Universities, led by the Brazilian Ministry of Education (Reuni), it was possible to effectively implemment the course. It constituted a joint and multidisciplinary effort among the following academicinstitutions of the University of Brasilia: Faculty of Information Science; and the Departments of Antropology, Visual Arts and History. The present article also stresses some directives which underline thelearning proposition of the course: cultural responsibility, national identity, full use of information and communication technologies, and the convergence between archives, libraries and museums.

PALAVRAS-CHAVE: Museologia. Museologia e Interdisciplinaridade. Universidade de Brasília.

KEYWORDS: Museology, Interdisciplinarity and Museology, University of Brasilia


Graduação em museologia: significados, opções e perspectivas

A instituição do novo curso de bacharelado em Museologia da Universidade de Brasília em 2009 ocorreu na esteira da evolução da compreensão da importância do museu e da Museologia para a sociedade brasileira. Desde 1932, o Brasil tem oferta de graduação em Museologia, mas só nos anos 2000 elevou a soma para mais de uma dezena de cursos em todo o país.

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Na Região Centro-Oeste, a capacitação está restrita apenas a duas universidades. Este cenário intensifica a responsabilidade da UnB na formação de museólogos que possam atender a demanda por temas relacionados ao patrimônio cultural, à preservação e conservação de bens culturais, à informação e documentação museológica e à teoria e prática museológica. Na busca por excelência, de maneira sistemática ocorre o monitoramento da pesquisa sobre a atividade museal e o acompanhamento das necessidades do mercado de trabalho, a fim de manter o Curso em sintonia com as tendências que se avizinham. Seu principal objetivo é auxiliar os alunos na identificação das questões centrais na condução de uma profissão rica em conhecimentos, em desafios e, sobretudo, em perspectivas profissionais. Espera-se, enfim, formar museólogos competentes, capazes de reconhecer oportunidades de crescimento da Museologia no Brasil e no Mundo. Antecedentes Há vinte anos, o Departamento de Ciência da Informação e Documentação da Universidade de Brasília apresentou proposta de criação do Curso de Museologia. A iniciativa foi da museóloga Lais Scuotto, diretora do Museu Postal e Telegráfico da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos e do Prof. Antônio Miranda, daquele Departamento. Na mesma época, a Unesco promoveu mesa redonda internacional, organizada pela International Federation of Library Associations, para apresentar proposta de diretrizes para a harmonização curricular dos cursos de Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia no âmbito da Ciência da Informação. Como principal resultado da participação da Universidade de Brasília no evento, está a dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, intitulada Tendências para a Harmonização de Programas de Ensino de Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia no Brasil: um estudo Delfos. A pesquisa incluiu ampla consulta a profissionais da área, pesquisadores e acadêmicos de todo o Brasil atuantes naquele período, visando à criação de base epistemológica e à formulação de proposta de tronco comum de conhecimentos entre as áreas. A próxima iniciativa viria em 1988, quando o mesmo Departamento de Ciência da Informação apresentou ao MEC o projeto de criação do Curso de Especialização em Museologia, formado por professores de várias cidades brasileiras, principalmente do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte. O projeto foi aprovado no MEC, mas o curso foi cancelado devido à inflação daquele período ,que reduziu fatalmente o valor dos recursos. Na origem da UnB, temos a preciosa colaboração da professora Lygia Martins Costa. A pedido de Darcy Ribeiro, ela montou proposta do Curso Básico para Pessoal Científico de Museus de História e Arte, que previa teste de


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sensibilidade artística e fluência em inglês e francês. O projeto teve aprovação imediata. Lygia ficou três semestres em Brasília, mas a revolução de 64 desmontou a proposta. Ficou a rica experiência da discussão de um currículo eclético, integrador e, ainda hoje, inovador. O atual projeto do curso de graduação em Museologia, inserido na proposta de Reestruturação das Universidades (Reuni), foi concebido pela Faculdade de Ciência da Informação e pelos Departamentos de Antropologia, de Artes Visuais e de História, unidades acadêmicas signatárias do Termo de Compromisso entre as Unidades Integrantes do Consórcio de Museologia, datado de 9 de agosto de 2008. Com a assinatura do Termo de Compromisso, as Unidades integrantes do Consórcio do Curso de Museologia assumem a responsabilidade de colaborar no desenvolvimento das atividades pedagógicas do curso, oferecendo disciplinas previstas na grade curricular como obrigatórias para a formação do aluno, dentro dos seguintes eixos temáticos: Teoria e Prática Museológica; Museologia e Informação; Museologia e Patrimônio Cultural; Preservação e Conservação de Bens Culturais. Opções da Universidade de Brasília: Interdisciplinaridade O Curso de Museologia da Universidade de Brasília julga essencial incorporar conhecimentos oriundos das mais diversas áreas na formação do Museólogo. Considera que as intersecções identificadas na Antropologia, nas Artes Visuais, na Ciência da Informação e na História, sobretudo nessas, são responsáveis pela ampliação da visão do profissional, pela multiplicação de oportunidades de pesquisa, pela celeridade na solução de problemas, enfim, pela presença competente nos mais diversos meios de atuação: museus, bibliotecas, arquivos, centros culturais, órgãos de patrimônio histórico, artístico e cultural, produção cultural, atividades relacionadas ao turismo ecológico, educativo e cultural, entre tantos outros. A interação exigida solicita educadores das mais variadas formações e experiências a fim de debater os problemas que transcendem a especificidade da teoria e prática museológica. Os limites educacionais estendidos ajudam a preparar a próxima geração para superar barreiras, criando profissionais que resultaram de poderosa obra de esforço unificado. Da Antropologia, são as disciplinas Antropologia da Arte, Cultura e Meio Ambiente, Estudos Afro-brasileiros, Pensamento Antropológico Brasileiro, Sociedades Camponesas, Sociedades Indígenas e Tradições Culturais Brasileiras, em regime de cadeia seletiva, que irão trazer o conhecimento desejado nessa área. Das Artes Visuais, são as disciplinas Fundamentos de Linguagem Visual e História da Arte no Brasil, responsáveis por levar ao início da compreensão e da capacidade de expressão artística. Da Ciência da Informação, as metodologias do trato de registros do conhecimento, com as selecionadas Análise da Informação, Controle Bibliográfico, Conservação e Preservação de Documentos e Introdução à Biblioteconomia e Ciência da Informação. E a História, com o aporte das disciplinas Cultura Brasileira, História Regional, História Social e Política do Brasil, Introdução ao Estudo da História, essenciais ao perfeito domínio do conjunto de acontecimentos relativos à memória da humanidade.

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Eixos Temáticos

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Os conteúdos curriculares obrigatórios de natureza científica têm o total de 169 créditos (2535 horas) e farão parte do Núcleo Básico do Curso de Bacharelado em Museologia. Destes, 8 créditos (120 horas) correspondem aos estágios supervisionados e 8 créditos (120 horas) à elaboração do trabalho de conclusão do curso. Com o propósito de ampliar a flexibilidade e atender interesses e necessidades dos alunos, pelo menos 51 créditos (765 horas) serão compostos por disciplinas optativas. Além desse total estão previstos 24 créditos em Módulo Livre, correspondentes a atividades acadêmicas, científicas, culturais, atividades de extensão e complementares. O Curso está dividido em 4 eixos temáticos. O Eixo 1, intitulado Teoria e Prática Museológica, focaliza a formação específica de conteúdos teóricos e práticos voltados para a Museologia, a Teoria Museológica, a Pesquisa Museológica e a Museografia. As disciplinas específicas da Museologia são: Introdução à Museologia, Museologia 1, 2 e 3; Museologia e Comunicação 1, 2, 3 e 4 e Gestão de Museus e Políticas de Acervos Museológicos. O Eixo 2, intitulado Museologia e Informação congrega disciplinas partilhadas pelos cursos de Biblioteconomia e Arquivologia, junto às quais se perfila uma nova disciplina centrada no processamento técnico de acervos realizado no campo da Museologia, intitulada Informação e Documentação Museológica. O Eixo 3, nomeado Museologia e Patrimônio Cultural, objetiva explorar a interdisciplinaridade, com foco na Cultura, Memória e Patrimônio. A disciplina específica da Museologia é Museologia, Patrimônio e Memória. Finalmente, o Eixo 4, intitulado Preservação e Conservação de Bens Culturais, é teórico e prático voltado para o campo da preservação e segurança de bens Culturais, para o planejamento, a montagem e a gestão de reserva técnica museológica e para os estudos dos procedimentos de manuseio, transporte e exibição. As disciplinas específicas da Museologia são Museologia e Preservação 1 e 2. Além dos conteúdos curriculares abordados acima, 14 créditos (210 horas) de atividades de caráter acadêmico, científico ou cultural e de livre escolha dos estudantes poderão incluir atividades de ensino, pesquisa e extensão de acordo com critérios estabelecidos pelo Colegiado da Faculdade de Ciência da Informação (FCI). A solicitação de reconhecimento dos créditos será analisada pela Coordenação de Graduação e submetida a aprovação pelo Colegiado da FCI. As atividades de extensão deverão atender aos critérios definidos na Resolução do CEPE 87/2006 e poderão integralizar, no máximo, 10 créditos. As atividades de pesquisa também poderão integralizar, no máximo, 10 créditos. As atividades que não se enquadrarem em quaisquer dessas modalidades poderão integralizar, no máximo 4 créditos.

Laboratórios Para pleno funcionamento do Curso de Museologia é essencial o suporte de laboratórios. No momento, eles estão sendo estruturados, de acordo com o seguinte planejamento:


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Laboratório de Museologia e Exposição Curricular (Lamec): tem como objetivo entender como são organizadas as exposições, considerando os espaços nos museus, a relação entre o visitante e o que está exposto, as metodologias de interpretação do real, os códigos de percepção visual, as estratégias de comunicação e a comunicação com grupos minoritários. Dentre os elementos de projeto de uma exposição, o Laboratório poderá aprofundar na prática das questões da linguagem e expressão nas exposições museológicas, no conteúdo e forma, na tipologia de exposição, nas especificidades em relação à duração da exposição, nos elementos expográficos, tais como suportes, cores, som, iluminação, texturas, imagens, textos, cenários e outros. Aqui serão realizados projetos de ações museais diversas, e de ação cultural e exposições para diferentes públicos, incluindo produção, montagem e programação de curadoria expográfica. Conta com uma oficina específica de Educação Patrimonial. Laboratório de Museografia e Reserva Técnica (Lart): tem a função de proporcionar ao aluno a prática da guarda do acervo não exposto, observando precauções especiais quanto à localização, proteção contra roubo, catástrofes e condições ambientais apropriadas. A coleção na Reserva Técnica precisa estar acondicionada em local apropriado e, quando necessário, na parte externa são anotadas as principais características da peça, como: datação, origem e descrição física. Pela Reserva Técnica, que assegura a movimentação organizada e segura de materiais, os museus renovam constantemente seu acervo e o visitante percebe as intervenções periódicas na instituição.A missão de difusão cultural, educação patrimonial e desenvolvimento social e da cidadania estão intimamente relacionados a esse Laboratório.A Reserva Técnica é tão importante quanto o próprio museu. É o lugar adequado tecnicamente para dar suporte às atividades museológicas, por isso é de vital importância sua prática. Geralmente, a Reserva possui inúmeras peças, acervos completos, coleções de estudo, incluindo as respectivas estruturas expográficas, que aguardam catalogação, cadastramento, inventário, restauro, outras intervenções ou aguardam para uma exposição. A Reserva Técnica é o local para a realização da manutenção do que está exposto, como também do que será mostrado nas exposições temáticas. Conta com uma oficina específica de Documentação. Laboratório de Prevenção, Conservação e Restauração (Lacon): tem como objetivo promover o desenvolvimento da investigação científica nas áreas da conservação e restauro. Serão realizadas atividades de ensino e pesquisa no campo da conservação, conservação preventiva e restauração de peças típicas de acervos museológicos.As atividades têm como referencial a manutenção da integridade e da autenticidade dos elementos constitutivos do objeto museal no momento do projeto e da intervenção técnica. Para que tais atividades sejam mais bem executadas, serão estabelecidos acordos de cooperação com laboratórios de conservação no país. Conta com a Oficina de Conservação e Restauração de Obras sobre Papel. Laboratório de Multimídia e Espaços Virtuais (Lev): desenvolve tecnologias e metodologias para promover a difusão de exposições, a partir da criação de ambientes virtuais envolvendo o acervo de museus. O ambiente virtual dá a oportunidade de apresentar exposições de formas alternativas no ambiente real de um museu. O Laboratório tem como referencial seguir a arquitetura real de museus, dado que estudos afirmam que dessa maneira a exposição virtual tem impacto sobre seu público-alvo. Serão usadas imagens reais, com base

