REVISTA MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE 2

Page 1



Universidade de Brasília

Faculdade de Ciência da Informação

Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília

nº 2, Ano 1, 2012


Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação Vinculada ao Grupo de Pesquisa Museologia, Patrimônio e Memória MPM/PPGCInf/UnB

REITORIA DA

COMISSÃO EDITORIAL

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Ana Lúcia de Abreu Gomes

Ivan Marques de Toledo Camargo

Andrea Fernandes Considera Celina Kuniyoshi

DIRETORIA DA FACULDADE DE

Déborah Santos

CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

Elizângela Carrijo

Elmira Luzia Melo Soares Simeão

Luciana Sepúlveda Köptcke Monique Batista Magaldi

COORDENAÇÃO DE

Silmara Küster de Paula Carvalho

PÓS-GRADUAÇÃO Lillian Alvares

EDITOR-CHEFE Emerson Dionisio Gomes de Oliveira

CONSELHO CONSULTIVO Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira

SECRETARIA

James Early

Martha Silva Araújo

Lena Vânia Pinheiro Ribeiro Lillian Alvares

PROJETO GRÁFICO/

Luiz Antonio Cruz Souza

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Marcus Granato

Núcleo de Editoração e Comunicação - FCI

Maria Célia Teixeira Moura Santos

Cláudia Neves Lopes

Maria Cristina Oliveira Bruno

Pamela Lordes

Mario de Souza Chagas Mário Moutinho

CAPA

Myrian Sepúlveda dos Santos

André Maya Monteiro

Renato Monteiro Athias Tereza Cristina Moletta Scheiner Ulpiano Toledo Bezerra de Menesesulo


Universidade de Brasília

Faculdade de Ciência da Informação

Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília

nº 2, Ano 1, 2012


Correspondências e contribuições devem ser enviadas para: M u s e o l o g i a & I n t e r d i s c i p l i n a r i d a d e Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCInf) Faculdade de Ciência da Informação (FCI) Universidade de Brasília Edifício da Biblioteca Central (BCE) Entrada Leste, Mezanino, Sala 211 Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte, Brasília CEP: 70910-900 E-mail: revistami@unb.br

Todos os direitos reservados A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei no 9.610).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Museologia e interdisciplinaridade: publicação eletrônica do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Universidade de Brasília. Faculdade de Ciência da Informação. – v.1, n.2 (2012) – Brasília: UnB/FCI, 2012v. Semestral Resumo em português e inglês. Disponível no SEER: http://seer.bce.unb.br/index.php/museologia ISSN 2238-5436 1. Museologia. Patrimônio e memória. Artes Visuais. Antropologia. História. Interdisciplinaridade em Museologia. I. Universidade de Brasília. Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Faculdade de Ciência da Informação. CDU: 069.01(051)


SUMÁRIO EDITORIAL Emerson Dionisio Gomes de Oliveira

PÁGINA 09

A OBSERVAÇÃO DE VISITANTES EM MUSEUS: SOBRE RATOS E SERES HUMANOS Adriana Mortara Almeida

PÁGINA 10

INTERDISCIPLINARIDADE E PRESERVAÇÃO: A CARACTERIZAÇÃO MICROANALÍTICA DOS ORNATOS E DA ESCULTURA DA ÁGUIA DA COBERTURA DE COBRE DO THEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO Guadalupe do Nascimento Campos Marcus Granato Otávio da Fonseca Martins Gomes

PÁGINA 30

A EXPOSIÇÃO COMO DISPOSITIVO NA ARTE CONTEMPORÂNEA: CONEXÕES ENTRE O TÉCNICO E O SIMBÓLICO Ana Maria Albani de Carvalho

PÁGINA 47

NOVAS TECNOLOGIAS PARA... NOVAS (?) EXPOGRAFIAS Maria Júlia Estefânia Chelini

PÁGINA 59

MUSEUS COMO PIONEIROS PARA A SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL Manuel C Furtado Mendes

PÁGINA 72

APONTAMENTOS SOBRE MODOS DE SER (E NÃO SER) MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA EM PORTO ALEGRE Bianca Knaak

PÁGINA 85

CONSERVAÇÃO DE MATERIAIS EM ARTE E PAPEL: DESAFIOS DA ARTE CONTEMPORÂNEA Thérèse Hofmann Gatti

PÁGINA 104

REALISMO E FOTOGRAFIA: DIORAMAS DE HIROSHI SUGIMOTO DO MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DE NOVA IORQUE Angela Prada de Almeida

PÁGINA 114

PROGRAMAS EDUCATIVOS EM MUSEUS: UM ESTUDO DE CASO Anamaria Aziz Cretton Diana de Souza Pinto

PÁGINA 134

RESENHA Ana Lúcia de Abreu Gomes

PÁGINA 146

CAPA

PÁGINA 149



EDITORIAL Exposições Emerson Dionisio Gomes de Oliveira

A revista Museologia & Interdisciplinaridade chega a seu segundo número trazendo trabalhos de treze pesquisadores oriundos de diferentes áreas do conhecimento: Arquitetura, Educação, Conservação, Artes Visuais, Engenharia, Ciências Biológicas, Antropologia, História, além da própria Museologia. Todos preocupados com o universo museológico e suas repercussões nos mais diferentes campos do conhecimento científico. Como no primeiro número, nossas ambições centram-se no fortalecimento da publicação, enquanto ambiente de encontro dos distintos sujeitos que formam a Museologia, em todo seu caráter sabidamente interdisciplinar, ao mesmo tempo em que buscamos respeitar as especificidades dialógicas de cada campo disciplinar. Embora os assuntos encontrados nesta segunda edição possam parecer distintos à primeira vista, em boa parte das pesquisas publicadas a “exposição” tornou-se um tema recorrente. Todavia, ao contrário de funcionar como elo evidente da área, tal ponto em comum apenas evidencia a pluralidade de abordagens possíveis. Em muitos sentidos, divergentes. Como fonte concreta e primeira de análise, como espaço teórico da comunicação, como lugar de trânsito e fixação da memória pública ou como temporalidade abstrata a serviço de políticas culturais, a exposição constitui-se como guia deste número. De uma maneira indireta, a segunda edição de Museologia & Interdisciplinaridade dá continuidade ao debate do I Colóquio do Curso de Museologia da Universidade de Brasília, intitulado “Exposições: do visível ao invisível”, organizado pela Faculdade de Ciência da Informação, pelo Departamento de Artes Visuais e pelo Museu Nacional dos Correios (DF), ocorrido em maio. Sob o comando do corpo docente de Museologia, o colóquio contou com importantes pesquisadores dedicados ao tema como: Tereza Scheiner, Lena Vânia Pinheiro Ribeiro, José Cláudio Alves de Oliveira, Marília Xavier Cury, Marília Panitz, Luciana Sepúlveda Köptcke, Mário Chagas, Rosane Carvalho entre outros. Neste tocante, a revista empenha-se em acolher pesquisas voltadas às preocupações contemporâneas da área e a necessidade urgente de dar publicidade aos debates ocorridos em distintas instituições.


A OBSERVAÇÃO DE VISITANTES EM MUSEUS:

SOBRE RATOS E SERES HUMANOS

Adriana Mortara Almeida* Museu Histórico do Instituto Butantan

RESUMO: O artigo apresenta uma revisão bibliográfica de estudos de público em museus que utilizam a observação dos visitantes como método de coleta de dados. Estudos inicialmente baseados na psicologia comportamental foram realizados nos Estados Unidos desde os anos 1920 e inspiraram muitas pesquisas posteriores. Abordagens etnográficas favoreceram a melhor compreensão dos comportamentos dos visitantes assim como o método da “Lembrança Estimulada”. Dois estudos realizados pela autora em museus de arte de São Paulo são descritos e discutidos à luz da revisão bibliográfica inicial.

ABSTRACT: The article presents a literature review of museums’ audience studies that use timing and tracking as a method of data collection. Studies initially based on behavioral psychology were performed in the United States since the 1920s and inspired many later studies. Ethnographic approaches favored a better understanding of the behavior of visitors as well as the method of “Stimulated Recall.” Two studies by the author in art museums of São Paulo are described and discussed in light of the initial literature review.

PALAVRAS-CHAVE: Museu, Público, Observação, Etnografia, Avaliação.

KEY-WORDS: Museum, Audience, Timing and tracking, Ethnography, Evaluation

Historiadora, mestre e doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Fez pós-doutorado em Museologia na UNICAMP, no Departamento de Geologia. Trabalhou como educadora do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP por nove anos. Realizou inúmeras consultorias em diversos museus de São Paulo. Desde outubro de 2010 é diretora do Museu Histórico do Instituto Butantan. Atua no campo da educação, estudos de público e avaliação em museus e instituições culturais. É membro da atual diretoria do Comitê Brasileiro do ICOM (2012-2015). *


Adriana Mortara Almeida

O artigo pretende apresentar e analisar pesquisas de público em museus que utilizaram como metodologia a observação dos visitantes, identificando fatores em comum e diferenças entre as pesquisas e as vantagens dessa estratégia. Não tenho pretensão de esgotar o tema, apenas desejo trazê-lo para a discussão, também a partir de estudos que realizei em dois museus de São Paulo. A psicologia comportamental nos estudos de públicos em museus A publicação, em 2008, do texto de Bertha Lutz que relata suas visitas técnicas a museus norte-americanos, em 1932, permite conhecer o desenvolvimento das pesquisas de público em alguns museus dos Estados Unidos, a partir do olhar da pesquisadora. Alguns museus estavam desenvolvendo novas estratégias expográficas e educativas e precisavam saber se elas eram eficientes: [...] museus americanos modernos empregam grande variedade de métodos educativos, como sejam as visitas com instrutores ou docentes, as palestras nas salas de exposição, as aulas, conferências, sessões recreativas, jogos, etc. Assim sendo, era inevitável que mais dia, menos dia, alguém se lembrasse da necessidade de investigar o valor relativo desses diferentes métodos, a fim de submetê-los ao processo de seleção, mormente em vista do dispêndio considerável acarretado por alguns deles, como sejam os dioramas ou habitat-groups (LUTZ, 2008, p. 33).

As pesquisas eram realizadas por psicólogos com objetivo de avaliar os melhores métodos de educação e divulgação por meio da análise de suas respostas a inúmeras questões colocadas e da identificação dos comportamentos de diferentes públicos. Por exemplo, no “Novo Museu de Ciências de Búfalo” (Buffalo Museum of Science), a pesquisa foi desenvolvida a partir de 1929 por Nita Goldberg, com crianças de grupos escolares visitantes. De forma experimental, Goldberg aplicava testes para que os alunos respondessem, verificando quais estratégias eram mais eficazes: uma palestra antes da visita de 15 ou de 30 minutos? Um jogo de busca nas exposições com cartões ou “visitas aos mostruários, com instrutoras científicas”? (LUTZ, 2008, p. 34). De acordo com as pesquisas, a palestra de 15 minutos levou a melhores resultados; os jogos de cartões funcionavam bem se as crianças conhecessem anteriormente o museu e sua distribuição espacial, para conseguir se orientar. Os testes também demonstraram que não há superioridade entre a estratégia dos jogos dos cartões e da visita à exposição com instruções e que a utilização dos dois métodos, conjuntamente, proporcionou melhores resultados. As pesquisas desenvolvidas por Goldberg seguiam os preceitos da psicologia experimental, sempre criando grupos experimentais comparáveis, como descrito por Lutz (2008, p. 34): [...] a sra. Goldberg pode trabalhar com grupos bastante grandes, constituindo unidades experimentais de 500 crianças. Ela mesma descreve o método como sendo de grupos paralelos, isto é, de idade, raça, ambiente social e inteligência semelhantes entre si.

Destaca-se a concepção de que a ‘raça’ seria uma variável a ser testada, assim como a idade e escolaridade, na comparação dos grupos experimen-

11


A observação de visitantes em museus: sobre ratos e seres humanos

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

12

tais. A leitura e análise dos jogos e testes aplicados, somada à identificação dos métodos de pesquisa empregados, revelam os pressupostos teóricos que envolvem a concepção de aprendizagem: a psicologia comportamental (behaviorista) e a concepção de aprendizagem baseada principalmente nos ganhos cognitivos, correspondentes a informações disponibilizadas por meio da observação dos objetos e da leitura dos textos das exposições. Nita Goldberg também realizou observação de comportamento nas exposições e testou alguns recursos expositivos, especialmente os textos. Segundo Lutz (2008, p. 35), a pesquisadora verificou que “um rótulo pequeno em cada espécime interessa mais que os rótulos gerais grandes” e que “há grande superioridade no folheto descritivo da sala inteira sobre quaisquer rótulos, por melhores que sejam”. As observações de Nita Goldberg seguiram metodologias desenvolvidas previamente por Edward Stevens Robinson, psicólogo da Yale University, responsável por realizar e coordenar pesquisas em museus com apoio da American Association of Museums e Carnegie Corporation of New York (ROBINSON, 1996, p.V). Em publicação de 1928, Robinson relatou dois anos de pesquisas em museus de arte norte-americanos, nos quais foram realizadas observações nos museus e também de experimentos, como simulações em laboratório e interferências nas exposições (ROBINSON, 1928, p. 12)1. Com o intuito de diminuir o número de variáveis, como a presença de objetos de diversas tipologias, todos os estudos foram realizados em exposições de pinturas, em três diferentes museus2. Os visitantes espontâneos (casual visitors) eram observados por todo o percurso das salas previamente selecionadas. Depois de várias observações, foram definidos os dados e comportamentos a serem registrados, considerando que poderiam ser obtidos de forma “mais completa e acurada, para cada visitante observado” (ROBINSON, 1928, p. 19): 1. Tempo total gasto na exposição de pinturas; 2. Salas nas quais entraram; 3. Número de pinturas, em cada sala, na frente das quais o visitante parou; 4. Tempo dedicado à observação de cada pintura (para aquelas nas quais o visitante parou para olhar). Cerca de sessenta visitantes de cada museu foram observados, em dias de ingresso gratuito, de forma que os observadores não fossem identificados facilmente entre o público. Os resultados indicaram que nos museus menores, com menos salas e obras, os visitantes dedicaram mais tempo às 1 Nos Estados Unidos, os estudos de Benjamin Gilman são considerados pioneiros nesse campo. Em um artigo publicado em 1916, Gilman descreve o esforço de um observador na exposição do Boston Museum of Fine Arts, especialmente no que se refere aos esforços muscular e mental necessários para ver os objetos, legendas e obras de arte nas vitrines e outros suportes da exposição. No artigo ele descreve a “fadiga museal” (museum fatigue) como sendo o cansaço do visitante em consequência do esforço dedicado a enxergar, ver e ler o que é apresentado nas exposições. Para ele, depois de gastar muita energia para ver algumas vitrines e obras, o visitante vai passar pelo resto da exposição apenas olhando tudo muito rapidamente. Ao final do artigo ele sugere algumas mudanças na expografia, especialmente em vitrines, para facilitar a apreciação da exposição (DAVEY, 2005; GILMAN, 1916; KÖPTCKE; PEREIRA, 2010). 2 Robinson não cita os nomes dos três museus. Parte da pesquisa foi realizada em um quarto museu, porém com amostra menor que dos outros e cujos resultados são citados apenas parcialmente no artigo.


Adriana Mortara Almeida

obras e visitaram todas as salas, enquanto que no museu de maior porte, os visitantes circularam mais rapidamente, detendo-se menos em frente às obras e pulando diversas salas. Robinson afirma que não é possível generalizar tais resultados e que seria necessário empreender mais pesquisas para ter mais resultados e, possivelmente, fazer afirmações genéricas (ROBINSON, 1928). Robinson discute a utilização do termo ‘fadiga’ que costuma ser usado para o fenômeno observado, e para a explicação do mesmo3. Nesse sentido, ele afirma que existem diferentes formas de fadiga, como, por exemplo, a física, por andar muito, olhar muito; ou a mental, por ter que processar muita informação. Fatores como o número total de obras nas salas, a maneira como estão expostas (em linhas sucessivas, isoladamente, em diversas alturas) poderiam interferir na ‘fadiga museal’. Por meio de análise dos dados obtidos4, Robinson mostra que o tempo dedicado às obras selecionadas pelos visitantes para observação decresce ao longo da visita, como se poderia esperar a partir da ideia de que com o tempo o visitante vai perdendo interesse por causa da “fadiga museal”. Entretanto, esse decréscimo não é regular e contínuo, sugerindo que outras variáveis, além do tempo dedicado à visitação, sejam relevantes. Por exemplo, na primeira parte da visita, o tempo dedicado às obras cresce, o que Robinson atribui a um “aquecimento” para a visita (ROBINSON, 1928, p. 40-41). Robinson (1928, p. 44) buscou outros fatores, denominados por ele “extrínsecos”, que pudessem explicar as paradas e o tempo de observação das obras pelos visitantes. A partir dos resultados, ele enumerou os fatores ou conjunto de fatores que aumentam a probabilidade de uma obra ser observada, em ordem de eficácia: 1. Dimensão grande e posição central, conjuntamente; 2. Dimensão e posição no final apenas (ambos em segundo lugar); 3. Dimensão e posição no final, conjuntamente; 4. Dimensão combinada com isolamento; 5. Isolamento apenas; 6. Posição central apenas. O autor realizou vários testes laboratoriais com estudantes para verificar a influência desses fatores para a “fadiga museal”. Realizou também experiências nos museus com folhetos que destacavam algumas obras, que eram entregues aos visitantes e que, pelos resultados obtidos, levaram os visitantes a aumentar o número médio de salas, de obras observadas e de tempo de observação (ROBINSON, 1928, p. 53-65). Arthur Melton, também da Yale University5, desenvolveu inúmeras pesquisas em museus, inicialmente sob coordenação de Edward Robinson (MELTON; FELDMAN; MASON, 1996) e posteriormente liderando outros psicó3 Davey (2005) faz uma interessante análise das pesquisas que tratam da “fadiga museal”, reunindo várias fontes. 4 Para comparar os dados obtidos nos museus, Robinson conduziu um experimento em laboratório para o qual convidou estudantes a observarem uma sucessão de 100 obras (reproduções), indicando em que momento já teriam observado satisfatoriamente cada obra, para que outra obra fosse apresentada. O tempo de observação de cada obra foi maior do que dos visitantes nos museus, chegando a 28 segundos, enquanto que nos museus não ultrapassou 19 segundos e a curva de tempo de observação teve um decréscimo mais acentuado do que nos museus. (ROBINSON, 1928, p. 35-38). 5 Melton trabalhou também na University of Missouri.

13


A observação de visitantes em museus: sobre ratos e seres humanos

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

14

logos. Sobre sua pesquisa realizada no Philadelphia Art Museum, Lutz (2008, p. 35) cita, especialmente, a ‘descoberta’ de que “a maioria de visitantes americanos só examina as obras de arte que ocupam a parede direita do Museu [...]”. Melton também realizou pesquisas em outros tipos de museus. Em seu artigo de 1936, descreve a pesquisa realizada no New York Museum of Science and Industry com objetivo de identificar as formas mais eficientes de módulos de exposição (exhibits) para esse tipo de museu. Fez experimentos nas exposições de máquinas, com movimentação periódica de grandes máquinas, de forma automática ou por acionamento dos visitantes, para identificar a variação no grau de atração e distração desses módulos expositivos (máquinas) e dos outros módulos em exposição na mesma sala. Assim como Robinson, Melton registrou o percurso, marcando as paradas, a leitura de legendas e manipulação das máquinas (MELTON, 1936). A necessidade de saber mais sobre cada um dos visitantes6 não existia, uma vez que os pressupostos eram de que os visitantes selecionados aleatoriamente representavam a média dos visitantes em geral. As experiências prévias de cada visitante não eram consideradas uma variável significativa para as pesquisas, de acordo com a linha da psicologia comportamental adotada. Outros estudos vão seguir a mesma linha como os desenvolvidos por Bigman (1956), Goins e Griffehagen (1957). Estes últimos utilizam conceitos construídos a partir das pesquisas anteriores: poder de atração (attracting power) e poder de retenção (holding power), que correspondem à capacidade de um elemento da exposição atrair o visitante e fazê-lo parar para observá-la e a capacidade de um módulo da exposição manter por mais tempo o olhar do visitante, respectivamente. Os registros dos percursos, dos pontos de parada, dos tempos dedicados a cada parte do percurso (timing and tracking), foram descritos por Yalowitz e Bronnenkant (2009) como sendo inicialmente apenas uma ferramenta de registro físico por onde o visitante circulava na exposição. In more recent times tracking visitors refers more specifically to recording, in a detailed manner, not only where visitors go but also what visitors do while inside an exhibition. It can provide quantitative data in relation to stay times as well as other behavioral data. […] (YALOWITZ; BRONNENKANT, 2009, p. 48).

A observação dos visitantes, como se fossem cobaias de experiências laboratoriais, para encontrar comportamentos padrão, como o desejo de sair sempre que há uma porta de saída e a tendência de virar à direita, é duramente criticada por Lawrence (1993, p. 117): From an experimenting involving the making of a second exit in a gallery Melton concluded that: ‘The exit [...] acts as an extremely interesting object and competes with the art objects for attention’. Melton made many similar experiments on the presumed rat-like visitor by altering the museum maze. Focus on temporo-spatial behavioral change alone led him to conflate attraction to an exit and to an object.

Lawrence (1993, p. 118) chama atenção para o fato de que por muito tempo a psicologia dominou os estudos de públicos em museus, e que também os psicólogos cognitivistas valorizaram a observação e comportamentos: 6 Melton (1936) optou por observar os visitantes desacompanhados, com intuito de diminuir as variáveis relacionadas à interação com outras pessoas.


Adriana Mortara Almeida

Cognitive psychologists continued to study behavior, but primarily in order to theorize the unobservable constructs – ideas, motives and other conscious elements – that might explain it. This change, great as it was, did not, however, involve a rejection of the empirical methods of objective observation and casual generalization.

A partir de novos pressupostos teóricos, a observação dos visitantes continuou a ser realizada como estratégia para compreensão da experiência dos visitantes e para identificação das melhores maneiras de realizar exposições e ações educativas. Nos Estados Unidos, outra linha de pesquisa que envolvia a observação de visitantes de museus foi chamada de “estratégia naturalista” (Naturalistic Strategy) e divulgada a partir do final dos anos 1970, especialmente por um grupo de pesquisadores ligados a Smithsonian Institution, em Washington DC. A metodologia era sugerida principalmente para a avaliação de exposições. De acordo com Wolf (1980, p. 39-40), [...] evaluation becomes naturalistic if it: (1) focuses on current and spontaneous activities, behaviors and expressions rather than a narrow set of pre-specified objectives; (2) responds to staff members’ needs for different kinds of information; and (3) accounts for the different values and perspectives that exists whenever the question of impact is introduced. […] Naturalistic evaluation procedures attempt to capture what actually occurs in museum settings. Such procedures focus on persons as they are engaged in performing their museum responsibilities or on visitors as they are engaged in their museum experience.

Os procedimentos para observação não são previamente definidos, devendo ser construídos ao longo da pesquisa, a partir do trabalho ‘em campo’, ou seja, da observação dos visitantes, de como eles interagem com as exposições e entre si. Segundo Wolf (1980, p. 42), um típico estudo inclui quatro fases operacionais: 1. Negociação: definição de recursos disponíveis e motivações para a pesquisa. Nesta fase podem ser realizadas entrevistas com equipe do museu para definir potenciais questões de pesquisa e, em seguida, desenvolve-se a observação do comportamento dos visitantes para auxiliar no próximo passo. 2. Identificação da questão a partir da discussão dos dados obtidos até esse momento (da equipe e dos visitantes). 3. Investigação em profundidade: a partir da questão levantada, novas observações e entrevistas são realizadas e sistematicamente discutidas com a equipe para ir ajustando as estratégias para que se obtenham informações relevantes. 4. Análise dos dados e apresentação dos resultados para a equipe do museu para aumentar a possibilidade da avaliação ser utilizada pela equipe do museu. De natureza qualitativa, a estratégia naturalista propunha estudar os seres humanos em suas relações “naturais” e não previa a realização de experimentos para testar determinadas hipóteses. Essa abordagem é amplamente utilizada pela antropologia, em estudos qualitativos, os quais pretendem dar

15


A observação de visitantes em museus: sobre ratos e seres humanos

o protagonismo de cada fenômeno estudado aos indivíduos em suas diversas formas de ação e manifestação. Nesse sentido, as ações sociais obedecem a intenções, atitudes, crenças, valores, significados, sentimentos, que não podem ser reduzidos a uma lei quantitativa.

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

16

A valorização de cada um dos sujeitos da pesquisa, da maneira que ele se apropria das exposições está presente na etnografia, abordagem qualitativa da antropologia, que passa a ser utilizada por pesquisadores para compreender a experiência dos visitantes dos museus. Estudos etnográficos A partir da observação dos percursos de cada visitante de uma exposição temporária no Centre George Pompidou de Paris, de junho a outubro de 1982, Verón e Levasseur (1989) identificaram tipos de percursos e estes foram os critérios para definir tipos de públicos. Os pressupostos teóricos da pesquisa se distanciavam da psicologia, uma vez que se baseavam na ideia de que a exposição é um discurso, diferente para cada visitante, que constrói sua própria exposição a partir das suas escolhas de percurso. Trata-se de um estudo de recepção, de apropriação do discurso proposto pela exposição. Para os autores a visita à exposição é uma negociação entre o visitante e aquele que concebeu a exposição (curador, instituição etc). Os comportamentos dos visitantes são vistos como modalidades de apropriação. “Pois se ex-por é sempre pro-por, visitar uma exposição é com-por, nos dois sentidos do termo: aquele de produzir uma combinação, e o de se acomodar” (VERÓN; LEVASSEUR, 1989, p. 21). E “se acomodar” aparece aqui no sentido de negociar, negociar a relação com a exposição e, portanto, com o expositor. Uma exposição realiza-se com a colocação no espaço de painéis, textos, imagens, objetos, cenários, entre outros, que definem uma série de percursos possíveis que serão atualizados conforme o procedimento de interação/ negociação de cada visitante. Ao observar o comportamento do visitante, não de forma behaviorista numa relação de causa-efeito, mas considerando o papel ativo do visitante, os autores pretendem perceber como se dá a apropriação da exposição. Na introdução do livro de Verón e Levasseur (1989), Jean-François Barbier-Bonet deixa claro que já existem inúmeras pesquisas quantitativas sobre o perfil dos visitantes do Centro Georges Pompidou (Beaubourg) e que a pesquisa ali apresentada, mesmo que em situação particular, tem dupla ambição / duplo registro: “[...] o registro cultural (encontrar resultados transponíveis ao público de outras exposições), e o registro sociológico (elaborar uma problemática e testar metodologias reutilizáveis em outros locais)” (VERON; LEVASSEUR, 1989, p. 8). Fazendo a observação direta do percurso de visitação, os pesquisadores pretendiam entender o processo de interação/leitura da exposição. Inicialmente, os pesquisadores fizeram uma análise semiológica da exposição. Em seguida, observaram e registraram os percursos dos visitantes. Depois de observar e registrar inúmeros visitantes, os pesquisadores identificaram quatro modos de visita / percurso que se repetiam com frequência, agrupando os visitantes em: as “formigas” (ou visita proximal), as “borboletas” (ou visita pendular), os “peixes” (ou visita deslizante) e os “gafanhotos” (ou visita ‘punctum’) (VERÓN; LEVASSEUR, 1989, p. 62).


Adriana Mortara Almeida

Na última etapa realizaram entrevistas com alguns visitantes, envolvendo a visão sobre a exposição, sobre o Centre G. Pompidou, seus dados sociodemográficos e suas motivações para a visita, além de retomar conjuntamente o percurso que teria feito ao visitar a exposição. Nesta etapa, a questão norteadora era saber se os visitantes que tiveram a mesma forma de apropriação da exposição (o mesmo tipo de percurso) também tinham outras características em comum. A análise das entrevistas evidenciou que a “tipologia dada pela observação dos comportamentos remete bem a uma tipologia mais fundamental das atitudes frente à exposição, em particular e, mais genericamente, ao consumo cultural” (VERÓN; LEVASSEUR, 1989, p. 70). No Brasil, as primeiras pesquisas etnográficas em museus mais consistentes foram desenvolvidas por pós-graduandas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, no programa de Educação e apresentadas em suas dissertações de mestrado. Em 1992, Freire apresentou dissertação sobre a ação educativa do Museu do Folclore Edson Carneiro (RJ), especialmente no que tange a formação de professores e a atuação dos mesmos durante as visita de seus alunos. Por meio da observação e entrevista dos professores, Freire percebeu que o que era afirmado no discurso dos professores, como o objetivo da visita ser o enriquecimento do que foi trabalhado em aula e a contribuição para elevar a autoestima dos alunos, não se dava na prática, que era disciplinadora e que acabava aumentando o distanciamento dos alunos com a exposição (FREIRE, 1992, p. 119). No mesmo ano, Cazelli apresentou dissertação sobre o trabalho educativo do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST-RJ), na qual abordava a participação dos professores tanto na preparação como durante a visita ao MAST, com objetivo de refletir sobre o papel social dos museus interativos enquanto espaços de educação pública e aperfeiçoamento da alfabetização científica (CAZELLI, 1992, p. 5). Por meio da observação de reuniões de professores, visitas escolares e entrevistas com professores, Cazelli (1992) investigou a percepção dos professores sobre a ciência, os museus de ciência, educação em ciência e sobre o MAST. Freire (1992) e Cazelli (1992) utilizaram a metodologia etnográfica da descrição densa, inspirada em Clifford Geertz, para descrever e analisar a participação dos professores e as relações estabelecidas entre museus e escolas7. A descrição densa busca compreender os significados atrás das ações ou comportamentos dos indivíduos. Aplicando a mesma metodologia, Valente estudou o público do Museu Nacional (RJ), entre setembro de 1993 e abril de 1994, com objetivo de avaliar alguns aspectos das exposições do Museu. Seu foco foi o público espontâneo, adulto, do qual registrou percurso e falas. A observação centrou-se em captar a percepção e expressão do visitante, registrando os comportamentos relacionados a três aspectos: apresentação, exposição, objeto exposto e atitude, visitante. Ao longo da dissertação, Valente (1995) descreve algumas “cenas” observadas, trazendo os gestos, as falas e ideias dos visitantes. Percebe-se nas cenas que, pela qualidade da apresentação, as etiquetas não são compreendidas e a concepção da apresentação exclui os indivíduos que têm apreensão difícil. Em vez de o museu desmistifi7 Freire (1992) também utilizou como referencial teórico Arnold Van Gennep, ao interpretar a visita educativa como um ritual.

17


A observação de visitantes em museus: sobre ratos e seres humanos

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

18

car a ciência, ele parece cristalizar imagens previamente construídas (VALENTE, 199, p. 157). Para Valente (1995, p. 155) “[...] a apresentação do acervo e dos temas de história natural ou de antropologia física não consegue transmitir informações e promover interação com o público.” Mais recentemente, Dutra investigou a visita escolar em museus a partir de pesquisa documental e observação etnográfica. Seu objetivo, similar aos de Freire (1992) e Cazelli (1992), era de compreender as relações estabelecidas entre museus e escolas: [...] o fenômeno a ser investigado é a visita escolar ao museu, em busca da compreensão do que ocorre quando escolas e museu se encontram: de que forma museu e escola compõem a cena pedagógica e quais dimensões formativas são mobilizadas no momento em que esses contextos educativos estão em contato? (DUTRA, 2012, p. 32).

Durante um ano, Dutra (2012) observou visitas escolares ao Museu Histórico Abílio Barreto, em Belo Horizonte, e entrevistou professores. Além disso, analisou respostas dos professores às questões respondidas em formulários preenchidos por eles, no dia da visita ao Museu. As anotações realizadas durante a observação das visitas, inspiradas na descrição densa, serviram de base para a melhor compreensão da experiência dos grupos de estudantes no museu. Outras abordagens Muitos outros estudos que partem da observação de visitantes de museus foram realizados, com diversas metodologias, especialmente com o intuito de verificar a aprendizagem. Borun, Chambers e Cleghorn (1996) observaram e descreveram o comportamento de visitantes (famílias) para verificar aprendizagem. Determinaram-se treze categorias de comportamento8 para observação e considerou-se que esses comportamentos correspondiam a três diferentes níveis de aprendizagem: Identificação, Descrição, e Interpretação e Aplicação. Alguns comportamentos não implicaram na variação de níveis de aprendizagem (por exemplo, aproximar ou apontar), enquanto outros foram significativos (por exemplo, perguntar, ler em voz alta, entre outros). Para realizar todos os registros necessários foram feitas gravações em áudio e vídeo e também foram realizadas entrevistas para coleta de dados demográficos e opiniões sobre o módulo observado (BORUN; CHAMBERS; CLEGHORN, 1996, p. 124-125). Falcão e Gilbert (2005, p. 94) desenvolvem pesquisas de aprendizagem em museus utilizando o método da Lembrança Estimulada (Stimulated Recall Method), definido como: [...] um grupo de métodos de pesquisa em que o sujeito é exposto a registros (audioteipes, fotografias, videoteipes, escritos, desenhos) relacionados a uma atividade específica da qual participou (aulas, conferências, sessão de análise etc.). Entende-se que os registros funcionam como pistas que capacitam os participantes a se lembrarem de um episódio em que tiveram uma experiência específica, tornando-os capazes de expressar verbalmente os pensamentos que desenvolveram durante a atividade, assim como quaisquer crenças relevantes, concepções e comentários em geral. 8 Aproximar, Chamar, Apontar, Perguntar, Responder, Comentar/explicar, Ler em voz alta, Ler silenciosamente, Subir, Manipular, Expressar apreciação, Expressar desagrado, Afastar-se.


Adriana Mortara Almeida

As visitas ao museu são observadas, filmadas e/ou fotografadas e, em seguida, as imagens são mostradas aos visitantes observados. Estes veem as imagens e são estimulados a falar sobre o que pensaram, o que faziam, entre outras relações com as imagens. Para os autores, Entendemos que a principal contribuição da LE, nos museus de ciências, é facilitar o participante a expressar o significado de suas experiências, assim como as razões para suas ações e escolhas ao longo da visita. A sequência de fotos, no caso dos visitantes, e o vídeo, no caso dos mediadores, trazem para a avaliação muitas situações de aprendizagem que ocorrem na visita e que, certamente, escapariam a outras metodologias. Neste sentido, o uso da LE pode trazer subsídios relevantes para a pesquisa sobre aprendizagem em museus de ciências (FALCÃO; GILBERT, 2005, p. 113).

O método da Lembrança Estimulada foi utilizado em pesquisas desenvolvidas em museus por alunos de Martha Marandino, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), visando a compreender melhor o processo de aprendizagem nesses espaços.9 John Falk, Lynn Dierking e outros pesquisadores do Institute of Learning Innovation (EUA) desenvolvem, há mais de três décadas, pesquisas em museus, visando a compreender a experiência museal e avaliar a aprendizagem, utilizando constantemente a observação dos visitantes como uma das estratégias de pesquisa. Combinada à observação, outras estratégias, como entrevistas logo após a visita e tempos depois (um mês ou mais), além de aplicação de questionários são utilizadas para compreender de forma aprofundada o que se passa com cada visitante e o que ele aprende. (FALK, 1982; FALK; DIERKING, 1992; FALK; DIERKING, 2002; ALMEIDA, 2004, 2005). Os estudos indicam a necessidade de combinação de diversas metodologias: a observação isolada pode levar a interpretações distantes da realidade sendo, portanto, fundamental combiná-la com entrevistas, questionários e, se possível, levantamentos quantitativos que contextualizem o que está sendo investigado. Muitas outras pesquisas com diversas abordagens, que envolvem a observação do público em museus, foram desenvolvidas. Não se pretende aqui esgotar o tema. É importante indicar que muitos dos autores aqui apresentados serviram de base para a construção das pesquisas de público que realizei no Museu Lasar Segall (ALMEIDA, 2001, 2002) e na Pinacoteca do Estado de São Paulo (ALMEIDA, 2008). Reflexões sobre dois estudos desenvolvidos Os dois estudos de público mais longos que desenvolvi utilizando a observação dos visitantes dos museus foram realizados na exposição de longa duração do Museu Lasar Segall, nos anos 2000 e 2001 e na exposição de longa duração da Pinacoteca do Estado, em 2008. Em ambos os casos, a realização da avaliação buscava recolher dados que pudessem subsidiar a reformulação das respectivas exposições, por iniciativa das instituições responsáveis10. No caso do Museu Lasar Segall (MLS) também foi feita a avaliação da ação educativa na exposição (ALMEIDA, 2002). 9 Por exemplo, as dissertações de mestrado de Sápiras (2007) e de Garcia (2006). 10 As reformulações da exposição de longa duração na Pinacoteca do Estado, realizadas entre 2010 e 2011, tiveram como base diversas fontes, entre elas a pesquisa de público aqui citada.

19


A observação de visitantes em museus: sobre ratos e seres humanos

Museu Lasar Segall

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

20

A pesquisa teve diferentes fases: incialmente buscou-se sistematizar informações que já tinham sido coletadas, referentes aos visitantes do museu, e que nunca tinham sido analisadas: os poucos dados disponíveis em breves formulários respondidos pelos visitantes espontâneos à entrada do MLS de 1997, 1998 e 1999 serviram de base para delimitar o universo de visitantes11. Em seguida foi realizada a descrição da exposição, colocando em uma planta baixa a maior parte do mobiliário e das obras em exposição, de forma a facilitar o registro dos percursos dos visitantes. Entre os meses de maio e agosto de 2000, visitantes espontâneos de 15 anos ou mais foram observados e entrevistados na exposição de longa duração do MLS. O registro foi realizado por meio da observação do percurso na exposição, destacando-se os seguintes itens: • Tempo de visitação; • Percurso, incluindo parada (mais de 30 segundos no mesmo ponto), leitura de textos de parede (considerada quando visitante permanecia mais de 30 segundos diante do texto, olhando para o mesmo), observação de vitrines e observação de obras (pinturas nas paredes e esculturas em pedestais); • Manipulação de gavetas (abrir e fechar gavetas presentes nas vitrines), manipulação dos trainéis (com obras em papel) e manipulação do “Exercício de Leitura” (Caderno criado pelo MLS para relacionar um pequeno número de obras em um “nicho” da exposição); • Interação entre os visitantes. Naquele momento, consideramos que o comportamento do público no espaço expositivo poderia trazer os pontos de “atração”, “retenção” e até aqueles que “repelem” os visitantes, mostrando pontos positivos e negativos da expografia.Os dados da observação de 115 visitantes indicaram alguns comportamentos (ALMEIDA, 2000, p. 113-140): • Número de paradas: 44,4% pararam de 1 a 8 vezes (mais de 30 segundos), principalmente para ler textos ou para olhar para vitrines, gavetas e o Exercício de Leitura. • Observação de vitrines: 56,5% olharam de 3 a 6 vitrines (de um total de 8). • Dos 94 visitantes observados em junho, julho e agosto, somente 2 não olharam para as vitrines. A média foi de 5,5 vitrines por visitante. • Manipulação de gavetas: 42,6% não abriram gavetas. 29,5% abriram de 1 a 8 gavetas (de um total de 68 visitantes que abriram). • Leitura de textos: 76% dos 94 visitantes leram pelo menos 1 texto. A média foi de 3 textos por visitante (de um total de 13 textos). • Manipulação dos trainéis: os trainéis atraíram os visitantes, mas não os retiveram por muito tempo. Dos 94 visitantes, 65,9% não pararam para ver os trainéis. Dos 32 que pararam, 6 ficaram mais de 5 minutos e puxaram mais de 2 painéis. • Manipulação do Exercício de Leitura: Esse módulo foi o que mais 11 Os dados eram: Nome, local de residência, faixa etária, sexo e ocupação profissional. Não será apresentada aqui a avaliação da ação educativa.


Adriana Mortara Almeida

reteve os visitantes. A maior parte dos visitantes parou para olhá-lo e para manipulá-lo por um bom tempo. Algumas pessoas ficaram mais de 20 minutos. Dos 94 visitantes, 10 pararam por mais de 10 minutos para manipular e ler o texto e observar as obras de arte. O Exercício também estimulou a conversação entre os visitantes. Ao final do percurso, os visitantes eram entrevistados para levantamento de seu perfil sociodemográfico e de hábitos culturais, motivação para a visita, comportamentos durante a visita, compreensão e preferências em relação à exposição, sentimentos provocados pelas obras e sugestões. Os visitantes eram observados em seu percurso pela exposição “Lasar Segall: Construção e Poética de uma Obra” sem serem previamente avisados e, ao final, eram solicitados a responder algumas perguntas12. Entre as perguntas, algumas tratavam dos comportamentos observados: Você abriu as gavetas? Você leu os textos das paredes? Em ambos os casos, se o visitante respondesse que “não”, perguntávamos o porquê de não abrir ou não ler. No caso da resposta ser positiva, perguntávamos sua opinião sobre os conteúdos das gavetas ou dos textos. Esse procedimento garantiu, como citado anteriormente, a compreensão de “o porquê as pessoas se comportam assim” (YALOWITZ; BRONNENKANT, 2009, p. 49). Por exemplo, alguns visitantes que não abriram as gavetas das vitrines afirmaram que não o fizeram “porque não sabiam que poderiam abrir” e outros “porque já tinham aberto em ocasiões anteriores”. Ou seja, o comportamento de não abrir as gavetas pode ser explicado pela falta de interesse ou tempo, mas também pelos motivos indicados na fala dos respondentes. A parada, ou não, diante de uma obra variou, sendo que a maior parte dos visitantes viu todas as obras das paredes de forma rápida. Paradas (mais de 30 segundos) para observar obras foram menos frequentes do que para olhar vitrinas ou ler textos. De 94 visitantes observados entre junho e agosto de 200013, a média foi de 1,7 paradas para observar obras (de um total de 115 obras). A pintura Navio de Emigrantes foi a mais observada: 48,9% dos 94 visitantes pararam para apreciá-la. Em segundo lugar ficou a tela Interior de Pobres II com 27,6%. Esta obra não estava na exposição até junho, quando percebemos que as paradas nessa parte da exposição se tornaram frequentes. Durante os meses de abril e maio, não foram observadas paradas para olhar as obras que a substituíam. Apesar da atenção dos visitantes, ela só foi citada por um visitante (entre todos os 206 entrevistados) como a parte favorita da exposição. Então, o que teria feito as pessoas fixarem seu olhar nesta obra? A princípio, poderíamos afirmar que não é sua localização, uma vez que as obras que estavam no mesmo lugar anteriormente não foram alvo da mesma atenção. Sua dimensão poderia ser uma das explicações (140,0 x 173,0 cm), uma vez que é maior do que as três obras que ocupavam o mesmo espaço antes no início do ano 2000. 12 As perguntas foram testadas, num primeiro momento, e depois consolidadas em um questionário que servia de roteiro para a entrevista. Depois de cerca de um mês de aplicação, foi inserida uma questão nova: “Quais sentimentos ou sensações a exposição suscitou em você?”, sugerida pela equipe do MLS. 13 Durante a pesquisa, foram entrevistados 206 visitantes. Entre esses, 115 foram também observados, sendo que 21 entre 12 de abril e 10 de maio de 2000 e 94 entre 17 de junho e 08 de agosto de 2000. Em maio houve uma greve dos funcionários do MLS que fechou a exposição. Na reabertura, em junho, foram acrescentadas obras do acervo que estavam emprestadas para uma exposição no exterior.

21


A observação de visitantes em museus: sobre ratos e seres humanos

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

22

A obra apresenta outras características que atraem o olhar do visitante: figuras humanas com expressões de tristeza, um ambiente aparentemente doméstico, simples e pouco colorido14. A observação do comportamento das pessoas não vem acompanhada de explicações. Entretanto, quando perguntamos “Quais sentimentos ou sensações a exposição suscitou em você?” muitas respostas (16%) se referiam ao sentimento de tristeza e angústia causado pelas obras observadas: “Algumas obras causam tristeza.”; “Melancolia de recordação.”; “Muito triste, cores pesadas.” São alguns exemplos das respostas dos visitantes (ALMEIDA, 2000, p. 107). Essas respostas evidenciam a possibilidade de uma obra de temática triste provocar atração nos visitantes, fazendo-os parar para observá-la. Considero que muitos dos pressupostos iniciais dessa pesquisa no MLS tinham forte influência da psicologia comportamental, apesar de que já conhecia outras abordagens. Entretanto, no decorrer do processo de pesquisa, houve um afastamento desse referencial e uma aproximação com referenciais da antropologia e da comunicação, que embasaram a descrição e análise dos dados levantados. Esse afastamento se deu pela impossibilidade de resolver os problemas e questões que as observações indicavam. Pinacoteca do Estado de São Paulo A exposição de longa duração da Pinacoteca do Estado é muito maior do que a do Lasar Segall, tanto em área, número de salas, como na quantidade de obras expostas. Em 2008, a exposição de longa duração da Pinacoteca ocupava todo o segundo piso do prédio da Praça da Luz, contando com 15 salas e mais seis espaços expositivos (átrios e corredores), com cerca de 800 obras do acervo em exibição. Sua organização era cronológica, a partir do século XIX15, e incluía algumas salas temáticas e de artistas, além dos átrios, com destaque para o das esculturas francesas, e os corredores16. Para realizar o percurso cronológico proposto, o visitante precisava acessar o segundo andar pelo elevador, sair para a direita e adentrar a exposição através de uma porta de vidro dotada de grande painel que a apresentava “Acervo da Pinacoteca, século XIX ao XXI”. A partir dessa sala o visitante deveria virar para a esquerda e seguir o percurso. Os 210 visitantes que tiveram seus percursos registrados não realizaram a visita na ordem proposta e apenas cinco destes visitantes entraram em todas as salas17. O objetivo da avaliação foi conhecer a experiência vivenciada pelos visitantes na exposição de longa duração ou em parte dela, levantando os seguintes pontos, por meio da observação e entrevista: 1. O percurso realizado – apreciação e sugestões 2. Os pontos de maior atração 3. Os pontos de maior retenção 14 A reprodução dessa obra pode ser visualizada no website do Museu Lasar Segall. Disponível em: <www.museusegall.org.br>. 15 Havia algumas obras mais antigas, especialmente sacras, na primeira sala da exposição. 16 Todos os dados aqui apresentados foram extraídos de Almeida (2008). 17 Para efeito desta avaliação, algumas salas foram subdivididas em partes, de maneira que quando afirmo que entraram em TODAS as salas, quero dizer que percorreram todas as partes de todas as salas da exposição de longa duração.


Adriana Mortara Almeida

4. Os pontos não percorridos e / ou olhados 5. A quantidade de obras apresentadas / o tamanho da exposição 6. As obras preferidas / As obras não apreciadas 7. A sinalização e orientação – dificuldades observadas e relatadas 8. Os textos – apreciação e sugestões 9. As legendas – apreciação e sugestões 10. 10. A expografia – apreciação e sugestões 11. Os conteúdos apresentados - noções e sugestões. Em uma das fases da pesquisa foram feitas questões sobre leitura e apreciação das legendas e textos. Foram também feitas perguntas abertas sobre a qualidade da orientação visual e sobre a forma de apresentação das obras. O visitante indicava também o de que mais gostou na exposição e o de que mais sentiu falta. Outra questão, criada com o objetivo de identificar se o respondente percebia a exposição como um conjunto, solicitava que ele a resumisse em uma única frase. As perguntas referentes ao perfil e aos hábitos de visitação não foram modificadas ao longo da pesquisa. Em outra fase do trabalho foram feitas perguntas sobre preferências de forma de apresentação de textos, legendas e orientação visual (localização, tamanho, distribuição na exposição, impressos ou em áudio). Também foi perguntado aos visitantes sobre a retirada ou não de obras da “Sala de Retratos”, sobre as preferências em relação à ação dos educadores e sobre a organização da exposição. Após observar e registrar 210 visitantes, obtivemos 210 percursos diferentes, o que demonstra que cada um deles construiu a sua experiência particular de visita. Apenas 28% dos visitantes observados chegaram ao 2º andar pelo elevador principal. E a maior parte destes visitantes saiu do elevador e dirigiu-se para o lado esquerdo, em direção ao átrio e, não, para o lado direito, em direção à sala das “Paisagens Marinhas” que, teoricamente, seria o início da exposição. Quatro dos cinco visitantes que percorreram todas as salas estavam acompanhados, passeando e / ou conhecendo o museu, ou mostrando a Pinacoteca para outra pessoa. Apenas um estava sozinho, morador do Rio Grande do Sul e que passou por todas as salas da Pinacoteca em apenas 38 minutos. Uma boa parte dos visitantes afirmou ter percorrido todas as salas da exposição de longa duração quando, na verdade, não o fez. Outros visitantes afirmaram ‘não saber’ se tinham ou não visto tudo, por dificuldades de orientação e identificação do conjunto, respostas, portanto, que indicam como eles tiveram dificuldade em reconhecer o conjunto da exposição. Os pontos de maior atração O espaço mais visitado foi o átrio com as “Esculturas Francesas”. Cerca de 90% dos visitantes observados percorreram essa área da exposição de longa duração. Nesse espaço, muitos sentaram nos bancos disponíveis18. A 18 Na exposição havia 13 bancos: três deles nas salas de “Paisagens”, sete nas salas com obras do século XIX (lado esquerdo do prédio), um numa das salas de “Arte Contemporânea” e dois bancos no átrio das “Esculturas Francesas”. Os bancos, pelo que foi observado, exerceram um “poder de retenção”, ou seja, quando são utilizados favorecem a permanência por mais tempo em um espaço. Entretanto, não se pode afirmar que exercem “poder de atração”, ou seja, favorecem a entrada de uma pessoa num determinado espaço.

23


A observação de visitantes em museus: sobre ratos e seres humanos

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

24

vitrine que trata da técnica da “cera perdida” foi um dos pontos de atração e retenção desta parte da exposição. Muitos visitantes param para ler uma parte, ou todos os textos, sobre a técnica de confecção de esculturas em bronze. As salas mais visitadas estão no lado esquerdo do prédio e abrigam obras do século XIX e início do XX: “Grande Salão”, “Almeida Júnior” e “Pedro Alexandrino”, visitadas, respectivamente, por 79%, 73% e 68% dos visitantes observados. As salas das “Paisagens”, que ficam ao fundo, tiveram visitação de cerca de 60% dos visitantes observados (“Paisagem Marinha, Rural e Urbana”); entretanto, as partes das salas que ficam atrás de painéis tiveram visitação abaixo de 50% dos visitantes. Entre as obras mais observadas pelos visitantes19, estão as de Almeida Júnior, uma vez que 79% estiveram na sala e observaram, mesmo que rapidamente, uma ou mais obras. Entre elas, destaca-se “Caipira picando fumo”, que além de ser uma das mais observadas é também uma das mais escolhidas para que as pessoas tirassem fotos ao seu lado. Entre as obras mais observadas, várias estão no “Grande Salão”, que foi a sala mais visitada: o tríptico “La Faiseuse d’Anges” de Pedro Weingartner (48%), “Maternidade” de Eliseo Visconti (40%) e “Proclamação da República” de Benedito Calixto (36%). As duas primeiras estão numa mesma parede e a obra de Calixto está na parece oposta. A obra “Fim de romance” de Antonio Parreira foi tão observada quanto a pintura “Maternidade” (40%) e fica na sala de “Paisagens Rurais”, que foi a nona mais visitada (60%). Isso indica um grande poder de atração da obra, pois a maior parte daqueles que entraram na sala olharam para ela. Fenômeno semelhante aconteceu com a obra “Festa escolar no Ipiranga” de Salinas y Teruel (35%), que está na sala “Paisagens Urbanas”, visitada também por 60% dos observados. A obra “Sem título, 1989” de Nuno Ramos, que ocupa uma das paredes da “Sala Contemporânea”, visitada por 34% dos visitantes observados, foi olhada por 25% dos visitantes, indicando alto grau de atração desta obra. Essa atração poderia ser talvez explicada pela dimensão da obra, pela textura, pelos materiais utilizados, pelas cores, enfim, são inúmeras possibilidades. Essa obra não está competindo com muitas outras, como ocorre com aquelas mostradas no “Grande Salão” ou na “Sala de Retratos”. Num sentido inverso, a obra “Escrava romana”, de Oscar Pereira da Silva, foi observada apenas por 18% dos visitantes, sendo que ela está no “Grande Salão” (a sala mais visitada).As possíveis explicações poderiam vir de sua pequena dimensão em comparação a outras obras da sala e a localização, atrás de um painel, próxima a uma porta pouco utilizada pelo público. Os fatores que explicam a atração de uma obra, como já comentado anteriormente, não são poucos e nem são válidos para todas as pessoas. No caso de pinturas, variáveis como a dimensão da obra, as cores, a temática poderiam explicar parcialmente a probabilidade de um visitante parar para olhá-la. 19 Como a Pinacoteca do Estado apresentava uma quantidade muito grande de obras, decidimos que seriam registradas especialmente as paradas para ver as principais obras. A seleção dos destaques do acervo foi feita pela equipe de pesquisa e curadoria da Pinacoteca e somou 53 obras, entre obras do século XIX e XX. Todas as obras citadas podem ser visualizadas no website da Pinacoteca do Estado. Disponível em: <www.pinacoteca.org.br>.


Adriana Mortara Almeida

Mas, outras variáveis também são relevantes: a localização da obra (isolada ou não, na altura dos olhos ou não, no início ou fim de percurso), o conhecimento prévio do artista e da obra, as preferências do visitante (por exemplo, por paisagens e não por retratos).Os pontos não percorridos e/ ou olhados Assim como a atração de algumas obras, vários fatores poderiam explicar a não visitação de determinados espaços / salas: as temáticas das obras apresentadas, a localização, a arquitetura dos espaços e as preferências dos visitantes. As salas menos visitadas estão na parte direita do prédio e exibem obras contemporâneas. Elas têm apenas uma porta de acesso (diferentemente das salas nas outras partes do prédio). Pelas observações verificamos que as pessoas vão à parte direita do prédio, pois 90% estiveram no átrio das “Esculturas Francesas”, que fica desse lado. Muitas pessoas olham algumas obras das salas apenas pelos vidros. As partes das salas que ficam atrás de painéis e que exigem a ‘exploração’ por parte dos visitantes são as menos percorridas. É o caso da parte do “Abstracionismo Geométrico”, que tem as obras de W. Cordeiro e outros (25%) e a sala dedicada a “Willys de Castro”, percorrida apenas por 19% dos visitantes observados. Não é possível saber se há uma “rejeição” às obras de Willys de Castro, se a localização impede ou dificulta de tal maneira o acesso às suas obras que ele permanece ‘desconhecido’ ou a mistura desses fatores. As obras preferidas / As obras não apreciadas Perguntamos a 126 visitantes sobre o que mais gostaram. Muitos visitantes citaram nomes de artistas e nomes de obras. O artista mais apreciado foi Almeida Júnior (15 citações), seguido por Tarsila do Amaral (7 citações), Portinari (6 citações) e Rodin (5 citações). As obras mais citadas foram “Esculturas francesas” (6 citações), “Via Sacra” de Brecheret (4 citações),“Moema Morta” de Bernardelli e “Cinzas” de Pazé (ambas com 3 citações). É interessante notar que as obras citadas não constam na lista dos destaques da exposição do acervo da Pinacoteca.Também é interessante verificar que o nome de artistas é mais citado do que obras específicas, sinalizando uma possível valorização maior do artista do que de determinadas obras. Entre os artistas mais citados como preferidos,Almeida Júnior é aquele que tem mais obras em exposição20 e conta com uma sala própria.Tarsila do Amaral só tem uma obra na exposição e Portinari tem quatro obras21. No caso de Rodin, há sete obras, mas é possível que alguns não percebam que há obras de outros escultores franceses (uma de Bourdelle e uma de Maillol) entre o conjunto de esculturas apresentado. As “esculturas” foram muito apreciadas e houve 20 citações como o de que “mais gostou”. As pinturas foram citadas por oito visitantes, entre os 126. Essa frequência é coerente com o grande número de visitantes que foram para o átrio das Esculturas Francesas (cerca de 90% dos visitantes), o das Esculturas Brasileiras (60%) e Esculturas do Século XX (58%), indicando apreciação pelas obras desses espaços. 20 Na exposição há 31 obras de Almeida Júnior: 15 na sala “Almeida Jr.”, uma na sala “Natureza morta”, 11 na sala “Retratos”, uma na sala “Paisagem rural”, duas na sala “Paisagem urbana” e uma no “Grande Salão”. 21 Duas obras de Portinari estão na “Sala Entre Guerras”, e são destaques,e duas estão na “Sala Retratos”.

25


A observação de visitantes em museus: sobre ratos e seres humanos

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

26

É difícil afirmar quais seriam as obras não apreciadas. Alguns poucos visitantes declararam preferir obras do século XIX, outros afirmaram preferir obras mais recentes e poucos disseram não gostar de obras “contemporâneas” ou “do século XIX”. Se a não visitação de algumas salas indicasse a rejeição de determinadas obras, isso poderia sugerir que muitos visitantes não gostam das obras modernas e contemporâneas. Mas me parece muito arriscado afirmar qualquer coisa a respeito disso, apenas a partir dos dados obtidos nesta pesquisa. Aliando entrevistas à observação dos visitantes, foi possível obter uma série de informações sobre a experiência da visita, entretanto, nem sempre foi possível determinar as causas, explicar os comportamentos e opiniões manifestadas. Considerações sobre a observação dos visitantes Concordo com Falk e Dierking (1992, 2000) quando afirmam que a experiência no museu é complexa e está ligada a fatores do “contexto pessoal”, do “contexto físico” e “contexto sociocultural” e, nem sempre, por meio das pesquisas, se consegue identificar todos os fatores envolvidos. As principais variáveis que podem ser registradas por meio da observação de percurso (timing and tracking) são: 1. Comportamentos de paradas (tempo total em salas, número de paradas, proporção de visitantes que param em um elemento específico, tempo de parada, tempo realizando atividades que não se relacionam com exposição, como falar ao celular). 2. Outros comportamentos (percurso, interações com seu grupo, com outros visitantes, com servidores do museu, manipulação de objetos e observação e vídeos). 3. Variáveis demográficas observáveis (idade estimada, número de pessoas no grupo e gênero). 4. Variáveis situacionais (número total de visitantes no museu, mês ou estação do ano, dia da semana, horário, temperatura ambiente, eventos e programas realizados no museu e na exposição, presença de servidores do museu ou outras situações que podem afetar o comportamento do visitante) (YALOWITZ; BRONNENKANT, 2009, p. 49-50). É recomendável combinar a observação com outras estratégias, especialmente a entrevista. A possibilidade de fazer essa entrevista no espaço visitado, retomando opiniões e comportamentos dos visitantes, pode ser muito positiva para a compreensão do que o levou a determinados comportamentos ou opiniões. A utilização de fotografias, nos moldes da metodologia da “lembrança estimulada” poderia também auxiliar no aprofundamento do entendimento da experiência no museu. As dificuldades enfrentadas pela utilização da observação estão relacionadas à necessidade de pessoal qualificado (tempo de formação), tempo para a pesquisa, um possível constrangimento do visitante (normalmente se recomenda abortar a observação quando o visitante se sente incomodado) e invasão de sua privacidade (mesmo que consentida) e a inexatidão na coleta de dados (por exemplo, se um visitante de fato olhou e observou uma obra ou se estava diante dela sem dar atenção à mesma).


Adriana Mortara Almeida

Apesar das dificuldades, concordo com Yalowitz e Bronnenkant (2009, p. 62) quando afirmam as vantagens do método da observação dos visitantes, por fornecer muitas informações relevantes para avaliar as exposições: Timing and tracking has become one of the most consistently used methods in exhibition evaluation, because it is able to indicate the extent to which visitors are behaving in the expected and intended manner. Whether you are using traditional paper-and-pencil techniques, or the most recent technologies, a timing and tracking study provides a wealth of information about the target exhibition, which is also valuable in designing future exhibitions.

A metodologia de observação dos visitantes de museus não traz as respostas para todas as nossas perguntas, porém ela permite elaborar melhor as questões para encaminhamento das pesquisas. É necessário somar a essa metodologia, outras tipos de estratégias, como a entrevista, a aplicação de questionários, o registro em audiovisual para que o visitante possa se ver explicar seu comportamento, entre outros. Referências ALMEIDA, A. M. Evaluation of school visits to the long-term exhibition ‘Lasar Segall: constructions and poetics of an oeuvre’. In: DUFRESNE-TASSE, Colette (Org.). L’évaluation, recherche apliquée aux multiples usages. Québec: Éditions MultiMondes, 2002. p. 307-321. ALMEIDA, A. M. O contexto do visitante na experiência museal: semelhanças e diferenças entre museus de ciência e de arte. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 12, p. 31-53, 2005. ALMEIDA, A. M. Os visitantes do Museu Paulista: um estudo comparativo com os visitantes da Pinacoteca do Estado e do Museu de Zoologia. Anais do Museu Paulista, v. 12, p. 269-306, 2004. ALMEIDA, A. M. Avaliações da exposição de longa duração ‘Lasar Segall: construção e poética de uma obra’ e de sua ação educativa. São Paulo: Museu Lasar Segall, 2001. (Relatório geral). ALMEIDA, A. M. Relatório final: avaliação da exposição de longa duração (exposição do acervo) da Pinacoteca do Estado. [S.l.: s.n.], 2008. No prelo. BIGMAN, S. K. Art exhibit audiences: selected findings on who comes? Why? With what effects? Museologist, n. 59/60, p. 6-16, 1956. BORUN, M.; CHAMBERS, M.; CLEGHORN, A. Families are learning in Science Museums. Curator: The Museum Journal, v. 39, n. 2, p. 123–138, Jun.1996. CAZELLI, Sibele. Alfabetização científica e os museus interativos de ciências. 1992. 163 f. Dissertação (Mestrado)-Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 1992. DAVEY, G.What is museum fatigue? Visitors Sudies Today, v. 8, n. 3, p. 17-21, 2005. DUTRA, Soraia Freitas Dutra.A educação na fronteira entre museus e escolas: um estudo sobre as visitas escolares ao Museu Histórico Abílio Barreto. 2012. Tese (Doutorado)-Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, 2012.

27


A observação de visitantes em museus: sobre ratos e seres humanos

FALCÃO, D.; GILBERT, J. K. Método da lembrança estimulada: uma ferramenta de investigação sobre aprendizagem em museus de ciências. História, Ciências, Saúde-Manguinhos (impresso), Rio de Janeiro, v. 12, n. 10, p. 91-115, 2005.

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

28

FALK, J.; DIERKING, L. Learning from museums: visitor experiences and the making of meaning. Boston: Altamira Press, 2000. FALK, J., DIERKING, L.The museum experience.Washington DC:Whalesback Books, 1992. FALK, J.The use of time as a measure of visitor behavior and exhibit effectiveness. Roundtable Reports, v. 7, n. 4, p. 10-13, 1982. FREIRE, Beatriz Muniz. O encontro museu/escola: o que se diz e o que se faz. 1992. 134 p. Dissertação (Mestrado)-Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 1992. GARCIA, V. A. R. O processo de aprendizagem no Zoológico de Sorocaba: análise da atividade educativa, visita orientada a partir dos objetos biológicos. 2006. 224 f. Dissertação (Mestrado em Educação)-Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2006. GILMAN, B. I. Museum fatigue. The Scientific Monthly, v. 2, p. 62-74, 1916. GOINS, A.; GRIFFEHAGE, G. Psychological studies of museum visitors and exhibits at the US National Museum. Museologist, n. 64, p. 1-6, 1957. KÖPTCKE, L. S.; PEREIRA, M. R. N. Museus e seus arquivos: em busca de fontes para estudar os públicos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 17, n. 3, p. 809-828, jul./set. 2010. LAWRENCE, G. Remembering rats, considering culture: perspectives on museum evaluation. In: BICKNELL, S.; FARMELO, G. (Ed.). Museum visitor studies in the 90s. London: Science Museum, 1993. p. 117-124. LUTZ, B. A função educativa dos museus. Organizadores: Guilherme Miranda et al. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2008. MELTON, A.; FELDMAN, N. G.; MASON, C.W. Measuring museum based learning: experimental studies of the education of children in a museum of science. Washington DC: American Association of Museums, 1996. (New Series, n. 15). MELTON, A. W. Distribution of attention in galleries in a museum of science and industry. Museum News, v. XIV, n. 3, p. 5-8, June 1936. ROBINSON, E. Introduction. In: MELTON, A.; FELDMAN, N. G.; MASON, C. W. Measuring museum based learning: experimental studies of the education of children in a museum of science. Washington DC: American Association of Museums, 1996. (New Series, n. 15). ROBINSON, E. The behaviour of the museum visitor. Washington DC: American Association of Museums, 1928. (New series, n. 5). SÁPIRAS, A. Aprendizagem em museus: uma análise das visitas escolares no Museu Biológico do Instituto Butantan. 2007. 155 f. Dissertação (Mestrado em Educação)-Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2007. VALENTE, M. E. A. Educação em museus: o público de hoje no museu de


Adriana Mortara Almeida

ontem. 1995. 208 f. Dissertação (Mestrado em Educação)-Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 1995. VERÓN, E.; LEVASSEUR, M. Ethnographie de l’exposition: l’espace, le corps et le sens. Paris: Centre Georges Pompidou, 1989. WOLF, R. L. A naturalistic view of evaluation. Museum News, v. 58, n. 6, p. 3945, July/Aug. 1980. Artigo recebido em março de 2012. Aprovado em maio de 2012

29


INTERDISCIPLINARIDADE E PRESERVAÇÃO: A CARACTERIZAÇÃO MICROANALÍTICA DOS ORNATOS E DA ESCULTURA DA ÁGUIA DA COBERTURA DE COBRE DO THEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO Guadalupe do Nascimento Campos1* Museu de Astronomia e Ciências Afins Marcus Granato2** Museu de Astronomia e Ciências Afins Otávio da Fonseca Martins Gomes3*** Centro de Tecnologia Mineral RESUMO: O Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi inaugurado em 1909. A construção inclui muitos elementos metálicos, com destaque para uma escultura monumental de Águia que encima o prédio em sua fachada frontal. A partir de 2008, foi iniciado o processo de restauração da edificação, finalizado em 2010. Nesse âmbito, foi realizada uma pesquisa interdisciplinar, para caracterização microanalítica dos ornatos originais da cobertura e da escultura da Águia. O objetivo foi identificar os materiais e as técnicas empregadas em sua confecção e avaliar o estado de conservação.

ABSTRACT: The Municipal Theatre of Rio de Janeiro was inaugurated in 1909. A monumental eagle sculpture stands out above the building on its frontal facade. From 2008 on, a restoration and modernization works were performed in the whole historical monument ended in 2010. A multidisciplinary study constituted by materials characterization was carried out in order to characterize the original ornaments on the roof and the eagle sculpture. The characterization contributes to reconstitute technical aspects of the construction and to reproduce them in the restoration work. Besides, it can be useful for conservation purposes.