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em fotografias, plantas de arquitetura e coleções para a criação dos elementos do ambiente virtual, a fim de aproximar o quanto possível o ambiente virtual do ambiente real. O trabalho de pesquisa do Laboratório envolve, também, o desenvolvimento de outras aplicações em ambientes virtuais, tais como a comunicação e seu público em ambiente virtual, o desenvolvimento de metodologias de ensino-aprendizagem, coleta de dados, análises e avaliações, com foco na percepção do público alvo no potencial de aprendizagem inserida nas exposições em ambientes virtuais. Perspectivas na Capacitação: Lifelong Learning e Novos Modelos de Aprendizagem O aprendizado ao longo da vida, ou lifelong learning, é um conceito amplo, que pode relacionar-se à ideia de democracia a todos os cidadãos, independentemente da condição social, levando à igualdade de oportunidades. Nesse contexto, considera a oferta de ensino em universidades corporativas, associações de classe, programas para educação de adultos, entre outros. Pode, também, e esse aspecto interessa ao futuro do Curso de Museologia - ser compreendida em termos humanísticos, estando relacionado às questões de capacitação: aumentar a autonomia pessoal por meio da aquisição de conhecimentos, dar suporte ao desenvolvimento de competências específicas e às habilidades sociais. Esse conceito de aprendizagem desempenha um papel importante na construção da Museologia contemporânea. Inúmeros estudos apontam que os processos de aprendizagem envolvem dimensões cognitivas, emocionais e sociais bem como diferentes níveis de engajamento e reflexão (Illeris, 2002). Esse ponto de vista construtivista considera que os alunos constroem seu conhecimento de forma independente e personalizada, de acordo com fatores socialmente e culturalmente incorporados ao estilo individual de aprendizagem. Como consequência dessa percepção, importa considerar que os ambientes educacionais, que têm como objetivo principal estimular processos de aprendizagem, forneçam aos alunos acesso ao conhecimento por muitos caminhos diferentes. Assim, novos modelos educacionais emergem da constatação de que a aprendizagem para jovens e adultos deve ser de forma diferente daquela para crianças e adolescentes. Para Knowles (1990), os adultos precisam saber por que têm que aprender algo, precisam aprender experimentando, encaram a aprendizagem como a resolução de problemas e aprendem melhor quando os conteúdos têm utilidade imediata. Destacam-se nessa perspectiva, a Aprendizagem Experiencial e a Aprendizagem Informal - Situada e Incidental. Para Antonello (2007), os modelos de Aprendizado Experiencial baseiam-se, principalmente, nos trabalhos de Dewey, Lewin e Piaget, sendo o conceito mais importante em seu estudo a noção de experiência. O autor define Aprendizagem Experiencial como uma contínua reorganização e reconstrução da experiência, que ocorre todo o tempo e em todas as situações em que as pessoas agem e interagem, refletem e pensam. A aprendizagem é apresentada pelo autor como um processo por meio do qual o conhecimento é criado pela transformação da experiência, a partir


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de seis suposições: (i) aprendizagem é um processo, não um resultado; (ii) deriva da experiência; (iii) exige que um indivíduo solucione demandas dialeticamente opostas; (iv) é sistêmico e integrativo; (v) requer interação entre a pessoa e o ambiente; (vi) resulta em criação de conhecimento. Já na perspectiva da Aprendizagem Informal, o aprendizado ocorre obrigatoriamente fora do ambiente acadêmico, podendo ainda ser dividido em Aprendizagem Informal Incidental (AII) e Aprendizagem Informal Situada (AIS). No primeiro caso, AII, a aprendizagem é definida como falta de consciência do próprio processo de aprendizagem, ocorrendo por meio da observação, repetição, interação social e resolução de problemas. Na AIS, a aprendizagem ocorre a partir da imersão do sujeito na cultura e ambiente organizacionais, a partir da inserção do sujeito no ambiente da ação e da produção (VIGGIANO, 2007). Ao Curso de Museologia, cabe refletir formas complementares de apoio ao aprendizado tradicional.

Responsabilidade Cultural O conceito de capital cultural de Pierre Bourdieu (1930-2002) é bem conhecido. Sinteticamente, é a tradução do capital econômico em hierarquias culturais. Poder e privilégios se traduzem em distinções mais refinadas, reservadas às classes sociais com maior poder econômico. Ao que ele chama também de capital informacional, está reservado àqueles com acesso ao conhecimento. Essa condição enfatiza que a origem social dos alunos resulta em desigualdades escolares. Portanto, o capital cultural é relevante no processo de formação e, mais do que isso, é determinante no sucesso ou no fracasso de uma trajetória de aprendizagem. Considerando-se que Bourdieu distingue três estados do capital cultural, um deles está reservado à responsabilidade dos educadores: aquela que afirma que o capital cultural não é apenas acumulado por indivíduos, mas institucionalizado pelo Estado e pressupõe sua acumulação cultural em academias, escolas, universidades, museus, arquivos e bibliotecas. Nesse caso, o que o caracteriza não é tanto que ele pode ser acumulado, mas que é fluido, que pode ser convertido em outras formas de capital, tais como competências laborais ou capital econômico. E é esse o ponto central do que chamamos de Responsabilidade Cultural, auxiliar os alunos com baixo capital cultural à experiência não disponível em família. A propósito, o primeiro estado caracteriza-se como um bem incorporado, acumulada e cultivada por indivíduos de uma mesma família, às vezes por gerações, cuja situação de classe determina a quantidade de capital cultural adquirida e o segundo estado são os próprios objetos e informações, que podem ser transmitidas para consumo por outros indivíduos capazes de compreender os significados inscritos. Identidade Nacional Diferente de muitos países, em geral, os brasileiros não exultam sua nacionalidade. Vale deixar a frase dita pelo historiador inglês Arnold J. Toynbee depois de viajar por todo o continente sul-americano em 1955: “enfim, cheguei a um país

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sem heróis”. A referência era, na verdade, um elogio, já que o entusiasmo dos nossos vizinhos continentais com seus momentos militares históricos chegou a causar cansaço ao viajante. Ao pronunciar essa frase, ele reflete a acolhida que teve ao chegar ao Brasil: a indiferença de nossa cultura em relação a nossa história.

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Os museus e, por conseguinte, os museólogos têm o notável dever de representar a identidade nacional. Os debates sobre o assunto realçam novos desafios para a profissão em torno da questão, dentre eles a promoção da integração nacional dentro da pluralidade e diversidade de identidades regionais. Some-se a isso as agendas social e política do século 21, que tratam do multiculturalismo, de movimentos de mulheres, de movimentos para o reconhecimento de homossexuais, de respeito ao meio ambiente, dentre outros, o que avulta a tarefa dos museus em narrar a diversidade de nação. Aos museólogos, cabe abraçar as dinâmicas da mudança social, acentuar a voz do nacionalismo histórico e contemporâneo, remover homogeneidade e pontos de vista único, rejeitar a exclusão, incentivar a complexidade e o pluralismo, tornando-o local para o diálogo da identidade nacional e da inclusão social. Aos professores de museologia, cabe a formação obrigatória também do cidadão. Tecnologias da Informação e Convergência entre Arquivos, Bibliotecas e Museus Paul Otlet (1868-1944) preocupava-se com a representação e organização da informação. Acreditava que tal empreendimento poderia ajudar a estabelecer a paz mundial, pois a oferta de um sistema de armazenamento de dados em vários campos da ciência certamente promoveria acesso universal ao conhecimento e elevaria a sociedade a um novo patamar de civilidade. Naquela época, não foi possível concretizar o sonho em toda a sua plenitude, e, desde então, o volume de informação só aumentou. Nesse meio-tempo, e, principalmente, nas últimas duas décadas, a revolução tecnológica na comunicação e na informação impactaram de forma permanente a maneira como organizar o conhecimento, deixando pequena distância ao sonho de Otlet. A inovação tecnológica forneceu novos instrumentos para o trabalho tradicional dos museólogos e abriu novas possibilidades de atuação. No entanto, a capacidade de usar essas ferramentas requer novos conhecimentos, nova postura diante das possibilidades que se aproximam, definições políticas, decisão de investimento, normalizações e padronizações, dentre tantas mudanças que chegam na propulsão das novas condições. Apenas para identificar uma das possibilidades, a convergência tecnológica possibilita de forma fascinante a colaboração entre Arquivos, Bibliotecas e Museus, que até o momento nunca estiveram em condições de se concretizar completamente. É possível responder, de uma nova maneira, às seguintes questões clássicas da interação entre essas instituições: (i) quais são as necessidades de informação em arquivos, bibliotecas e museus? (ii) quais são os papéis e responsabilidades dos profissionais da informação em arquivos, bibliotecas e


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museus na era da informação? (iii) que tipos de capacitação prepara melhor os profissionais da informação para atender necessidades dos arquivos, bibliotecas e museus e seus usuários na era da informação? Em resposta a essa nova era, a pesquisa progrediu, resultando em inúmeros trabalhos sobre a convergência das três áreas, cujo título mais emblemático é Arquivos, Bibliotecas, Museus e a Magia do Conhecimento Onipresente, escrito por Thomas Kirchhoff,Werner Schweibenz, e Jörn Sieglerschmidt. Nesse trabalho em particular, os autores exploram a ideia de que na internet ninguém sabe se está lidando com arquivo, biblioteca ou museu, pois as pessoas querem a informação e muitas vezes não estão interessadas em saber de onde ela vem, desde que venha de uma organização cuja presença virtual seja o mais transparente possível. Naturalmente, as pesquisas têm muito em comum com temas que transcendem os limites funcionais de arquivos, bibliotecas e museus e desafiam a simples classificação das instituições. Alguns trabalhos observam que arquivos, bibliotecas e museus têm que arriscar-se na web sob o risco de perder importante parcela de seu público. Outros afirmam que os profissionais devem tirar proveito de novas tecnologias para alargar o acesso à informação para novos usuários e novos usos. Incentivam o crescimento de comunidades em torno de experiências tanto no uso da tecnologia, como no compartilhamento de boas práticas. A Faculdade de Ciência da Informação tem se dedicado a estudar a integração curricular dos cursos de graduação em Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia. Para isso, criou a Comissão de Integração Curricular cujos resultados estão no documento Identificação do Eixo Integrador: tronco comum de disciplinas da Faculdade de Ciência da Informação. Os resultados do esforço são a organização do conhecimento em quatro grupos principais. O primeiro, intitulado Construção do Saber, constitui-se das disciplinas Organização do Trabalho Intelectual, Introdução à Pesquisa em Ciência da Informação e Monografia em Ciência da Informação. O segundo, Ciência da Informação, inclui as disciplinas Introdução à Ciência da Informação, Fundamentos da Organização da Informação, Patrimônio Cultural e Preservação e Conservação de Documentos. O terceiro, Instituições e Usuários, compreende as disciplinas Estudo de Públicos e Usuários e Planejamento de Unidades Culturais e de Informação. O quarto e último grupo, Tecnologia, inclui a disciplina Tecnologias para Ciência da Informação. A introdução dessa visão, no entanto, ainda não está terminada. Espera-se que esse passo seja dado em breve.