PALAVRAS-CHAVES: Arqueometria, Caracterização microanalítica, Cobre.

KEY-WORDS: Archaeometry, Characterization, Copper.

1 * Museóloga,Arqueóloga, D.Sc. em Ciência dos Materiais e Engenharia Metalúrgica pela PUC-Rio. Pesquisadora colaboradora do Museu de Astronomia e Ciências Afins, onde desenvolve estudos de pós-doutoramento. 2 ** D.Sc. em Engenharia Metalúrgica e de Materiais (COPPE/UFRJ), pesquisador e Coordenador de Museologia do Museu de Astronomia e Ciências Afins, vice-coordenador e professor do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). Bolsista de produtividade 1D do CNPq. 3 *** D.Sc. em Engenharia Metalúrgica e de Materiais (PUC-Rio), tecnologista do Centro de Tecnologia Mineral e colaborador do Departamento de Engenharia de Materiais da PUC-Rio (Grupo de Microscopia Digital e Análise de Imagem).


Guadalupe do Nascimento Campos, Marcus Granato, Otávio da Fonseca Martins Gomes,

No início do século XX, Antonio Pereira Passos assume a prefeitura do Rio de Janeiro e, inspirado nas reformas de Haussmann em Paris, promove uma reforma urbana aos moldes da cidade francesa. Modifica a aparência da cidade realizando a abertura de diversas ruas e alargando outras, além de construir vários monumentos. Nesse período, o Rio de Janeiro perde seu aspecto colonial e recebe novos valores da cultura burguesa; de higiene e conforto, de trabalhar, morar e recrear (CALDAS, 2009). Nesse contexto, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi construído a partir de 1905 e inaugurado em 1909 [Figura 1]. O projeto foi elaborado por Francisco Oliveira Passos e Albert Désiré Guilbert, seguindo o modelo da Ópera de Paris, do arquiteto francês Charles Garnier. O Theatro é considerado a síntese do estilo eclético no Brasil. Na construção foi usada uma diversidade de materiais como mármore, ônix, vitrais, madeira e cerâmica, além de muitos elementos metálicos ferrosos e não ferrosos. O material utilizado na cobertura do Theatro foi o cobre, onde se destaca uma escultura monumental de Águia que encima o prédio em sua fachada frontal.

Figura 1 Teatro Municipal do Rio de Janeiro, início do século XX Fonte: Rio (1913, p. 11).

Essa tradição de utilizar coberturas de metal em edifícios não foi muito empregada no Brasil, tornando o Theatro um dos poucos exemplares no Rio de Janeiro desse período. Entre os anos de 2000 a 2007, foram desenvolvidos projetos de restauração e modernização do edifício com o objetivo de comemorar o centenário do Theatro. A partir de 2008, foi iniciado o processo de restauração, finalizado em 2010. Para colaborar no processo de restauro do edifício, foi realizada uma pesquisa interdisciplinar denominada de “Caracterização Microanalítica dos Ornatos e da Escultura da Águia da Cobertura de Cobre”. Esses elementos metálicos são originais e têm características diferenciadas, de evidente arte-

31


Interdisciplinaridade e preservação:

a caracterização microanalítica dos ornatos e da escultura da Águia da cobertura de cobre do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

sania. A caracterização microanalítica foi executada com o objetivo de identificar os materiais dos elementos metálicos, as técnicas empregadas em sua confecção e avaliar o seu estado de conservação. Segundo Viñas (2003, p. 127):

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

32

El empleo de instrumentos y técnicas de examen y diagnóstico proprios de campos científicos del saber proporciona al restaurador informacion de la que de otra forma careceria y que en teoria le permite tomar decisiones más fundadas.

No decorrer dos trabalhos, devido ao auxílio dos andaimes que facilitavam o acesso às áreas mais elevadas do Theatro, pode-se constatar a existência de resquícios de douramento em alguns ornatos da cobertura. Através dessa constatação, foi iniciada uma pesquisa nas fontes iconográficas onde se verificou algumas imagens do Theatro contendo áreas com douramento na cúpula, como no exemplo apresentado na Figura 2.

Figura 2 Planta da fachada principal contendo áreas com douramento na cúpula. A Restauração da Cobertura Metálica. Fonte: Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

A caracterização microestrutural de amostras retiradas da Águia e do Lanternim teve o objetivo de identificar a técnica de fabricação e a composição dos materiais usados. Através do exame metalográfico efetuado na área interna do material, o bulk, obteve-se elementos a respeito da sua micro-estrutura e, consequentemente, da técnica empregada para a sua fabricação. Isto possibilitou identificar o tipo de conformação mecânica e de tratamento térmico pelos quais o material passou. Esta análise também permitiu a identificação das impurezas. Já as análises realizadas na superfície do material indicaram quais eram os compostos existentes na pátina. O desenvolvimento desse trabalho contou com equipe multidisciplinar, com profissionais de formação e experiência diversificada, cujas expertises se complementaram e foram determinantes para os resultados obtidos.


Guadalupe do Nascimento Campos, Marcus Granato, Otávio da Fonseca Martins Gomes,

A utilização de técnicas microanalíticas nas amostras retiradas da Águia e do Lanternim do Theatro Municipal do Rio de Janeiro trouxeram importantes informações para a conservação do material, pois, através do conhecimento da composição do material de base e da pátina, o conservador pode estudar a influência dos tratamentos e a sobrevivência do bem cultural, além das interações do material com o ambiente. Esses resultados corroboram a importância da pesquisa interdisciplinar nos projetos de Conservação e Restauro, onde através da inter-relação de conhecimentos das ciências exatas e humanas podem ser obtidos resultados mais completos. Como descrito por Pinheiro e Granato (2012, p. 29), “a interdisciplinaridade é vislumbrada como uma possível estratégia pedagógica e epistemológica para responder aos diferentes problemas de uma determinada área, cuja resposta ou solução demanda conhecimentos oriundos de diferentes áreas”. Aqui, no caso que será apresentado no corpo desse trabalho, essa noção é plenamente exercitada, pois um problema da área de conservação de bens culturais exigiu conhecimentos de áreas diversas, como a ciência dos materiais, a química, a museologia, a história da arte e a arquitetura. A seguir, as reflexões sobre a interdisciplinaridade na preservação de bens culturais serão mais aprofundadas, antes da apresentação da metodologia de trabalhos, dos resultados e de sua análise. A Preservação de Bens Culturais e a Interdisciplinaridade Quando se examina a evolução dos conceitos de preservação, conservação e de restauração na literatura, verifica-se um interesse crescente pelo tema. Simultaneamente, sua natureza tem sido clarificada de forma apreciável, a ponto de hoje ser possível considerar a conservação como uma disciplina baseada em método, quando, inicialmente, constituía-se em profissão de conhecimento empírico. No contexto dessa mudança, as relações que surgem entre dois componentes da preservação moderna - o que é relevante para as ciências humanas e sociais e o que é relevante para as ciências exatas e a tecnologia - merecem atenção especial e já evidenciam aspectos de interdisciplinaridade. A origem do desenvolvimento da primeira componente (como disciplina histórica) remonta ao início do século XIX. Intervenções realizadas seguindo os princípios de estilo de escolas de arte formalmente reconhecidas eram impensáveis sem essa componente. A segunda componente é mais recente, tendo-se desenvolvido após a Segunda Guerra Mundial. A expansão do papel das pesquisas tecnológicas sobre objetos culturais ampliou a prática da conservação de artesanato tradicional, incorporando diversos procedimentos das ciências exatas. Um exemplo claro deste fato relaciona-se ao conhecimento dos materiais constituintes dos bens culturais, fator determinante para conhecer os processos de destruição a que podem ser submetidos. A Química, por exemplo, em suas diversas subdivisões (analítica, orgânica, inorgânica, bioquímica, ambiental, etc.), auxilia com metodologias de identificação dos materiais constituintes dos bens culturais. Aqui a interação entre profissionais especializados com o trato do patrimônio cultural e os químicos determina a aproximação adequada aos bens culturais, com a manutenção de seu conteúdo informacional sem dano, e a seleção de procedimentos que sejam, preferen-

33


Interdisciplinaridade e preservação:

a caracterização microanalítica dos ornatos e da escultura da Águia da cobertura de cobre do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

34

cialmente, não destrutivos para sua identificação. A análise dos resultados obtidos nos procedimentos analíticos também será bem efetuada se em conjunto entre profissionais das duas áreas, resultando em maior conteúdo de informação produzido. Associam-se a essa expertise a Ciência dos Materiais e a Física. Em articulação, Química, Ciência dos Materiais e Física propiciam um conhecimento da matéria constituinte dos bens culturais que possibilita identificar agentes de deterioração e estimar velocidades de degradação, fundamentais para o conhecimento dos processos e para o desenvolvimento de metodologias de preservação para os bens. Além disso, possibilitam a identificação e constituição de produtos que podem ser utilizados na conservação do patrimônio cultural, avaliando suas interações, possíveis danos e possibilidades de remoção sem comprometimento do bem. Os bens culturais, materiais são afetados pelo ambiente em que são expostos ou acondicionados. Condições ambientais inadequadas são causas sérias de deterioração, muitas vezes agravada pelo fato de que os efeitos permanecem invisíveis por um período longo. Relacionados a esse ponto, interagem para melhor atuação sobre o problema a Química, com grande parte dos procedimentos analíticos que permitem avaliar ambientes onde os bens culturais são protegidos e para o conhecimento do efeito, por exemplo, de líquidos e gases sobre os materiais; a Arquitetura, no sentido de projetar e adaptar espaços que favoreçam a formação de uma determinada condição ambiental; a Engenharia Ambiental, estudando os processos que possibilitem um controle do ambiente e seu monitoramento (sistemas de ventilação, ar condicionado, desumidificação, etc.); e a Biologia, para identificação e controle de espécies biológicas que possam destruir os bens culturais. Todas as interfaces precisam ser trabalhadas em conjunto, de forma que as soluções atendam a todos os aspectos que possam ser levantados em cada uma dessas áreas específicas. Outra gama de disciplinas está relacionada com as áreas das Humanidades e Artes. Aqui os aspectos são mais subjetivos e abstratos e muito relacionados à atribuição de valores. Podemos destacar a História, a Filosofia, a Antropologia, a Sociologia, a Arqueologia e o Direito. Especificamente em relação às Artes, são essenciais os conhecimentos de História da Arte, Filosofia da Arte, Sociologia da Arte, Antropologia da Arte, entre outros. O fluxo de informação e comunicação em Artes, por sua vez, é rico e complexo e vem desde o artista, àquele que cria, os teóricos - professores e pesquisadores –, até os curadores e críticos de arte, cenógrafos e gestores de museus e galerias, estes últimos afetados diretamente pelo mercado de artes. A Museologia se insere nas duas vertentes de relação, tanto nas humanas como nas exatas, pois se identifica com o desenvolvimento e uso de procedimentos de preservação em amplo senso (documentação, conservação, restauração, cultura material e pesquisa), assim como com toda a parte humanística relacionada com a atribuição de valores e com a ética da preservação. Até pouco tempo, antes de se constituir em campo de atuação, a preservação de bens culturais esteve diretamente ligada a esse campo do conhecimento.4 O advento de cursos de graduação em conservação no país, nos últimos anos, 4 O primeiro curso para profissionais para museus, no Brasil, idealizado por Gustavo Barroso no Museu Histórico Nacional, formava conservadores.


Guadalupe do Nascimento Campos, Marcus Granato, Otávio da Fonseca Martins Gomes,

traz uma individualização em relação à Museologia que, mesmo assim, não deixa de ter uma imensa relação com o novo campo, já que lida, basicamente, em sua epistemologia com o patrimônio cultural. Um exemplo da interação aqui mencionada é apresentado neste trabalho, onde técnicas microanalíticas auxiliaram no estudo e conhecimento de um bem cultural que seria restaurado. A seguir, serão apresentados os procedimentos experimentais utilizados, além de resultados e discussão dos mesmos. Procedimentos Experimentais A. Material As amostras estudadas no presente trabalho eram metálicas e pertenciam a diferentes regiões do Lanternim da cúpula principal e da escultura da Águia [Figura 3 (a e b)], incluindo amostras de cobre e resíduos de douramento encontrados sobre o cobre.

Figura 3 Cobertura de cobre a) Grande cúpula e a escultura da Águia. b) Lanternim e a escultura da Águia. Fonte: Campos (2008)

Lanternim - Está localizado na cúpula principal da cobertura de cobre [Figura 4 (a, b e c)]. Os resíduos de douramento foram analisados em quatro diferentes regiões do Lanternim, dos frisos e da Caixilharia do basculante do Lanternim. Águia - A escultura da Águia tem as seguintes dimensões: com asas abertas, envergadura de (6,98 x 3,26)m e de perfil (3,72 x 3,00)m [Figura 5 (a e b)]. Localiza-se acima do Laternim, na cúpula principal da cobertura de cobre. Foram realizadas análises tanto na superfície da pátina quanto na parte interna do metal, nas regiões do peito, das asas e da base da escultura. B. Métodos Analíticos Foram empregadas diversas técnicas analíticas no estudo das amostras coletadas, a saber: Microscopia Estereoscópica (Lupa); Microscopia Ótica de Luz Refletida (MO); Microscopia Eletrônica de Varredura com Espectrômetro de Dispersão de Energia de Raios X acoplado (MEV/EDS); e Difratometria de Raios X (DRX).

35


Interdisciplinaridade e preservação:

a caracterização microanalítica dos ornatos e da escultura da Águia da cobertura de cobre do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

36

Figura 4 Lanternim; a) Área onde foram feitas as análises do cobre e dos resíduos de douramento; b) Camada de douramento do friso do Lanternim; c) Coleta dos resíduos de douramento na região da Caixilharia do basculante do Lanternim. Fonte: Campos (2008)

Figura 5 Águia; a) Pátina de coloração verde clara e preta; b) Parte da asa sobre a estrutura metálica é constituída de material ferroso. Fonte: Campos (2009)


Guadalupe do Nascimento Campos, Marcus Granato, Otávio da Fonseca Martins Gomes,

As amostras de resíduos de douramento e a amostra de cobre do Lanternim foram analisadas ao MEV/EDS como recebidas. Essas amostras foram simplesmente fixadas em uma superfície adesiva e recobertas com uma camada de, aproximadamente, 20nm de prata, de modo a torná-las condutoras, facilitando a análise ao MEV. Foram realizadas quatro modalidades de análise ao MEV: geração de imagens de elétrons retro-espalhados; geração de imagens de elétrons secundários; microanálise pontual com o EDS; e mapeamento de raios X. As amostras metálicas para a análise microestrutural ao microscópio ótico e ao MEV/EDS foram embutidas a frio em resina epóxi e desbastadas e polidas, conforme a preparação metalográfica convencional. Em seguida, essas amostras receberam um ataque químico com solução de cloreto férrico no intuito de revelar os contornos de grãos, a orientação cristalográfica, a morfologia dos constituintes e as inclusões. O MO foi empregado nas modalidades campo claro, campo escuro e contraste por interferência diferencial – DIC. Após as análises ao MO, essas amostras foram recobertas com carbono evaporado e analisadas ao MEV/EDS. Microanálises EDS foram feitas tanto na matriz quanto nas inclusões. Os produtos de corrosão existentes na superfície das amostras, formados pelas condições climáticas e ambientais ao longo dos anos, também foram analisados por DRX. Os difratogramas de raios X foram coletados em um equipamento Bruker-D4 Endeavor com detector linear, nas seguintes condições de operação: radiação Co Kα (40 kV / 40 mA); passo de 0,02° 2θ; 0,5 s por passo; e contagem de 5 a 80º 2θ. A interpretação qualitativa dos difratogramas foi efetuada por comparação com padrões contidos no banco de dados PDF025. Resultados e Discussão Lanternim Na micrografia de elétrons retroespalhados mostrada na Figura 6a foram realizadas microanálises de EDS em regiões diferentes dos resíduos de douramento. Os pontos 1, 2 e 3 identificados na micrografia correspondem, respectivamente, aos espectros das Figuras 6b, 6c e 6d. Observam-se nesses espectros picos característicos de ouro (Au) e prata (Ag). A presença da Ag é decorrente do procedimento de preparação da amostra, para torná-la condutora. A ocorrência do ouro nos resultados das análises permite afirmar que a área do Lanternim sofreu, originalmemnte, um processo de douramento. A micrografia da Figura 7 é uma imagem de elétrons retro-espalhados de uma amostra de cobre, onde se pode observar a diferença de composições. As áreas mais claras têm número atômico médio mais alto do que as escuras. Os espectros de EDS (Figura 7b e 7c) correspondem às duas regiões analisadas na micrografia. Nos dois espectros, observam-se picos de pouca intensidade de Au (provavelmente resquícios da camada de douramento) e outros mais intensos de Cu. A presença da Ag é devida à preparação da amostra, conforme explicado anteriormente. Nessas análises, não foi detectada a presença do elemento mercúrio, o que permite deduzir que, provavelmente, o douramento foi realizado com folhas de ouro, e não por deposição por amálgama. 5 Base de dados de estruturas cristalinas por difração de raios-X - Define banco de padrões cristalográficos. ICDD. Disponível em: http://www.icdd.com/newsletter/pressreleases/icdd-pr-012706-152-m.htm.

37


Interdisciplinaridade e preservação:

a caracterização microanalítica dos ornatos e da escultura da Águia da cobertura de cobre do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

cps Au 20

cps

cps

20

20

b

c

d 15

15

15

Au

Au Ag

Ag 10

10

10 Ag Au Ag Au

5

Ag Ag Ag Au Au

5 Au Au

0 0

5

10 Energy (keV)

Au

0 0

Ag Au Ag Au

5

5

Au

Au

Au 0

10 Energy (keV)

0

5

10 Energy (keV)

Figura 6 MEV dos resíduos de douramento: (a) micrografia de elétrons retro-espalhados; (b) espectro de EDS do ponto 1; (c) espectro de EDS do ponto 2; (d) espectro de EDS do ponto 3. Fonte: Gomes (2008)

a

cps Cu

b

50 40 30 Cu 20

Ag Ag Au Cu Au Ag Au

10 0 0

Cu Au Au 5

cps 10

Ag

10 Energy (keV)

Cu

c

Cu 8

Ag

6 4

Ag Au Au Cu Au

2

Cu Au

0 0

Figura 7 MEV de uma amostra de cobre do Lanternim sem ataque químico: (a) micrografia de elétrons retro-espalhados; (b) espectro de EDS da região 1; (c) espectro de EDS da região 2.

5

Au

10 Energy (keV)


Guadalupe do Nascimento Campos, Marcus Granato, Otávio da Fonseca Martins Gomes,

Fonte: Gomes (2008)

39

Figura 8 Micrografia ótica em campo claro, da amostra de cobre do Lanternim com ataque químico; a)estrutura , grãos equiaxiais, contendo significativa fração volumétrica de inclusões; b) detalhes a estrutura α e as maclas de recozimento. Fonte: Campos (2008)


Interdisciplinaridade e preservação:

a caracterização microanalítica dos ornatos e da escultura da Águia da cobertura de cobre do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

a

b

Inclusão

Cu

Matriz

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

40 Cu

Cu C

Figura 9 MEV em elétrons secundários da amostra de cobre do Lanternim de grãos α; a) micrografia evidenciando a ocorrência de maclas e inclusões de tamanhos heterogêneos; b) espectro de EDS da matriz de Cu; c) espectro de EDS de uma inclusão. Fonte: Maurício (2008)

Figura 10 Difratograma de raios X de amostra de cobre do Lanternim. Fonte: Gomes (2008)

c

C

S


Guadalupe do Nascimento Campos, Marcus Granato, Otávio da Fonseca Martins Gomes,

a b

O Cu

41

Cu

Cu

Figura 11 - MEV da pátina da Águia; (a) micrografia de elétrons retro-espalhados; (b) espectro de EDS mostrando a presença de Cu e O. Fonte: Gomes (2009)

a

b

Cl

O Cu

Cu

Cu

c Cu Cl Fe Al Pb O

Fe

Cu

Si

Cu

Figura 12 - MEV da pátina da Águia; (a) micrografia de elétrons retro-espalhados; (b) espectro de EDS da região clara; (c) espectro de EDS da região escura. Fonte:Gomes (2009)


Interdisciplinaridade e preservação:

a caracterização microanalítica dos ornatos e da escultura da Águia da cobertura de cobre do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

42

As micrografias óticas mostradas na Figura 8 são características do cobre constituído de grãos de tamanho médio de matriz α de morfologia equiaxial. A morfologia equiaxial indica que após a conformação mecânica o material foi recozido a uma temperatura suficiente para induzir a ocorrência de recristalização. O tamanho médio dos grãos desse material é cerca de 50µm [Figura 8a].A micrografia na Figura 8b mostra em detalhe a microestrutura e as maclas de recozimento. A ocorrência das maclas, muito comum nos metais do sistema cúbico de face centrada – CFC, corrobora o tratamento térmico mencionado. Assim, verifica-se que o Lanternim foi produzido por conformação mecânica, seguida de recozimento para alívio de tensões na microestrutura resultante. A Figura 9a apresenta uma micrografia de elétrons secundários que evidencia o relevo dos grãos e a morfologia heterogênea dos possíveis óxidos de cobre presentes na microestrutura. Os espectros de EDS mostrados na Figura 9b e 9c correspondem, respectivamente, à região de matriz de cobre (Cu) e ao óxido de cobre (Cu2O), indicado na micrografia. A Figura 10 mostra um difratograma de raios X de amostra de cobre do Lanternim que indica a presença de compostos comumente encontrados nos produtos de corrosão de ligas de cobre, tais como cuprita, hidróxido de cobre e brocantita. Não se observou a presença de cloretos, provavelmente pelo local de onde foi retirada a amostra analisada, mais protegida das intempéries e dos ventos marinhos. Águia Na superfície da escultura da Águia, pode-se verificar uma pátina de coloração verde, contendo algumas regiões mais escuras. A Figura 11a apresenta uma micrografia de elétrons retro-espalhados de amostra proveniente da superfície da Águia. As regiões mais escuras são de pátina e os pontos brancos são precipitados, principalmente contendo Pb. No espectro de EDS [Figura 11b] da região indicada na micrografia [Figura 11a] foram detectados cobre (Cu) e oxigênio (O), que, provavelmente, pertencem ao composto óxido de cobre (Cu2O), que constitui a primeira alteração a ser formada na superfície desse metal, considerada como “pátina nobre”. A Figura 12a mostra uma micrografia de elétrons retro-espalhados de outra área da amostra. Nesse campo, foram realizadas microanálises na região clara [Figura 12b], mais rica em Cu, onde foram detectados os elementos Cu, cloro (Cl) e O; e na região escura [Figura 12c], onde foram detectados Cu, Cl, O, alumínio (Al), silício (Si), Pb e ferro (Fe). O Cl indica a presença de cloretos como atacamita e paratacamita, muito comuns em regiões próximas a ambientes marinhos. O ferro pode estar relacionado com o minério utilizado para a confecção do material. Já o Pb, pode ter sido adicionado intencionalmente com intuito de melhorar as propriedades mecânicas do material. O Si e o Al, possivelmente, são procedentes de impregnações de poeira trazidas pelo vento. A Tabela 1 apresenta o sumário dos resultados de DRX das amostras retiradas de diferentes regiões da Águia. Nessas diferentes regiões, destaca-se a presença de cloretos, como a atacamita, e a paratacamita, além da nantoquita. Como o local onde se situa a escultura é muito úmido, pode-se concluir


Guadalupe do Nascimento Campos, Marcus Granato, Otávio da Fonseca Martins Gomes,

que a pátina existente é prejudicial ao metal de base, podendo causar sérias perdas desse material. Tabela 1 - Sumário dos resultados de DRX da superfície Águia.

Amostra Águia – A (área de coloração verde – corpo da Águia) Águia – B (área de coloração escura – corpo da Águia) Águia - C (área de coloração verde – corpo da Águia) Águia - D (área de coloração escura - corpo da Águia) Águia – E (área da Asa direita) Fonte: Os autores.

Fases cristalinas detectadas cuprita, atacamita, paratacamita, brochantita e quartzo

cobre, cuprita, atacamita, paratacamita, brochantita, nantoquita e quartzo. cobre, cuprita, atacamita, paratacamita, brochantita e quartzo. cobre, cuprita, atacamita, paratacamita, brochantita, nantoquita e quartzo. cobre, cuprita, atacamita e nantoquita

Na micrografia ótica da Figura 13, pode-se observar a microestrutura característica do cobre, constituído de grãos de tamanhos grandes e de matriz α. As inclusões, conforme pode ser observado em alguns contornos de grão, em geral se relacionam a efeito de ancoramento, para dificultar o crescimento desses grãos. No entanto, a análise dos tamanhos de grão permite concluir que seu tamanho médio é bem elevado, bem maior do que aqueles observados no Lanternim. A fração volumétrica dessas inclusões, mostrada na micrografia, comprova a originalidade do material. Na micrografia de elétrons secundários da Figura 14a, podem-se observar grãos poligonais α de tamanho grande; inclusões de morfologia arredondada distribuídas por toda micrografia; e maclas de recozimento. As Figuras 14b e 14c apresentam os espectros de EDS da matriz de Cu e de uma inclusão, respectivamente. Na inclusão, foram detectados os elementos Cu, Pb, arsênio (As), antimônio (Sb), O e Fe. O pico de carbono (C) é devido ao recobrimento realizado na etapa de preparação de amostras. Os elementos Fe e arsênio (As) são, possivelmente, provenientes do minério de cobre, enquanto o Pb, provavelmente, deva ter sido adicionado com o propósito de melhorar e favorecer as propriedades mecânicas do material . Conclusões As análises realizadas em amostras retiradas de diferentes regiões do Lanternim e da Águia indicaram a presença de uma antiga camada de douramento na superfície do cobre. Isto, aliado às fontes iconográficas, levou à conclusão de que os ornatos da cobertura do Theatro eram, originalmente, dourados e, provavelmente, foram produzidos por uma técnica de aplicação de folha de ouro. Esses resultados contribuíram para a escolha da equipe de restauradores e demais técnicos para retornar a aparência original do edifício, optando por executar o douramento destes elementos seguindo essa técnica.Além disso, pode-se constatar que, em função de sua composição química e microestrutura, os materiais do Lanternim e da Águia são diferentes. O estado de conservação do Lanternim está melhor do que o da Águia, pois não foram encontrados cloretos no primeiro, que indicam a presença de pátinas pouco protetoras. Finalmente, pelos resultados obtidos, o Lanternim deve ter sido produzido por conformação mecânica, seguida de recozimento.A Figura 15 mostra como ficaram o Theatro e a escultura de Águia, após a restauração.

43


Interdisciplinaridade e preservação:

a caracterização microanalítica dos ornatos e da escultura da Águia da cobertura de cobre do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

44

Figura 13 - Micrografia ótica com ataque em DIC. Amostra do Cobre da Águia. Fonte: Campos (2009)

a

b

C

Cu

Cu

c

Sb O C Fe

Figura 14 - MEV de amostra de cobre da Águia; (a) micrografia de elétrons retro-espalhados; (b) espectro de EDS da matriz de Cu; (c) espectro de EDS de uma inclusão. Fonte: Gomes (2009)

As

Pb

Sb

Fe

Cu


Guadalupe do Nascimento Campos, Marcus Granato, Otávio da Fonseca Martins Gomes,

45

Figura 15 - Theatro Municipal do Rio de Janeiro após a restauração; (a) fachada principal; (b) escultura da Águia. Fonte: Gomes (2009)


Interdisciplinaridade e preservação:

a caracterização microanalítica dos ornatos e da escultura da Águia da cobertura de cobre do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

Referências

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

46

Caldas, Wallace. Restauração da cobertura do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. In: REIGADA, Felipe; MARIATH, Leyla; DI BLASI, Laura (Org.). Metais: restauração e conservação. Rio de Janeiro: In-Fólio, 2009. p. 67-78. Rio, João do. O Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. da Photo Musso, 1913. MARTINEZ, Soledad Díaz; ALONSO, Emma García. Técnicas metodológicas aplicadas a la conservación-restauración del patrimônio metálico. Madri: Ministério da Cultura, 2011. Disponível em: <http://www.calameo.com/ read/000075335c184bd7c7b68>. Acesso em: 29 maio 2012. PINHEIRO, Lena Vania Ribeiro; GRANATO, Marcus. Para pensar a interdisciplinaridade na preservação: algumas questões preliminares. In: SILVA, Rubens Ribeiro Gonçalves da (Org.). Preservação documental: uma mensagem para o futuro. Salvador: UFBA, 2012. p. 23-40. Selwyn, Lyndsie. Metals and corrosion: a handbook for the conservation professional. Ottawa: Canadian Conservation Institute, 2004. Viñas, Samuel M. Teoria contemporânea de la restauracion. Madrid: Editorial Síntesis S.A., 2003. Yacaman, Miguel José; Ascencio, Jorge A. Electron microscopy and its application to the study of archaeological material and art preservation. In: Ciliberto, Enrico; Spoto, Giuseppe (Ed.). Modern analytical methods in art and archaeology. New York: John Wiley & Sons, 2000. p. 405-443. Disponível em: <http://media.wiley.com/product_data/excerpt/1X/04712936/047129361X. pdf. Acesso em: 29 maio 2012. Artigo recebido em maio de 2012. Aprovado em julho de 2012


A EXPOSIÇÃO COMO DISPOSITIVO NA ARTE CONTEMPORÂNEA: CONEXÕES ENTRE O TÉCNICO E O SIMBÓLICO Ana Maria Albani de Carvalho1* Universidade Federal do Rio Grande do Sul

The art exhibit as dispositif in contemporary art: connections between the technical and the symbolic RESUMO: No contexto cultural contemporâneo, marcado tanto pela globalização, quanto pelos investimentos em ações de alcance micro-político, é necessário indagar sobre as conexões nem sempre visíveis que constituem a rede que forma o campo da arte contemporânea. Seguindo esta linha de pensamento, este artigo procura elaborar uma reflexão sobre o papel da exposição no campo artístico contemporâneo. Percebida como um fenômeno cultural que se manifesta como um instrumento de poder, a exposição é definida como “dispositivo”, um conceito que permite ir além do dualismo entre o técnico e o simbólico, que muitas vezes norteia o debate sobre o tema.

ABSTRACT: In the contemporary cultural context, distinguished both by globalization and by investments in micropolitical actions, it becomes necessary to question the not always visible connections of the net that creates the contemporary art field. In this perspective, this article aims at discussing the role of the art exhibit in the contemporary art field. Viewed both as a cultural phenomenon and as an instrument of power, the art exhibit is defined as dispositif, a concept that allows us to go beyond the dualism between the technical and the symbolic, which often guides this debate.

PALAVRAS-CHAVE: Exposição; Arte Contemporânea, Dispositivo; Poder simbólico.

KEYWORDS: art exhibit, contemporary art, dispositif, symbolic power.

1 * Doutora em Artes Visuais – História, teoria e crítica (UFRGS), com estágio na École des Hautes Études en Science Sociales (EHHSS, França). Professora adjunta no departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, responsável pelas disciplinas de Laboratório de Museografia e de Seminários de História da Arte Moderna. Pesquisadora e orientadora de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, ministrando a disciplina Curadoria e Projetos de Exposição. Desenvolve trabalhos em curadoria e expografia e tem artigos e ensaios publicados sobre o tema, com ênfase em arte contemporânea.


A Exposição como Dispositivo na Arte Contemporânea: conexões entre o técnico e o simbólico

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

48

A exposição desempenha um papel central no campo das artes visuais, configurando-se como uma espécie de moldura – a qual pode assumir diferentes formatos ou privilegiar determinados enquadramentos – que afeta de forma significativa o modo de visualizar e pensar a arte. A própria narrativa apresentada pela história da arte, via de regra, considerada como a forma hegemônica de discurso “sobre” a arte e tradicionalmente focada no estudo da obra, é devedora ou está intrinsecamente articulada ao que se apresenta através das exposições e das políticas que os museus e centros culturais adotam para a constituição e o manejo de seus acervos, especialmente no que concerne à produção modernista e contemporânea. Por outro lado, no cenário artístico configurado durante a última década, muitos artistas e também alguns curadores e críticos têm posto em discussão o formato expositivo tradicional criticando sua posição hegemônica enquanto modalidade fundamental para apresentação da arte, propondo outros veículos de difusão e outros formatos para a relação obra/público, seja através de apresentações verbo-visuais, publicações do gênero livro-de-artista ou emprego de mídias locativas digitais, entre outros recursos possíveis. Perceber a exposição como um fenômeno cultural que se manifesta como “poderoso e eficaz instrumento de poder cultural” (GUASCH, 2000, p. 6), de um ponto de vista crítico e analítico, conduz à necessidade de indagar sobre seus pressupostos, seus métodos, suas práticas e especificidades enquanto veículo e recurso expressivo de ordem narrativa e interpretativa. Diferentemente de outros campos, como no caso das ciências naturais ou mesmo da história, no sistema das artes visuais, a exposição não desempenha apenas uma função comunicativa ou de “mediação”. O que se define como arte – no caso das visuais, especialmente - é resultado de uma relação de reciprocidade entre o trabalho de arte, o lugar onde este trabalho se espacializa e o observador/interagente, em um tipo de inscrição espaço-temporal. A exposição – aqui considerada no sentido das diferentes configurações através das quais uma obra pode instalar-se no espaço e também como evento -, é de ordem constitutiva para o campo das artes visuais, tanto no que concerne à produção artística, quanto a teórico-crítica. Se no âmbito das exposições científicas – isto é, nos museus de ciências e tecnologia, de história natural e outros do gênero – a exposição constitui uma linguagem visual baseada e construída com “objetos que foram previamente codificados pela investigação científica” (BLANCO, 1999, p. 70), especialmente no campo da arte contemporânea, a exposição pode constituir-se como o momento de inscrição de um objeto, procedimento ou prática na “instituição arte” 2. Como argumenta Poinsot (1999, p. 35, tradução nossa), “não podemos considerar a exposição como uma linguagem secundária que veicula um signo pré-existente”: A exposição não se esgota na descrição dos micro-eventos que englobam a aparição de uma obra e não se limita à suas coordenadas 2 Com isto não pretendo diminuir ou negar o componente ideológico ou a dimensão discursiva presente nas exposições científicas, muito pelo contrário. É importante ressaltar, inclusive, o papel central que a expografia, muitas vezes pela via cenográfica, desempenha para a curadoria, a espacialização e a recepção das exposições científicas. Porém, no caso das ciências exatas, naturais ou dos museus e exposições de tecnologia, história e mesmo de outros segmentos do campo cultural, a exposição desempenha mais efetivamente um papel de difusão, divulgação e comunicação de um conhecimento anteriormente legitimado em outras instâncias. Entendo que é neste papel de legitimação e institucionalização que reside a diferença entre a função desempenhada pela exposição no campo das ciências e no das artes.


Ana Maria Albani de Carvalho

espaço-temporais. A exposição é uma situação de discurso complexo que possui suas próprias regras em permanente evolução, mas que não possui uma história própria independente das prestações estéticas que ela mesma atualiza. Assim, cada obra produzida é concebida com o conhecimento dessas regras, quer elas sejam admitidas de maneira implícita, quer sejam explicitadas ou mesmo transgredidas (POINSOT, 1999, p. 35, tradução nossa).

Muitos aspectos considerados eminentemente técnicos, relativos, por exemplo, ao trabalho de montagem, à opção por determinado tipo de iluminação, ou a exigência do uso de etiquetas de identificação e sua localização próxima ou distante da obra, enquadram-se entre o que Poinsot (1999, p. 30, tradução nossa) apresenta como “pressupostos e subentendidos” do enunciado expositivo, parte integrante e significativa para a construção de seus sentidos e significados. As práticas de exposição possuem sua própria história e nos últimos anos temos observado um interesse crescente pelo estudo, pesquisa e debate sobre este segmento da produção cultural. A problematização das relações entre os objetos artísticos e o lugar de exposição, postos em cena pelas obras que se configuram como instalações, site-specific e in situ contribuiu de forma significativa para um questionamento da ideologia implícita na proposição de um espaço expositivo neutro ou neutralizável, conforme os termos postos pela noção de cubo branco. A disseminação das grandes exposições internacionais de arte contemporânea, especialmente o formato “bienal”, fez-se acompanhar do protagonismo conferido à figura do curador, como autor e artífice da exposição, deslocando o crítico – no caso, aquele profissional cuja produção se realiza eminentemente através da produção textual, veiculada de modo sistemático através de alguma mídia – para um segundo plano. O aquecimento do mercado de arte, evidenciado não somente pelo crescimento no número de galerias de arte, mas também pela proliferação das feiras internacionais de arte contemporânea, também provocou a busca de maior compreensão sobre a lógica que preside as relações, nem sempre transparentes, que configuram as redes de interesses entre instituições museológicas, academia, crítica, colecionismo corporativo e privado ou a precificação de obras de arte contemporânea e que podem culminar em uma grande exposição de arte internacional. Um cenário assim diversificado, aliado ao desenvolvimento tecnológico, provavelmente colaborou para o desenvolvimento da profissionalização no campo do design de exposições, atividade que ganha cada vez mais espaço junto ao trabalho de curadoria3. Em um contexto assim delineado, tornou-se necessário operar com os aspectos técnicos e simbólicos da exposição não mais como um “dualismo”, isto é, como “dois conjuntos de fenômenos dados independentes” e, sim, como dimensões que se organizam recursivamente, ou seja, como dualidade no sentido proposto por Giddens (2009, p. 30). De modo geral, a proposição de uma exposição de artes visuais – neste momento, não importando as dimensões materiais ou institucionais deste evento, 3 Nos limites do presente texto, opero com uma concepção de museografia como um conjunto de conhecimentos e práticas mais diretamente relacionados ao campo museológico e que extrapola, englobando, as práticas e competências específicas relacionadas aos diversos procedimentos exigidos pela montagem de uma exposição. Para designar o trabalho específico relacionado aos projetos que viabilizam a montagem da exposição, incluindo a distribuição das obras no recinto da galeria e os demais recursos técnicos necessários, tais como mobiliário de apoio, iluminação, programação visual etc., optou-se por empregar em alguns casos o termo “expografia” e, em outros,“design de exposição”, em caráter de certo modo intercambiável, ainda que assinalemos as sutilezas semânticas que especificam a adoção de um e outro.

49


A Exposição como Dispositivo na Arte Contemporânea: conexões entre o técnico e o simbólico

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

50

desde uma pequena mostra individual, a uma coletiva de acervo ou uma bienal internacional -, incluindo o trabalho de curadoria, a expografia e a produção do catálogo, tanto no que concerne ao teor dos textos, quanto ao design gráfico-editorial, segue a máxima vigente no campo das artes, isto é, a ênfase na autoria, em um movimento que vai do autor, seja ele o artista ou o curador, para o público. Observo que “autoria” é entendida aqui como a possibilidade de expressar uma visão de mundo, podendo se apresentar como autoria individual, coletiva ou produção colaborativa. Tenho em conta, ao propor esta definição ampla, que a “autoria” torna-se uma questão problemática no campo artístico contemporâneo e que sua discussão vai além dos limites impostos pelo regime autográfico. Seja como for, um trabalho de arte comporta em algum nível a ideia de autoria, mesmo que de um ponto de vista crítico. A ideologia artística está assentada na pretensão de que o trabalho do artista – isto é, do autor, em sentido amplo – possua elevado valor simbólico. Em termos convencionais, ao público é oferecida a possibilidade de vivenciar ou compartilhar tal experiência, mas não enquanto protagonista da ação artística. Dito de outro modo, o foco está na arte e na produção e, em um grau secundário, na distribuição ou na comunicação. A qualificação de uma exposição de arte como “didática” será considerada uma ofensa grave por parte de seus autores, sejam curadores, artistas, museógrafos ou designers. Em suma, o consumo intelectual da arte exige certo grau de competência e disposição, tanto dos profissionais atuantes no campo, quanto do público, como forma de distinção entre os produtos gerados por uma cultura superior em relação à fruição dos produtos gerados pela indústria do entretenimento. Também como regra dominante – encontraremos exceções, se procurarmos com cuidado - assim como as obras, também as curadorias e expografias das mostras de arte contemporânea têm seus interlocutores ideais, localizados entre o segmento especializado do público e entre os próprios pares. Por outro lado, no cenário atualmente configurado pela introdução do pensamento e das práticas neoliberais operando como princípios norteadores das políticas de gestão e financiamento no campo da cultura, atender às demandas do visitante-cliente tornou-se um fator chave para alcançar um saldo positivo na relação custo-benefício. Como observam os especialistas no tema, uma exposição com alto orçamento, viabilizada através de investimentos privados associados ao marketing, deverá responder com números expressivos em termos de público. Neste contexto, a opção pela lógica do entretenimento, pela sedução através do oferecimento de um “produto-satisfação” – isto é, uma exposição convencional, que apenas reforçaria os parâmetros de gosto já cristalizados, porém com uma roupagem visual ou um discurso pretensamente contemporâneo segundo os parâmetros da indústria cultural – pode ser a opção mais fácil e o caminho mais rápido para um tipo de sucesso que, a rigor, representaria “o enfraquecimento da dimensão política do museu” (MENESES, 1994, p. 24). Seguindo esta linha, Cury (2005) argumenta que o “respeito ao público”, por parte dos gerenciadores e programadores de eventos atuantes nas instituições museológicas deveria residir exatamente na proposição de “produtos-inquietação resultado da interação do visitante com a exposição” e não de meros “produtos-satisfação” (CURY, 2005, p. 67) destinados a funcionar como simples entretenimento segundo uma lógica do espetáculo.


Ana Maria Albani de Carvalho

O conjunto de ações que envolvem a atividade de visitar uma exposição inscreve-se na ampla gama de rotinas institucionalizadas que configuram nossa vida social - para empregar as noções de Giddens (2009) - isto é, tal atividade comporta uma sequência de atitudes corporais e intelectuais específicas. Embora utilizemos de forma recorrente e coloquial a expressão “ver uma exposição” para designar tal situação, é certo que para efetivar esta atividade empregamos nosso corpo no fluxo da ação, agenciando a totalidade de nossos sentidos em uma experiência do movimento corporal durante a qual “fazemos acontecer” a ação – consciente deliberada – de vivenciar uma exposição. Um aspecto aparentemente banal da ação de visitar uma exposição consiste no fato de que tal vivência ocupa uma duração de tempo no fluxo da vida, mas diferentemente de outras manifestações artísticas nas quais o tempo é pré-definido pela linguagem específica da obra – por exemplo, uma peça de teatro, um concerto, um filme -, a duração pode ser estabelecida pelo visitante-espectador. É possível que um determinado visitante, em dada circunstância, efetive uma permanência muito breve no interior de uma mostra de razoáveis proporções e grande número de obras ou, pelo contrário, permaneça durante um longo período de tempo em outra mostra bastante pequena no que concerne à quantidade de obras, às dimensões do recinto destinado a sua montagem ou à complexidade do circuito proposto para a visitação pela curadoria. Nestes termos, uma mostra que apresente um conjunto expressivo de trabalhos em videoarte – um gênero das artes visuais que possui uma duração específica e que exige um tempo determinado para sua apreciação -, impõe um uso do tempo disponível por parte do visitante que é potencialmente distinto da situação configurada por uma mostra que apresente objetos ou imagens fixas, tais como pinturas, fotografias, esculturas ou mesmo instalações. Por fim, a própria determinação do que seja um período curto ou um período longo de tempo, no que concerne a contagem dos minutos ou horas ocupados para visitar e vivenciar uma exposição, é algo que se torna objeto de discussão e que é, em alta dose, uma delimitação de ordem subjetiva. Não existe uma regra que especifique o tempo adequado para a apreciação de uma obra de artes visuais, assim como um poema de poucos versos pode incentivar mais tempo de fruição do que um romance com várias páginas. Mas não é a este tipo de experiência temporal destinado às condutas estéticas que me reporto no momento e, sim, aos aspectos mais factuais do uso do tempo cronológico para realizar uma visita a uma exposição, considerando que não se trata de uma conduta social com tempo de duração demarcado de antemão. Ao visitar uma exposição, não precisamos dedicar o mesmo grau de atenção a todas as obras dispostas no recinto da galeria ou aos outros componentes de ordem museográfica que a constituem. Estes últimos, especialmente as chamadas ferramentas expográficas, são considerados na maioria dos casos e pela maior parte dos visitantes, como “pressupostos”. É o caso, por exemplo, da presença de etiquetas e de sua localização junto a cada obra, das paredes brancas ou mesmo do tipo de iluminação que pode ser empregada tanto como um foco sobre determinado objeto, destacando-o do conjunto e conferindo um certo componente de dramaticidade ou como um “banho de luz”, que, por seu turno, tenderá a uniformizar a percepção das peças

51


A Exposição como Dispositivo na Arte Contemporânea: conexões entre o técnico e o simbólico

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

52

expostas no recinto. Do ponto de vista de um visitante leigo, a altura das vitrines raramente é percebida como um recurso que condiciona a visualização adequada de seu conteúdo a uma determinada estatura da parte do visitante. Tampouco o tipo ou o tamanho da fonte empregado nos textos adesivados nas paredes será considerado como um componente indutor ou dificultador para o processo de leitura. No entanto, do ponto de vista do museógrafo ou do designer de exposição, tais opções, consideradas de ordem técnica, são tomadas de forma intencional. Mais precisamente, o conhecimento que estes especialistas dispõem é empregado deliberadamente para produzir determinado efeito. No caso, um efeito de ordem simbólica. Conceber, planejar e montar uma exposição demanda um trabalho em equipe, para o qual concorrem profissionais com formações e experiências variadas, e cuja realização exigirá proceder a uma série de negociações tendo em vista o resultado final almejado. Do ponto de vista do artista, sua obra é o foco principal e a razão de ser de uma exposição. Segundo este enfoque, as condições de existência da obra – em termos materiais, conceituais, estéticos – e seus modos específicos de espacialização devem ser assumidos como prioridade pela curadoria, materializando-se no design da montagem e sendo registrada, “da maneira adequada” (segundo os parâmetros do artista-autor da obra) pela edição de imagens no catálogo da exposição. Do ponto de vista do curador, por sua vez, o propósito consiste em ressaltar as conexões entre as obras escolhidas, para além da mera soma de individualidades. Enquanto isto, o discurso museológico aponta a “experiência do público” como a chave de ignição para a concepção e montagem de uma exposição. Estes pontos de vista não são excludentes, nem contraditórios, mas equacioná-los de uma forma satisfatória pode significar um embate intenso entre posições nem sempre convergentes em um ambiente de acirrados jogos de poder. Por certo, temos em conta que a própria definição do que venha a ser, em termos concretos, uma “equação satisfatória” entre as proposições dos diferentes agentes que se consideram como autores da exposição – isto é, o artista, o curador, o designer de exposição, o museólogo, o patrocinador, o marchand etc. -, deve ser objeto de discussão e reflexão. Nesta situação (como em muitas outras), o pensamento de Boudieu segue profundamente elucidativo: O produtor do valor da obra de arte não é o artista, mas o campo de produção enquanto universo de crença que produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir a crença no poder criador do artista. Sendo dado que a obra só existe enquanto objeto simbólico dotado de valor se é conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituída como obra de arte por espectadores dotados da disposição e da competência estéticas necessárias para conhecer e reconhecer como tal, a ciência das obras tem por objeto não apenas a produção material da obra, mas também a produção do valor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor da obra (BOURDIEU, 1996, p. 259, grifo do autor).

A exposição e a rede institucional e de agentes que a produz, promove e sustenta é parte constitutiva deste processo de construção da crença no valor da obra. E, de modo concreto, as opções por uma determinada localização, pela vizinhança ou pelo distanciamento entre duas ou mais obras de um mesmo artista ou de artistas de diferentes gerações e posicionamentos


Ana Maria Albani de Carvalho

conceituais e estéticos, chegando à escolha por uma iluminação mais dramática ou pretensamente neutra, são decisões aparentemente técnicas que participam deste discurso e desta construção de valor, sejam ou não percebidas como implícitas, explícitas ou pressupostas. Porém, se o “produtor do valor da obra de arte não é o artista” isolado, o mesmo deve ser aplicado à figura do curador, no que concerne à produção do valor da exposição. Para além dos produtores diretos da obra e da exposição em sua materialidade (o artista, o curador, o designer de exposição, o museólogo etc.), como lembra Bourdieu (1996, p. 259), é necessário levar em conta o conjunto de agentes e instituições artísticas que atuam no processo de formação profissional, reconhecimento e consagração, as instâncias políticas e administrativas que regulam as políticas culturais para o setor, o mercado de arte em seus diversos desdobramentos e, no cenário atual, o papel desempenhado pela mídia, também em seus diferenciados veículos. De uma forma esquemática, uma exposição consiste em um conjunto de obras, resultado de um processo de seleção a partir de determinados critérios estabelecidos pelo artista, pelo curador e/ou pela instituição, unificado por um título e disponibilizada ao público-visitante segundo uma disposição específica em um dado lugar (por sua vez, caracterizado por determinados atributos arquitetônicos e geográficos), por um período de tempo. Embora as relações entre estes diversos fatores – especialmente a distribuição das obras no local de exposição - possa ser simulada antecipadamente através de programas de design gráfico, cada vez mais sofisticados em termos tecnológicos, é somente no efetivo exercício da montagem em espaço real que a exposição toma corpo e a experiência estética, artística, vivencial torna-se possível, inclusive para seus autores, sejam os artistas, os curadores ou os museógrafos. A exposição somente se efetiva com a experiência observacional em contato direto, no espaço de exibição, em um determinado recorte temporal, como decorrência das especificidades determinadas pelos modos de espacialização adotados pelos artistas em suas obras individuais e pelos curadores e designers de exposição, no que concerne ao conjunto. Dito de forma direta: o momento da montagem é crucial e decisivo. Este evento de caráter temporário, destinado a ser vivenciado em termos fenomenológicos, será, por sua vez, editado em um catálogo ou livro de exposição. O catálogo exerce diversas funções, entre elas a de divulgação – do evento em si mesmo, assim como da instituição promotora ou da marca do patrocinador, seja público ou privado – e também a de registro e documentação, do ponto de vista da história e da crítica de arte. Um catálogo também é uma peça de design gráfico e participa da história específica desta disciplina, através das opções técnicas de impressão, do uso de uma determinada fonte gráfica, tipo de papel, variedade de cores, entre outros aspectos. Escolhas de ordem técnica e estética no design gráfico dos catálogos repercutem significativamente no grau de legibilidade dos textos, das informações sobre as obras e, evidentemente, na memória sobre a exposição. Considere-se, por exemplo, o hábito de incluir somente imagens isoladas das obras presentes na exposição, as quais, embora estejam acompanhadas de legendas que informam sobre suas dimensões específicas, são representadas através de fotografias equalizadas em tamanho na página do catálogo, eliminando as diferenças de escala. O desenvolvimento e a popularização das

53


A Exposição como Dispositivo na Arte Contemporânea: conexões entre o técnico e o simbólico

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

54

técnicas de editoração e impressão, aliados ao protagonismo das instalações e outras obras que se configuram a partir de uma disposição específica no recinto de exposição, desempenharam um papel relevante na inclusão de imagens de vistas gerais do recinto de exposição, permitindo uma documentação mais adequada das relações entre as obras, o espaço da galeria e as opções de ordem curatorial e expográficas. Nos últimos anos, inclusive, muitos catálogos impressos se fazem acompanhar de mídias DVD ou links para sítios na internet, a partir dos quais podemos acessar uma visita virtual pelo circuito proposto para a exposição, para além dos limites impostos por seu período de visitação. Isto posto, o catálogo se constitui, a rigor, como uma outra linguagem e modalidade de interpretação da exposição, na medida em que apresentará o texto do curador (geralmente com a argumentação sobre suas intenções norteadoras e os critérios adotados para a seleção de obras e artistas) acrescido das imagens das obras e/ou da exposição montada. As opções adotadas na edição de textos, imagens e no design gráfico do catálogo não devem ser reduzidas ao estatuto de mero registro da exposição. Descrever envolve selecionar e definir, e estes procedimentos, como sabemos, constituem um trabalho de interpretação. Seguindo esta linha de raciocínio, partilho da categorização apresentada por Weschler, quando a autora articula a produção curatorial a uma ação política: Trata-se de pensar a produção curatorial e a produção de textos críticos como ações políticas (entendidas como estratégias de posicionamento dentro do espaço da produção de saberes), dado que são gestos responsáveis pela delimitação de um corpus e um olhar preciso sobre certos aspectos do mundo contemporâneo; constroem representações socioculturais de índole distinta, intervindo na formação de diversas noções identitárias de gênero, nação, região, classe, etc. (segundo os casos), que vão se instalando no imaginário de nossas sociedades. (WESCHLER, 2010, p. 70, grifo do autor)

Neste ponto, retomo as noções propostas por Giddens, (2009) incorporando as distinções que o autor estabelece entre “intenção” e “motivo” e, especialmente, suas considerações sobre as “consequências não premeditadas da ação” 4. Para Giddens (2009), convém ressaltar, a ação “não é uma mera combinação de ‘atos’”, e, sim, um complexo “conjunto de processos incrustados” que envolve “a monitoração reflexiva” por parte do agente, isto é, do perpetrador da ação, “a racionalização e a motivação da ação” (GIDDENS, 2009, p. 4), concepção que parece pertinente quando aplicada em uma reflexão sobre a sutil articulação entre processos cognitivos, intuitivos e prático/ experimentais, que caracterizam a ação de curar e montar uma exposição. Do mesmo modo que não se resume a um ato, “a ação intencional não se compõe de um agregado ou série de intenções, razões e motivos isolados”. O autor prossegue, observando que: 4 Em seu livro “A Constituição da Sociedade”, originalmente publicado em 1984, Giddens (2009) tem objetivos bastante ambiciosos e amplos ao teorizar sobre a ação, a agência, o agente e os desdobramentos conceituais e operacionais de cada uma destas categorias e suas aplicações ao estudo das rotinas da vida social. Não alimento a ilusão de resumir a complexa rede de articulações teóricas e de exemplos oferecidos pelo autor. Pretendo, isto sim, utilizar seu raciocínio para alimentar uma reflexão que considero pertinente e pouco explorada nos debates que atualmente discutem o “poder” ou a função do curador ou de qualquer outro agente isolado.


Ana Maria Albani de Carvalho

Assim, é útil falar da reflexividade como algo assentado na monitoração contínua da ação que os seres humanos exibem, esperando o mesmo dos outros. A monitoração reflexiva da ação depende da racionalização, entendida aqui mais como um processo do que como um estado, e como inerentemente envolvida na competência dos agentes (GIDDENS, 2009, p. 3-4).

Evidentemente, Giddens não ignora que a capacidade tipicamente humana para “elaborar discursivamente” e comunicar as possíveis razões, motivos e intenções para uma determinada ação também inclui mentir sobre elas, assim como o fato de que nem todo o conhecimento é, ou está sempre, acessível à consciência dos atores (GIDDENS, 2009, p. 5). Tendo em conta que a ação de curar e montar uma exposição pode ser definida como uma “conduta motivada” de forma consciente (o que não deve nos levar a confundir com a presunção de que todas as motivações envolvidas nesta ação sejam totalmente transparentes para os seus respectivos perpetradores, pois sempre existirão “zonas obscuras”), o “principal critério de competência” que os agentes esperam dos outros é o de que “os atores”, neste caso, por exemplo, o curador, o artista, o responsável pelo design da exposição, “sejam [...] capazes de explicar a maior parte do que fazem, se indagados” (GIDDENS, 2009, p. 6). Cumpre observar, ainda, que Giddens (2009) estabelece uma diferença entre “motivo” e “intenção”, entendendo que o primeiro refere-se mais ao “potencial para a ação”, as “necessidades”, conscientes ou não plenamente conscientes, que instigam à ação e não exatamente ao modo específico como uma dada ação é executada, este último sim, relativo ao campo da intencionalidade. Embora atores competentes possam quase sempre informar discursivamente sobre suas intenções ao – e razões para – atuar do modo como atuam, podem não fazer necessariamente o mesmo no tocante a seus motivos. A motivação inconsciente é uma característica significativa da conduta humana [...] (GIDDENS, 2009, p. 7).

Esta observação é tanto aplicável às situações mais corriqueiras da vida cotidiana, quanto ao trabalho do artista ou do curador. Neste âmbito coloca-se a distinção entre “o que pode ser dito”, e que Giddens (2009, p. 17) define como “consciência discursiva” e o que pode efetivamente ser feito em determinadas circunstâncias, definido pelo autor como “consciência prática”. Seja como for, especialmente no caso de ações mais complexas – nas quais se enquadram as variadas condutas envolvidas na concepção, curadoria e montagem de uma exposição – não é possível aos agentes envolvidos, apesar de todo planejamento prévio e competência manifesta, controlar as consequências e repercussões de forma integral. Não se trata de uma falha, trata-se de uma propriedade das ações, especialmente as de caráter complexo. Por certo, o grau de poder – se é possível falar nestes termos – de uma instituição ou de uma exposição para modelar as concepções vigentes sobre arte – sobre o que deve ser reconhecido e consagrado como arte de qualidade, como arte plenamente válida – em determinado contexto, dependem de seu potencial de difusão por um lado – vivemos em uma sociedade midiática – e de sua “capacidade para “criar uma diferença”, isto é, para “influenciar” os poderes, os comportamentos, as concepções “manifestados pelos outros”,

55


A Exposição como Dispositivo na Arte Contemporânea: conexões entre o técnico e o simbólico

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

56

afetando o modo como o próprio circuito processa sua rede e encontra força em determinados pontos (agentes, instituições, mercado) através de suas conexões. Quanto maior a amplitude do raio de interferência manifestado por um agente ou instituição, maior seu grau de poder. Decorre daí que as – consideradas por muitos como antigas e ultrapassadas – noções de centros hegemônicos e de periferia, permanecem válidas, ainda que os seus limites, fronteiras e linhas de força se manifestem de forma mais permeável nos dias atuais do que em décadas passadas. Vivenciamos um período em que o território da arte se amplia e suas coordenadas se entrecruzam, tanto no que concerne aos lugares de proveniência dos artistas ou curadores que atuam nas grandes exposições contemporâneas, quanto na geografia dos próprios eventos. Seria ingenuidade, porém, imaginar que tais processos em escala internacional funcionam de forma efetivamente inclusiva, compartilhada e não hierarquizada5. Seja como for, na medida em que um museu ou instituição cultural estabelece critérios – mais ou menos claros, mais ou menos obscuros –, para a formação de seu acervo, para estabelecer suas prioridades em política cultural, para a eleição daqueles que irão compor seus conselhos curatoriais ou consultivos, para buscar parcerias que viabilizem financeiramente os projetos do museu/centro cultural/fundação, para convidar curadores e, estes, para selecionar obras ou artistas para exposições, estarão sendo definidas as molduras e os enquadramentos para o que será apresentado como arte por parte desta mesma instituição. Em outras palavras, se o alcance e o poder de difusão, manifestados por uma instituição museológica em um circuito hegemônico funcionam como enquadramento e moldura, a escassez ou o silêncio também operam na instauração de um lugar para a arte em determinado contexto, ainda que através de uma agenda negativa. Neste ponto da reflexão, penso ser considero mais produtivo considerar a exposição como dispositivo e menos como resultado da agência individualizada de um agente específico, neste caso, o curador. Com isto não estou negando o papel desempenhado pelo curador no cenário atual, suas injunções nos jogos de poder engendrados entre campo da arte e o social, nem o caráter midiático que tal personagem pode assumir. Se voltarmos a concepção de poder expressa por Giddens (2009) como a “capacidade de obter resultados”, pode ser esclarecedor pensar quais os limites e qual a liberdade de ação de cada um dos agentes envolvidos em um projeto de exposição, desde o diretor do museu, passando pelos patrocinadores, pelo curador, pelos artistas, designers de exposição, entre outros profissionais responsáveis pela efetivação do evento. Diversos autores, segundo diferentes enfoques têm relacionado a noção de dispositivo ao campo da arte contemporânea, especialmente no âmbito das pesquisas em artemídia e no segmento que articula arte e tecnologia digital. Para além de sua plasticidade, tenho em conta que o termo está sujeito a variações em sua definição, segundo diferentes autores ou contextos de aplicação e também que uma revisão mais detalhada de sua genealogia ou 5 É importante sinalizar que a definição de poder em Giddens (2009) difere da operada por Foucault, como o próprio cientista social inglês ressalta. Embora Giddens (2009, p. 302) não descarte os componentes coercitivos ou a existência de conflito, o mote central no qual apoia sua noção de poder é a “capacidade de obter resultados” e os recursos que podem ou não ser empregados por um determinado agente em dada situação para atingir os objetivos propostos.


Ana Maria Albani de Carvalho

mesmo de suas delimitações por parte dos autores referenciais – Foucault e Deleuze, por exemplo – extrapolaria os limites propostos para este artigo. Feita esta ressalva, considero que, além da riqueza semântica do termo, ou de seu potencial metafórico, a noção de dispositivo aplicada ao campo das exposições permite ir além da dicotomia técnico-simbólica que permeia parte significativa dos estudos sobre o tema, assim como relativiza a tendência a depositar excessiva ênfase na observação de um único componente do conjunto, seja ele o curador, o artista, a obra, a expografia ou a instituição, entre outros desdobramentos possíveis. Dito de outra forma, considerar a exposição a partir de uma concepção de dispositivo representa uma tentativa de compreendê-la enquanto fenômeno complexo, como “um conjunto multilinear”, cujas linhas estabelecem trajetórias em múltiplas direções, tanto se aproximam, quanto se afastam, configurando um circuito em rede (DELEUZE, 1989, p. 185). Para além do olhar que tende a separar os aspectos mais “técnicos” – como poderiam ser enquadrados aqueles relativos à montagem ou mesmo determinadas opções de ordem expográfica – de outros assumidos como mais “autorais” ou “artísticos”, tais como a curadoria ou obras de caráter in situ e site specific, falar da exposição como dispositivo “permite fazer coexistir, no centro da argumentação, entidades tradicionalmente consideradas como inconciliáveis” (PETERS; CHARLIER, 1999, p. 16). Segundo um ponto de vista interacionista, a exposição como dispositivo deve ser considerada tanto no que concerne aos aspectos de produção, quanto de recepção. Ou melhor, um momento e outro, o da produção e o da recepção, enquanto linhas constitutivas de uma rede, representam a passagem para um entendimento da exposição como “experiência ou como experimentação” de um saber (PETERS; CHARLIER, 1999, p. 18), seja do ponto de vista do curador, do museógrafo, do público ou, mesmo, da instituição. Outro ponto a ressaltar, é apresentado por Agamben em sua leitura da concepção de dispositivo em Foucault. Para o filósofo italiano “o dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre em uma relação de poder” (AGAMBEN, 2009, p. 10)6. Mais uma vez, tal percepção pode ser considerada pertinente – tendo em vista as especificidades de cada posição – tanto no que concerne às opções de ordem mais aparentemente técnicas, como à opção pelo teor dos textos presentes no recinto de exposição, sua extensão, localização e mesmo o tamanho das fontes em que será impresso, às determinações institucionais para a escolha e convite a um determinado curador, aos limites de verba para financiamento das ações e das equipes do setor educativo ou às opções do público por um determinado circuito no recinto de exposição. Não ignoro a máxima metodológica de que uma categoria suficientemente abrangente para abarcar tudo muito provavelmente não possa explicar, efetivamente, nada. Para além deste possível prejuízo, volto a enfatizar o aspecto produtivo percebido na concepção de exposição como dispositivo, qual seja o de compreendê-la como um todo, resultado do cruzamento de linhas de força – as quais, como em todo dispositivo, não são necessariamente evidentes ou igualmente evidenciadas – entre diversos agentes, agenciamentos, instituições e público, postos em tensão/ação. 6 Agamben opera a noção de poder mais próximo aos termos de Foucault, ressaltando os aspectos de dominação e conflito.

57


A Exposição como Dispositivo na Arte Contemporânea: conexões entre o técnico e o simbólico

Referências

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

58

AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? Tradução Nilcéia Valdati. Outra Travessia, n. 5, p. 9-16, 2005. BLANCO, Ángela García. La exposioción: un medio de comunicación. Madrid: Akal, 1999. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. CURY, Marília Xavier. Exposição, montagem e avaliação. São Paulo:Annablume, 2005. DELEUZE, Gilles. Qu’est-ce qu’un dispositive? In: MICHEL Foucault Philosophe. Paris: Seuil, 1989. (Annales rencontre internationale). GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. Tradução Álvaro Cabral. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. GUASCH,Anna Maria. Los manifiestos del arte posmoderno. Madrid:Akal, 2000. MENESES, Ulpiano Bezerra. Do teatro da memória ao laboratório da história: a exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista, v. 2, p. 9-42, 1994. PEETERS, Hugues; CHARLIER, Philippe. Contribuitions à une théorie du dispositif. Hermés. Le Dispositif: entre usage et concept, n. 25, p. 15-23, 1999. POINSOT, Jean-Marc. Quand l’ oeuvre a lieu: l’ art exposé et ses récits autorisés. Genève: Mamco, 1999. WESCHLER, Diana Beatriz. Relatos curatoriais, relatos políticos. In: JAREMTCHUCK, D.; RUFINONI, P.Arte e política: situações. São Paulo:Alameda, 2010. Artigo recebido em junho de 2012. Aprovado em agosto de 2012


NOVAS TECNOLOGIAS PARA... NOVAS (?) EXPOGRAFIAS Maria Júlia Estefânia Chelini1* Museu de Geociências da UnB New technologies for... new (?) expographies RESUMO: Os museus têm enfrentado, nos últimos anos, grandes desafios para sobreviver em um mundo onde as fontes de informação e as possibilidades de lazer são inúmeras. E é geralmente por isso, para atrair o público, em especial o público jovem, que os museus têm buscado utilizar novas ferramentas expográficas, que tornem a mostra mais atrativa e motivadora. Dentre estas estratégias merecem destaque as chamadas novas tecnologias. O presente texto tem por objetivo discutir, através de exemplos positivos e negativos, o uso das tecnologias como ferramenta expográfica, alertando para o uso tentador, e muitas vezes irrefletido, que se faz destas novidades.

ABSTRACT: Museums have faced, in recent years, challenges to survive in a word with countless information sources and recreation possibilities. As a consequence, in order to attract the public, specially young audience, museums are trying new expographic tools that make their exhibition more appealing and motivating. New technologies are one of these tools. The present text will discuss, giving positive and negative examples, the use of technologies as expographic tools, drawing attention to its tempting and sometimes thoughtless use.

PALAVRAS-CHAVE: Museu, Expografia, Novas tecnologias, Interação, Público visitante.

KEY-WORDS: Museum, Expography, New technologies, Interaction, Visitors.