Conclusão Em 2009, a Universidade de Brasília deu início ao Curso de Museologia, com a participação direta de quatro unidades acadêmicas: Antropologia, Artes, Ciência da Informação e História. Com essa opção, a interdisciplinaridade necessária foi garantida, abrindo espaço para interações optativas com outras áreas do conhecimento. Os laboratórios estão em fase de estruturação e são projetados para atender a várias disciplinas distribuídas em quatro eixos temáticos: Teoria e Prática Museológica; Museologia e Informação; Museologia e Patrimônio Cultural e Preservação e Conservação de Bens Culturais.

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Graduação em museologia: significados, opções e perspectivas

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A preocupação em manter o nível de excelência do Curso se reflete nas perspectivas que cercam o futuro dessa graduação, no que se refere aos novos modelos de aprendizagem, às preocupações com a questão da responsabilidade cultural, a pressão pela intensificação da identidade nacional e a disponibilidade das novas tecnologias de informação que resultam, também, na convergência entre Arquivos, Bibliotecas e Museus. Nesse sentido, a Faculdade de Ciência da Informação estudou e apresentou a proposta da Comissão de Integração Curricular para identificar o eixo integrador dos Cursos de graduação em Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia. Referência ANTONELLO, C. S. Aprendizagem na ação revisitada e seu papel no desenvolvimento de competências. Aletheia, n. 26, p. 146-167, 2007. BOURDIEU, P. Escritos de educação. Petrópolis:Vozes, 1998. ILLERIS, K. The three dimensions of learning: contemporary learning theory in the tension field between the cognitive, the emotional and the social. In: Hooper-Greenhill, E. (org).The educational role of the museum. London: Routledge, 2002. KIRCHHOFF, T.; SCHWEIBENZ, W.; SIEGLERSCHMIDT, J. Archives, libraries, museums and the spell of ubiquitous knowledge. Archival Science, v. 8, 2009. KNOWLES, M. S. The adult learner. Washington: Gulf Publishing, 1990. VIGGIANO, A. R. O ciberespaço enquanto ambiente informal de aquisição de competências. 2007. 217 f. Dissertação (Mestrado em Educação Tecnológica) Coordenação do Mestrado em Educação Tecnológica, Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), Belo Horizonte, 2007.

Artigo recebido em março de 2012. Aprovado em abril de 2012.


ENTREVISTA

LYGIA MARTINS COSTA: DEDICAÇÃO AO MUNDO MUSEAL POR MAIS DE MEIO SÉCULO Ana Lúcia de Abreu Gomes Elizângela Carrijo


Entrevista: Lygia Martins Costa

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Na tarde de 29 de outubro de 2010 a museóloga e professora Lygia Martins Costa abriu as portas do seu apartamento em Copacabana, Rio de Janeiro, para compartilhar parte de suas experiências com o curso de Museologia da Universidade de Brasília, com o qual mantém vínculo de criação desde setembro de 1964 quando formulou seu projeto básico curricular, aprovado Ad Referendum do Conselho pelo então reitor Zeferino Vaz108. Nesse dia, ao adentrarmos o apartamento, em meio aos abraços de recepção, a professora Lygia pediu licença e tocou todos os traços dos nossos rostos109. Contou que nos últimos tempos sua visão estava falhando e transformando em vulto aquilo que, ao longo dos seus então 96 anos de idade, antes percebia com nitidez e detalhe.A aprendizagem da técnica mostrou-se eficaz, porque após o estudo das faces ela foi capaz de nos identificar diretamente pelo nome, tendo como referência os sons das vozes ou as expressões já decodificadas por suas mãos. O que nos fez lembrar de Walter Benjamin pelas interpretações de Gagnebin (1994), ao explicar que a ligação secular entre a mão e a voz, entre o gesto e a palavra é, de certo modo, uma maneira de dar forma à imensa matéria narrável110, tal qual os movimentos do artesão que modula a argila com as mãos e as atividades do narrador que pelas histórias contadas compartilha experiências111. Enquanto preparávamos os equipamentos do audiovisual, a professora Lygia desejava saber sobre os museus de Brasília, os perfis dos estudantes do curso de Museologia e os possíveis limites e horizontes do cenário acadêmico da área. Essa interação contínua potencializou o clima de acolhimento que se misturava aos aromas de café e de rocambole preparados pela secretária, reforçando em nós a certeza da lucidez, vivacidade e inteligência da anfitriã. De tal modo que as horas passaram desapercebidas frente a narrativa que compartilhava mais de meio século dedicado ao universo dos museus – Lygia Costa conta que trabalhou por 56 anos na área, só parando em 1981. Sentada ao canto da sala naturalmente iluminada e cercada por livros e plantas, professora Lygia concedeu a entrevista112 que disponibilizamos abaixo. Nela está ofertada generosamente parte da trajetória, da sensibilidade e da inteligência acumuladas pela mulher, museóloga e professora que nasceu em 13 de dezembro de 1914, na cidade de Pinheiral, no Estado do Rio de Janeiro. E se para alguns tal conteúdo soa como algo distante do tempo atual, para Benjamin representa oportunidade de acessar a sabedoria, naquilo que só se pode encontrar quando se valoriza o velho como depositário privilegiado de uma experiência, que com toda riqueza se transmite aos mais jovens, dispostos a diminuir a distância entre gerações113. 108 CHAGAS, Mario, ALVARES, Lillian, ALMEIDA, Cícero. Museologia em ação: homenagem à Lygia Martins Costa. Brasília: FCI, Universidade de Brasília, 2010, p. 83. 109 Estavam presentes nessa entrevista duas professoras do curso de Museologia da UnB: Ana Lúcia de Abreu Gomes e Elizângela Carrijo. ������������������������������������������������������������������������������������������������ GAGNEBIN, Jeanne Marie. Prefácio Walter Benjamin ou a história aberta. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura – Obras Escolhidas I. Tradução Sergio P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 11. ��������������������� BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura – Obras Escolhidas I. Tradução Sergio P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 205. 112 LYGIA MARTINS COSTA. Entrevista realizada por Ana Lúcia de Abreu Gomes e Elizângela Carrijo em 29 de outubro de 2010. 2 MiniDV (1h23min33s): audiovisual. Sony. ����������������������������������������� GAGNEBIN, Jeanne Marie. Ibidem, p. 10.


Entrevista: Lygia Martins Costa

Desse modo, ao ler a narrativa da professora Lygia podemos observar sua interpretação sobre a própria trajetória na Museologia, sobre sua relação com Brasília, com Lúcio Costa, com Darcy Ribeiro, com a UnB e com os desdobramentos que a levaria propor a criação do curso de Museologia em Brasília no ano de 1964 – bacharelado que não se concretizou na época por causa dos Atos Institucionais militares e das perseguições políticas no campus114. Outro ponto de destaque na entrevista é o conselho da professora para se gostar da profissão escolhida e, assim, garantir a si mesmo saúde, vigor e vida longa. Aqui o significado de conselho está na perspectiva Benjaminiana, que é compreendido na inserção do narrador e do ouvinte dentro do fluxo narrativo comum e vivo, já que a história continua, [e] está aberta a novas propostas e ao fazer junto115. Rio de Janeiro, Rua Dias da Costa, casa da professora Lygia Martins Costa. Entrevista a ser apresentada no dia da homenagem que a UnB fará à professora. L.M.C. – Sou Lygia Martins Costa, nascida em 13 de dezembro de 1914 [risos] em Pinheiral, Estado do Rio. Meu pai era engenheiro da Central do Brasil. Estava servindo lá nessa ocasião e nós levamos ainda uns três anos por lá. Ainda nasceram mais dois irmãos antes de voltarmos para o Rio e ficarmos o resto da vida no Rio. Pai e mãe cariocas, mas nascida no Estado do Rio. O que eu me lembro de lá é muito pouco. Apenas uma varanda enorme, lá embaixo, a casa ficava localizada em um lugar alto. Lá embaixo passava um trem, que é toda linha férrea, e atrás ficava uma rua onde de vez em quando passava o pessoal do circo. É, como toda cidade de interior, tem circo. E quando o circo está lá é aquela gritaria, aquela festa. Nós corríamos para o portão do fundo, para ver passar a turma, aquela coisa muito animada. Fora disso, com três anos ainda, nem tanto, vim para o Rio e aqui fiquei toda a vida, nunca mais saí. Estudei no Instituto Rabello, a parte de colégio foi toda no Instituto Rabello; e, depois do Instituto Rabello, fiquei em casa uns anos com uma vontade doida de estudar. Eu tinha vontade de fazer engenharia. Adorava matemática e queria ser engenheira. Era uma ocasião em que a prova... Eu sou do tempo de prova oral, tinha aquela banca de engenheiros, e quando eu fui arguida... Quando eu gosto, eu sorrio. E eu sorrio muito. Então, na aula, o professor gostava demais de matemática. E eu gostava também. Então, nós ríamos muito. Ficávamos felizes em estudar matemática. E quando chegou na prova, na hora de ser arguida, eu senti aquela alegria também em ser arguida e falar sobre matemática. E ele virou-se para o meu professor e perguntou: “Quem é ela?” Ele falou: “É filha do Engenheiro Martins Costa”. Então, ele disse:“Está explicado”. Papai era lá do Clube de Engenharia também e havia pouco, ele havia tido discussões com vários enge114 A pauta sobre a construção do Curso de Museologia na UnB só voltou a ser debatida em 1988, com o professor Antonio Miranda e a museóloga Laís Scuotto. Entretanto, só foi efetivado enquanto Projeto Acadêmico do Curso de Bacharelado em Museologia após cumprir a Resolução da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, Resolução CNE/CES 21, de 13 de Marco de 2002, que estabelece as diretrizes curriculares para os Cursos de Museologia, em consonância com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/96), o Regimento Geral da UnB e outras legislações pertinentes (Cf: CHAGAS et alii, Ibidem, p. 14/93). Com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), o primeiro concurso de vestibular para Museologia na UnB foi realizado em junho de 2009. Atualmente o curso completo é composto por 169 créditos (2535 horas); está localizado na Faculdade de Ciência da Informação (FCI), no campus Darcy Ribeiro; oferece 30 vagas por semestre pelo processo seletivo do vestibular e tem previsão de formar a primeira turma no ano de 2013. Mais informações disponíveis em http://www.cid.unb.br/ , acesso 15 jan 2012. ����������������������������������������� GAGNEBIN, Jeanne Marie, op cit, p. 11.

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nheiros, tinha arrasado lá, a turma. Então, ele estava com o nome muito falado entre eles. Então, quando ele disse “está explicado”, imagina, para mim, o que isso representou. Mas toda vida gostei muito. Depois, ele não quis que eu fosse engenheira, fiquei em casa. Até que um dia, uma tia tinha pena de eu querer tanto estudar e não poder, e ela pegou, viu o anúncio do curso de museus da Escola de Museologia116; era um curso de museus enorme, no jornal. Então, ela recortou e mandou para mim. Eu fiquei entusiasmada, enumerando as cadeiras todas. E aí eu peguei e mostrei a papai. Papai pegou e mandou um irmão ir ver que espécie de coisa era. E meu irmão disse: “pode deixar, papai. Cheio de mulher.” Então, graças àquela porção de mulheres estudando lá é que eu pude fazer o curso. E aí eu fiz com o maior interesse o curso. E era raro eu terminar uma prova antes de todo mundo. Fazia sempre as respostas mais rápidas e aquela dissertação eu deixava por último, para ficar enquanto o professor consentia. Porque para mim estudar sempre foi um prazer. Eu fiz um curso de colégio, quando fazia uma coisa que não queria, “se você não fizer isso, eu te tiro do colégio”. Era me massacrar. Porque para mim aquilo sempre foi uma coisa sagrada e muito prezada. E eu continuei estudando. Fui fazer depois cursos de história da arte, porque eu vi que era absolutamente indispensável e faltante no nosso curso.Você viu a base de arte que eu montei, muito grande no curso. Porque a história da arte é tudo. Então, eu peguei e fui fazer a Escola de Belas Artes, que era ali pertinho do Museu e ficava no próprio prédio, com entrada na Porto Alegre e o nosso era na Avenida Rio Branco. E aí fiz os dois anos de curso. Depois apareceu um curso de... Apareceu, não. Já tinha um curso de coreografia, e as gravuras, vários tipos de gravuras, e eu fui fazer então na Biblioteca Nacional. E aí comecei a sentir falta da literatura. Fui fazer um curso de italiano com a literatura italiana. Um curso de Francês e de Inglês com a parte de literatura. E eu fui fazer literatura portuguesa com a Bernardelli,117 professora de filosofia, e fiz o curso de filosofia por dois anos, com o Vieira. Aquele curso lá da Faculdade de Filosofia. Então, eu procurei sempre buscar onde podia encontrar novos cursos. Então, nós criamos, nós museólogos... Nós éramos novos, porque a turma toda começa em 40, nós criamos o Instituto Brasileiro de História da Arte. E esse instituto era para contratar professores para fazer... Então, os professores da Faculdade de Filosofia, os professores franceses, nós convidamos para vir dar aula para nós. E convidamos os professores mais ilustres. [Um deles] deu um curso inteiro, de 20 aulas, sobre a história da arte. E nós fizemos o livreto também, com essas aulas todas. Então, você vê: nós começamos a carreira já com o intuito de estudar e difundir o ensino e de levar a sério a profissão. E a profissão, na época, estava sendo definida, ainda. Professora, a senhora falou dessa sua ida a partir de um anúncio do curso de Museologia, mas conte sobre a sua relação antes com os museus. Como é que foi o encontro da senhora com os museus, como é que foi esse processo? ����������������������������������������������������������������������������������������������������� O Curso foi fundado em 1932 por Gustavo Barroso e, por muitos anos, foi o único curso de formação de profissionais para a área não só no Brasil, mas em toda a América do Sul. Segundo informações obtidas no portal da instituição, durante a administração do Comandante Léo Fonseca e Silva, então Diretor do MHN (1967-1970), o curso passou a denominar-se informalmente Escola Superior de Museologia. Em 1974, sua duração foi ampliada para quatro anos e, em 1977, o Curso foi incorporado à Federação das Escolas Federais Isoladas do Rio de Janeiro/FEFIERJ, continuando, no entanto, a funcionar nas instalações do MHN. Pelo Decreto lei n° 66.655.05/06/1979, a FEFIERJ passou a denominar-se Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNI-RIO e, em agosto deste mesmo ano, o Curso foi transferido do MHN para o antigo prédio do Centro de Ciências Humanas, na Urca. Disponível em: http://www.unirio.br/ museologia/escolademuseologia/apresentacao.htm, acesso 15 jan 2012. ����������������������������������������������������������������������������������������������������� Cleonice Bernardelli é professora universitária e desde 2009 ocupa a cadeira número 8 da Academia Brasileira de Letras.


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L.M.C. – Papai sempre foi um frequentador de museus. E desde pequenos, ele nos levava aos museus. Era o Museu de Belas Artes; era o Museu de História, que era o museu da Quinta da Boa Vista. Mas desde criança, sobretudo aos museus de história e arte, ele levava. Porque ele gostava muito de história. Papai tinha um conhecimento de história muito grande, embora fosse engenheiro. A senhora sempre gostou dos museus... L.M.C. – Sempre. Eu estou dizendo. Desde pequena nós frequentávamos os museus. O mais engraçado é que ele sempre nos levava, nós sempre indo, acompanhando tudo, vendo, lendo, quando uma vez ele levou uma sobrinha conosco, da nossa idade. Chegou lá, uma prima disse: “Mas esse salão seria fantástico para um baile”. E começou a dançar na galeria do Museu de Belas Artes. Papai ficou furioso com nós duas. Mas nunca me havia ocorrido isso. Ela levou... a mocinha empolgada... e começamos a dançar naquele salão. Mas é assim. O nosso contato com o museu foi desde muito cedo, e o museu como coisa séria. Então, quando veio isso papai leu e disse: “é bom, é interessante.” Eu falei com o meu irmão, o meu irmão foi e abriu o caminho, comecei a fazer. Então, o papai tornou-se assim... muito... quase um braço direito, um acompanhante do meu curso. Ele queria saber o que eu estava estudando, do que eu gostava mais. De tal forma que eu comecei a trabalhar e, quando não sabia alguma coisa, telefonava para o papai. “Papai, e isso? E aquilo?” Papai pegava, ou respondia o que era, ou ele encaminhava. De tal forma que as meninas já falavam: “Lygia, telefona para o seu pai e pergunta.” Porque elas mesmas ficavam procurando e nós não resolvíamos o problema. Então, eu telefonava para o papai e perguntava. E ele me acompanhou assim por muito tempo E quando eu quis fazer a bolsa no exterior, foi uma dificuldade enorme. Porque o papai: “No exterior? Uma moça a ser lançada no exterior, sozinha? Tire isso da cabeça!” E eu ganhei uma bolsa para mim. E eu peguei, tive que falar. Quando eu falei, eu botei na mesa e o papai perguntou: “O que é?” “Uma coisa, assim, de museu.” O Papai, perguntando: “Eu estou perguntando o que é.” Aí eu tive que falar. Ele disse assim: “Você não está pretendendo ir.” E eu disse: “Já sei. O senhor não admite, então eu estou deixando passar a oportunidade.” Até que teve um dia em que chegou lá um homem e estava expirando o prazo de dar a resposta definitiva. Eu fiquei nervosa, nervosa. Fiquei doente, com febre e tudo. E fui para a cama. Aí, foi lá um amigo de papai que era um russo e tinha lido a letra de todos nós lá em casa, e tinha falado que eu era um pássaro engaiolado. E que eu me debatia nas grades. Papai falou com ele: “Quantas grades forem precisas; quantas gaiolas precisarem, eu vou botando uma gaiola dentro da outra, porque arrebentar grade não adianta, porque vai ter uma série de grades.” Então, você imagina muito bem a minha perspectiva, não é? Então, chegou na última hora e eu tinha que dar a resposta. E o papai perguntou o que era e eu disse: “É que hoje é o último dia, tem que dar a resposta definitiva, não pode ficar para amanhã.” Nisso, toca a campainha e o amigo de papai que disse que havia lido a minha letra e que havia lido a dos outros, e que havia falado que eu era aquele pássaro engaiolado, e o papai: “Parece até proposital. Imagine: eu estou aborrecidíssimo; minha filha está doente de paixão por causa dessa coisa e eu não posso admitir.” E ele disse: “Admitir o quê?” Papai gostava muito dele porque ele era de muito bom conselho. E ele disse: “Ela quer ir para Londres. Recebeu uma bolsa e agora quer ir.” “Mas,

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Martins Costa, como é que você pode? É uma distinção.” Essa história foi logo depois da guerra, não é? E eles começaram a dar as bolsas. “Mas não pode.Você tem que...” E falou, e falou, e falou. “Você, que toda vida foi estudioso, desbravador, você gostaria que tivessem vetado você a aprender?” Ei sei que falou tanto com ele que ele convenceu o papai. Quando esse amigo foi embora, ele veio na minha cama e falou: “Lygia”. Eu disse: “Eu sei.” Eu sabia também que ele havia de interferir a meu favor, porque ele era estrangeiro e tinha outra visão toda da... Então, quando chegou... [hesitação] Ele estava próximo a cama da senhora... L.M.C. – Então, ele me falou: “Ele me convenceu. Então, você pode ir.” Então, eu disse: “Eu posso ir? Não é possível, papai! Eu posso ir?” [emocionada] Ele disse: “pode.” Eu saltei da cama, liguei para o Itamaraty correndo, porque era o último dia, que eles já tinham falado. Eu disse assim: “Então, eu vou providenciar todos os papéis, positivo, e entregar.” E ele disse: “Todo mundo tem que vir assinar aqui. A senhora venha correndo.” E eu, pronto: me levantei, me vesti, fui correndo. Fiquei boa! Passou tudo. Fui correndo para lá. E assim foi que eu viajei. E o mais engraçado foi que a professora... Aquela coisa... Teve uma entrevista. O Instituto Brasil–Estados Unidos, os candidatos, aquela coisa... Ela falou que a minha bolsa devia ser das mais urgentes, porque foi a pessoa que ela havia sentido que tinha mais necessidade de viajar. Porque era como se fosse uma coisa indispensável, que eu não pudesse dar um passo adiante. Não podia. Eu já tinha feito todos os cursos aqui. Tudo o que podia ajudar na carreira, eu já tinha feito. [interrupção momentânea] Isso foi no dia 1º de setembro. No dia 10 de setembro, eu estava embarcando para os Estados Unidos.Você vê que foi em cima da hora. Aquela coisa toda. E eu fui embora, e aí eu fiquei... Papai foi sempre aquela coisa extraordinária. Ele, de dois em dois dias, me escrevia. Chegava em casa... Quando eu cheguei lá, já tinham providenciado um apartamento para mim e tudo. Me levaram, logo na chegada, para o apartamento. E tinha uma espécie de étagère118, na entrada, nós subíamos aquelas escadas, aquelas ruas todas transversais de Nova York que vão dar na Quinta Avenida, vêm da Park Avenue até a Quinta Avenida. Aquelas ruas todas com aquelas casas antigas. Então, nós subíamos as escadas e tinha aquela espécie de étagère, onde ficavam as casas todas. A minha via logo, porque verde e amarela era a única. Distinguia no meio daquele vermelho, era o verde e amarelo. Isso, em que ano, professora? L.M.C. – Isso foi em 1948. E a senhora ficou lá quanto tempo? L.M.C. – Fiquei lá 1948 e 1949. E, ao retornar, a senhora voltou para o Museu de Belas Artes. L.M.C. – Depois, eu já estava no Museu de Belas Artes. Depois, lá, eles me aconselharam a vir, porque eles tinham fretado um navio. A universidade fretou um navio, me levou... Nós pagando, óbvio. Nós pagamos tudo. Mas um navio para alunos e professores da universidade. Então, nós levamos, de navio, �������������������������������� Móvel com várias prateleiras.