Bióloga. Desenvolveu doutorado, pela Universidade de São Paulo, analisando a divulgação científica através de exposições em Museus de Ciências. Concomitantemente, participou de projetos de desenvolvimento de materiais para o Ensino Formal e Não-Formal na Faculdade de Educação e Instituto de Biociências USP. Atuou como Analista de Comunicação no Museu Paulista da USP (Museu do Ipiranga), onde ocupou cargo de Diretora Técnica da Divisão de Difusão Cultural. Atualmente, desenvolve ações como Extensionista Colaboradora junto ao Museu de Geociências da UnB, ocupando Coordenação responsável pelos projetos de extensão dentre os quais a nova exposição de longa duração; e-mail: jchelini@unb.br *


Novas tecnologias para... novas (?) expografias

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

60

Afirmações como “o mundo hoje é tecnológico” e “não se pode mais viver sem tecnologia” são muito usuais nos dias atuais. O termo tecnologia tem sido associado à modernidade, à inovação e agrega um valor positivo às coisas em geral, quaisquer que sejam essas coisas... Mas este texto não tem por objetivo fazer uma apologia ao tradicional e renegar as ditas “novas tecnologias”. Ao contrário, o objetivo dos apontamentos aqui apresentados é discutir o uso das tecnologias como ferramenta expográfica, alertando para o uso tentador, e muitas vezes irrefletido, que se faz destas novidades tecnológicas. Antes de ir mais adiante, alguns pontos precisam ser esclarecidos: 1. O que é tecnologia? e 2. O que são as chamadas “novas tecnologias”? O termo “tecnologia” vem da associação dos termos gregos “tekne” (arte, técnica ou ofício) e “logos” (conjunto de saberes). Assim, tecnologia pode ser definida como o conjunto de instrumentos, métodos e técnicas que permitem o aproveitamento prático do conhecimento científico. Ao construirmos uma máquina do tempo, pregarmos um botão, pintarmos uma parede ou cortarmos o cabelo, fazemos uso de tecnologia. Como se vê, uma tecnologia não é necessariamente uma inovação. A palavra tem sido utilizada como sinônimo de “tecnologias da informação”, que são aquelas que permitem a criação, administração e difusão da informação através de dispositivos e equipamentos de acesso, operação e armazenamento de dados. A tecnologia da informação inclui, por exemplo, tudo o que está relacionado com os computadores. E nesse sentido as “novas tecnologias” poderiam ser definidas como as novidades relacionadas ao campo da tecnologia da informação: novos games, novos aparelhos celulares, novo tipo de televisão etc. Do ponto de vista museográfico, as “novas tecnologias”2 estão muitas vezes associadas a possibilidades de criação de interação visitante-exposição. E a interação é tida, em especial nos museus de ciência, como elemento fundamental para efetividade da comunicação da exposição. Ao analisar os visitantes espontâneos dos museus, Screven (1993, p. 11) indica que a maioria destes tem uma forte orientação visual/sensorial, ou seja, seu interesse se volta à exploração visual do ambiente museal, principalmente dos objetos e outros elementos de encenação. O autor definiu ainda que, em uma escala de atratividade, os elementos de uma exposição que despertariam prioritariamente o interesse dos visitantes são os organismos vivos, seguidos dos objetos que se movem ou que convidam o visitante a utilizar seus sentidos (tocar, manipular), e as novidades (elementos recentes, únicos ou que formam conjuntos inusitados). Nesta escala, os elementos não prioritários compreenderiam os painéis, murais passivos bidimensionais, e os textos tradicionais (SCREVEN, 1993, p. 11). O fato é que, atualmente, ao circular por uma exposição de um museu, o visitante não busca mais uma experiência puramente contemplativa. Ele realmente espera, como mencionado por Hughes (2010, p. 154), encontrar um botão a apertar, um controle a ser utilizado, alguma forma de participação ou interação com a exposição. E a interação que foi, por muitos e muitos anos, quase que uma exclusividade dos museus de ciências é, atualmente, considerada como importante ferramenta de comunicação para qualquer tipologia de exposição. 1 Neste texto utilizaremos as palavras “tecnologia” e “tecnológico” para nos referir às “novas tecnologias”.


Maria Júlia Estefânia Chelini

As exposições são, como já afirmava Cury (2005, p. 35), a principal ou mais específica forma de comunicação de um museu. E, para Martins (2005, p. 10), o objetivo de toda exposição é o de criar as condições para que o público tenha “uma experiência única” de apreciação. Neste sentido, Scheiner (2003) indica que entender a exposição como espaço relacional significa, antes de tudo, buscar percebê-la como instância de impregnação dos sentidos. Mas como provocar esta impregnação? Já há mais de 30 anos, Alexander (1979) apontava favoravelmente a exploração das diferentes percepções sensoriais, e não apenas da visão em uma exposição. Isto porque estímulos sensoriais podem proporcionar reações emocionais, e estas, ao trabalharem em conjunto com o racional, levariam a uma melhor compreensão da exposição.Assim, a ampliação do leque de sentidos estimulados poderia ser um catalisador de todo o processo. Wagensberg (2000, p. 16) também acredita que as exposições devem estimular os visitantes, e para ele estes estímulos se dão através da interatividade. Colinvaux (2005, p. 81), que buscou analisar, a partir da perspectiva do visitante, a experiência vivida no espaço-tempo de um museu por aqueles que o visitam, indica que a interatividade parece estar no cerne da experiência museal. Ainda segundo a autora, a interatividade nos museus pode ocorrer entre sujeitos, entre sujeitos e objetos, e também entre sujeitos e contextos, onde o museu é contexto para a ação do sujeito. Em relação aos museus, McLean (1993, p. 92) destaca que o termo “interativo” tem sido utilizado como sinônimo de “participativo” ou “manipulativo” o que pode gerar confusões. A autora lembra que nem toda manipulação é uma interação e que a interação acontece quando o visitante age sobre a exposição e esta faz algo que age sobre o visitante. Assim, o termo “participativo” define a relação do visitante com a exposição enquanto o termo “interativo” enfatiza a capacidade da exposição de responder a estímulos do visitante (MCLEAN, 1993, p. 93). O termo “interação” também costuma nos remeter a algum grau de atividade física, mas Asensio e Pol (1996, p. 18) expõem que, a seu ver, a interatividade deveria ter uma base cognitiva, centrada na análise do processo mental e no produto resultante. Os autores citam como exemplo que a mente de um especialista, frente à obra de Frei Angélico, está desenvolvendo uma interatividade de alto nível, embora seu corpo permaneça estático. Neste sentido,Wagensberg (2000, p. 16) defende que uma exposição pode apresentar três níveis de interatividade: hands on (manual), minds on (mental) e heart on (cultural). No primeiro nível, a interatividade manual (hands on), classificada pelo autor como conveniente, o visitante manipula modelos, objetos ou montagens que lhe permitam entender o funcionamento e o desenrolar de processos e fenômenos. É a ideia de que o visitante experimenta o método científico, o visitante “é” o cientista. Por sua vez, a interatividade cultural (heart on), definida como recomendável, pode ser promovida quando uma exposição tenta priorizar as identidades presentes no entorno do museu, promovendo a identificação do visitante da comunidade local com o acervo e um despertar para uma nova cultura, quando o visitante é de outras localidades. Mas é a interatividade mental (minds on) que deve levar a uma compreensão científica, permitindo distinguir o essencial do acessório, ver o que há

61


Novas tecnologias para... novas (?) expografias

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

62

de comum entre o que é aparentemente distinto, estabelecer relações entre o que se vê no museu e no cotidiano. E é por isso que Wagensberg (2000, p. 16) a classifica de imprescindível. Embora os diferentes níveis de interatividade estejam cada vez mais presentes nas exposições, os museus têm enfrentado, nos últimos anos, grandes desafios para sobreviver em um mundo onde as fontes de informação e as possibilidades de lazer são inúmeras. Uma exposição tem, nos dias de hoje, de competir com muitas outras opções que se apresentam ao potencial visitante. E é geralmente por isso, para atrair o público, em especial o público jovem, que os museus têm buscado fazer uso de novas ferramentas expográficas, que tornem a mostra mais atrativa e motivadora. Dentre estas estratégias merecem destaque as chamadas novas tecnologias. Sartin (2010, p. 262) comenta que a tecnologia, nos dias correntes, facilita muito a comunicação com o público em geral, especialmente os segmentos jovens. O que não significa, no entanto, que a interatividade promovida por aparatos não computadorizados não seja, como mencionado por Hughes (2010, p. 154), efetiva. E, embora a interatividade hoje envolva, em muitos casos, o uso de computadores, Sartin (2010, p. 262) ressalta que tal tecnologia destaca os conteúdos apresentados pelo museu quando utilizada com responsabilidade e pertinência, fugindo dos eventuais recursos fáceis de pirotecnia expositiva. Em trabalho de 2003, Scheiner (2003, p. 2) já comentava: Quero dizer que o controle excessivo e absoluto da técnica pode ajudar a criar magníficos espetáculos visuais ou multimídia, que mobilizem os sentidos do visitante no plano cognitivo (curiosidade) ou motor (movimento), mas que dificilmente poderão gerar instâncias de verdadeira mobilização afetiva. Pois é no plano afetivo que se elabora a comunicação: é no afeto que a mente e o corpo se mobilizam em conjunto, abrindo os espaços do mental para novos saberes, novas visões de mundo, novas experiências, novas possibilidades de percepção.

O mundo está mudado, ninguém duvida disso. As ferramentas à disposição para construção da expografia são muitas e a evolução tecnológica nos mais diferentes campos permitem, a cada dia, fazer uso de novas mídias. A inserção das tecnologias no espaço expositivo já não é apenas conveniente, mas inevitável. Oliveira (2012, p. 185) destaca, neste sentido, que “mais que lamentar as trocas nas mídias, os museólogos, técnicos e profissionais de museus devem examinar de que maneira isso pode afetar na comunicação que o museu proporciona”. Já há muitos anos discute-se, mesmo para as mais tradicionais exposições, a adequação de determinadas mídias ou suportes a determinados propósitos. Agora a mesma questão deve ser aplicada às novas tecnologias: que mídias servem a que mensagem? Neste sentido, é importante também a reflexão sobre o impacto de determinadas tecnologias: não seriam elas, por vezes, mais atraentes por si só que a mensagem que estão encarregadas de passar? Não estariam ofuscando, por seu apelo inovador, o acervo que se propõem a destacar? Não é raro ouvir relatos acerca do deslumbre de visitantes frente a novas tecnologias utilizadas em certas exposições. As conversas destes se portam muitas vezes prioritariamente sobre o funcionamento tecnológico do aparato; o acervo ou conceito discutido pela exposição ficando em terceiro ou quarto plano... Se


Maria Júlia Estefânia Chelini

as exposições são um espaço de vivência, que vivências estão sendo proporcionadas com estes aparatos? Múltiplos são os fatores (históricos, tecnológicos, culturais e até sociológicos) que poderiam entrar nesta discussão, a exemplo da possibilidade de inclusão tecnológica proporcionada por tais equipamentos. Mas, do ponto de vista puramente expográfico e comunicativo, a busca, fica claro, deve ser por um equilíbrio em que as novas tecnologias realmente auxiliem o museu em sua comunicação, ou seja, que as novas tecnologias sirvam ao museu, e não o contrário. Assim, no processo de montagem de uma nova exposição devem ser levadas em conta questões como: o que esta mídia ou tecnologia está possibilitando expograficamente? Que interação ela está propondo? Que experiência poderá proporcionar? Ela permite trazer para o museu algo que não seria possível mostrar de outra forma? Ou apenas se repetirá com esta ferramenta um modelo tradicional? As tecnologias têm sido associadas às exposições essencialmente de duas formas: para aporte de informações complementares ou como parte integrante da exposição.Valinho e Franco (2005, p. 1626) identificam quatro formas de utilização das novas tecnologias que podem favorecer o envolvimento dos visitantes com o espaço museológico que denominam de: Reconstrução do passado; Substituição do real ausente; Contadora de Histórias e Guia do espaço museológico. A primeira, Reconstrução do passado, permitiria a contextualização, virtualmente, de objetos reais numa simulação do seu espaço e tempo originais. Como exemplo mencionam o uso de tecnologia geradora de Realidade Aumentada (RA)3 para exemplificar o uso de um ornamento corporal original. Valinho e Franco (2005, p. 1626) destacam, no entanto, que a utilização de dispositivos de RA não deveria substituir a peça original ou estar continuadamente sobreposto à mesma e que uma análise detalhada do contexto de uso e da interação proposta deve ser feita antes de optar-se por esta estratégia. Embora faça uso de tecnologias semelhantes à da tipologia anterior, os autores definiram separadamente esta segunda categoria, Substituição do real ausente, em virtude de seu objetivo. Neste caso, a tecnologia torna-se o objeto exposto ao substituir, de alguma forma, objetos reais. Os autores não discutem, mas entende-se que esta opção pela substituição pode se dar por variados motivos, como a não existência no acervo de determinada peça relevante para o contexto da exposição, ou ainda por motivos vinculados à conservação (a extrema fragilidade de determinada peça poderia inviabilizar uma interação que a RA pode proporcionar). Muitas exposições contam histórias, histórias de objetos, de pessoas, de eventos, de processos. Se já tradicionalmente se faz uso de diversas estratégias midiáticas para contar estas histórias, a tecnologia só vem aumentar estas possibilidades. Daí a definição, pelos autores (VALINHO; FRANCO, 2005, p. 1627), da terceira forma de utilização da tecnologia, a Contadora de Histórias que, ao criar instalações interativas, recorrem a sistemas de som direcional e detecção de movimento ou proximidade para comunicar com os visitantes. 2 Seguiremos neste texto a definição de Valinho e Franco (2005, p. 1626) que entende a realidade aumentada como “todo o tipo de sistema tecnológico que permite a adição de informação à realidade; ou seja, integra elementos virtuais no espaço real, em tempo real”.

63


Novas tecnologias para... novas (?) expografias

Para os autores, este tipo de sistema implica em uma identificação cuidadosa do público-alvo e consequente adequação ao tipo de conteúdo veiculado.

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

64

Enquanto as duas primeiras categorias referem-se essencialmente ao uso da tecnologia como parte integrante da exposição, a terceira pode ser utilizada de ambas as formas, parte integrante ou ponto de informação complementar. É o caso, por exemplo, dos totens informativos que disponibilizam informações na forma de hipertextos ou vídeos. Já a quarta categoria definida pelos autores remete ao uso de tecnologia predominantemente para aporte de informações complementares, é o Guia do espaço museológico. Nesta categoria, segundo Valinho e Franco (2005, p. 1627), enquadram-se os dispositivos de audioguia que proporcionam aos seus utilizadores uma visita autônoma pelo espaço. Aos já tradicionais equipamentos de audioguia somam-se agora equipamentos que, além de som, oferecem ao visitante possibilidade de leitura e/ou visualização de imagens e vídeos. Aliados a sistemas de base de dados, estes equipamentos permitem a seus usuários, por aproximação do objeto, acessar informações adicionais sobre determinadas peças em exposição. A partir destas diferentes formas de utilização das novas tecnologias definidas por Valinho e Franco (2005, p. 1626), vamos analisar algumas das principais questões apontadas em pesquisas publicadas de avaliação de aparatos interativos utilizados em exposição e que façam uso de novas tecnologias. Aos tratarmos de dispositivos como totens e audioguias, uma questão que tem sido levantada é a do isolamento dos visitantes que fazem uso destes equipamentos. Já é de conhecimento geral que as interações sociais no espaço expositivo são de grande valia para a riqueza da experiência do visitante, incluindo o processo de aprendizagem que esta pode acarretar. Vom Lehn, Heath e Hindmarsh (2010, p. 5), destacam que ao se planejar uma exposição, não se pode deixar de levar em conta que as pessoas, geralmente, analisam e compreendem uma exposição através da interação social, não só dentro do grupo que as acompanha, mas também em função de outros visitantes que porventura estejam no mesmo espaço. Os autores (VOM LEHN; HEATH; HINDMARSH, 2010, p. 2) comentam que, no entanto, em muitos museus, não só os quiosques de informação, mas até alguns outros tipos de aparatos interativos, fazem uso de interfaces reduzidas, como os monitores de computadores para uso individual, o que dificulta a exploração coletiva do equipamento. Alguns museus, como o Berlin Museum für Naturkunde (HORNECKER, 2008), têm tentado contornar este problema com o uso de mesas interativas. Essas superfícies, de maior dimensão, geralmente permitem a exploração conjunta do dispositivo, por diversos visitantes simultaneamente, evitando assim as filas que se formam por vezes em quiosques individuais. Estes aparatos, segundo Hornecker (2008, p. 126) também permitem que alguns visitantes possam apenas observar a interação executada por outros, usufruindo assim dos resultados obtidos ou textos gerados. No entanto, a avaliação conduzida revelou que embora cerca de metade dos visitantes interaja com a mesa e mais 25% observe as interações, só uma pequena parcela do público (cerca de 17%) despende mais tempo no aparato (mais de apenas um ou dois toques) (HORNECKER, 2008, p. 126). A sensação de isolamento do visitante também pode ser observada em situações de uso de audioguias. A observação de alguns grupos de visitantes mostrou a vom Lehn, Heath e Hindmarsh (2010, p. 3) tentativas, por parte de


Maria Júlia Estefânia Chelini

visitantes em grupo, de coordenar a exploração da exposição, seja por divisão de tarefas (um ouve e relata aos outros que observam o objeto e comentam o relato) ou sincronização dos dispositivos (diversos fones para 1 dispositivo ou disparo da informação simultaneamente nos diferentes dispositivos do grupo). Apesar destas tentativas, o que se tem, em geral, é que, para além de tornar a visita à exposição uma experiência individual, estes dispositivos podem torná-la uma experiência solitária. Ainda com relação à questão das informações complementares, é interessante a pesquisa, realizada no United States Holocaust Memorial Museum e apresentada Swiader (2005), que avaliou a exposição permanente do museu e buscou analisar como a tecnologia poderia ser utilizada na exposição visando estender a experiência do visitante para além muros. Na avaliação, ao serem perguntados sobre o desejo de ter acesso a mais informações, 31% dos visitantes responderam que gostariam de receber mais informações durante sua visita enquanto 61% manifestaram-se a favor da possibilidade de ter acesso a mais informação, mas em outro momento (SWIADER, 2005, p. 3). Assim, o autor defende que os museus deveriam fazer uso das tecnologias não para fornecer cada vez mais informações dentro de seu espaço físico, mas para gerar novos vínculos com o público visitante, em momento posterior à visita. Uma estratégia que apresenta é o uso pelo visitante de um cartão que permitiria a coleta por radio frequência, ao longo da visita, de informações sobre a mostra e/ou pontos específicos desta. Posteriormente, o visitante poderia, pela internet, ter acesso a uma página pessoal onde as informações coletadas no museu apareceriam de maneira organizada, por exemplo, em função das linhas temáticas da instituição. A partir deste ponto, diversas estratégias poderiam ainda ser desenvolvidas como a criação de grupos online de visitantes com interesse em comum (SWIADER, 2005, p. 3). O museu poderia, inclusive, a partir desta tecnologia, mapear os pontos da exposição que despertam maior interesse. Neste caso, a tecnologia não estaria a serviço do museu apenas no momento da visita, mas permitiria reforçar os laços do museu com o visitante fora de seus muros. Este tipo de dispositivo foi avaliado por Hornecker e Stifter (2006a) em exposição de longa duração sobre a história da mídia apresentada pelo Austrian Technical Museum Vienna. O visitante podia adquirir um cartão de memória e coletar dados disponíveis (informações complementares na forma de fotos, vídeos ou textos) ou gerados pelos próprios visitantes (vídeos, fotos, resultados de jogos) durante o seu percurso. Posteriormente, via internet, o visitante podia acessar estes conteúdos, além de editar seu perfil, receber dicas sobre novos pontos da mesma exposição a visitar que sejam complementares aos temas que registrou, trocar mensagens com outros usuários do cartão. Um ponto interessante que a avaliação revelou foi que visitantes com cartão tendem a ficar mais tempo no espaço expositivo do que os que não o possuem. Também identificou-se o uso do cartão em múltiplas visitas por cerca de 14% dos visitantes, o que reforçaria a ideia de potencial gerador de vínculo visitante-museu. Por outro lado, apenas cerca de 41% dos usuários do cartão realmente acessaram seu conteúdo exclusivo online, mas, destes, 2/3 acessaram mais de uma vez. Hornecker e Stifter (2006a, p. 103) também destacaram o uso do cartão como souvenir, uma vez que este permitia o registro de fotografias e vídeos do próprio visitante em alguns pontos da exposição

65


Novas tecnologias para... novas (?) expografias

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

66

(25% dos dados registrados, em oposição a 8% com informações complementares). Embora diversos problemas no uso propriamente dito tenham sido detectados, Hornecker e Stifter (2006a, p. 104) concluem que o conceito do cartão de memória é aprovado pelos visitantes em geral que, inclusive, o entendem como uma ferramenta de uso compartilhado pelo grupo, aumentando as possibilidades de interação social. Como já mencionado, além do Guia do espaço museológico, a forma Contadora de Histórias definida por Valinho e Franco (2005, p. 1627) também pode ser empregada como estratégia de aporte de informações complementares. No entanto pode ainda apresentar-se como parte integral da exposição, caso em que tende a fazer uso não só de hipertextos, mas também de áudios e vídeos. Estes três formatos, como já apontado por Chelini e Lopes (2010, p. 373), são considerados suportes alternativos aos tradicionais pôsteres e etiquetas para apresentação de informações textuais. É crítica comum às exposições, em especial às de cunho científico, a grande quantidade e extensão dos textos impressos. Quanto às outras modalidades textuais (hipertextos, vídeos e áudios), se sua quantidade ou extensão são criticadas, essa critica não é tão veemente quanto aquela feita aos textos tradicionais. Existem na literatura numerosos trabalhos discutindo e recomendando tamanhos máximos ideais para um pôster tradicional; não se discutem tanto os hipertextos. Algumas exposições atuais eliminaram totalmente de seus espaços os textos impressos, o que não significa que o texto não continue muito presente na exposição em terminais de hipertextos e audiovisuais. Não seria a leitura em terminais de hipertextos tão cansativa quanto em textos impressos? Por se tratar de uma ferramenta diferente, mais “atual”, muito conteúdo tem sido gerado para esse suporte. Mas onde estará agora a preocupação com textos longos? É fundamental, sem dúvida, que os museus se atualizem e façam uso de novas tecnologias. No entanto, é também fundamental que seus limites sejam mapeados para que erros, já tão discutidos no passado, não sejam reproduzidos sob nova roupagem. A tecnologia Contadora de história também pode ser considerada aquela utilizada em múltiplos aparatos interativos que demonstram um fenômeno, explicam um processo ou a forma de funcionamento de algum equipamento ou tecnologia, relatam a origem de alguma espécie, obra, lugar ou cultura. O design de aparatos interativos não deve ser considerado de fácil execução, em especial se envolve o uso de recursos computadorizados. A literatura tem destacado a importância de que os aparatos interativos sejam simples, imediatos e intuitivos, ou seja, o visitante deve conseguir, rapidamente, ter uma ideia de com que está interagindo, o que aquele dispositivo faz e como funciona (HUGHES, 2010, p. 154;VALINHO; FRANCO, 2005, p. 1633). Isso por que visitantes têm um tempo e paciência limitados para explorar o museu. Neste sentido, Hornecker e Stifter (2006b, p. 138), destacam em sua pesquisa que em um dos dispositivos apresentados na exposição do Austrian Technical Museum Vienna que avaliaram, os visitantes demoravam pelo menos dois minutos para entender seu funcionamento. O que resultava é que a maioria desistia rapidamente de se engajar naquela interação. O mesmo ocorreu no Berlin Museum für Naturkunde, onde os visitantes apontaram uma mesa interativa em avaliação como um aparato tecnológico de efeito ou um brinquedo para crianças confuso; divertido talvez, mas cujos objetivos não


Maria Júlia Estefânia Chelini

eram muito claros (HORNECKER, 2008, p. 127). Assim, Hornecker e Stifter (2006b, p. 139) lembram que em um espaço como uma exposição, dividido por diversos dispositivos, em que o tempo é restrito e que muito depende do engajamento voluntário do visitante, a rapidez de percepção do aparato e da recepção de uma resposta são vitais para garantia da interação: os 10 primeiros segundos são fundamentais. Hughes (2010, p. 155) acrescenta ainda que, se a proposta da interatividade se estende para além deste primeiro contato, novos desafios e respostas rápidas deveriam ser propostos aos visitantes para mantê-los estimulados. Neste sentido, Hughes (2010. p. 156) lembra ainda que todas as interatividades baseiam-se em ideias preconcebidas de como as coisas são controladas e como se interage com elas. Assim, a introdução de uma nova interface na exposição deveria despertar no visitante memórias de outras experiências de forma que rapidamente ele entenda como interagir com o dispositivo. No caso de interatividades que envolvem sistemas computadorizados, são inúmeras as possibilidades de interação que podem ser propostas o que torna seu design ainda mais desafiador. Já as interatividades físicas tendem a ser, em geral, mais intuitivas uma vez que uma alavanca sempre será uma alavanca, um botão será um botão, e assim por diante. Aqui, Hornecker e Stifter (2006b, p. 139) apontam que, no caso do museu de Viena, os dispositivos interativos de maior sucesso, com qualquer parcela, tanto em idade quanto interesse, do público visitante, foram aqueles que mesclavam objetos reais com sistemas computadorizados. Um exemplo citado pelos autores era um dispositivo chamado Ábaco, em que um ábaco real podia ser manipulado pelos visitantes e cujos resultados das contas eram apresentados em um monitor que, por sua vez, oferecia novos desafios. Segundo os autores, os visitantes mais novos eram desta forma atraídos pelo aspecto “moderno” do aparato e levados a manipular objetos históricos enquanto os mais velhos, mais resistentes aos aparatos computadorizados quando isolados, viam-se atraídos pelo dispositivo por apresentar um objeto real de interesse histórico e eram levados a interagir com um dispositivo eletrônico (HORNECKER; STIFTER, 2006b, p. 139). Outro aspecto levantado por Screven (1993, p. 12) é que, se a possibilidade de interagir pode, como já mencionado, suscitar a atenção do visitante, ela pode também distrair o visitante, fazendo-o inclusive perder a linha de raciocínio da exposição, se não for cuidadosamente integrada aos objetivos educativos. O autor chama a atenção para o fato de que, muitas vezes, o visitante pode explorar um elemento museográfico interativo sem, no entanto, refletir sobre o que está fazendo. Cita, por exemplo, que divertimento e participação, muitas vezes observados nas exposições de divulgação científica, não significam que a educação científica esteja realmente acontecendo, podendo ser simples reflexo da excitação provocada pela liberdade de exploração, e defende que uma boa opção seria subordinar elementos divertidos à atenção e ao aprendizado, uma vez que, para ele, no museu, a diversão deve ser um meio para se atingir um objetivo, o aprendizado, por exemplo, e não o objetivo em si (SCREVEN, 1993, p. 12). Já no que tange a sua aparência,Valinho e Franco (2005, p. 1633) comentam que, para além de ser bem desenhado, de forma a garantir uma imediata comunicação com o visitante, o sistema deveria ser suficientemente invisível para garantir a sua integração no espaço expositivo.

67


Novas tecnologias para... novas (?) expografias

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

68

Em diversos museus é possível observar o uso de tecnologias de forma a criar uma ambientação para imersão do visitante no assunto tratado, o que remete à Reconstrução do passado, como definida por Valinho e Franco (2005, p. 1626). Hughes (2010, p. 163) destaca que submergir o visitante com imagens, sons, cheiros e texturas, de certa forma isola-o e força sua atenção, obrigando-o a se engajar diretamente com a exposição e seus temas. Por outro lado Scheiner (2003) adverte que “o excesso de impacto pode ‘anestesiar’ os sentidos, projetando o indivíduo para fora de si mesmo e diminuindo o potencial de percepção”. Em 1989, Arpin já advertia quanto ao uso tentador do que ele chamou de uma gadget museology, ou seja, exposições que utilizam um excesso de dispositivos mecânicos ou tecnológicos e assim se tornam verdadeiro mostruário de efeitos especiais. A seu ver, todas essas ferramentas ou todas essas formas de apresentação favorecem a contextualização, cativam o visitante e criam uma atmosfera agradável, o que, sem dúvida, faz parte da mensagem do museu, mas que não poderiam ser “a mensagem” (ARPIN, 1989, p. 67). Por outro lado, a Substituição do real ausente (VALINHO; FRANCO, 2005, p. 1626) não busca criar ambientes que impactem o visitante, mas exploram a tecnologia para apresentar algo que provavelmente seria inatingível ao público visitante de outra forma. O objeto real tem ferrenhos defensores como Wagensberg (2000, 2005), mas não há dúvidas de que reflexões se impõem acerca da coexistência e até sobrevivência destes objetos tradicionais frente às novas tecnologias. Para Wagensberg (2000, p. 16) textos, imagens, jogos, simulações, cenografias e modelos, devem ser considerados acessórios e complementares, mas a exposição deve basear-se no real. Wagensberg (2005, p. 310) salienta ainda que a ciência procura entender a realidade e que esta é composta por objetos e fenômenos; sendo os últimos entendidos, aqui, como as mudanças experimentadas por objetos. Isto significa que a realidade, seja na forma de objeto ou fenômeno, é um fator insubstituível nos museus de ciência, um “must-have”. Wagensberg (2005, p. 310) vai além, considerando que o museu é realidade concentrada. Wagensberg (2005, p. 314) complementa ainda que as exposições sem uma parcela mínima de realidade são reduzidas a livros que se leem de pé ou a cinemas multiplex em uma só sala. Acrescenta que uma exposição pode ser considerada fraca se pode ser substituída, com vantagem e sem sair de casa, por um bom livro, um bom vídeo, uma boa conexão de internet: um visitante pode ir vê-la, mas, provavelmente, preferirá não ir. Neste sentido, Alexander comentava, já em 1979, que, neste último caso, seria melhor se a equipe do museu investisse suas energias na produção de publicações ou de filmes que o público pudesse desfrutar confortavelmente instalado em uma poltrona, em casa ou em um auditório (ALEXANDER, 1979, p. 178). Além dos apontamentos já feitos, Hughes (2010, p. 157) destaca ainda um aspecto a ser levado em conta quando um museu decide inserir dispositivos tecnológicos, em especial os interativos, em suas exposições: o custo e o tempo de produção. Aparatos interativos envolvendo interfaces computadorizadas precisam de tempo para serem desenvolvidos e testados até seu funcionamento perfeito, principalmente se levarmos em conta que cada um deveria ser pensado especialmente para a exposição em que estará inserida. Neste sentido, é realmente importante que os dispositivos sejam pensados


Maria Júlia Estefânia Chelini

para cada exposição, e não encaixados na exposição por que experimentados e apreciados em outros espaços. O sucesso de determinadas soluções técnicas, adequadas a algumas propostas expositivas, ao serem transferidas a outros espaços podem parecer apenas uma colagem mal feita. Com relação aos custos, devemos levar em conta não apenas aqueles referentes à produção do dispositivo, mas ainda aqueles de manutenção. Aparatos interativos, por serem amplamente manipulados, tendem a sofrer frequentes danos, sendo os aparatos computadorizados, em geral, mais frágeis que os de pura interação física. Para garantir ao visitante uma experiência completa, é fundamental que estes danos sejam rapidamente percebidos e revertidos. Esse processo não é isento de custos e, certamente, quanto mais tecnológica uma exposição, maior terá de ser a verba destinada a sua manutenção. Os pontos levantados não têm por objetivo desincentivar o uso das novas tecnologias. Assim como qualquer outra ferramenta midiática, a expografia deve se modernizar. Podemos, e talvez até tenhamos que, fazer uso das novas tecnologias hoje à nossa disposição. O mundo pede, exige até, novidades e muitos museus têm tentado atender a esta demanda, buscando criar atrações inovadoras e, por que não dizer, espetaculares. Mas quais são as propostas verdadeiramente inovadoras? Quais são as propostas que fazem diferença, provocam mudanças? E, principalmente, quais propostas são mera repetição, talvez em nova roupagem, mas ainda assim repetições? Seria a transposição de tradicionais estratégias para estas novas ferramentas suficiente para torná-las modernas e, quiçá, compreensíveis? Transferir antigas estratégias (muitas vezes consideradas ruins) para uma nova tecnologia não é sinônimo de inovação e é certo que o público não se deixará enganar por muito tempo. Ao discutir a inserção de tecnologias na exposição, Scheiner (2012, p. 3) destaca que passamos por um “movimento difícil, dada a enorme sedução das novas tecnologias, que nos projetam num vórtice de sentidos como jamais, antes, experimentamos. E porque somos presas fáceis desta sedução, nem sempre desejaremos ir além da esfera mais rasa da mera sensação[...]”. As estratégias tradicionais e as novas tecnologias são apenas ferramentas, o importante é, como já apontado por Hughes (2010, p. 154), a experiência vivenciada pelo visitante independentemente da tecnologia empregada. Referências ALEXANDER, Edward P. Museums in motion: an introduction to the history and functions of museums. Tennessee: American Association for State and Local History, 1979. ARPIN, Roland. Pour les années quatre-vingt-dix, un marriage à trois; museologie, communication et pédagogie. In: SCHIELE, Bernard (Ed.). Faire voir, faire savoir: la museologie scientifique au présent. Canada: Musée des Civilisations, 1989. ASENSIO, Mikel; POL, Elena. ¿Sieguen siendo los dioramas uma alternativa efectiva de montaje? Revista de Museologia, Madrid, n. 8, p. 11-20, jul. 1996. CHELINI, M. J. E.; LOPES, S. G. B. C. Textos em museus de ciência: discurso científico, didático ou de divulgação?. In: BENCHETRIT, S. F.; BEZERRA, R. Z.;

69


Novas tecnologias para... novas (?) expografias

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

70

MAGALHÃES,A.M. (Org.). Museus e comunicação: exposições como objeto de estudo. 1. ed. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2010. v. 1, p. 369-392. COLINVAUX, Dominique. Museus de ciências e psicologia: interatividade, experimentação e contexto. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 12, suplemento, p. 79-91, 2005. Cury, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo: Annablume, 2005. Hornecker, Eva. “I don’t understand it either, but it is cool”: visitor interactions with a multi-touch table in a museum. In: IEEE INTERNATIONAL WORKSHOP ON HORIZONTAL INTERACTIVE HUMAN COMPUTER SYSTEMS, TABLETOP, 3., 2008. Proceedings... Amsterdam: IEEE, 2008. p. 121128. Disponível em: <http://www.ehornecker.de/Papers/BerlinMuseumTabletop08.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2012. Hornecker, Eva; Stifter, Matthias. Digital backpacking in the museum with a SmartCard. In: ACM SIGCHI NEW ZEALAND CHAPTER’S INTERNATIONAL CONFERENCE ON COMPUTER-HUMAN INTERACTION DESIGN CENTERED HCI, 7., 2006. Proceedings… New York: ACM, 2006a. p. 99-107. Hornecker, Eva; Stifter, Matthias. Learning from interactive museum installations about interaction design for public settings. In: AUSTRALIA CONFERENCE ON COMPUTER-HUMAN INTERACTION, 17., 2006. Proceedings... New York: ACM, 2006b. p. 135-142. Disponível em: <http://www.ehornecker. de/Papers/OzCHI06TMW.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2012. Hughes, Philip. Exhibition design. London: Laurence King Publishing, 2010. martins, Maria Helena Pires.Apresentação. In: CURY, Marilia Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo: Annablume, 2005. McLean, Kathleen. Planning for people in museum exhibitions. Washington, DC: Association of Science-Technology Centers, 1993. Oliveira, José Cláudio Alves de. O Museu e a sua arquitetura no mundo globalizado: entre informação e virtualidade. Museologia & Interdisciplinaridade, Brasília, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012. SARTIN,Antonio Carlos de Moraes.A experiência e a experimentação no Museu da Língua Portuguesa: relatos e observações. In: BENCHETRIT, S. F.; BEZERRA, R. Z.; MAGALHÃES, A.M. (Org.). Museus e comunicação: exposições como objeto de estudo. 1. ed. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2010. v. 1, p. 259-272. SCHEINER, Tereza. Comunicação, educação, exposição: novos saberes, novos sentidos. Semiosfera, v. 3, n. 4/5, 2003. Disponível em: <http://www.semiosfera. eco.ufrj.br/anteriores/semiosfera45/conteudo_rep_tscheiner.htm>. Acesso em: 13 maio 2012. SCHEINER,Tereza. Museus e exposições em um mundo em mudanças: novos desafios, novas inspirações. Revista Museu: cultura levada a sério,Artigos de 18 de maio, 2012. Disponível em: <http://www.revistamuseu.com.br/18demaio/ artigos.asp?id=32832>. Acesso em: 26 maio 2012. Screven, Chan G. Présentations didactiques pour visiteurs libres. ICOM Education, n. 12-13, p. 10-20, 1993. SWIADER, Lawrence. Using technology in the permanent exhibit of the United States Holocaust Memorial Museum: thoughts after a major evaluation. In: INTERNATIONAL WORKSHOP: RE-THINKING TECHNOLOGY IN MU-


Maria Júlia Estefânia Chelini

SEUMS: TOWARDS A NEW UNDERSTANDING OF PEOPLE’S EXPERIENCE IN MUSEUMS, 2005. Proceedings… Limerick: Interaction Design Centre, 2005. Disponível em: <http://www.idc.ul.ie/museumworkshop/Papers/Swiader.pdf>. Acesso em: 30 maio 2012. Valinho, Patrícia Teles; Franco, Ivan. Tecnologia, interacção e cultura: novos horizontes. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE CIÊNCIAS DA COMPUTAÇÃO (SOPCOM), 4., 2005. Anais... Aveiro: Comissão Editorial da Universidade de Aveiro, 2005. Disponível em: <http://www.sopcom.pt/actas/valinho-franco-tecnologia-interaccao-cultura-novos-horizontes. pdf>. Acesso em: 30 maio 2012. vom Lehn, Dirk; Heath, Christian; Hindmarsh, Jon. Rethinking interactivity: design for participation in museums and galleries. Cambridge: Design Office Group, 2010. (Work, interaction & technology research group). Disponível em: <http://www.eng.cam.ac.uk/DesignOffice/cmt/resources/pdf/vom_lehnetAl.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2012. Wagensberg, Jorge. Princípios fundamentales de la museología científica moderna. Alambique: didáctica de las ciencias experimentales, Barcelona, n. 26, p. 15-19, 2000. Wagensberg, Jorge. The “total” museum, a tool for social change. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 12, suplemento, p. 309-321, 2005.