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três dias. Fomos, parou primeiro na Inglaterra, então muita gente saltou na Inglaterra, e, no dia seguinte, fomos, atravessamos, chegamos à noite, passamos lá a noite, naquele navio, enjoados, parado, à noite, e só no outro dia é que nós saímos. E aí depois voltamos... Brasil e New York. E então eu ainda voltei à Europa Ocidental. E hoje, professora, eu não sei como a senhora vê isso, mas hoje o Brasil tem muitos museus. Diferente daquela época, a senhora falou dos Estados Unidos e da Europa, que sempre foram continentes e países que tiveram muitos museus, e hoje o Brasil tem proliferado seus museus. O Museu da Pessoa, o Museu da Imagem e do Som; o Museu do Futebol; o Museu da Língua Portuguesa. Como é que a senhora vê esse papel do museu hoje na sociedade brasileira? L.M.C. – Eu hoje não vejo mais, porque essa proliferação de museus, já não vi. Portanto, eu acho a formação de vocês de uma responsabilidade enorme. Vocês não podem admitir que proliferem sem orientação. Vocês têm que fazer alguma coisa, assumir, que pelo menos comecem museus e tenham um órgão em Brasília que coordene esses museus, lá de Brasília. Coordene, para ter uma assistência de museólogos. Agora, museólogo, é preciso entender, é o conhecedor científico da coleção. Não pensar que museólogo é aquele que sabe arrumar, que sabe fazer umas fichinhas bonitinhas, que sabe fazer umas etiquetinhas. O museólogo é o conhecedor, é o estudioso. Então, antigamente, no século XIX, quando começaram os museus, antigamente, eles começaram na Europa, os museus mais antigos. Mas o que acontece é que, na Europa, não havia o museólogo. Na Europa, havia o cientista. Fosse de arte, fosse de ciência, o que fosse. O cientista. E havia aqueles auxiliares que executavam coisas. Porque não havia a ciência... para que existia o museu? Qual era o fim, o objetivo principal do museu? E o objetivo principal do museu é fazer a coleção e fazer com que essa coleção seja conhecida de todos. Portanto, difundir os valores dessa coleção. E só pode difundir quem conhece a fundo e quem tenha interesse em transmitir. Porque o que acontecia com os antigos, eram cientistas. Eles tinham o interesse de estudar, conhecer. Mas era para si. Então, eles estudavam para si para escrever trabalhos e publicar. Era o seu nome que eles difundiam. A coleção estava lá, ficava lá, a seu bel prazer, se estragasse ou o que fosse não havia... Ao passo em que foi criada a Museologia, não na Europa. Mas foi criada a Museologia nos Estados Unidos. Porque quando foi criado o Museu Metropolitan, no início dos anos 70, eles tiveram essa preocupação de que o museu foi criado com o dinheiro do povo. Era um dinheiro municipal. E o americano tem muito disso. O dinheiro do povo é para reverter em benefício do povo. Então, eles começaram o museu já com uma finalidade inteiramente nova, de conhecer as coleções para difundi-las no meio do povo. Então, é a missão principal do museu. É isso. É o conhecimento e a difusão. E essa difusão tem uma série de facetas. As facetas de organizar as exposições temáticas, qualquer que seja o tema abordado. Às vezes, com enfoques diferentes num mesmo tema saem exposições completamente diferentes. Então, são exposições que têm um tema definido, esse tema sendo desenvolvido do modo mais esclarecedor para o público, numa linguagem acessível a eles. Então, essa linguagem acessível precisa cuidado, primeiro, no tipo de arrumação. A arrumação tinha que ser didática. Pode ser da

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melhor qualidade. Mas o sentido, o lema era ser didática. Portanto, quem chega lá com conhecimento ou sem conhecimento tira sempre o seu proveito. Mesmo o sem conhecimento. Sendo didática, ela tem que esclarecer. Dar notas explicativas. Tem que ser arrumada no sentido didático daquilo que ele pretende mostrar. Se é uma evolução disso ou daquilo, de qualquer forma, dar sempre aquele sentido didático de evolução. Portanto, é transmitir ciência de um modo que seja absorvida imediatamente pelo modo como é arrumado, com os dizeres que acompanham, e com o catálogo que deve ter, ou folheto explicativo. Um museu não pode ficar sem explicação. Porque ele não é feito para os entendidos, como antigamente. Só iam visitar os museus os entendidos. Então, eles olhavam, viam, entendiam ou apreciavam, gostavam... se não eram especialistas, de qualquer forma eles tinham a vista educada, sabiam o que era, conheciam os museus europeus e americanos. Então, nos Estados Unidos, eles deram logo um sentido didático. E você sabe que era uma coisa que comovia nos Estados Unidos. É ver um pai, um irmão, um filhinho de quatro, cinco anos no colo, e eles diante das coisas, explicando às crianças. Então, eles faziam muito salas de didática para a criança. É sempre o pai mais do que a mãe. O pai, com a criança no colo a explicar. E a criança atenta. Então, eles começaram. Depois, o segundo foi o europeu. O primeiro a absorver essa qualidade difusora de cultura do museu foram os holandeses. Começaram então a fazer tal qual os americanos. E depois da Holanda foi difundido. E até hoje vemos: o museu holandês em turmas de 12, no máximo de 15 pessoas, os professores acompanhando. Nos outros, você vê turmas grandes entrando. Há um certo abagunçamento. Nos Estados Unidos... O holandês, ficam todos agrupados em torno do professor ou do museólogo que está mostrando, atentos e bem acompanhando. Eu via aquele americano ali dentro explicando e a criança de quatro, cinco anos, acompanhando, olhando o pai, olhando para aquilo. O que você vê é outra coisa. E aqui mudou o aspecto de museu. E surgiu o que eles falam da ciência da Museologia. O primeiro tratado só veio em 1937. E já editado em França. Portanto, os americanos, que fizeram e durante décadas aplicaram, mas não escreveram. Não sistematizaram para passar a diante, para difundir. Cada um sabia e levava para si. O francês fez e fez o primeiro tratado de Museologia de 1937, que serviu de base a todos os nossos estudos de Museologia aqui no Brasil. Professora. Então, vamos começar a falar um pouquinho sobre Brasília. A sua ida para lá, o convite do Darcy Ribeiro119. Na verdade, eu acho que a primeira pergunta que eu poderia fazer seria: o que a senhora pensou quando a capital estava na iminência de ser transferida? Como é que foi a sua ida para lá? Quanto tempo a senhora ficou lá? Qual foi o contexto que a levou para lá? Como é que foi a sua relação com essa nova capital? Você morou na velha capital e agora nós tínhamos uma nova capital. A senhora sempre pensou numa cidade com museus, como era isso? L.M.C. – Lá não tinha museu. Pois é. Porque lá em Brasília é muito conhecida essa ideia: uma cidade nova não pode ter museu. Um museu depende da atividade da cidade. Então, quando a senhora foi para lá, como foi esse convite? A senhora foi para lá... Antes de ser convidada, a senhora foi para lá para conhecer a capital? Como é que foi esse seu encontro com Brasília? ������������������������������������������������������������������������������� Darcy Ribeiro foi o primeiro reitor da Universidade de Brasília – 1962-1963.


Entrevista: Lygia Martins Costa

L.M.C. – Isso, eu fui muito antes, quando a capital não tinha ainda a universidade, eu fui conhecer a capital. E com a D. Heloísa Alberto Torres120, que era a presidente da nossa organização, que não era um instituto brasileiro, era o ICOM – International Council of Museums. Nós fizemos direto uma organização nacional do ICOM. Então, a D. Heloísa... O Dr. Rodrigo Melo Franco121 foi o primeiro presidente, e ele ficou muito pouco tempo. Fez um congresso, o I Congresso Brasileiro, em Ouro Preto. Ele era o diretor do Patrimônio Histórico. Foi o criador do Patrimônio Histórico, primeiro, ele foi criado em 37. E o Dr. Rodrigo era muito amigo do nosso Ministro da Educação, o Capanema122. Ele era muito amigo. Mineiros. E a cúpula dos mineiros é engraçada. Dizem que os mineiros, UDN123 e PSD124 brigavam no congresso, viviam de relações cortadas. Mas saíam daquilo, era só o debate. Meu contato com Brasília foi quase do nascedouro. Meu chefe era o Lúcio Costa125. Era o chefe, meu chefe direto. E ele era o diretor da Divisão de Estudos e Tombamentos do Patrimônio, e eu era chefe da Seção de Arte, era filiada, dependente da Divisão.Tinha a Seção de História e a Seção de Arte. Portanto, eu era dependente dele. Então, eu vi a coisa quase no nascedouro. O Dr. Lúcio faltou uma semana para fazer um plano. Uma semana. E meu chefe. Quando ele veio, eu disse: “O que houve?” E ele disse: “Pois é. Eu estava fazendo um plano para a nova capital, Brasília.” E tinha vindo um prof. William Holford126, inglês, para representar a Europa no Conselho. E ele pegou, fez aquilo assim, muito rápido, e naturalmente do nada, e terminou e entregou na última hora, quase que fechando a coisa, ele terminou e entregou. E o engraçado foi que todos apresentaram assim, de pranchas, com desenhos e com coisas; ele fez um folheto com o trabalho todo. Com os desenhos todos à mão, esquematizando, primeiro, o Plano Piloto; depois, as superquadras, os conjuntos de superquadras com uma via. Fez uma porção de desenhos, mas todos eles assim, desse tamanho. E apresentou. Então, o pessoal de fora, e ele apresentando uma coisinha dessas, e o Holford ficou encantado.“Meu Deus, mas que coisa genial! É o único que tem um plano. Os outros, sem nada. É o plano normal de cidade. Ele, não. Ele concebe uma coisa inteiramente nova. Esse é um plano de urbanismo.” Então, foi só ele. Os outros não foram nada cogitados. Agora, você imagina. Aquele pessoal que havia feito uma série de pranchas e estava achando que iria impressionar não impressionou nada. Eles não estavam apresentando planos de arquitetura e nem de urbanismo. Então, não foram nada. Então, eu tomei interesse com esse nascedouro. Ainda nem tinha sido escolhido nem nada. Ele veio e falou que tinha feito. E dias depois sai o resultado. E o Holford ficou encantado. Estabeleceu, na Inglaterra, uma bolsa de seis meses para fazer um estágio aqui na Novacap127. Para sentir o nascimento de uma cidade nova. Um plano inteiramente novo. Então, vêm aqueles ingleses da parte de urbanismo para estudar, e levavam seis meses aqui, frequentando a Novacap. Então, eu conheci o plano assim. ��������������������������������������������� Diretora do Museu Nacional de 1938 a 1955. ���������������������������������������������������������������������������������� Diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de 1937 a 1969. �������������������������������������������������������������������������������������������� Gustavo Capanema foi ministro da Educação e Saúde no período do Estado Novo (1937-1945). �������������������������������������������������������������������������������������������������������� União Democrátrica Nacional – partido político fundado em 1945 e extinto com o golpe militar de 1964. ������������������������������������������������������������������������������������������������������ Partido Social Democrático – partido político fundado em 1945 e extinto com o golpe militar de 1964. �������������������������������������������������������������������������������� Arquiteto e Urbanista, vencedor do concurso para o Plano Piloto de Brasília. ���������������������������������������������������������������������������������������������� Professor de Urbanismo da Universidade de Londres e membro da Comissão avaliadora do Plano Piloto de Brasília. �������������������������������������������������������������������������������� Empresa criada pelo Governo Federal para viabilizar a construção de Brasília.

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A senhora está falando do contexto da vinda da senhora para Brasília, com a profa. Heloísa.

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L.M.C. – Não. No início, era outra coisa. No início, era do ICOM – International Council of Museums. Eu não tinha nada a ver com isso. Fomos lá ver a cidade e coisa. Mas é de acompanhar o nascimento dessa cidade. E eu depois fui para lá, com o Darcy Ribeiro, e eles me pediram, que, através do Alcides da Rocha Miranda128, que era meu colega lá no Patrimônio, trabalhávamos na mesma sala, depois ele foi para Brasília, para ficar lá representando o Patrimônio e lá defender os interesses de Brasília. Então, quando veio essa coisa de curso... Não. Primeiro, ele falou assim: “Biblioteca... Precisa de uma universidade. Vamos começar a fazer uma biblioteca.” Então, o primordiozinho da universidade, lá no Setor de Arte, fui eu que escolhi os livros todos aqui. Não tinha nada. E eu peguei e escolhi os livros todos que podia e mandei para lá. A senhora lembra em que ano foi isso? L.M.C. – O ano foi 1961. Foi quando eles criaram a universidade. Foi naquele contexto de criação da universidade que Darcy Ribeiro pediu isso à senhora. L.M.C. – Pois é. A senhora já o conhecia antes... L.M.C. – Conhecia, porque ele trabalhava no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista. E nós tínhamos aquela coisa do Conselho Nacional de Museus, portanto nós tínhamos contato. Mas aí eles me pediram para ir a Brasília. Eu disse: “Não vou para Brasília de forma alguma.” “Não, não. Só para vir aqui, ver Brasília.” Eu já tinha escolhido os livros todos, já tinha mandado para lá. E eu falei: “Não vou, não.” “Não. Nós só queríamos que você desse uma ideia para criar a cadeira de história da arte, que fizesse um programa, uma coisa.” E eu fui lá. Minha filha, de um dia para a noite, que eles me pediram para fazer um programa, eu peguei e fiz um programa. Foi esse? [Mostrando documento em papel] L.M.C. – Não, não foi esse. O programa aí já foi para a criação. O que eu fiz do dia para a noite foi o curso. Mas antes eles já haviam pedido também que a senhora fizesse uma proposta para o curso de história da arte. L.M.C. – De história da arte. Pois é. Mas eu cheguei lá, não voltei mais. Eu fui lá para a coisa, acabei presa lá, não voltei mais. Porque eu fui de tal forma emaranhada nessa história de curso que fiquei presa lá. E a senhora lembra onde é que a senhora ficou? Em que instalação? L.M.C. – Eu fiquei foi em casa do meu irmão. Eu já tinha irmão... ���������������������������������������������������������������������������������������������� Arquiteto, técnico do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, co-fundador da Universidade de Brasília, sendo o primeiro diretor da escola de Arquitetura e Belas Artes.