Artigo recebido em maio de 2012. Aprovado em junho de 2012

71


MUSEUS COMO PIONEIROS PARA A SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL Manuel C Furtado Mendes1* Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias

RESUMO: Este trabalho, que se insere nos estudos da Museologia, visa a uma chamada de atenção através desta importante área disciplinar, para a preservação do meio ambiente enquanto patrimônio.Referimos a relação entre Museus e meio ambiente e alguns documentos internacionais que fundamentam a introdução das preocupações ambientais e a sua sustentabilidade no âmbito da museologia. Faremos referência a alguns tipos de Museus no que se refere à sua arquitetura e tipo de construção e apontamos soluções técnicas disponíveis no mercado para as fontes energéticas que consideramos mais apropriadas, relativamente à inserção individual ou coletiva de equipamentos para a captação e produção de energias renováveis e limpas nestes equipamentos culturais.

ABSTRACT: This work, which falls in museology studies, aims to highlight this important subject area, to preserve the environment as heritage. We write about the relationship between museums and the environment and present some international documents that justify environmental concerns and their sustainability in the context of museology.We will refer to some types of Museums with regard to its architecture and design and show technical solutions available in the market for energy sources that we believe are most appropriate to use in museum buildings.

PALAVRAS-CHAVE: Museus, Museologia, Sociomuseologia, Energias Renováveis, Sustentabilidade Ambiental.

KEYWORDS: Museums, Museology, Sociomuseology, Renewable Energies, Environment Sustainability

1 * PhD em Museologia, Professor na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa e Membro do Conselho Pedagógico da Faculdade de Engenharia.


Manuel C Furtado Mendes

Introdução A questão ambiental, que há alguns anos se tornou um problema grave para a sobrevivência de todos os seres vivos, é reflexo do desenvolvimento industrial que, embora tenha trazido a modernização e contribuído para o bem-estar de todos, não teve em conta o impacto que a utilização das energias de origem poluentes e finitas iriam causar num futuro que chegou sem que disso, praticamente, se tivesse dado conta. O patrimônio natural e o cultural necessitam de estar integrados num ambiente apropriado com condições especificas para cada caso concreto de forma a que a sua preservação e durabilidade se prolongue. Existem fatores que interferem direta ou indiretamente na sua degradação, que podem produzir efeitos negativos a um ritmo mais ou menos acelerado. Estes estão sobejamente identificados, face à ampla informação disponível sobre os cuidados de prevenção a ter em conta, por exemplo, em termos ambientais, apenas será necessário criar as condições apropriadas em cada local e para cada tipo de acervo. Desta forma, estaremos a contribuir para o prolongamento da vida do património que as gerações atuais e vindouras terão ao seu dispor, permitindo-lhes a partir do seu bom estado de conservação obter um amplo conhecimento da história da humanidade. Face aos sinais de degradação ambiental que se foram tornando evidentes, verificou-se que as preocupações inerentes ganharam contornos de grande empenho na estabilização do meio ambiente e nesse sentido começaram a ser promovidos debates mundiais de onde surgiram, na década de sessenta do século passado com o desenvolvimento da ecologia, as diversas Cartas, Convenções e Recomendações Internacionais, que assim se constituem como as primeiras tentativas organizadas a nível mundial para a preservação do patrimônio natural. São exemplos dessa preocupação do Mundo com o ambiente, os documentos produzidos e emitidos no seio da ONU/UNESCO, ICOMOS e Conselho da Europa, dos quais aqui destacamos alguns: No ano de 1971 foi assinada a “Convenção Relativa às zonas húmidas e de importância internacional” (RAMSAR, 1971) que reconhecia a interdependência do Ser Humano com o seu meio ambiente; Em 1972, foi elaborada e assinada a “Convenção do Património Mundial, Cultural e Natural” da UNESCO. Nesta Convenção assumiu-se o patrimônio natural a par do patrimônio cultural, admitindo-se que “devem ser considerados na sua globalidade como um todo homogêneo”; Em 1976, o ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios) manifesta na “Carta de Turismo Cultural” a preocupação com o entorno do Ser Humano e dos monumentos e, na “Carta de Nairobi”, produzida pela UNESCO nesse mesmo ano, definia-se como “ambiência” dos conjuntos históricos ou tradicionais, “o quadro natural ou construído que influi na perceção desses conjuntos” e reiterou-se a necessidade de incluir o entorno nas medidas de preservação patrimonial; Em 1976, o Conselho da Europa produziu o chamado “Apelo de Granada” sobre a arquitetura rural no ordenamento do Território. Este documento vai ainda mais longe que os anteriores e considera que a paisagem rural está ameaçada de extinção. A excessiva exploração da natureza, nomeadamente

73


Museus como Pioneiros para a Sustentabilidade Ambiental

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

74

pela industrialização, traz como consequências “desequilíbrios ecológicos perigosos” que provocam alterações estruturais dos “traços característicos da paisagem como sebes, declives, pequenos bosques, ribeiros, etc.” Em 1997, a ONU emite a “Declaração sobre as Responsabilidades das Gerações Presentes para com as Gerações Futuras”, que tem a ver com a necessidade de preservação do ambiente natural, estendendo-o à escala planetária. Revestindo-se este documento de extrema importância ao chamar a atenção para a preservação ambiental como condição determinante para a sobrevivência do ser humano enquanto espécie. Já não estamos apenas perante a necessidade de preservar os vestígios culturais do Ser Humano, mas assegurar a nossa continuidade na Terra, a das gerações futuras e das restantes espécies. A “Declaração sobre as responsabilidades das gerações presentes para com as gerações futuras” considera que a destruição do meio ambiente constitui uma ameaça para a sobrevivência das gerações futuras conforme está patente nos seus artigos 4.º e 5.º: Article 4 - Préservation de la vie sur Terre Les générations présentes ont la responsabilité de léguer aux générations futures une Terre qui ne soit pas un jour irrémédiablement endommagée par l’activité humaine. Chaque génération, recevant temporairement la Terre en héritage, veillera à utiliser raisonnablement les ressources naturelles et à faire en sorte que la vie ne soit pas compromise par des modifications nocives des écosystèmes et que le progrès scientifique et technique dans tous les domaines ne nuise pas à la vie sur Terre. Article 5 - Protection de l’environnement 1. Afin que les générations futures puissent bénéficier de la richesse des écosystèmes de la Terre, les générations présentes devraient oeuvrer pour un développement durable et préserver les conditions de la vie, et notamment la qualité et l’intégrité de l’environnement. 2 (UNESCO, 1997, grifo nosso)

Referimos ainda, neste olhar sobre as recomendações e diretivas internacionais, a “Declaração Universal Sobre a Diversidade Cultural” (UNESCO, 2001) que considera a biodiversidade e o patrimônio natural como fazendo parte da diversidade cultural, indo ao encontro da necessidade de uma conservação integrada. Estes documentos aqui muito resumidamente referidos testemunham e contextualizam as preocupações ambientais, sobretudo as que recaem sobre o patrimônio natural, situação que naturalmente se articula com as inquietações com o patrimônio cultural, o trabalho dos Museus e a reflexão sobre a Museologia. 2 “Artigo 4.º. Preservação da vida na Terra. As gerações presentes têm a responsabilidade de legar às gerações futuras uma Terra que não fique um dia irremediavelmente estragada pela atividade humana. Cada geração, recebendo temporariamente a Terra em herança, zelará pela utilização razoável dos recursos naturais e de maneira que a vida não seja comprometida por modificações nocivas dos ecossistemas e que o progresso científico e técnico em todos os domínios não prejudique a vida na Terra; Artigo 5.º. Proteção do ambiente. 1. Para que as gerações futuras possam se beneficiar da riqueza dos ecossistemas da Terra, as gerações presentes deveriam trabalhar por um desenvolvimento durável e preservar as condições da vida, nomeadamente a qualidade e a integridade do ambiente” (UNESCO, 1997, tradução nossa).


Manuel C Furtado Mendes

Parece-nos, também, que os Museus enquanto instituições que têm uma função preservacionista - independentemente de se tratar de Museus que lidam com coleções materiais ou de Museus que lidam com o social e a comunidade - devem servir de exemplo na utilização de todos os meios técnicos disponíveis, nomeadamente nas áreas da eficiência energética e das energias de origens limpas e renováveis, como uma forma eficiente de contribuir para a sustentabilidade ambiental e econômica do nosso Planeta. Por todas estas preocupações mundiais referidas, entendemos que os edifícios onde funcionam Museus devem estar, ou virem a ser equipados a curto prazo, com os meios técnicos disponíveis e adequados a cada caso concreto, nomeadamente no que se refere à implementação de condições por forma a que estes contribuam de forma ativa para o equilíbrio ambiental que se deseja e se tornou indispensável ao bem-estar de todos. Tipos de edifícios onde funcionam Museus Os edifícios onde funcionam Museus têm origem e tipo de construção bastante diversificada, que vão desde o aproveitamento de património histórico construído com alguns séculos de existência, passando por edifícios comuns adaptados, até aos construídos de raiz para esta função. Assim, temos os denominados Museus nacionais, que são por excelência o símbolo da identidade cultural em qualquer País e, por essa razão, contêm as mais importantes e/ou valiosas coleções nacionais. Encontram-se normalmente instalados em edifícios históricos de grande valor arquitetônico. Temos também a construção de grandes complexos culturais que se multiplicaram por todo o mundo, tendo mesmo constituído uma das orientações mais marcantes verificadas no final do século passado como, por exemplo, o recente Museu Guggenhein de Bilbau. Este tipo de equipamento cultural possui normalmente características adequadas para a promoção da multiculturalidade mas, também, da multifuncionalidade e tem origem muito antiga, basta lembrarmo-nos do histórico Museu de Alexandria que incluía a Biblioteca, Academia, Observatório Astronômico e Universidade. São normalmente edifícios imponentes, construídos em locais estratégicos pelo poder central dos vários países e destinados a responder às necessidades de desenvolvimento cultural das comunidades que os podem frequentar. Esta construção constitui, de um modo geral, uma oportunidade para o poder central e/ou local, o exibir como símbolo do seu poder. Por fim, referimos também os Museus locais e/ou regionais e mesmo casas de memória que existem em grande quantidade por todo o mundo e tendo uma função muito importante junto das suas comunidades, uma vez que é um equipamento cujas características de proximidade às populações permite, nalgumas situações, que estas, com os seus conhecimentos, se envolvam com maior ou menor participação para poderem salvaguardar os seus patrimónios. Em 1960 foi criado um Comitê Internacional do ICOM - International Committee for Regional Museums (ICR), cuja sua função principal se insere no apoio ao desenvolvimento ativo, em todo o mundo, desta tipologia de Museus. Verifica-se, assim, uma grande diversidade de edifícios onde podem ser instalados os diversos tipos de Museus, bem como diversidade das suas ca-

75


Museus como Pioneiros para a Sustentabilidade Ambiental

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

76

racterísticas físicas e qualidade construtiva muito diversas, o que é uma situação normal, pois os critérios utilizados para a sua implementação são muito vastos e têm em conta variáveis e condicionantes influentes, sendo que uma delas será, certamente o seu custo em termos imediatos. Assim, apesar da diversidade de construções que albergam Museus, muito raramente se teve em conta a instalação de qualquer tipo de equipamento com o objetivo e função de poderem contribuir para a preservação ambiental através da utilização de tecnologias apropriadas para esse efeito e disponíveis há anos. Nos tempos atuais, em que o ambiente é vital para o equilíbrio saudável de todos os seres vivos e para a manutenção da biodiversidade, não nos parece que possamos deixar de insistir, ou mesmo exigir, de todos nós e das entidades que tutelam e/ou gerem estes equipamentos para que a falta de sensibilidade na implementação e utilização de fontes energéticas de origem renovável e limpa seja colmatada a curto prazo sem que seja entendida como um custo mas sim como um investimento imprescindível para o presente e o futuro da humanidade. Isto porque entendemos que uma das principais soluções que pode e irá contribuir fortemente para a sustentabilidade ambiental e mesmo econômica destes equipamentos culturais, é a captação e utilização das energias renováveis e limpas cujo elevado desenvolvimento técnico permite aplicações adaptáveis e enquadráveis para todos os edifícios de Museus existentes ou a edificar. Cumulativamente com a utilização destas fontes energéticas é importante que os próprios edifícios sejam ou estejam dotados das melhores características de localização e físicas no que se refere à sua orientação solar e aos materiais utilizados, porque do cumprimento, ou não, destas premissas depende a sua boa ou menos boa eficiência energética, que se reflete diretamente nos consumos energéticos requeridos para a obtenção das condições de conforto adequadas para os diferentes tipos de acervos e frequentadores e/ou utilizadores destes equipamentos. Com já foi referido, muitos dos edifícios onde funcionam Museus possuem um elevado valor histórico e patrimonial, sendo mesmo uma valiosa herança deixada por outras gerações e cuja preservação é da responsabilidade da geração atual. Trata-se, na grande maioria, de construções efetuadas em épocas distantes em que os materiais e as tecnologias usadas eram bem diferentes das que atualmente estão disponíveis, o que, naturalmente, provoca um desajuste face às necessidades e exigências atuais. Para que as suas funcionalidades se ajustem à obtenção dos vários tipos de conforto (diferentes acervos e humano) que as novas tecnologias e alguns materiais de isolamento e/ou revestimento que caracterizam as atuais construções proporcionam, há que criar ou ir criando essas condições e executando as obras necessárias com rigor e de acordo com o que cada caso concreto exigir, uma vez que são soluções eficazes e necessárias para a resolução dos problemas decorrentes do seu envelhecimento que se observam nas deteriorações de revestimentos ou, mesmo, em termos estruturais. Assim, conservar, remodelar e ampliar estes edifícios são soluções naturais para que a cada momento da sua vida se introduzam as inovações que proporcionem as melhores condições de conforto tendo também em vista a redução dos consumos energéticos.


Manuel C Furtado Mendes

Por forma a não descurar a preservação ambiental, quando é tomada a decisão de construir um novo edifício destinado a Museu, devem ser tidas em consideração algumas questões para que estes edifícios se possam enquadrar dentro de parâmetros ecossustentáveis, originando assim a redução dos seus custos operacionais. Estes parâmetros relacionam-se com a implementação de características técnicas que permitam a redução do consumo de energia seja qual for a sua origem, a redução do consumo de água, a redução da produção de lixo e, só depois, o incremento do número de visitantes/utilizadores com a oferta de eventos culturais atrativos e de elevada qualidade. Normalmente, o local para a construção de um novo Museu está sujeito às disponibilidades de terrenos com as dimensões adequadas ao que se pretende construir. Daí resultar, por vezes, que a sua localização no que se refere à exposição solar, luminosidade natural, arejamento, poluição ambiental, existência de zonas verdes e boas acessibilidades, possa não ser a ideal para se garantir à partida, não só a obtenção de um bom desempenho energético sem custos muito elevados, mas, também, de todas as condições que irão permitir a atração de visitantes/utilizadores destes espaços. A atratividade do Museu certamente não terá a ver apenas com os seus conteúdos/acervos mas também com toda a sua envolvência natural. Estes dois fatores têm uma enorme importância e, por isso, devem ser usados em simultâneo para assim se obter um bom resultado global. Ou seja, um Museu deve estar num local naturalmente atraente e com boas acessibilidades, quer através de transportes públicos, quer por transporte privado. Deve garantir-se uma ligação entre a natureza envolvente, o edifício e os conteúdos do edifício que, no seu conjunto, atraiam público de todas as idades para que, desta forma, a cultura possa ser divulgada e apreendida por todos. Quanto ao edifício em si, deve ser tido em conta o fim específico a que se destina. Se este se destina apenas a Museu, ou se é para nele funcionarem outras atividades culturais, e sendo este o caso, devem observar-se as diversas valências, a capacidade pretendida em termos de áreas expositivas, auditórios e serviços de apoio, o seu lay-out3 interior e toda a sua envolvência e enquadramento com o exterior. A construção do edifício, quer se trate da estrutura, materiais de enchimento ou de revestimento, deve contemplar a existência de uma adequada resistência ao fogo, tratamento térmico e acústico de todos os seus compartimentos e iluminação e ventilação naturais, bem como a existência da exploração de uma ou mais fontes de energias renováveis e limpas. Havendo a preocupação de efetuar a construção incluindo os parâmetros atrás referidos, o edifício torna-se detentor de uma eficiência energética elevada e o seu consumo energético descerá substancialmente. Podemos referir para consulta uma recente e interessante publicação (CRIMM; MORRIS; WHARTON, 2009), que trata com profundidade e rigor as diferentes e fundamentais fases que antecedem a construção e durante esta, instalação e funcionamento de Museus, incluindo estudos econômicos, sendo que deste modo, estamos, sem dúvida, a contribuir para uma sustentabilidade ambiental e econômica cujos reflexos positivos se vão fazer sentir na melhor qualidade de vida do Ser Humano. As poupanças nos consumos energéticos, quaisquer que sejam as suas origens, vão cada vez mais tornar-se exigências vitais se quisermos contribuir para o equilíbrio ambiental de que o nosso planeta tanto necessita. 3 Termo utilizado para designar a compartimentação interior num edifício ou numa parte deste.

77


Museus como Pioneiros para a Sustentabilidade Ambiental

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

78

Nesse sentido, o Parlamento Europeu publicou recentemente uma nova Diretiva (nº 2010/31/CE, de 2010-06-19), cujo objetivo principal é que todos os edifícios a construir bem como os existentes, sejam dotados de características técnicas necessárias para que a sua eficiência energética proporcione um consumo energético zero, ou muito próximo deste valor, até ao ano de 2020 São evidentes e importantes os benefícios ambientais e, consequentemente, econômicos quando se pode iniciar um projeto de raiz para implementação de um Museu num local geográfico criteriosamente escolhido e utilizando materiais adequados. Porque com estas premissas de extrema importância, surgem, naturalmente, entre outros, os seguintes benefícios: • redução do uso do ar condicionado; • redução das cargas de aquecimento e da contribuição da geração da energia elétrica, com a correspondente diminuição dos consumos; • contribuição para a diminuição dos níveis de CO2 causados pela utilização de combustíveis fósseis, sempre que é usada a energia proveniente de fontes renováveis; • redução dos sintomas de doença reportados em pessoas que trabalhavam em edifícios com ar condicionado (conhecida como “síndroma dos edifícios doentes”); • condições de conforto térmico interior melhoradas. Alcançados estes objetivos resultam daí benefícios económicos de extrema importância. Há, por isso, lugar para redução de custos energéticos significativos, pelo que essas poupanças podem ser canalizadas para outros investimentos com benefícios adicionais nomeadamente: • instalação de unidades de aquecimento e refrigeração de menores capacidades, reduzindo, assim, os custos da construção global de um edifício; • contribuição para a redução do déficete comercial, uma vez que há necessidade de importar menos equipamentos e com menores capacidades para a produção de calor ou refrigeração; • diminuição da dependência econômica de países com recursos econômicos limitados. Podemos afirmar que o comportamento térmico de qualquer edifício é vital para que se obtenha um conforto saudável e, por isso, a sua construção ou reabilitação deve ser sempre efetuada de forma a obterem-se os melhores resultados em termos da sua eficiência Energias renováveis nos edifícios de Museus Energias renováveis são todas as formas de energia cuja utilização é inferior à sua renovação sem que o ambiente se deteriore com a exploração mais ou menos intensiva. Atualmente, a energia fornecida a partir da rede de distribuição pública já contém uma pequena percentagem de origem limpa e renovável proveniente de grandes centrais, nomeadamente hídricas, eólicas, térmicas que consomem vários tipos de resíduos e fotovoltaicas; no entanto esta produção está muito longe do que são as necessidades totais de consumo e, por isso, devem ser estudadas e implementadas outras soluções para que em qualquer local onde se encontrem edifícios de Museus se possam colocar mecanismos de


Manuel C Furtado Mendes

captação, transporte e produção de um ou mais tipos de energias renováveis para a sua utilização individual ou, havendo excesso de produção face ao consumo, armazenando-a para utilização posterior ou mesmo colocá-la na rede de distribuição pública para consumo em outros locais. Face às diferentes características e localizações dos edifícios onde estão instalados Museus, entendemos que as fontes energéticas de origem limpa a partir das quais estes podem captar as energias que necessitam e mais adaptáveis a estes equipamentos culturais, de uma forma independente e isolada e também pela sua facilidade de integração com valores de implementação acessíveis e comportáveis são as energias “geotérmica de superfície”, a “solar térmica” e a “solar fotovoltaica”. Descrevendo sucintamente cada uma destas energias, temos a “geotermia” que é o ramo da Geofísica que tem a seu cargo o estudo da distribuição de calor no interior do nosso planeta. Por cada 100 m de profundidade, a Terra sofre um aumento médio da sua temperatura de cerca de 3ºC. Este fenômeno está diretamente relacionado com processos de geodinâmica interna e com a absorção da radiação solar. O aproveitamento destas condições naturais permite obter energias renováveis, limpas, gratuitas e não poluentes. A poucas dezenas de centímetros de profundidade, o terreno que constitui a crosta terrestre encontra-se a uma temperatura estável, geralmente compreendida entre 5ºC e 18ºC, o que permite, com recurso à utilização de bombas de calor geotérmicas usar esse “calor geotérmico” em qualquer lugar que necessite de conforto térmico, usando recursos naturais. Ao recorrer-se ao uso de bombas de calor geotérmico, estamos a utilizar um equipamento simples e econômico, uma vez que apenas consomem cerca de 20% da energia que produzem, ou seja, por cada KWh de energia elétrica consumida produzem cerca de 5 KWh de energia térmica. A instalação das bombas de calor geotérmico é feita ligando estas a um conjunto de tubos enterrados no solo, cujos diâmetros e comprimentos dependem das necessidades de energia, em cada caso concreto, dentro dos quais circula, em circuito fechado, um líquido composto de uma mistura de água com glicol (líquido anticongelante) que tem a função de ir buscar a temperatura solicitada que se encontra armazenada no subsolo. Esta permuta efetuada com o subsolo através da referida bomba de calor permite a obtenção de aquecimento e arrefecimento para climatização de qualquer tipo de edifício ou compartimentos destes com diferentes funcionalidades. Na climatização dos diversos compartimentos dos edifícios recorre-se, normalmente, à utilização de pavimentos ou paredes radiantes (circulação de água quente em tubagem embebida nos pavimentos ou paredes de forma a que estes não fiquem mais do que 0,50 metros distanciados entre si), ventilo-convectores e sistema de condutas aéreas colocadas ao nível dos tetos ou, de pavimentos, contendo registos e grelhas por onde circula e se distribui o ar, quer quente, quer frio, regulando-se a saída dos seus caudais conforme as necessidades pontuais de cada compartimento que queiramos tratar. Estamos perante um sistema de captação de energia que funciona com a máxima segurança, uma vez que apenas utiliza a circulação de água a baixa pressão, conjuntamente com um aditivo anticongelante inofensivo e ecológico, por uma vez que utiliza um recurso natural inesgotável, a energia da Terra,

79


Museus como Pioneiros para a Sustentabilidade Ambiental

que não é poluente, sem combustões, sem fumos nem cheiros e económico como atrás já referimos.

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

80

As já referidas tubagens enterradas, ligadas em circuito fechado, podem ser utilizadas em três diferentes tipos da captação deste tipo de energia, que são: Captação vertical, em que o espaço necessário é reduzido podendo mesmo nalgumas circunstâncias, ser utilizada a área de implantação dos edifícios; a Captação horizontal, em que há necessidade de existir uma área de terreno livre contígua aos edifícios para dispor horizontalmente as tubagens e a Captação em lençol freático, em que deve haver uma nascente próxima dos edifícios com um caudal constante. A quantidade de tubagens em qualquer tipo destas captações varia consoante as necessidades energéticas para cada caso concreto. Quanto à “energia solar térmica”, ela está relacionada com o aproveitamento do sol para produzir calor que pode ser usado para o aquecimento de águas, podendo estas servir para utilizar no aquecimento de edifícios, de piscinas, balneários, para usos sanitários, lavagens diversas e ainda ser usada em equipamentos de refrigeração que funcionem através da absorção de calor. Os sistemas solares térmicos, atualmente instalados na Europa, são predominantemente constituídos por uma “caixa metálica”, termicamente bem isolada na sua parte posterior, provida de uma cobertura transparente, instalada na sua parte frontal (normalmente com vidro), proporcionando o efeito de estufa no interior do coletor; uma placa metálica de cor escura, que absorverá o máximo de radiação solar, e um conjunto de tubos ligados a esta, no interior, nos quais a água circula e aquece. Existem disponíveis no mercado vários tipos de painéis solares térmicos que podem ser aplicados isoladamente em qualquer parte dos edifícios ou integrados como revestimento final de fachadas ou coberturas destes, proporcionado, assim, uma integração perfeita em qualquer tipo de arquitetura. A tecnologia solar térmica existente tem capacidade para produzir e fornecer todas as necessidades de aquecimento, arrefecimento e de águas para os diferentes fins de um qualquer tipo de edifício. Esta tecnologia, tal como outras no âmbito das energias renováveis, está em constante desenvolvimento e por isso os resultados tecnológicos que a curto prazo são esperados, irão melhorar a competitividade da tecnologia e facilitar a expansão do mercado de energia solar térmica. Estas melhorias da tecnologia incluem o desenvolvimento de novos sistemas que irão incorporar coletores superiores com base em materiais poliméricos avançados, o isolamento a vácuo e sofisticados meios de armazenamento de calor, combinado com os controles de gestão inteligente de calor. Esses sistemas poderão ser integrados em edifícios novos, remodelados, ou adaptados, para fornecer águas quentes, aquecimento e arrefecimento. A energia solar fotovoltaica é aquela que, com maior facilidade face ao seu desenvolvimento técnico, se pode adaptar para múltiplos tipos de aplicação e uso em qualquer tipo de edifício destinado a Museu. A energia solar é, sem dúvida, a fonte de energia alternativa mais atraente para o presente e para o futuro pois, para além de ser uma energia limpa e renovável e das pelas suas características de não poluir o ambiente, a sua quantidade disponível para a conversão em energia elétrica é várias vezes su-


Manuel C Furtado Mendes

perior ao atual consumo energético mundial. São estas as circunstâncias que estão a propiciar a atualidade deste tema e o aproveitamento máximo da radiação solar. O Sol envia para o nosso planeta inesgotáveis radiações que, sendo aproveitadas usando o equipamento apropriado, fornecerá toda a energia de que precisamos. Interpretando a palavra “fotovoltaico”, (da palavra “photo”, significa “luz” e o sufixo “voltaico” refere-se à “eletricidade produzida por uma reação química”). A tecnologia fotovoltaica hoje existente e devidamente desenvolvida permite converter diretamente a energia solar em energia elétrica através de células solares e dos módulos ou painéis fotovoltaicos, e a partir do momento da instalação do processo de produção a energia gerada pode ser consumida diretamente, armazenada em baterias apropriadas ou lançada diretamente na rede geral de distribuição pública. Como já referimos, a produção de energia elétrica através desta fonte pode obter-se de formas técnicas diferentes, entre elas existe o designado sistema BIPV Building Integrated Photovoltaics que consiste na integração de células ou módulos fotovoltaicos na fase de construção em novos edifícios e na fase de remodelação ou reabilitação de edifícios construídos. Com a utilização deste sistema (BIPV) são garantidas, em simultâneo, várias e importantes funções, como a utilização de elementos estruturais, de revestimento ou de proteção do edifício para a fixação das células fotovoltaicas, e a possível utilização cumulativa de espaços disponíveis para a fixação de módulos fotovoltaicos. Quer as células, quer os módulos, podem ser colocados em coberturas, fachadas ou em palas de ensombramento. Em parte, ou em toda a envolvente dos edifícios construídos ou a construir, podem ser usados módulos transparentes, como os de silício cristalino microperfurado e de silício amorfo transparente, cuja grande vantagem reside na eventualidade de, se for importante considerar para o edifício em concreto, dar-nos a garantia de obter a entrada de uma boa parte da luz natural para dentro do edifício através destes módulos. Existem também disponíveis células fotovoltaicas de variadas cores, sendo possível o seu uso, quer na fabricação dos módulos, quer na aplicação direta sobre os materiais de revestimentos final, e esta diversidade de cores torna-se interessante do ponto de vista de não limitar a imaginação de qualquer arquiteto ou designer.Assim, para além da possível autosuficiência em termos de consumos energéticos a partir da produção gerada pelo sistema instalado em cada edifício, poderão ainda ficar com uma moderna imagem arquitetónica. Conclusões As energias aqui referidas são apropriadas para equiparem a curto prazo todos os edifícios de Museus, uma vez que individualmente, ou em conjunto, proporcionam condições ótimas para a preservação ambiental e, em simultâneo, contribuem de forma marcante para a sustentabilidade econômica no que se refere à “energia geotérmica de superfície”. Podemos, por vezes, depararmo-nos com situações pontuais em que em alguns edifícios onde funcionam Museus seja difícil implementar qualquer tipo de captação desta energia mas, a grande maioria destes equipamentos culturais localizam-se geralmente em edifícios cuja cave pode facilmente ser