Entrevista: Lygia Martins Costa

Seu irmão já estava lá, na Asa Sul? L.M.C. – Na Asa Sul, na 304. Ele era advogado e estava representando o DNER129. Foi criado lá, foi um elemento de ligação do DNER com a política local, o governo. Ele ficou lá. E a senhora trabalhava onde? A senhora chegou a ir à UnB, trabalhava no Ministério? Como era? L.M.C. – Não. Nós fomos lá na universidade. Na própria universidade. Na UnB. L.M.C. – Acabei ficando lá e fazendo uma bibliotecazinha pequena, isso aqui era um quadro grande, cheguei a comprar os livros para ter lá, estabelecendo o local, e pronto. Fiquei presa lá. Quanto tempo? A senhora lembra por quanto tempo ficou lá? L.M.C. – Fiquei lá perto de dois anos. Nossa! [risos] L.M.C. – E querendo sair, querendo voltar, querendo voltar. E não podia voltar, e aquela aflição, e aquela coisa. E ao mesmo tempo me interessava em fazer aquela coisa. É porque a ideia do próprio Lúcio Costa, como a senhora está falando, é de que Brasília ia ser uma sociedade nova, um homem novo. Eu fico pensando na senhora nesse contexto de criar um curso de Museologia para uma capital nova. E isso interferiu na formulação da sua proposta? O que a senhora pensou? L.M.C. – Muito. Mas a formulação... Quando fui para lá, não foi para fazer um curso de Museologia. Ainda não era o curso de Museologia. Porque eu fui só para a cadeira de história da arte, ainda não estavam pensando em curso de Museologia lá. Mas depois, com a conversa com o Darcy Ribeiro, em que ele disse que queria fazer um museu, foi aí que eu falei: “Se você queria fazer um museu, então seria necessário ter um curso de Museologia que acompanhasse par e passo a feitura do museu, e ao mesmo tempo estudando tudo aquilo que eles tinham que saber. Aí foi formulando o outro. Primeiro foi na cadeira de história da arte. Depois foi isso. A cadeira de história da arte, já foi tudo inteiramente novo. Nós criávamos turmas estudando determinado capítulo. Quem fazia primeiro ano, porque história da arte começa no primeiro semestre, segundo semestre, aquele apanhado geral de história da arte. No segundo semestre, eu queria, antes de voltar, deixar um capítulo estudado em profundidade. Porque eles já tinham tido aquela primeira ideia geral da história da arte. E queria que fosse Renascimento porque o Renascimento é a base de tudo. Não tínhamos biblioteca sobre o Renascimento; muito menos sobre o Barroco. Era para ensinar o Renascimento para já partir para o Barroco e eles sentirem as modificações que havia sofrido a arte com a inovação do Barroco, que era o que interessava ������������������������������������������������������������������������������������������������� Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, hoje Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT).

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ao brasileiro. Mas tive que ficar dando aula sobre Idade Média. Porque o que havia de slides e de livros era sobre a Idade Média. Então fiz a biblioteca e a filmoteca, toda ela sobre slides, toda sobre a arte medieval que havia aqui. Mas o importante era eles aprenderem a estudar em profundidade qualquer que seja o capítulo. Aqui, eles não iam ter uma coisa imediata, estabelecer com a nossa arte, que não tem nada de medieval. Mas então tivemos que dar aquilo em termos. E assim foi que surgiu o primeiro curso. Fizemos aquelas turmas, os alunos sempre muito interessados, e tratava de interessar os alunos, porque determinava entre eles estudar arte medieval. Aquilo em profundidade. Então, cada um escolhia um capítulo de história da arte. Porque eu dava aquela coisa e eles escolhiam o capítulo para escrever sobre. Então, eu arranjei uma sala de aula com vários capítulos para eles levarem e ficarem fazendo pesquisa. Eu dizia: “Pesquisa, aqui, de arte, vocês podem estudar o que quiserem. Mas de história, vocês vão fazer aquilo que vocês não sabem nada, nada de história. Não se pode saber história da arte sem conhecer a história.” Então, cada um deles tinha que fazer sua fichinha de história, e isso fez com que eles tomassem um interesse muito maior. Acontece que íamos para lá às sete horas da manhã, o Alcides da Rocha Miranda me apanhava em casa, me levava para apresentar, depois, dispensava às 18h, jantávamos na universidade, passávamos até terminar o dia e voltava para casa. Portanto, nós levávamos o dia inteirinho à disposição dos alunos. Eles podiam perguntar o que quisessem o dia inteiro. Eu ainda os convocava para estudar história, e contava mais alguma história, e assim nasceu. E foi nesse contexto que o Darcy Ribeiro, então, convidou a senhora para fazer o programa do curso de Museologia. L.M.C. – Ali, não foi o Darcy que convidou para fazer o curso. Ele só falou que queria fazer um museu. Eu que falei: “Mas, então, precisa preparar gente para atender às necessidades de um museu.” O Darcy já não estava lá, já tinha saído. Apresentei ao Severino Vaz, que era o reitor da Universidade de Campinas e que estava como reitor de lá. Ele passou a vista e aplaudiu. Falou assim: “Não tem nada para aprovar.” “Eu fiz agora, era uma coisa que veio, que tinha que ser feito, e eu bolei isso para discutirmos.” Ele disse: “Não, eu já passei a vista. Está esplêndido.” Então, também não chegou ao Darcy Ribeiro e não chegou a ser discutido. Porque eu achava que aquilo devia ser discutido. Em que ano foi isso? L.M.C. – Isso foi em 61.130 E quando a senhora formulou rapidamente, como a senhora está narrando aqui, o programa, o que a senhora pensou que seria o programa ideal para formar esse técnico em museu? L.M.C. – Primeiro de tudo, base, conhecimento. A coisa maior é o conhecimento. A parte científica. Portanto, é o conhecimento de história e de história ����������������������������������������������������������������������������������������������������� Por vezes, em entrevistas orais datas quando lembradas podem ser diferentes das registradas, como no caso em questão. Porque segundo os documentos originais encontrados na universidade, páginas datilografadas seguidas de pequenas anotações da própria professora Lygia (que foram reproduzidas e publicadas pela UnB – Cf.: CHAGAS, M; ALVARES, L; ALMEIDA, C. Ibidem, p. 83-89), o então reitor que substituiu Anísio Teixeira, o médico Zeferino Vaz, aprovou a proposta da professora “ad referendum do Conselho” em setembro de 1964.


Entrevista: Lygia Martins Costa

da arte. E você viu que eu botei aí história da filosofia. Porque eu fui fazer um curso de dois anos e fiz na Faculdade em Filosofia. Para sentir a evolução do homem. O homem fez aquilo de modo diferente em cada época porque também já era um homem diferente em cada época. Então, o que ele fez foi para corresponder às suas necessidades e suas aspirações. Portanto, cada homem, cada grupo, agrupamento humano fez aquilo que estava dentro do seu contexto, que ele precisava para se expressar. Então, fiz aquela coisa. Botei a literatura porque literatura sempre joga com arte. São as maiores coisas do homem. Ou ele se expressa pelas letras ou pela grafia, que é a arte. Então, coloquei os dois para se completarem. Eu mesma não sei se eles depois colocaram história da arte para a formação de bibliotecário, de qualquer coisa. Eu não sei de nada. Mas eu botei para a formação, o conhecimento da história, porque é a base. Você vê, era a única que botava. Os alunos vinham estudar na minha sala, fazer suas fichas de história. Depois, quando veio a escolha de períodos, eu agrupava. Aqueles que haviam escolhido o mesmo assunto. Agrupava e falava: “vocês vêm, estudem juntos, bolem coisas, perguntas a fazer, e venham a mim para conversarmos.” Então, eles faziam aqueles grupos. Então, eu dizia: “Agora vamos conversar.Todos façam as perguntas que querem, a orientação que querem. A partir daí, cada um vai fazer o seu texto. Você não tem nada a ver com você. Vocês estudaram juntos, discutiram juntos. Agora, na hora de elaborar, cada um elabora na sua cabeça pelo resultado dos estudos que fez e do que assimilou.” Então, não tinha mais nada. Essa história de corrigir, dois, três, quatro fazem juntos um trabalho, no máximo dois, e o resto assina, não. Não tinha disso. Então, cada um tinha que fazer o seu. Depois de feito o seu esquema de trabalho, cada um vinha para conversar comigo. Eu pegava, orientava, esclarecia. Esclarecia os casos, estabelecia correlações. Cada um no seu trabalho. E assim, eu fui formatando grupos daqueles que estudavam o mesmo assunto, tem uma espécie de aula que eles tinham que dar. Tinham estudado, tinham feito tudo. Então, eles tinham que dar. “Vocês estabelecem aí a sequência daqueles que vão falar sobre o assunto.” Agora, eu só anoto, anoto, anoto, não interrompo nada. Então, um falava, o outro falava, o outro falava, e aquele assunto que haviam estudado e que haviam discutido entre si, cada um expunha. Agora, quando calou, eu falo: “você tem alguma coisa a completar no que os outros falaram e esqueceram?” Então, se você tinha alguma coisa que seria justo, você entrava. Depois, perguntava. Então, todos estavam atentos ao que o colega estava dizendo, porque eles já haviam depois de dizer o que haviam sentido, o que eles tinham a acrescentar ao que o outro havia dito. O fato é que criou uma sistemática que formou o interesse em outros. Porque eles começaram a sentir que tinham que falar. Porque eles tinham um livro do Herbert Read, sobre ver a obra de arte. Então, eu fazia aula. Tinha uma aula só de ver a obra de arte e comentar. Porque a cadeira é história da arte e crítica. Não é só história da arte. Não. Era fazer crítica. História da arte, você não pode aprender sem crítica. Apresentar, de fato, o que você sente com relação a essa evolução. E o mais interessante que eu lá observei é que aqui no Rio, quando tem Escola de Belas Artes, tínhamos os alunos de Belas Artes e os alunos de Desenho. Lá era outra coisa. Porque iam fazer filosofia e estudavam história da arte lá. Os alunos das Belas Artes tinham uma sensibilidade muito maior na parte crítica. Mas na parte da história, portanto localizada a época, comentada a época, os de Desenho tinham muito mais. Quando eu cheguei em Brasília, eram os alunos de Belas Artes e estudantes de Arquitetura. Também as aulas juntas.

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Foi a mesma coisa. Os de Belas Artes tinham muito mais sensibilidade para fazer crítica da arte. Os de arquitetura estudavam a época e falavam da época com dificuldade crítica de análise de uma obra de arte. Portanto, para ver que o estudo da arte em si desenvolve neles uma capacidade de ver que os outros não têm.