81


Museus como Pioneiros para a Sustentabilidade Ambiental

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

82

utilizada para esse efeito ou, então, dispõem de generosos jardins onde, com extrema facilidade, se pode projetar e incorporar esta energia. A inclusão de qualquer um destes sistemas de captação de energia durante a construção de novos edifícios destinados a Museus, é, sem dúvida, a melhor solução, o projeto é feito antes do início da construção e os trabalhos de implementação vão avançando com a própria construção do edifício. As vantagens da utilização desta energia para o aquecimento e arrefecimento dos espaços museológicos e outros, são significativas para qualquer edifício novo, ou existente, que contenha as necessárias condições de aplicação. Uma vez que não produz qualquer tipo de ruído, não tem necessidade de utilizar chaminés para evacuação de cheiros ou gás, proporciona um elevado grau de conforto devido ao seu funcionamento contínuo e não causa qualquer impacto visual negativo. Quanto à “energia solar térmica” é muito importante a sua implementação, uma vez que possibilita a instalação individual ou coletiva de sistemas de captação do sol para o aquecimento de águas, podendo estas ser utilizadas para consumos correntes necessários em qualquer Museu, bem como para aquecimento dos edifícios. Nos edifícios de Museus, torna-se relativamente fácil a sua implementação, pois a tecnologia disponível adapta-se facilmente a qualquer espaço livre existente com resultados práticos muito satisfatórios. Basta dimensionar as necessidades de águas quentes, escolher o tipo de coletores a instalar, locais disponíveis tendo em conta o enquadramento no local e os menores percursos das tubagens até ao seu destino final. Estamos, assim, perante uma quase obrigatoriedade de instalar, em qualquer tipo de Museu, esta energia renovável que pode ser, sempre, complementada por qualquer fonte de energia. Por fim, a “energia solar fotovoltaica” é uma das fontes energéticas que têm apresentado um notável desenvolvimento ao longo dos últimos anos. Os sistemas fotovoltaicos têm obtido da comunidade científica e técnica internacional uma enorme atenção e, como consequência direta, são apontados como uma das grandes oportunidades no setor energético, atualmente e num futuro próximo. Têm características técnicas para poderem ser usados em qualquer tipo de edifício como fonte principal de energia para os seus consumos de eletricidade, nomeadamente com os sistemas BIPV (Building Integrated Photovoltaics). O avançado desenvolvimento destes sistemas e as tecnologias utilizadas permitem que qualquer edifício os possa incorporar com muita facilidade para a produção de energia elétrica e, assim, perante edifícios existentes ou a construir de raiz, podemos optar por colocar os painéis solares na sua cobertura, nas suas fachadas, devidamente integrados ou, num espaço disponível contíguo ou próximo destes. A variedade de painéis ou módulos solares fotovoltaicos disponíveis no mercado é enorme, desde os mais tradicionais, com menor flexibilidade de integração local, até aos painéis de filmes finos moldáveis a qualquer tipo de superfície onde se pretendam aplicar, passando pela integração de células solares em qualquer tipo de envidraçados e de qualquer dimensão. Acresce, ainda, a enorme variedade de cores com que os painéis solares fotovoltaicos podem ser acabados, o que, em termos arquitetônicos, é


Manuel C Furtado Mendes

extraordinariamente interessante uma vez que facilita a sua integração em arquiteturas mais ou menos coloridas em qualquer edifício. Naturalmente que todos os Museus têm as características físicas e condições técnicas para poderem implementar qualquer uma destas fontes energéticas referidas e, por isso, contribuírem de forma ativa para o bem estar da humanidade. É muito importante o uso massivo destas fontes energéticas para a produção da energia elétrica que consumirem ou, pelo menos, uma boa parte dela. E, sendo estes tipos de edifícios na grande maioria patrimônio público, deveriam dar o exemplo no consumo de energias limpas e renováveis. Referências AGÊNCIA DE ENERGIA; INSTITUTO NACIONAL DE ENGENHARIA E TECNOLOGIA INDUSTRIAL. Fórum energias renováveis em Portugal: relatório síntese. Lisboa: ADENE & INETI, 2001. CHAGAS, Mário. O campo de actuação da museologia. Cadernos de Sociomuseologia, n. 2, p. 7-31, 1994. CONSELHO DA EUROPA. O apelo de Granada: a arquitectura rural no ordenamento do territorio. Granada, 1976. CRIMM, W. L.; MORRIS, M.; WHARTON, L. C. Planning successful museum building projects. USA: AltaMira Press, 2009. FUCHS, M. et al. Energy manual: sustainable architecture. Darmstadt: Birkh’a’user Architecture, 2008. GEVORKIAN, P. Alternative energy systems in building design. Nova Iorque: Mc Graw Hill, 2006. GEVORKIAN, P. Solar power in building design: the engineer’s complete design resource. Nova Iorque: Mc Graw Hill, 2008. GONÇALVES, Helder; JOYCE, António; SILVA, Luis. Uma contribuição para os objetivos de política energética e ambiental. Lisboa: ADENE/INETI, 2002. GONZALO, R.; HABERMANN, K. J. Energy-efficient architecture: basics for planning and constrution. Darmstadt: Birkh’a’user Architecture, 2006. HESTNES, Grete; HASTINGS, Robert; SAXHOF, Bjarne. Solar energy houses: strategies, technologies, examples. Londres: James & James, 2003. ICOMOS. Carta de turismo cultural. Curitiba, 1976. Disponível em: <http:// www.international.icomos.org/charters.htm>. Acesso em: 6 jun. 2010. LORD, Gail Dexter; LORD, Barry. The manual of museum planning. Grã Bretanha: Altamira Press, 2003. MARTIN CHIVELET, Nuria; FERNÁNDEZ SOLLA, Ignacio. La envolvente fotovoltaica en la arquitectura. Barcelona: Editorial Reverté, 2007. MENDES, M. C. Furtado. O uso de energias renováveis em edifícios de museus. 2011. 364 f. Tese (Doutorado)-Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Portugal, 2011. MENSCH, Peter van. Modelos conceituais de museus e sua relação com o patrimônio natural e cultural. Boletim do ICOFOM-LAM, Buenos Aires, n. 4-5, p. 10, ago. 1992. MOUTINHO, Mário.Autonomia ritmo e criatividade na museologia contemporânea. São Paulo: USP, 2000. Palestra no curso de Especialização em Museologia.

83


Museus como Pioneiros para a Sustentabilidade Ambiental

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

84

QUINTEROS PANESI, André. Fundamentos de eficiência energética industrial, comercial e residencial. São Paulo: Ensino Profissional Editora, 2006. RAMSAR: the convention on wetlands. Ramsar, Iran, 1971. RICO, J. C. Los conocimientos técnicos: museos arquitectura arte. Madrid: Sílex Édiciones, 1999. RIVIÈRE, Georges Henry. La museologia. Madrid: Ediciones Akal, 1993. SERRASOLSES, J. Tejados fotovoltaicos: energia solar conectada a la red eléctrica. Sevilha: Progensa, 2004. UNESCO. Carta de Nairobi. Nairobi, 1976. Disponível em: <http://portal. unesco.org/la/conventions_by_country.asp?language=E&typeconv=1&contr= PT>. Acesso em: 2 set. 2011. UNESCO. Convenção para a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural. Paris, 1972. Disponível em: <http://portal.unesco.org/la/conventions_ by_country.asp?language=E&typeconv=1&contr=PT>. Acesso em: 3 set. 2011. UNESCO. Declaração sobre as responsabilidades das gerações presentes para com as gerações futuras. Paris, 1998. Disponível em: <http://unesdoc.unesco. org/images/0011/001102/110220e.pdf#page=75>. Acesso em: 6 jun. 2010. UNESCO. Declaração universal sobre a diversidade cultural. Paris, 2001. Disponível em: <http://portal.unesco.org/la/conventions_by_country.asp?languag e=E&typeconv=1&contr=PT>. Acesso em: 2 ago. 2011. VARINE, Hugues. L’écomusée. In: BARY, Marie-Odile de; DESVALLES, André; WASSERMAN, Françoise (Ed.). Vagues: une anthologie de la nouvelle muséologie. Paris: MNES, 1978. WATERFIELD, P. The energy efficient home: a complete guide. Marlborough, UK: Crowood Press, 2006.

Artigo recebido em julho de 2012. Aprovado em agosto de 2012


APONTAMENTOS SOBRE MODOS DE SER (E NÃO SER) MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA EM PORTO ALEGRE Bianca Knaak1* Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO: Ao longo dos 20 anos do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, as tomadas de posição de seus gestores, apoiados na valorização de seu acervo, incidiram fortemente nas características da coleção que o museu mantém. Destacando momentos dessa história identificamos a representatividade de seus agentes e os modos de ampliação, visibilidade e legitimação desse museu, desde a sua criação.

ABSTRACT: During 20 years of the Rio Grande do Sul Contemporary Art Museum, positions taken by its managers, sustained on the appreciation of its collection, acted heavily on the characteristics of the museum collection. In highlighting moments of this history we identified the representativity of its agents and the ways of expansion, visibility and legitimacy the museum since its creation.

PALAVRAS-CHAVES: Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, Acervo, Exposição, Representação Social, Legitimidade sistêmica.

KEYWORDS: Rio Grande do Sul Museum of Contemporary Art, Collection, Exhibition, Social representation, Systemic legitimacy.

1 * Bianca Knaak é Doutora em História e Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde é professora e pesquisadora. Coordena o Grupo de Pesquisa em Estudos Sistêmicos da Arte que investigaestratégias de institucionalização e promoção da arte brasileira contemporânea através de curadorias, bienais, grandes exposições, projetos museológicos e intervenções em espaços públicos. Membro do Comitê Brasileiro de História da Arte atua também como curadora, crítica e artista sazonal. Entre 1999 e 2002 dirigiu o Instituto Estadual de Artes Visuais e o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul.


Apontamentos sobre modos de ser (e não ser) museu de arte contemporânea em Porto Alegre

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

86

Notadamente nas últimas duas décadas, tanto quanto as bienais, os museus de arte invadiram o mundo. Sob o ímpeto da globalização econômica, com pessoas e riquezas em trânsitos, deslocamentos e itinerâncias globais, as exposições e museus de arte contemporânea também se revelaram atrações potencialmente turísticas. Hoje, muitos são verdadeiros cartões postais na geografia das artes. Alguns, com prédios imponentes, ou nem tanto, fazem da arquitetura seu atrativo principal. Outros, com acervo pequeno ou até mesmo sem nenhum, mantém sua programação com exposições temporárias. E, claro, há os que conseguem destaque tanto pelas coleções que detém, quanto pelo prédio que as abriga. Isso sem falar das curadorias reveladoras e internacionalmente afirmativas ensaiadas em tantos museus e lugares. Muito embora também os museus de arte tenham surgido para preservar e exibir o que já se perdia com os avanços da cultura e da tecnologia no século 18, em tese, num museu de arte, coleções e exposições se restringem a objetos de arte e seus equivalentes documentais. Instituições modernas paradigmáticas para a memória, apesar das especificidades de cada um, as definições e objetivos dos museus variaram pouco nos dois últimos séculos. Desconheço algum que, em relação ao seu objeto fim, não inclua o compromisso com a preservação, ampliação, exibição, promoção e estudo de seu acervo, ou despreze a interface valorativa da identidade cultural local, regional e internacional. Além disso, atuando a partir dos discursos e interesses do presente, todo museu também ensaia a história, ao configurar o passado com suas coleções e exposições. O que nos faz pensar, em Porto Alegre, sobre as competências (e a potência) das instituições museais de hoje. Neste texto apontarei o que considero revelador do funcionamento sistêmico do campo artístico e, ilustrativo, politicamente recorrente e distintivo na breve história do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul. Pois, no manejo de circunstâncias, ao longo dos anos do museu, seus gestores e colaboradores, tomaram posições que incidiram fortemente nas características do museu e das demandas públicas que o mantém2. I Na cidade de Porto Alegre existem dois museus públicos de arte: o Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli, o MARGS, e o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, o MAC/RS. Encaminhando políticas de gestão capazes de estabelecer com eficácia a função social e cultural de um museu de arte, ambos investem em bem resolver a equação museológica que implica colecionar, exibir, estudar e conservar um acervo. Desafio permanente e justificado, afinal, o acervo de um museu é, ou ao menos deveria ser, o seu coração, sua razão, sua identidade. Não obstante, no currículo desses dois museus estatais encontraremos muitas demonstrações da falta de políticas e investimentos para o fortalecimento de iniciativas museológicas mais efetivas, algumas vezes até mesmo mais profissionais. O MARGS, por exemplo, nascido nos anos 1950, desde 1974 ocupa um belo prédio de quase cinco mil metros quadrados (construído em 1913 e tombado pelo IPHAN em 1981). Ao longo de quase 20 anos, no entanto, esse museu peregrinou por espaços provisórios que incluem uma 2 Nesse artigo reviso e amplio o conteúdo de minha comunicação no XXXI Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, em Campinas, na Unicamp, em 2011 (KNAAK, 2011).


Bianca Knaak

casa de molduras, onde fez sua exposição inaugural3 e o foyer de um teatro (o Teatro São Pedro). Já o Museu de Arte Contemporânea gaúcho, inquilino da Casa de Cultura Mario Quintana, há exatos 20 anos espera por uma sede apropriada para suas funções. No sul do Brasil, como em outras regiões do país, a prosperidade do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul não se equipara aos seus congêneres internacionais. Fundado em 1992, sua presença museal nesse cenário cartografado é questionável e, nas rotas nacionais, sua localização ainda é institucionalmente difusa, quase invisível. Mesmo assim, e apesar de suas referências nacionais serem o MAC-USP (1963) e os Museus de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1943) e de São Paulo (1948), podemos incluir o surgimento do MAC/RS (1992) no rol de museus de arte criados sob o entusiasmo multicultural global aliado às expressões artísticas pós-modernas dos anos 1980 e 1990. Tendo como pano de fundo uma conjuntura macroeconômica e artística internacional, o MAC/RS abriu suas portas com uma grande exposição de artistas atuantes na cena contemporânea. Entusiasmados com a idéia de um novo museu, os artistas doaram obras que foram sendo reunidas para o MAC/RS antes mesmo de sua fundação. Movido por um otimismo pioneiro, o museu nunca mais parou de promover, receber e colecionar obras doadas. Assim, comemorando seus 20 anos o MAC/RS promove intensa revisitação do seu acervo (e trajetória) com exposições em diferentes espaços da cidade de Porto Alegre. Analisadas em conjunto, essas exibições acentuam a recorrente estratégia de resistência do museu através da afirmação valorativa de sua coleção. Ao marcar a data com várias exposições (recuperações e incorporações) do acervo, o museu provoca frentes de discussão e revisão de suas políticas de sobrevivência institucional, entendidas como formas de colaboração para pensar o que significa, na esfera pública, um museu de arte. Em particular, o que o MAC/RS significa, hoje. É nesse sentido que seguem as reflexões aqui apresentadas. II O MAC/RS foi criado pelo decreto estadual nº 34.205, publicado em 04 de março de 1992. “A Exposição Inaugural – Núcleo de Acervo”, inaugural e propulsora, foi aberta no dia 18 de março do mesmo ano, na Galeria Sotéro Cosme da Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ). Lugar designado para abrigar provisoriamente o novo museu de arte e onde, no entanto, ele permanece até hoje. Ao longo dos anos, ocupando um pouco mais, um pouco menos de espaços cedidos4, o MAC/RS sobreviveu saltitando entre os andares da Casa de Cultura Mario Quintana onde atualmente acomoda seu pequeno acervo, o diretor e duas funcionáriás. Resistindo junto àquele complexo cultural, ele dispõe, para exposições, das galerias Sotéro Cosme e Xico Stockinger e do vão livre de circulação entre elas, chamado Espaço Vasco Prado (de onde foi 3 ntitulada “Arte Brasileira Contemporânea”, a primeira exposição do MARGS ocorreu em 1955. Na Casa das Molduras, apresentou obras de 33 pintores, entre eles, Portinari, Di Cavalcanti, Schaeffer, Iberê Camargo, Petrucci, Trindade Leal e Ângelo Guido. Todos estes integrantes de seu acervo. 4 O que incluiu uma malograda tentativa de transferência para o Cais do Porto, a partir de exposições coletivas realizadas entre 2004 e 2006.

87


Apontamentos sobre modos de ser (e não ser) museu de arte contemporânea em Porto Alegre

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

88

retirada a escultura em bronze de Vasco (“Modelo em Repouso”, 1988), que fazia jus ao nome dado àquele vão no 6º andar). A função social do MAC/RS, segundo seus estatutos, está em “pesquisar, preservar, divulgar um acervo de arte contemporânea regional, nacional e internacional e desenvolver propostas educativas”. Mas, sem espaço físico nem corpo funcional suficientes, desde a sua criação, o museu segue precário junto ao tímido circuito artístico regional. No entanto, se a atenção nas políticas de gestão é basilar para que um museu possa representar e se comunicar com suas comunidades e, embora o acervo do MAC/RS (ou mesmo do MARGS) não tenha visibilidade num circuito ampliado, desenvolver essa instituição vem sendo pauta em sucessivos programas de governo. Mas a fragilidade institucional do MAC/RS é, também, um reflexo dos objetivos e das políticas culturais em voga ao longo dos anos em nosso estado e país. Sem clareza do lugar e da função desse museu na estrutura administrativa e cultural do Estado, seus representantes serviram-se da indefinição programática do MAC/RS para, a partir dela, encaminhar e chancelar ações e eventos conforme a agenda preferida. Essa indefinição há muito fragiliza a autonomia institucional do museu. E isso repercute em manifestações, às vezes desconcertantes, sobre o que fazer no “vazio” que espaços como o MAC/RS deveriam preencher institucionalmente. Não por acaso, em 2011, durante a 9ª Semana Nacional dos Museus em Porto Alegre, José Nascimento Júnior, presidente do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), destacou que “o que realmente faz falta na cidade da Bienal do Mercosul é um centro de arte contemporânea de ponta digno da produção artística do Estado” (NASCIMENTO, 2011). Ciente das vicissitudes que assolam o museu desde 1999, quando ele mesmo dirigia o Museu Antropológico do RGS e o Sistema Estadual de Museus e parceiro de primeira hora dos movimentos para a viabilização de uma sede para o MAC/RS, é de se supor que ele se referia à situação do MAC/RS. Ainda sobre isso, é ilustrativo que apenas ao completar 20 anos esse museu, até então amparado por doações periódicas, faça sua primeira compra de obras para o acervo. Financiada via leis de incentivo à cultura, em 2012 essa aquisição representará a integração de 21 obras de artistas brasileiros à sua coleção, através do Prêmio Marcantonio Vilaça concedido pela FUNARTE. Juntamente com outras iniciativas oportunas, frente à data de aniversário do museu, essa seleção pode tanto reiterar modos de colecionamento institucional quanto ajudar a redefinir a lógica do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul e seus modos de ampliação do seu acervo. III Nos anos 1990, visando à formação de uma coleção substancial para fundamentar a criação do MAC/RS, o Instituto Estadual de Artes Visuais (IEAVI), dirigido pelo artista Gaudêncio Fidelis, deu início ao processo de incorporação de obras com o chamado Ciclo Arte Brasileira Contemporânea – CABC5. O Projeto vigorou de 1991 a 1994 e, a cada exposição, os artistas eram convidados a doar uma obra para o futuro MAC/RS. Mesmo sendo uma 5 Segundo Fidélis (2007) o CABC foi inspirado no “Ciclo Perspectivas Recentes da Escultura Contemporânea Brasileira”, do Instituto Nacional de Artes Plásticas da FUNARTE, e no “Ciclo de Instalações” do Centro Cultural São Paulo.


Bianca Knaak

89

Imagem 1 - Nuno Ramos. Sem título, 1991. 240 x 400 cm. Vários materiais sobre madeira. Doação do artista para o acervo MAC/RS. Fonte: Ramos (1991).

doação compulsória, numa espécie de contrapartida aos custos de produção e divulgação de cada mostra, a adesão dos artistas foi generosa e imediata. Nesse período houve a realização de exposições de artistas locais e mostras que mesclavam obras do acervo do MARGS e do MAC, com nomes emergentes (como ocorreu em “Décadas de Consolidação – Arte Brasileira no Acervo do MARGS”) e também exposições individuais, como, por exemplo, Nuno Ramos (imagem 1), Jac Leirner,Angelo Venosa,Vera Chaves Barcellos, Iole de Freitas, Karin Lambrecht, Carlos Fajardo e Marco Giannotti. Dessa programação, em 1993, o IEAVI já havia reunido cerca de 100 obras para o MAC/RS. Para Fidelis (2011), a coleção do novo museu teria início prioritariamente com a produção da década de 1990 e, ao longo de sua construção, poderia se expandir a partir dos anos 70. Produções anteriores a essa data deveriam ficar para o MARGS. Esse entendimento deu rumo à coleção do MAC/RS, que já se estabelecia com as ações anteriores à fundação do museu propriamente dito, e também teve consequências no perfil institucional apresentado em seus primeiros anos de atividade. Veremos que, recém-inaugurado, o MAC/RS protagonizou uma série de ações e programações que permitiram o mapeamento da produção artística no Estado (“Sistema de Curadorias Regionais”) e também a receber artistas de destaque na cena contemporânea nacional. Como foi o caso de Nuno Ramos que, já renomado, e em sintonia com o espírito do novo museu, realizou a impactante instalação 111 (sobre o massacre dos apenados do Carandiru) pela primeira vez na Galeria Sotéro Cosme do MAC/RS. Ao longo dos anos de teimosa intenção de existência, outras exposições, como as individuais de Joseph Beuys, Regina Silveira, Baselitz, Carlos Scliar, Lenir de Miranda e Otto Dix, por exemplo, renovaram o elã de atuação e consolidação desse espaço público para a arte contemporânea e também estabeleciam parcerias institucionais produtivas. Entendendo acervo e museu como instâncias indissociáveis, mesmo com sua pequena coleção, desde cedo o MAC/RS realizava mostras sob recortes específicos. Essa prática fazia o acervo respirar e inspirar a cena local. Sob essa motivação note-se que as esculturas do acervo vieram a público, juntas, em 1993 para a mostra “Anti-corpo”; em 1994 esculturas e objetos foram des-


Apontamentos sobre modos de ser (e não ser) museu de arte contemporânea em Porto Alegre

tacados para tratar da “Desmaterialidade Metódica”; em 1996, numa montagem com objetivos didáticos, o acervo buscou obras para “Expressão e Construção”; em 2000 as gravuras do acervo fizeram a mostra “Arte sobre Papel”; em 2001 o MAC/RS mostrou a “Figura na Pintura”; em 2007 foi a vez de “Mulheres no Acervo do MAC” e, em 2009, a coleção exibida evidenciou “O Papel no Acervo do MAC”.

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

90

As montagens de investigação da coleção ajudavam a manter o museu vivo. O alcance e a qualidade dessas iniciativas promocionais do acervo e de ativação cultural trouxeram reconhecimento ao museu. Assim que, já em 1994, o MAC/RS emprestava as obras de Karin Lambrecht e Carlos Fajardo para integrar a mostra “Bienal Brasil Século XX”, em São Paulo. IV Não é difícil localizar exemplos de museus que, para contornar deficiências de acervo e se manterem atraentes para um público heterogêneo, acabem transformados em centros de exposições temporárias. Além disso, frente à falta de políticas públicas e ações propositivas, não é raro perceber que a agenda de um museu, sendo estatal, seja vulnerável a interferências de associações de artistas, corporações acadêmicas e outras clientelas6. Afinal, todo museu, resultado direto de políticas culturais e, por vezes, de ideologias indiretas, por sua função simbólica representa uma conquista social. E, como tal, enseja disputas, agenciamentos e tomadas de posição permanentemente. Na história do MAC gaúcho, ao que parece, a sustentação sócio-simbólica do museu está no envolvimento do meio artístico pela valorização de um acervo inexorável. Não fosse assim, não faria nenhum sentido que, em 2011, o recém-empossado diretor do MAC/RS, André Venzon (artista e ex-presidente da Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa) declarasse ao jornal que “o museu existe mesmo sem uma sede, sem um espaço permanente, porque temos as obras [...] e precisamos reconhecer esse acervo” (VENZON, 2011, p. 2). Sabe-se que o acervo do MAC/RS foi angariado entre entusiastas de um museu propositivo em construção e, mesmo com poucas obras (menos de 400 peças em 2011), nomes importantes da cena contemporânea nacional estão ali bem representados. Sem uma sede e reserva técnica condigna, o problema que se alastra, no entanto, diz respeito à própria razão de ser de um museu. Se na prática o MAC/RS ainda é, material e simbolicamente, apenas o seu acervo, como é possível conhecer ou reconhecer acervo/museu que não tem onde nem como ser exibido e estudado com rigor? A falta de registros documentais substanciais, como atas e relatórios, projetos, catálogos e fotos, que indiciem o encaminhamento e os trâmites necessários à realização das esporádicas exposições do acervo (imagem 2) é, no mínimo, sintomática da inviabilidade do museu como espaço de pesquisa e conhecimento artístico, patrimonial e histórico. V Um projeto várias vezes repensado, o MAC/RS ainda é um projeto intermitente. Seu projeto inaugural, sem ter sido de todo abandonado, também nunca foi totalmente instituído, junto a Secretaria de Estado da Cultura e à sociedade, pensada como um circuito maior de beneficiários e contribuin6 Sem falar na fragilidade dos conselhos consultivos frente à subordinação político-partidária dos Cargos em Comissão (CC’s), como são os cargos de direção dos museus estatais.


Bianca Knaak

tes. E os percalços ao longo dos anos de atuação do MAC/RS, considerando outras instituições artísticas, encontram ressonância na história de seus pares nacionais que padecem pela ausência de recursos estruturais capazes de integrá-los ao que chamamos de sistema das artes visuais. Cabe lembrar que, em 2005, o crítico carioca e conselheiro da Fundação Iberê Camargo, Paulo Sergio Duarte, assinava a curadoria geral da 5ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul, acompanhado pelos gaúchos Gaudêncio Fidelis, como curador adjunto, Neiva Bohns (ex-conselheira e curadora convidada do MAC/RS) e José Francisco Alves (2º diretor do MAC/RS, atual curador-chefe do MARGS), como curadores assistentes. Naquele momento, segundo observação de Duarte, não existiam museus de arte em Porto Alegre. Pois, de acordo com sua definição, Um museu tem que ser pelo menos 40% visível; 60% seriam sua infra-estrutura, laboratórios e reservas técnicas. Segundo esses critérios são pouquíssimas as instituições no Brasil que poderiam chamar-se ‘museus’ e, seguramente Porto Alegre ainda não tem nenhum (DUARTE, 2006, p. 81).

Mesmo sendo menos exigente, o criador do MAC/RS reclama de gestões ineficientes. Segundo Fidelis, “enquanto o MAC for administrado por amadores não haverá solução para os problemas da instituição” (FIDELIS, 2007, p. 37). No entanto, se administrar implica em planejamento competente a curto, médio e longo prazo, no MAC/RS a fragilidade se mostra congênita. Seu projeto inaugural subestima a falta de um endereço próprio e omite as fontes de seu financiamento. Se, ao longo da trajetória sempre descontínua e insurgente do museu houve um planejamento paralelo, que respondesse as essas questões, ele evidentemente não se confirmou. Por sua vez, recordando o período inicial do MAC/RS, em entrevista inédita Fidelis esclarece: Quando assumi o IEAVI no Governo Collares não havia um projeto de governo para criar o museu. Este era um projeto meu, que eu desenvolvi naquele primeiro ano dentro do IEAVI. Não havia promessa para a sede, embora eu achasse que o museu teria a sua sede em breve se continuássemos naquele ritmo de trabalho. Eu honestamente não sei por que há tanta dificuldade em conseguir uma sede para o museu? (FIDELIS, 2011)

VI À falta de um prédio próprio e a pouca visibilidade do acervo soma-se a inconstância de planejamento curatorial e, logo, percebemos como, em diferentes momentos de sua história, o MAC/RS falha na salvaguarda de seu patrimônio artístico, não estimula o conhecimento, nem o colecionismo e, sequer, funciona como indicador para o fomento de um mercado regional. No entanto, sob condições de funcionamento em que as atividades de rotina equilibram o precário e o provisório, o museu se mantém orgulhoso com um acervo que foi destaque em exposições importantes, mas ainda assim, continua quase invisível em sua relevância. Na prática, podemos dizer que este MAC ainda é uma intenção de museu e, politicamente, com muito a se fazer em seu favor.

91


Apontamentos sobre modos de ser (e não ser) museu de arte contemporânea em Porto Alegre

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

92 Imagem 2 - Vista parcial da mostra “Acervo MACRS”, na Galeria Sotéro Cosme da CCMQ de fevereiro a maio de 2011. Com obras de Paula Mastroberti, José Francisco Alves,Vera Wildner, Marilice Corona,Vera Chaves Barcellos, Alphonsus Benetti, Rogério Prestes de Prestes, Michael Chapman, Udo Kunert e Marco Giannotti (na parede ao fundo). Fonte: A autora.

Assim sendo, é dessa precariedade (e com ela) que se estabelecem os valores culturais e os agentes protagonistas da cena contemporânea (artística e institucional) local. Desde a escolha dos diretores e a composição de seus conselhos consultivos, deliberativos ou curador, que atuam, coletiva ou individualmente, na seleção de artistas convidados a expor ou doar obras ao MAC/ RS, a formulação de editais de ocupação de seus espaços e na proposição de parcerias interinstitucionais, muitos são os atores que se destacam junto à comunidade como assíduos mentores do perfil e das atividades do museu. O Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, por sua vez, carrega um passado de dificuldades cumulativas. Sua acomodação sempre provisória e a alta rotatividade de seus diretores (10 em 20 anos) já foram apontadas ora como causa, ora como consequência da sua claudicante atuação. Seu histórico não só evidencia disputas políticas e partidárias como também obriga o museu a se reinventar continuamente, a cada gestão. O MAC/RS protagonizou atuações (boas e nem tanto) surpreendentes nesses 20 anos de r(existência). E atravessou algumas crises. Aos olhos do grande público, o problema maior do MAC/RS sempre foi salvaguardar sua coleção, coisa que, cedo, ameaçava a continuidade do museu. Apenas dois anos depois de inaugurado, segundo denúncia pública do já 3º diretor do MAC/RS, Fábio Coutinho, 14 obras haviam desaparecido, supostamente por inépcia e omissão de seus antecessores. Das 147 obras, descritas em atas de reuniões, termos de doação e livro tombo, faltariam gravuras e desenhos dos artistas Ivan Serpa, Regina Silveira, Marilice Corona, Maria Tomaselli e Roberto Schmidt-Prymm. Amplamente divulgado pela imprensa local, esse fato acabou desencadeando uma sequência de acusações, sindicâncias, condenações e processos que, por fim, foram arquivados por insuficiência de provas. Mas o infortúnio fez com que o MAC/RS perdesse 14 obras de sua coleção. E, ainda às voltas com o desaparecimento das obras e os graves problemas de conservação do acervo, em 1995 seu 4º diretor, José Luiz do Amaral, questionava, pelo jornal, se o Estado do Rio Grande do Sul poderia arcar com os compromissos de um Museu de Arte Contemporânea. Publicamente, foi a primeira vez que se fez essa pergunta. Respondê-la talvez não encerre a problemática do MAC/RS, mas com certeza implica em revisões políticas e ideológicas.


Bianca Knaak

VI O MAC/RS protagonizou atuações (boas e nem tanto) surpreendentes nesses 20 anos de r(existência). E atravessou algumas crises. Em 1999, com apenas sete anos, e num de seus momentos mais críticos, os problemas oriundos da insuficiência de instalações físicas e de uma equipe profissional, entre outras de ordem administrativa, comprometiam seu desempenho e imagem pública. O desprestígio constatado incluía obras desaparecidas, acervo mal conservado e períodos de inatividade. Naquele contexto se impunha como ponto pacífico, na opinião geral, a necessidade de uma sede para amparar o museu e dar prosseguimento ao seu projeto inaugural. E o lugar desejado pelos artistas e agentes culturais era um armazém, às margens do Guaíba, no Cais do Porto da capital (imagem 3). Dirigi o MAC/RS e o Instituto Estadual de Artes Visuais do Rio Grande do Sul (IEAVI)7 de outubro de 1999 a janeiro de 2002. Nesse período, enquanto fazíamos (direção e conselheiros do IEAVI e do MAC/RS) os movimentos políticos e administrativos necessários para a conquista de uma sede apropriada junto ao Cais do Porto, geramos um modo de apresentação pública que dissociava a atuação cotidiana, plausível e visível do museu, das suas pretensões programáticas. Nesse modo de apresentação, um era o “MAC real”, percorrendo espaços múltiplos e eventuais, onde as pessoas se encontravam com as obras do acervo e de outros artistas a cada exposição. Outro era o “MAC utópico”, onde buscávamos a concentração e o encontro de esforços políticos e administrativos que construiriam, junto às instâncias necessárias, os recursos e dispositivos capazes de amparar, num futuro breve, o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul no Armazém A6 do Cais do Porto. À época, tentando contornar sua fragilidade e para evidenciar a gravidade da situação, em diferentes circunstâncias o MAC/RS revisitou e organizou mostras do seu acervo. Com essa prática, curiosa e concomitantemente em sua trajetória, observa-se que, se é sobre seu acervo que se abatem as maiores chagas museais, é também deste patrimônio que o museu vem extraindo os bálsamos curativos de sua manutenção e função social. Sobretudo porque, apesar de pequena para a sua idade, a coleção do MAC/RS abriga boas obras. Assim, também nós entendíamos, quando à frente do MAC/RS que, embora desfalcado e sem condições de crescer, o acervo precisava ser exposto, para justificar a existência do museu. Então, num ato pioneiro e de grande risco patrimonial, a partir de 1999, parte do acervo percorreu o interior do Estado, inaugurando com o “MAC real” uma política de descentralização e interiorização. Paralela e simultaneamente, as exposições itinerantes, na Galeria Sotéro Cosme, o MAC/RS abrigava exposições do acervo e de artistas locais, nacionais e internacionais, como Alfredo Nicolaiewsky (imagem 4), Anico Herskowitz, Carlos Wladimirsky, Karin Lambrecht, Mario Röhnelt, Regina Ohlweiller 7 Órgão criado em 1990 e vinculado a Secretaria da Cultura, para coordenar ações relacionadas às artes visuais promovidas pelo governo e aquelas desenvolvidas pelo MARGS, pelo MAC e pelos Centros de Desenvolvimento da Expressão; promover intercâmbios com outros centros do país e do exterior; promover a integração entre a produção de artes visuais e setores educacionais do Estado e a ampliação dos circuitos, divulgação e incentivo à manifestação artística de novos talentos, bem como a pesquisa e documentação sobre artes visuais no Rio Grande do Sul.