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Então, a senhora está dizendo-nos que, na verdade, o Darcy Ribeiro não pediu à senhora que fizesse o curso. Foi uma iniciativa sua diante da necessidade de técnicos. L.M.C. – Tanto que eu criei para lá. Não tinha criado para cá, mas criei para lá. E a coisa tomou logo um vulto, porque houve um congresso logo depois, e que D. Heloísa me mandou para a Europa, para assistir ao congresso, e veio apresentar e discutir no Brasil, e que foi a formação profissional. E eu peguei e apresentei o curso da Universidade de Brasília. Então, eles pediram que fizesse uma adaptação daquele curso para o curso daqui. Mas acontece que eles fizeram uma solicitação pedindo uma adaptação, eu mandei uma adaptação, mas eles fizeram uma adaptação lá da cabeça deles. Incrível. Incrível, não sabe? Incrível, completamente idiota, porque era o diretor um comandante da Marinha, que era o diretor do curso. Ele pegou, fez, acho que porque achou bonito. Começou com estética, em vez de ter estudado história da arte para depois ter outra capacidade de estudar estética, não começava... Foi um rolo. Então, profa. Lygia, eu gostaria de que a senhora falasse um pouquinho da UnB nessa época em que a senhora esteve lá. Como era, como eram os alunos, pessoas que trabalharam junto com a senhora. L.M.C. – Eu, quando fui, levei um ajudante meu, um assistente, um aluno, que vocês devem conhecer, o Mundi. Porque o Mundi ficou lá toda vida. Mas não sei que caminho que ele tomou, não sei porque ele não era muito parte de estudo. Era daqueles já com mais sensibilidade crítica diante da obra de arte do que da parte de estudo, de conhecimento, de época. E, portanto, quando não tem essa parte de estudo, dificilmente pode fazer uma correlação entre a arte e a coisa. Ficavam uns mais para a parte de arte e outros mais para coisas mais. E o Mundi, sobretudo, que era aluno aqui da Escola de Belas Artes, que tinha mais sensibilidade para a arte propriamente dita do que para o conhecimento de época, em fazer essa ligação da época com a produção artística, mas, quando eu cheguei lá na universidade, tinha o curso. A parte foi arquitetura. Nós entramos pelo curso de arquitetura, porque não tinha. O Instituto de Arte tinha a parte de arquitetura e tinha uma professora de arte, Amélia Toledo, eu não sei se ela continua professora lá ou não, porque ela fazia cênicas, pintura e coisa e tal. Mas então o grosso era a escola de arquitetura. Então, os professores eram o Greppe, Eduardo Greppe131, não sei quanto tempo ele ficou lá ou não, eu sei que ele teve um filho Greppe que também vocês devem conhecer na geração nova. Ele foi estudante lá. Porque ele é professor na Faculdade de Arquitetura do Rio Grande do Sul. Foi convidado a vir para cá. E ele trouxe, tinha também dois alunos que ficaram. Um deles era o Leal e o outro era o Fernando Burmeister. Não sei se vocês conheceram também, e que morreu cedo. Depois, o Leal foi a ������������������������������������������������������������� Não conseguimos confirmar esse nome. Provavelmente a Prof. Lygia estaria se referindo a Edgard Albuquerque Graeff, professor da Universidade de Brasília que hoje dá nome ao Centro de Documentação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – FAU/UnB.


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trabalhar no Patrimônio, ficou lá toda a vida. Nós, então, tínhamos o encontro nosso, da turma do Alcides da Rocha Miranda, que era o diretor do Instituto de Arte, porque era arquiteto, e era quem me pediu para comprar uns livros para lá, era o arquiteto que trabalhava comigo na minha sala, depois foi para Brasília, foi me representar no patrimônio de Brasília, e depois ficou o chefe dessa parte toda lá em Brasília. Mas.... Como eram as suas aulas, os alunos? L.M.C. – Então, nós tínhamos, assim, poucas cadeiras, de fato, para o setor de arte. E nós conversávamos muito, assim, entre nós. E engraçado, o Darcy Ribeiro, que eu achei que tinha uma memória fantástica, ele, de quando em vez, reunia os professores, eram trinta e tantos professores, ele fazia aquele círculo enorme, e ele queria ouvir o que nós tínhamos a dizer. Cada professor. Então, nós expúnhamos as coisas como estavam andando, como também os problemas que haviam suscitado, o que ele propunha, o como nós tínhamos resolvido alguns, e ele ia ouvindo. E depois, chegava e “vamos conversar”. E ouvia um a um falando sobre a questão que aquele havia levantado. E com cada um ele ia conversando aquele capítulo que interessava. E o nosso contato com os alunos... Com os professores era mais ou menos assim. E com os alunos, nós tínhamos muito grande. Era um pouco essa história de classe primária, que tem a tia. Eu me sentia um pouco a tia deles todos. Então, dava-se muita liberdade a eles para virem, conversarem, e fazia como o Alcides, também, que era muito aberto, e o Greppe, também, que nós éramos as três figuras. Era o Alcides, que era o diretor da coisa, era o Grepe e era eu. Na parte de arte, o Grepe. E na parte de arquitetura, o Alcides, que era a coisa geral. E assim nós tínhamos muito diálogo, vínhamos. E era uma coisa que dava muito interesse, óbvio, para inovar na parte da aula.Tinha a parte de aula e depois tinha o estudo mesmo. E depois, cada um tinha um capítulo para a aula seguinte, que havia estudado e eu queria que eles fizessem um trabalho em profundidade, e aquilo tudo era comentado entre eles. E eles, depois daquilo, tomavam um interesse tal que, quando viajavam, ficavam: “D. Lygia, eu viajei, fui a tal lugar. Como a senhora estava presente! Parecia que tudo aquilo que a senhora tinha falado vinha à tona.” Então, invocavam os comentários e tudo. Eu acho que isso é o grande prazer do aluno, não é? É despertar no aluno um interesse tal que, quando ele viaja, aquilo é levantado para ele, invocado. E assim eu tive por todo o tempo e foi assim uma coisa muito prazerosa.[interrupção] Bem, professora, o nosso curso de Museologia está completando agora um ano. Nós estamos na nossa terceira turma. Qual a senhora acha que é o papel do museólogo na museologia atual? Quais são os desafios dessa profissão? Como é que a senhora vê essa profissão hoje? Especialmente a senhora tendo conhecido Brasília, quais são os desafios que esse profissional que estamos formando tem pela frente? Como é que a senhora vê essa profissão de museólogo? L.M.C. – Lá em Brasília? No geral. L.M.C. – O papel do museólogo é estudar as coleções, tendo sempre o conhecimento como base. O conhecimento mais vasto e uns capítulos mais importantes, os mais profundos possíveis, aqueles que são fundamentais, tem que

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ir aos fundamentos mesmo, e interpretar para o visitante. Porque o que ele tem é que despertar para o visitante o interesse para ver aquilo. Porque falar que não há interesse, há o interesse se a coisa está bem explicada. Porque eu nunca ouvi falar de uma palestra qualquer em que não esteja o pessoal atento, acompanhando. Porque quando se faz palestra, se vai olhando sem ver, é horrível. Porque eu olho e não vejo nada. Mas é olhar e acompanhar nos olhos de cada um, daqueles que estão mais atentos, como se estivesse falando com ele, diretamente, ou com ela, e ele se sente observado, e ele tem o interesse. Então, o papel nosso é ver uma coleção morta, que é uma coleção de museu parada, e torná-la uma coleção viva, que transmita uma mensagem. Quando tudo aquilo foi criado; por que sociedade; com que fim foi criado; como ele influencia na feitura daquilo; que consequências tiveram. Portanto, nós temos que abordar o passado, o presente e o futuro, o que é esperado desse conhecimento. Então, você vê, aí, a importância do museólogo, enorme. Ele vai ser o intérprete. É quem vai levar, dar vida àquela coleção morta. Porque ela sozinha ali, a pessoa passa e não vê. Agora, chamar a atenção de que aquilo merece ser visto por causa disso, disso e disso. Ele passa a olhar com outro interesse, com outra visão, e passa a gostar e querer saber mais sobre aquilo. Portanto, o grande papel do museólogo é esse. É conhecer bem sua coleção e transformar a sua coleção numa mensagem do que ela é, do que ela pode ser e do que ela significa para a humanidade. Esse é o papel que o museólogo pode fazer ou pode deixar de fazer. No caso, então, continua uma coleção morta, se ele não dá vida a ela. E agora, sim, nós gostaríamos de que a senhora desse... Não é exatamente um conselho. Mas que a senhora dissesse para os nossos alunos que vão estar assistindo à senhora uma mensagem para eles. Que conselhos a senhora daria, que contribuição a senhora daria, que recado a senhora gostaria de dar para esses jovens, ou jovens ou não, dependendo da idade, que estão fazendo o curso de Museologia hoje? L.M.C. – Primeiro de tudo, eu queria felicita-los pela escolha que fizeram. Porque eu acho uma coisa fantástica, uma cidade onde não tinha museus e aparecer, assim, tanta gente interessada em museu. Portanto, eles não tinham museus, não tinham elementos para comparação, mas tinham já uma ideia do que devia ser um museu. Uma admiração do que era uma caixa de surpresa numa caixa de informação e de cultura. Portanto, eles têm que fazer com que essa caixa de informação e de cultura se transforme na mensagem mais interessante possível. Portanto, eles têm que ir sempre às fontes. Mostrar que aquilo ali teve um passado, o presente, o que é, e o que pode ser no futuro. E que depende dele, está em mãos dele fazer. Portanto, eu queria felicita-los lá, e para eles abraçarem a causa com o maior interesse, porque dá um prazer para a vida inteira. Eu estou com 95 para 96 anos e até hoje falo com entusiasmo daquilo que foi minha vida. Portanto, eles continuem, e sempre querendo saber mais para poder informar melhor. Alguma palavra a mais que a senhora gostaria de dizer? Mais alguma coisa que a senhora gostaria de falar? Sem ser esse roteiro que nós apresentamos, enfim. Gostaria de falar mais alguma coisa? L.M.C. – Eu só queria também felicitar vocês por virem lá de Brasília para conversar aqui sobre o trabalho de vocês. O que vocês estão fazendo. Portanto,


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essa aspiração sua, também, dá mais base, mais conteúdo àquilo que vocês estão fazendo. Portanto, o caminho é esse. Esse caminho que vocês têm nos livros para ler, e sobretudo na observação. Pelos olhos é que nós vamos vendo, aprendendo, vai eternizando. Pelos olhos, se vê o interesse dos alunos, para incentiva-los, estimula-los para que eles façam perguntas, porque aí você já vai encaminhando. Porque quando vocês tiverem qualquer coisa assim, que nas cidades queiram fazer um museu qualquer, você botar à disposição desse museu uma equipezinha de vocês com os alunos mais interessados, para vocês começarem a ter um pouco de prática de organizar, sabendo que a primeira coisa para organizar é estudar o mais possível o assunto. A pessoa, estudando, conhecendo, olha para as peças e diz que papel essa peça vai desempenhar nesse contexto. Portanto, como eu vou amarrar, concatenar, articular umas às outras. As leituras são muitas. Você pode seguir vários caminhos. Tem peças lá. Mas a leitura que você fizer e o destino que você pretende dar à sua mensagem é que vai traçar a articulação dos grupos. E quando fizer uma arrumação, tratar de ver que os dizeres devem constar no mínimo. Portanto, agrupa. A primeira coisa que se faz quando tem um conjunto de peças, pega as peças mais significativas, as mais importantes de todas, e coloca. Essas aqui já vão ser colocadas em uma ordem, de acordo com a mensagem que vocês bolaram. Então, essas peças vão ter que ter destaque na apresentação. Porque elas são as peças mais importantes, como se fossem madres de grupos menores. Portanto, em torno dessa peça importante, aquelas que explicam-na e que levam a um estágio posterior que é para onde a platéia vai. Então, você vai articulando a mensagem. Às vezes, quando fazemos sobretudo com alunos coisas didáticas, fazemos muito com palavras. Compondo um texto que vai. Podendo ter fotografia, você põe fotografia, para vocês mesmos começarem a trabalhar a articulação. E depois, quando já tiverem alguma prática, se colocarem à disposição dos museus. Porque vocês, conhecendo o assunto melhor, sabendo um pouquinho mais o que cabe a cada museólogo, que é conhecer e difundir conhecimento... Portanto, difundir conhecimento é, primeiro de tudo, estabelecer a conotação das peças mais importantes e essas peças estarem em uma ordem. Em torno de cada peça importante, os seus satélites. Aquele que vai e explica ou então depende. E daqui a pouco você tem uma exposição arrumada. Tendo os destaques. E, no destaque, você procura colocar de um modo em que ela se sobressaia. Seja com qualquer artifício. Um museólogo pode, sozinho, organizar uma exposição. Mas em geral ele tem mais auxiliares. Ele tem auxiliares para fazer um fundo mais bonito, para escolher mais cores, um veludo que põe, uma coisa qualquer; para forrar uma vitrine, para forrar uma parede, um painel qualquer, uma parede e coisa para destacar mais o aberto. Portanto, artifícios, ele tem uma porção. Mas ele tem que estabelecer sempre a ordem, a sequência, a distinção dos que são os mais importantes, que têm que receber um tratamento mais especial, porque logo o visitante de um museu, o visitante de uma coleção, o visitante sabe o que é mais importante pelo modo como está apresentado. Se está com destaque é porque tem uma importância capital dentro do contexto. Então, olhar para isso e estabelecer. Ele chega, vê essa série e, dentro dessa série, ele diz: essa peça é mais importante. Porque foi feito? Tem que dar de palavras, dizeres, e completar. Naturalmente, em uma exposição, nós pomos muito sucinto. Não pode se perder em palavrório. Mas caracterizar bem a importância da peça e por que ela é mais importante. A que ela levou.

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Entrevista: Lygia Martins Costa

Professora, nós é que temos a agradecer à senhora por toda a sua experiência, por você ter aberto a porta da sua casa para nos receber com tanta generosidade, tanto carinho. É uma verdadeira honra podermos estar aqui na sua casa, levando um pouquinho dessa experiência tão linda, dessa história tão bacana, dita de uma maneira tão singular. Obrigada!

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L.M.C. – Eu é que agradeço a gentileza de vocês e o prazer que vocês deram em vir lá de longe para conversar com tanto interesse pela causa. É o que a senhora falou. É o conhecimento. A senhora foi muito generosa em partilhar a sua experiência, o seu conhecimento, e esse ato é ímpar. Nós agradecemos muito em nome da Faculdade de Ciência da Informação; em nome do curso de Museologia da Universidade de Brasília, tanto pelo seu discurso lá naquele contexto como agora. Só mais uma coisa: conta o segredo. Como chegar aos 96 anos tão alegre e tão cheia de vida? Conta. L.M.C. – Conto. É trabalhar no que gosta. Se vocês gostam da carreira, vocês vão chegar e muito melhor, porque o mundo evolui sempre. Quem trabalha infeliz... Agora quem vai antes da aula, ou preparando uma aula, ou preparando uma coisa para dar-se com o aluno...Você sabe que tinha um diretor da Escola de Belas Artes que constantemente estava assistindo às minhas aulas aqui no Rio. E ele dizia “é pelo prazer de evocar tudo aquilo que eu vi quando estive lá e que a senhora traz com tanta vida. Isso aqui é um prazer enorme.” Então, ele sentava lá no fundo da sala e ficava assistindo às aulas. A senhora ficou muito tempo trabalhando no Museu de Belas Artes? L.M.C. – Não. Eu trabalhei no Museu de Belas Artes por onze anos. Depois, fui por dez anos. Depois fui para os Estados Unidos. Levei nos Estados Unidos um ano. Conheci os museus americanos, depois viajei para a Europa, e voltei aqui para a universidade. Dei mais um ano. Depois, fui convocada pelo Dr. Rodrigo Mello Franco para trabalhar lá no Patrimônio. Aí eu fui para o Patrimônio. E fiquei no Patrimônio o resto da vida. A senhora trabalhou até que ano? L.M.C. – Até 81. Eu trabalhei 56 anos. Então, é isso, professora. Nós agradecemos.

Entrevistada Lygia Martins Costa (L.M.C.) Produção, roteiro, entrevista e revisão Ana Lúcia de Abreu Gomes e Elizângela Carrijo Transcrição Ana Lúcia de Abreu Gomes


Entrevista: Lygia Martins Costa

Captação de imagem e som: Elizângela Carrijo Tempo de duração: 1h 23min 33s Financiamento Faculdade de Ciência da Informação/ Universidade de Brasília – FCI/UnB Local e data Copacabana - Rio de Janeiro, 29 de outubro de 2010.

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CAPA

Paisagens Instáveis, 2008, intervenção no Torreão, em Porto Alegre


Capa

R&M: Paisagens Instáveis conta com o “imponderável” em sua realização. Essa instabilidade questiona nossa visão e consciência da universalidade da paisagem, daquilo que pode ser reconhecido, sem, contudo, privar o observador de sua liberdade e da beleza da obra. Quais as consequências destes trabalhos em sua produção posterior? Elder Rocha: Cada segmento da obra se revela como um “passo”. É a consequência dos vários “passos” anteriores e a fundação do próximo. O trabalho mostrado aqui na capa desta revista foi o último desta série intitulada Paisagens Instáveis e o único que se relacionou não somente com o espaço arquitetônico em que está construído, mas também com outros significados deste espaço. A série em questão é o resultado final de uma pesquisa sobre a paisagem e a pintura. R&M: A partir de sua experiência como elemento norteador, quais as dificuldades de um artista contemporâneo em produzir intervenções/alterações em espaços museológicos convencionais ou alternativos? Há diferenças consistentes? E.R.: Toda exposição é uma alteração no espaço expositivo e não consigo perceber diferenças entre espaços museológicos tradicionais ou alternativos para meu trabalho.Talvez, porque raramente os significados simbólicos do espaço expositivo sejam discutidos na minha obra.Tento construir trabalhos que discutam sua própria ordem interna e a história da representação pictórica. R&M: Em sua opinião, para além das precariedades corriqueiras, o que falta aos museus brasileiros de arte para um relacionamento mais profissional com os artistas brasileiros? E.R.: Uma ação importante seria a implantação de um pró-labore habitual para os artistas. Isto seria muito eficiente para a manutenção da pesquisa do artista e facilitaria a produção de obras não permanentes, ou que não possuam possibilidade de comercialização, situações que abrangem significativa parte da produção contemporânea. Acho muito perturbador que todos os profissionais envolvidos em uma exposição sejam pagos pelo seu trabalho e os artistas que geraram este trabalho raramente o sejam. R&M: Muitos artistas contemporâneos têm se posicionado contrários ao atual sistema curatorial, qual a sua relação com os curadores? E.R.: Os curadores são parte do sistema da arte e gosto de pensar na arte como uma construção coletiva pela qual todos os participantes do sistema são responsáveis, ideia sugerida por Anne Cauquelin. Parece-me óbvia a necessidade de curadores e também da existência e fomento de iniciativas independentes para a produção e mostra de arte. Assim, poderemos ver a arte dos nossos dias de forma abrangente e mais adequada à realidade plural da arte contemporânea.

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Capa

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Elder Rocha nasceu em Goiânia em 1961e mora em Brasília desde 1972. Licenciado em Artes Visuais pela UnB, Brasília e Mestre em pintura pelo Chelsea College of Art And Design, Londres. É professor de Artes Visuais na Universidade de Brasília desde 1993. Mostra sua produção regularmente em exposições individuais e coletivas desde 1981. www.elderrocha.com


DIRETRIZES PARA AUTORES 1. Os textos submetidos a Revista Museologia & Interdisciplinariedade não podem exceder o limite de 9 mil palavras, incluindo as notas e referências bibliográficas. Os originais deverão ser digitados em Winword, fonte Times New Roman 12, espaço duplo, formato de página A-4. A contribuição deve ser inédita. O título do texto deve ser centralizado, em letra minúscula e em negrito. Abaixo, à direita, deve constar o nome do autor. As informações sofre filiação, fonte/s de financiamento da pesquisa nas informações e e-mail devem ser colocadas na primeira nota de rodapé. 2. As imagens, quando for o caso, além de inseridas no corpo do texto, deverão ser anexadas como arquivo complementar em formato .JPG e ter resolução de 200 dpi. 3. Todo artigo submetido deverá ser acompanhado de resumo e cinco palavras-chave em português, com versões em inglês ou francês, com 100 palavras no máximo. Do mesmo modo, o autor deve enviar o título com versão em inglês ou francês. Título em português e em inglês, devendo o mesmo expressar, de forma clara e precisa o conteúdo geral do artigo. 4. As notas de rodapé deverão ser sucintas. As remissões bibliográficas não deverão ser feitas em notas e, sim, figurar no corpo principal do texto. Na remissão deverá constar o nome do autor, seguido da data de publicação da obra e do número da página, separados por dois pontos. Exemplos: Segundo Foster (2004: 05), uma mediação que teve larga difusão... Conferindo um caráter descontínuo ao conhecimento sobre o passado (Ricoeur, 2007: 407) 5. As referências bibliográficas deverão constituir uma lista única no final do artigo, em ordem alfabética. Deverão obedecer às normas da NBR 6023: 2002, conforme os seguintes modelos: SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico: subtítulo. Tradução. Edição, Cidade: Editora, ano. SOBRENOME, Nome.Título do capítulo ou parte do livro. In: Título do livro em itálico. Tradução, edição, Cidade:Editora, ano. SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico. Cidade: Editora, vol., fascículo, p. x-y,ano. 6. As transcrições no texto de até três linhas devem estar encerradas entre aspas duplas. As transcrições no texto com mais de três linhas devem ser destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda, sem aspas, com espaço entre linhas simples e com letra tamanho 11. 7. O uso de itálico deverá se limitar aos estrangeirismos e aos título de obras; não deverá ser utilizado negrito no texto e nas notas; o sublinhado deve ser evitado, exceto em endereços da internet (URL). 8. Cada autor poderá submeter apenas um trabalho de cada vez.

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9. O estilo do texto deve ser claro e coerente na exposição das ideias, observando-se o uso adequado da linguagem. Sugere-se ao autor que o trabalho passe por uma revisão gramatical antes de seu encaminhamento à Revista. 10. A Comissão Editorial poderá recusar o texto, antes mesmo de designar os avaliadores, quando as diretrizes detalhadas aqui não forem observadas.

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200 Itens de Verificação para Submissão Como parte do processo de submissão, os autores são obrigados a verificar a conformidade da submissão em relação a todos os itens listados a seguir. As submissões que não estiverem de acordo com as normas serão devolvidas aos autores. 1. A contribuição é original e inédita e não está sendo avaliada para publicação por outra revista? Caso contrário, justificar em “Comentários ao Editor”. 2. Os arquivos para submissão estão em formato Microsoft Word, OpenOffice ou RTF (desde que não ultrapassem 2MB) 3.URLs para as referências foram informadas quando necessário. 4. O texto: usa espaço 1,5 entre linhas e fonte Times New Roman tamanho 12; emprega itálico ao invés de sublinhado (exceto em endereços URL); está com as figuras e tabelas inseridas no contexto e não em seu final; enfim, segue todos os requisitos descritos em Normas para publicação. 5. O texto segue os padrões de estilo e requisitos bibliográficos descritos em Diretrizes para Autores, na seção Sobre a Revista. 6. A identificação de autoria do trabalho foi removida do arquivo e da opção Propriedades no Word, garantindo desta forma o critério de sigilo da revista, caso submetido para avaliação por pares (ex.: artigos), conforme instruções disponíveis em Assegurando a Avaliação Cega por Pares.





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