93


Apontamentos sobre modos de ser (e não ser) museu de arte contemporânea em Porto Alegre

(“Artistas Convidados – 1999”), Rubem Grilo (“A Arte Menor”) Gil Vicente (“Desenhos”), Jorge Ferro e Georg Baselitz. À época, parcerias institucionais e pequenas curadorias garantiram a maior parte das exposições em Porto Alegre que, bem produzidas e divulgadas, renovavam o interesse do público, mas eram, no entanto, insuficientes para a consolidação estratégica do museu.

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

94

Inquilino da Casa de Cultura Mario Quintana e dependente de suas decisões administrativas, o MAC/RS se viu obrigado a interromper suas atividades em diversas ocasiões. Como ocorreu em 2001, quando a CCMQ, entraria em obras para conservação e foi por isso fechada ao público. Por conseguinte, o museu também foi obrigado a fechar. Com isso, às vésperas de seu 10º aniversário, o MAC/RS estava interditado, sem previsão de reabertura e desamparado, política e financeiramente, até mesmo para realizar projetos alternativos. Naquele momento, em busca do “MAC Utópico” (com instalação no Cais do Porto já confirmada pelas autoridades competentes: municipais, estaduais e federais) e a pedido de Gaudêncio Fidelis, em 2001, consenti que fossem restauradas, pelos próprios artistas, as obras de Nuno Ramos (imagem 1) e a pintura de Marco Giannotti, “Fachada em Azul e Vermelho”, (óleo sobre tela, 1994) dentro da galeria Sotéro Cosme. Tratava-se do programa de restauro de obras fundantes do acervo do museu, vinculado à pesquisa de Fidelis para o seu livro “Dilemas da matéria – procedimento, permanência e conservação em arte contemporânea” (2003). E, enquanto o MAC/RS permanecia fechado, em 2002, já sob a direção de seu 7º diretor, Décio Presser , foi restaurada a obra “Colunas” (bronze, aço inoxidável, cobre e latão, 1994), de Iole de Freitas. Sem autonomia financeira nem dispondo de rubrica específica, no “MAC real” as dificuldades começavam com a falta de uma reserva com condições efetivamente técnicas para guardar sua coleção e desdobravam-se em debilidades operacionais e de manutenção, até as mais ordinárias, como substituir lâmpadas queimadas ou cadear uma porta arrombada. Por tudo isso, e principalmente sem condições de tratar o acervo adequadamente, sob minha direção, nenhuma obra foi incorporada à coleção do MAC/RS. Além do mais, “inchar os depósitos de museus de doações que jamais ou pouco serão exibidas (apesar de engrandecer o currículo de alguns emergentes) não é mérito de diretor algum de museu, nem tampouco para artista algum” (AMARAL, 1999, p. 17). Mesmo assim, ao longo dos anos, ainda que fosse um problema administrá-lo, o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul continuou a depositar no acervo sua principal razão de ser. Nos momentos mais difíceis, acima e antes de tudo, invocava seu compromisso institucional para com o acervo conquistado. Compromisso a ser honrado em nome dos artistas (que ainda continuam a doar obras) e da sociedade, mesmo que as condições de preservação e promoção desse acervo jamais tivessem alcançado os patamares profissionais pretendidos.


Bianca Knaak

95

Imagem 3 - Armazéns do Cais do Porto de Porto Alegre (vista parcial). Fonte: Aautora.

Imagem 4 - Tinta acrílica sobre tela. Díptico exposto no MAC/RS na coletiva “Artistas Convidados – 1999”. Coleção do artista. Fonte: Nicolaiewsky (1993/1994).


Apontamentos sobre modos de ser (e não ser) museu de arte contemporânea em Porto Alegre

VII

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

96

Em 1999, à condução do IEAVI e do MAC/RS, foi preciso enfrentar os limites com alguma ousadia e criatividade. Acreditávamos, inicialmente, serem provisórias as circunstâncias e confiávamos que os seus limites poderiam encaminhar ao surgimento de um novo modelo de museu para o estado. Recordo aqui uma sugestão do conselho consultivo do MAC/RS, ainda em 1999. Àquela altura, já cansados de ver a penúria continuada do museu e a paulatina deterioração de seu acervo, os membros desse conselho propuseram a criação de uma coleção “imaterial”. Na verdade, um banco de projetos de ações, intervenções e instalações efêmeras e renováveis. Prevendo a utilização de materiais de fácil acesso, os projetos seriam desenvolvidos e assinados por artistas de diferentes partes do mundo e chegariam até o MAC/RS em resposta a uma carta-convite permanentemente aberta. Cada projeto deveria ser detalhado, com instruções suficientemente descritivas para que pudesse ser executado pela equipe técnica do museu, sempre que fosse preciso, dispensando a presença do artista e o armazenamento dos materiais utilizados a cada montagem. Claro, o projeto original permaneceria e passaria a fazer parte do acervo, bem como a documentação a ele acrescentada a cada execução, como registros fotográficos, audiovisuais, estudos e etc. Com esse acervo conceitual vislumbrava-se, obviamente, a instauração de uma plataforma para a problematização das noções modernas de aura e autoria, assim como também de mercadoria. Apesar de acolhida pela direção do museu, a sugestão não chegou a ser executada. Entre outros motivos, paradoxalmente, por estar condicionada à curadoria dos conselheiros propositores. Estes, logo acabaram demitindo-se do conselho consultivo, desautorizando, por assim dizer, a concretização da proposta pelo museu. A idéia, no entanto, não era original. Pelo contrário. Remonta aos anos 1960 e as experiências conceituais trazidas à tona tanto pelos artistas quanto por alguns curadores interessados nas relações processuais entre forma e conteúdos das obras e exposições. O modelo de montagem de exposição por instrução começou, provalvelmente, em 1962 com a performer Yoko Ono quando, no Sogetsu Art Center (Tóquio), ela realizou uma ação em que orientou o público à criação de obras de arte em 30 folhas de papel branco. Seguindo esse mote conceitual, dentre as exposições mais recentes podemos destacar Located Work (Madri, 2008) curada por ninguém menos que o emblemático Joseph Kosuth. Mas a maior e talvez mais conhecida dessas propostas foi a exposição 557.087, de 1969. Nesta, a crítica de arte norte-americana Lucy Lippard e mais 60 artistas enviaram instruções para realização de obras em Seattle, Washington e, noutra versão, 955.000, levaram adiante essa mesma ideia em Seattle,Vancouver e arredores8. Para Yoko e outros artistas conceituais, incluindo brasileiros, trabalhos assim, que só veremos enquanto estiverem em processo de execução ou conheceremos por relatos verbais e imagéticos, participam da percepção estética que julga a idéia de arte mais completamente vital do que as manifestações físicas das idéias artísticas. Refletem bem o ethos dos anos 1960 e a mobilização contracultural dos artistas pela desestetização da arte, pela abolição do objeto durável e, portanto, facilmente comercializável enquanto fetiche. 8 Os títulos em números (557.087 e 955.000) representam a soma das populações desses lugares.


Bianca Knaak

Além de todos os meandros conceituais em que as obras por instrução imbricam, nesses exemplos, tanto quanto na proposta do conselho consultivo do MAC/RS, fica evidente que não existe remessa material de um lugar a outro. Nada além de um papel ou mensagem eletrônica circula. Ninguém precisa se deslocar para estar em muitos lugares ao mesmo tempo, o que é perfeito para um circuito internacional global da arte, conectado em rede. Além do mais, a maioria dos espaços culturais, galerias, instituições e museus não hegemônicos raramente dispõem de recursos financeiros, físicos ou estruturais para esse deslocamento continuado dos artistas e suas obras remontáveis. IX Para comemorar seu 20º aniversário o museu preparou uma série de atividades e, enfaticamente, desvelou e revelou seu acervo em diferentes espaços expositivos da cidade, inclusive no MARGS. Lá, em abril de 2012 a mostra documental “Museumetria”, organizada pelo artista, curador e ex-diretor do MAC/RS, Francisco Alves, reconstrói em textos, fotos, catálogos, convites, reportagens e outros materiais de arquivo, a história do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul. Integrando uma programação extensa, nas galerias do museu junto a CCMQ, o comitê curador do MAC/RS montou de 23 de agosto a 07 de outubro de 2012 a mostra “Idades Contemporâneas”. Neste conjunto de exposições curadas por Ana Zavadil (“Poéticas em Paralelo”), Paula Ramos (“Diante da Matéria”), Marcelo Gobatto e Paulo Gomes (“Corpoimagem”), e produzidas para incorporar novas doações ao museu, foram destaques a novíssima geração, o núcleo histórico da coleção e a produção em vídeo do acervo. Mas, antes destas mostras, e já na perspectiva retrospectiva, de 10 de dezembro de 2011 a 29 de janeiro de 2012 o museu exibiu “A medida do gesto: um panorama do acervo do MAC/RS”, curada por acadêmicos do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)9. As produções selecionadas para essa exposição, pinturas, objetos e obras sobre papel em diferentes técnicas, foram doadas ao MAC gaúcho ao longo dos seus primeiros anos e algumas peças, como a de Alexandre Antunes (imagem 5), chegaram antes da fundação do museu. Atividade fim da disciplina Laboratório de Museografia (registrada em catálogo), a montagem favorecia leituras frutíferas desse acervo, sem malabarismos iconográficos nem apelo aos diálogos insustentáveis. A mostra exibia, na já histórica Galeria Sotéro Cosme, trabalhos de 29 artistas, a maioria gaúchos, como Eduardo Haesbaert (imagem 6), Mario Röhnelt, Frantz, Lenir de Miranda, Otto Sulzbach, Elida Tessler e Teresa Poester. Logo em seguida, acompanhado do maior catálogo de obras do museu editado até então, o acervo também se exibiu para “O Triunfo do Contemporâneo: 20 anos do museu de arte contemporânea do Rio Grande do Sul”, de 07 de março a 22 de abril de 2012. No centro Histórico de Porto Alegre, 9 Coordenados pela professora Ana Albani Carvalho, assinam a curadoria, Carlos Eduardo Galon, Fernanda Castilhos, Laura Miguel, Leila Coffy, Luise Malmaceda, Luiza Mendonça, Mariana Patrício e Vânia Riger. Entrelinhas, há na exposição as relações de longa data entre o Instituto de Artes da UFRGS e o MAC/RS. Principal instituição de formação artística no Estado, a maioria dos artistas gaúchos na coleção do MAC/RS é ou ex-aluno ou professor do Instituto de Artes da UFRGS, ou ambos. Além disso, mais da metade de seus diretores é egresso do IA e seus professores e alguns ex-alunos são presença permanente nos conselhos consultivos e curadores do museu desde a sua fundação.

97


Apontamentos sobre modos de ser (e não ser) museu de arte contemporânea em Porto Alegre

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

98

150 obras de 64 artistas ocuparam o andar térreo do Santander Cultural, instituição privada e vizinha do MARGS10. A mostra revisitou ao acervo e a ele introduziu dezenas de novidades sob o crivo de seu idealizador, fundador e primeiro diretor. Com essa curadoria Gaudêncio Fidelis retomou a tarefa de curar a coleção do MAC/RS, assumindo responsabilidades que implicaram não apenas em revisar, restaurar e exibir obras fundamentais para a compreensão sensível de seu acervo, mas também de atualizá-lo com novas doações. Pois, muito embora a coleção do MAC/RS tenha se constituído pela generosidade dos artistas, como já foi dito, o museu não dispõe de uma política de aquisições programática e consistente, o que favorece desequilíbrios em sua representatividade no contexto contemporâneo. Por outro lado, a cada lote de novas incorporações, o MAC/RS encontra oportunidades materiais, para encaminhar seu reposicionamento institucional. O que inclui a incontornável necessidade de uma sede e a avaliação de sua coleção, dos rumos de seu acervo, de seu perfil artístico e ideológico.

Imagem 5 - Madeira, ferro, lã de vidro e resina. 135 x 110 x 85 cm. Doação do artista para o acervo MAC/RS. À esquerda caixa de madeira e pedras e, ao fundo, pintura acrílica sobre papelão, ambas do mesmo autor, em montagem na mostra “Arte Gaúcha Contemporânea”, em 1991, promovida pelo IEAVI e reapresentada nas mostras “A Medida do Gesto e O Triunfo do Contemporâneo: 20 anos do museu de arte contemporânea do Rio Grande do Sul”. Fonte: Antunes (1991).

Imagem 6 - Pastel seco sobre papel. 150 x 245 cm. Obra integrante de “O Triunfo do Contemporâneo: 20 anos do museu de arte contemporânea do Rio Grande do Sul”. Doação do artista para o acervo do MAC/RS. Fonte: Haesbaert (2011).

10 Em diferentes momentos os caminhos do MARGS e do MAC/RS se encontram. Para esse artigo não deixa de ser curioso notar que Gaudêncio Fidelis, fundador e primeiro diretor do MAC/RS e José Francisco Alves, segundo diretor do MAC/RS, assumiram em 2011, respectivamente, as funções de diretor e curador-chefe do MARGS, investindo na revisão e atualização do acervo dos dois museus.


Bianca Knaak

X Combatendo injúrias e desencantos, foi justamente a amizade, a proximidade e a cumplicidade dos artistas com os gestores do museu que garantiram sua manutenção e representatividade social. Até por isso, a fragilidade patrimonial e política do MAC/RS se revelam também injustas para com a representatividade de seu acervo. Neste, percebe-se o compromisso com a cena regional, o que transforma o MAC/RS, em alguns momentos, numa espécie de museu comunitário. Um tipo de espaço institucional e de resistência onde, mesmo produzindo e afirmando a ordem simbólica, como explica Huyssen (1997, p. 225), “sempre haverá uma sobra de significados que excedem o conjunto das fronteiras ideológicas, abrindo assim um espaço para a reflexão e a memória contra-hegemônica”. Nessa perspectiva museica - termo utilizado por Huyssen (1997), um museu precisa encaminhar uma política de promoção artística identificada com os grupos locais, observável na especialidade de seu acervo. Mas, tratando-se de um museu de arte contemporânea, que assume o paradoxo de conservar materialmente o presente sem muitos equívocos e lacunas, o museu precisará dispor de obras de referência não apenas regionais. Nesse intuito, as exposições comemorativas aos 20 anos do MAC/RS foram boas oportunidades para que, junto da exibição promocional de seu acervo, o museu pudesse angariar novas obras que lhe permitissem inscrição e status no circuito legitimador da arte contemporânea. XI As chamadas obras fundantes do acervo, aquelas reunidas pelo CABC entre 1991 e 1994, vêm se mostrando incontornáveis para a compreensão narrativa e linear do perfil desejado para a coleção do MAC/RS. Podemos observar isso cada vez que o acervo é revisitado. De tão recorrente, em 2007 o próprio Gaudêncio Fidelis foi convidado para organizar, na Galeria Sotéro Cosme, uma mostra comemorativa dos 15 anos do museu. Sob o título, “Associações livres - ler é acreditar”, Fidelis reuniu então 16 artistas que considera basilares para a compreensão do perfil do acervo. Escolheu obras para evidenciar momentos específicos na trajetória do museu e que seriam partícipes de “um contexto maior”. Idealizador desse acervo, Fidelis reputa a exposição que organizou como um “empreendimento museológico” (FIDELIS, 2007). Neste, ao dispor as obras fundantes da coleção do MAC/RS com as de outros acervos, evidenciaria os acertos dessa coleção ao longo anos, considerando os rumos tomados pelos artistas ali representados. Assumindo o tom biográfico ele declarou sua curadoria como um “ensaio para uma exposição narrada” (FIDELIS, 2007, p. 9). No catálogo virtual, seu esforço argumentativo se dava em favor da construção de uma visualidade que permitisse reconhecer que o MAC/RS é um projeto que continua coerente em sua política inicial de aquisições. A confirmação de sua avaliação pode partir de uma visita aos arquivos do museu, onde observaremos que, depois do CABC, nenhum outro projeto de aquisição foi desenvolvido com a mesma envergadura. Segundo Fidelis (2012, p. 16) os museus precisam trazer “à luz não só as obras que têm permanecido na obscuridade das reservas técnicas, mas

99


Apontamentos sobre modos de ser (e não ser) museu de arte contemporânea em Porto Alegre

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

100

também aquelas que, por não terem recebido o devido apoio institucional, permanecem confinadas aos limites dos ateliês, sem nunca serem vistas”. Nesse intuito, ao promover a visibilidade museológica à produção emergente nacional, presume-se que mais do que os riscos de uma avaliação precipitada, colecionar tais obras permitiria a consolidação de uma tradição e uma história da arte mais plural e acessível fisicamente. O que, aliás, tem sido a preocupação e o lamento de muitos historiadores, considerando a inexistência ou indisponibilidade de obras em acervos públicos para uma efetiva história da arte no Brasil. Portanto, imbuído do compromisso institucional memorialista, em 2012, para “O Triunfo do Contemporâneo: 20 anos do museu de arte contemporânea do Rio Grande do Sul”, o curador solicitou doações a artistas do Rio Grande do Sul e de outros estados. Com isso a exposição pode incorporar ao acervo 59 obras de 32 artistas brasileiros, já devidamente catalogadas desde a sua exibição inaugural na coleção do MAC/RS. A terça parte desses artistas, aproximadamente, já estava representada no museu e doou trabalhos recentes a fim de preencher lacunas do acervo. Os demais, como Yuri Firmeza (imagem 7), Pablo Lobato, Tony Camargo, Sandro Ka, Orlando Maneschy, Marina Camargo, Didonet Thomaz, Gilda Vogt e Dudi Maia Rosa, estrearam na coleção do museu e a adensaram com trabalhos escolhidos pelo curador. Mesmo com vasta programação comemorativa e valorativa de seu acervo, a falta de espaço físico apropriado ainda limita a atuação do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul e, principalmente, afeta seu acervo quando pensamos em necessárias expansões. Nesse sentido, a doação de Dudi Maia Rosa, torna- se um exemplo dessa necessidade. O artista, que doou a pintura em poliéster, fibra de vidro e resina pigmentada (“Sem Título”, 2007, 197 x 197,5 x 06 cm) trazida para “O Triunfo do Contemporâneo”, esperava oportunidade desde 1992 para efetuar a doação prometida para o museu. Naquela época, quando realizou exposição integrando o CABC, a obra apresentada foi uma pintura de 17m e, embora quisesse doá-la, o MAC/ RS, responsavelmente, declinou da oferta por falta de condições técnicas para acomodação do trabalho. XII Apesar da existência dos conselhos consultivos e curadores, as incorporações ao acervo do MAC/RS pedem vigilância.A história ensina que muitos são os equívocos patrimoniais de um acervo. Mais ainda quando dependem de doações. Por isso mesmo, os museus só deveriam aceitar “doações de obras quando elas estão rigorosamente dentro da relação preparada por uma comissão técnica” (AMARAL, 1999, p. 17) do contrário, a doação pode representar “ônus para o Estado, pois toda obra que entra em um acervo significa investimento em pesquisa, conservação, preservação, divulgação” (AMARAL, 1999, p. 17). Além do mais, não bastassem os riscos implicados na custódia das obras, até 2011 poucos itens estavam efetivamente tombados e catalogados. Não há, portanto, um número de acervo progressivamente confiável. Em diferentes períodos, a relação oscila entre um conjunto de menos de 100 e mais de 300 peças. E as discrepâncias desses levantamentos (refeitos a cada nova gestão), contaram sempre com ampla cobertura jornalística: mais de 100 em 1993; 147 em 1994; 99 em 1999, por exemplo, conforme reportagens locais.


Bianca Knaak

Embora não console ninguém, é revelador saber que em outros tantos museus além do MAC/RS também há muito para investir, investigar e lamentar em relação à visibilidade dos acervos de arte contemporânea no Brasil (OLIVEIRA, 2010). Por isso, como Teixeira Coelho (ex-diretor do MAC-USP e atual curador do MASP) há quem defenda que “um museu que pretende, ou só consegue atuar como sala de exposição temporária, deveria doar seu acervo para quem pudesse mantê-lo” (COELHO, 1999, p. 27). Ocorre que, mesmo sendo coerente, em respeito ao patrimônio público a sugestão é impraticável para uma instituição estatal. Por sua vez, a incúria e a inadimplência pública são inevitáveis quando um museu não pode preservar nem ampliar uma coleção com rigor e método. Decorre dessa inviabilidade institucional que muitas das funções sócio-educativas e culturais faltem à compleição do MAC/RS. Nele, apesar das exposições e revisões periódicas do acervo, a museologia ainda não se estabeleceu. E, sem sede apropriada, o museu em si segue incurável. Circular, sua condição é conceitualmente densa, tendo em vista a paradoxal reunião dos princípios museicos de preservação com a precípua mobilidade e instabilidade da arte contemporânea e, ainda, a aridez simbólica de seu regime de consagração. Não obstante, o museu segue em busca de sua identidade, sua sede, seu lugar público e político. Nesse processo de busca e ensaio, que já se configura como a dinâmica de funcionamento do MAC gaúcho, além de colecionar e exibir arte contemporânea no Rio Grande do Sul, o museu também quer ser um dispositivo experimental de práticas colaborativas, democráticas e culturalmente gregárias. Contudo, livre de parâmetros estabilizadores concretos, físicos e conceituais, nossa instituição-coleção amadurece, encontra, desmonta e reinventa seu modo de ser e não ser museu.

Imagem 7 - Fotografia-performance. 70 x 92 cm. Edição de 10 (detalhe). Fonte: Firmeza (2005).

101


Apontamentos sobre modos de ser (e não ser) museu de arte contemporânea em Porto Alegre

Referências

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

102

ALVES JR, Dirceu. Uma década de problemas expostos: museu de arte contemporânea do Estado completa dez anos sem ter sede própria e fechado para o público. Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 05 mar. 2002. Segundo Caderno, capa. AMARAL, Aracy. 500 anos de carência. In: SEMANA DE MUSEUS DE SÃO PAULO ACERVOS MUSEALIZADOS: REALIDADES E DESAFIOS, 2., 1999, São Paulo. Anais... São Paulo: Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, 1999. p. 15-21. ANTUNES, Alexandre. [Sem título]. 1991. 1 fotografia. COELHO NETTO, José Teixeira. Para um museu contemporâneo de arte. In: SEMANA DE MUSEUS DE SÃO PAULO ACERVOS MUSEALIZADOS: REALIDADES E DESAFIOS, 2., 1999., São Paulo. Anais... São Paulo: Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, 1999. p. 27-30. DUARTE, Paulo Sergio. Depoimento. In: SEMINÁRIO CIRCUITOS LATINOAMERICANOS, CIRCUITOS INTERNACIONALES: INTERACCIÓN, ROLES Y PERSPECTIVAS, 2006, Buenos Aires. Anais... Buenos Aires: ArteBA Fundación, 2006.p. 81. FIDELIS, G (Org.).Associações livres: ler é acreditar. Porto Alegre: Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, 2007a. Disponível em: <http://www.cultura.rs.gov.br/E-BOOKAssociacoesLivres_baixa.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2011. FIDELIS, G. Chega de amadorismo. Aplauso Cultura em Revista, Porto Alegre, v. 9, n. 82, p. 36-38, 2007b. Entrevista. FIDELIS, G. Dilemas da matéria: procedimento, permanência e conservação em arte contemporânea. Porto Alegre: Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, 2003. FIDELIS, G. Entrevista. Entrevistador: Bianca Knaak. [S.l.: s.n.]: 2011. Inédita. FIDELIS, G. O museu transformado no outro. In: ______. O triunfo do contemporâneo: 20 Anos do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Imago Escritório de Arte, 2012. FIRMEZA,Yuri. Ação 3. 2005. 1 fotografia. GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Plano diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo aprovado pelo Conselho Administrativo em 9 de junho de 1997. In: SEMANA DE MUSEUS DE SÃO PAULO, 1., 1997, São Paulo. Anais... São Paulo: Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP. 1997, p. 17-26. HAESBAERT, Eduardo. Floresta concretada. 2011. 1 fotografia. HUYSSEN, A. En busca del futuro perdido: cultura y memoria en tiempos de globalización. México D.F: Fondo de Cultura Económica, 2001. HUYSSEN, A. Memórias do modernismo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. KANITZ, Mônica. Cultura no cais no Porto: vai rolar polêmica. Jornal do Comércio, Porto Alegre, 11 mar. 2002. Panorama, capa. KNAAK, Bianca. Arte e sistema: um museu na medida do possível. Jonal Zero Hora, Porto Alegre, 17 dez. 2011. Cultura, p. 03. KNAAK, Bianca. O MAC do Rio Grande do Sul: um museu que resiste (existe?). In: COLÓQUIO DO COMITÊ BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA ARTE, 31., 2011, Campinas, SP. Anais... Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, 2011.


Bianca Knaak

KNAAK, Bianca. Pro tempore: uma idéia contemporânea de museu de arte em exposição. Revista do Atelier Livre da Prefeitura de Porto Alegre, n. 6, p. 10-12, jul. 2012. MUSEU de arte contemporânea realiza mostras itinerantes pelo interior do RS. Gazeta Mercantil, Porto Alegre, 08 fev. 2000. Cultura, p. 6. NASCIMENTO Jr. Estado tem maior número de museus por habitante do país. Jornal Zero Hora, 20 maio 2011. Disponível em: <http://zerohora.clicrbs. com.br/rs/geral/noticia/2011/05/estado-tem-maior-numero-de-museus-por-habitante-do-pais-3317774.html>. Acesso em: 25 ago. 2011. Entrevista. NICOLAIEWSKY,Alfredo.Anjo da guarda. 1993/1994. 1 fotografia, 175 cm x 200 cm OLIVEIRA, E. D. G. de. Museus de fora: a visibilidade dos acervos de museus de arte contemporânea no Brasil. Porto Alegre: Zouk, 2010. PARA restaurar uma ex-obra de arte. Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 08 ago. 2001. Caderno 2, contracapa. RAMOS, Nuno. [Sem título]. 1991. 1 fotografia, 240 cm x 400 cm. RIO GRANDE DO SUL. Decreto nº 34.205, de 04 de março de 1992. Disponível em: <http://www.al.rs.gov.br/Legis/M010/M0100099.ASP?Hid Tipo=TEXTO&Hid_ TodasNormas=16032&hTexto=&Hid_IDNorma=16032>. Acesso em: 28 jul. 2011. RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Cultura. Instituto Estadual de Artes Visuais. Anuário IEAVI 2000. Porto Alegre, 2000. RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Cultura. Instituto Estadual de Artes Visuais. Mostra itinerante do acervo do MAC. Porto Alegre, 1999. VENZON, André. O Mac em busca de casa própria. Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 08 jan. 2011. Cultura, p. 02. Entrevista. VERAS, Eduardo. O Estado em busca das obras perdidas: catorze desenhos e gravuras desapareceram do acervo do Museu de Arte Contemporânea entre 1992 e 1994. Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 03 abr. 1995. Segundo Caderno, capa.

Artigo recebido em abril de 2012. Aprovado em julho de 2012

103


CONSERVAÇÃO DE MATERIAIS EM ARTE E PAPEL: DESAFIOS DA ARTE CONTEMPORÂNEA Thérèse Hofmann Gatti1* Universidade de Brasília

RESUMO: O presente artigo busca discutir os novos desafios para conservadores de obras de arte em papel diante da produção contemporânea. Tais desafios são elencados na intenção de incorporar à discussão técnica e tecnológica as questões próprias às artes. Nesse sentido, é vital compreender o papel do museólogo-conservador diante da produção contemporânea e sua relação com as novas experimentações que têm no papel sua base de especulação poética.

ABSTRACT: We intend to discuss what are the new challenge for the paper art conservator considering the contemporânea art. We discribe some of these challengers intending to get together the tecnics and the tecnological issues os art. For this is essencial to understand the work of the musician-conservator in front of the contemporany art and its relations with the artists esperiments and proposes.

PALAVRAS-CHAVE: papel, conservação, arte contemporânea

KEYWORDS: paper, conservation, contemporany art

1 * Possui graduação em Licenciatura Em Educação Artistica pela Universidade de Brasília (1990), mestrado em Arte e Tecnologia da Imagem pela Universidade de Brasília (1999) e Doutorado em Desenvolvimento Sustentável (2008) pelo CDS/UnB. Foi Diretora de Esporte, Arte e Cultura do Decanato de Assuntos Comunitarios da UnB de 1994 a 1997 e Decana de Assuntos Comunitarios da Universidade de Brasilia de 1997 a 2005. Atualmente é Diretora Cultural da Associação Brasileira Técnica de Celulose e Papel e professora Adjunta Dedicação Exclusiva do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade de Brasília. Sua area de atuação é Artes, com ênfase em Arte Educação. Atualmente é coordenadora do curso de graduação a distância de Licenciatura em Artes Visuais do Programa Prolicenciatura. Sua linha de pesquisa é Materiais em Arte e Papel Artesanal, atuando principalmente nos seguintes temas: materiais para arte educação, papel artesanal, reciclagem, reaproveitamento, celulose e papel, materiais em arte e inclusão social. Detém duas patentes registradas no INPI, Reciclagem de Papel Moeda (1996) e Reciclagem de Bitucas de Cigarro (2003).


Thérèse Hofmann Gatti

Na história vemos uma diversidade de materiais que foram utilizados pelos homens nas mais diversas formas na busca e ânsia de registrar suas ideias, sensações, impressões e criações. Os suportes utilizados nesta caminhada da humanidade pela Terra foram os mais variados. Assim como, também, foram diversificados os instrumentos, cores e tintas que recobriram estes suportes. Nos museus temos a oportunidade de conhecer um pouco desta diversidade. Obviamente, o que chegou até os nossos dias foram os suportes que resistiram ao tempo, às manipulaçoes diversas, aos microorganismos, aos ataques humanos do meio ambiente, etc. Enfim temos contato com os suportes mais resistentes. Um exemplo disso é a Pedra Roseta, famoso exemplar da civilização egipcia que resistiu ao tempo e pode ser apreciada no museu Britânico desde 1802. Mas certamente podemos imaginar, e afirmar, que suportes mais delicados foram amplamente utilizados, tais como folhas e entrecascas de árvores, tecidos, seda, madeiras revestidas de cera, além dos ossos de animais, marfim, pedras, conchas, cordas e metal. Os suportes surgiram e se difundiram de acordo com as especificidades da região onde estava localizada determinada civilização, bem como com as características culturais, políticas, econômicas e religiosas da mesma. A história nos mostra que os sumérios, berço da nossa humanidade, usavam barro para registrar suas ideias. As tábuas de argila, onde desenvolveram a escrita cuneiforme, que utilizava uma espécie de cunha para gravar no barro macio, também tiveram exemplares que resistiram ao tempo chegando ate os nossos dias. Se tomarmos como base os textos sumérios, considerando-se realmente o que primeiro podemos chamar de “escrita”, compreendida como sequência de signos que podiam ser facilmente decodificados, temos, então, como primeiro suporte da escrita, as placas de argila, nas quais os escribas faziam seus registros utilizando objetos pontiagudos de metal, osso e marfim. Esse tipo de escrita é denominado “cuneiforme”(em forma de cunha) (HOFMANN-GATTI, 2007, p. 12).

A famosa biblioteca de Alexandria, construída por Ptolomeu Filadelfo no início do terceiro século a.C. para “reunir os livros de todos os povos da Terra” e destruída mais de mil anos depois, nos revelou vários rolos de papiros e pergaminhos mostrando que, ja naquela época, o arquivo das informações era relevante: Escavações arqueológicas recuperaram uma grande biblioteca na cidade de Ebla, considerada como um famoso centro de instrução da época na Mesopotâmia, onde se pode verificar que, além dos documentos estarem muito bem ordenados como em uma biblioteca moderna, a escrita cuneiforme teve sua expansao desde o sul da Palestina até o norte da Armênia, passando por adaptaçoes a diversas línguas além da suméria, como a acadia, a hitita e a persa (HOFMANN-GATTI, 2007, p. 12-13).

Entre os suportes usados para a escrita, e que antecederam o papel, temos o papiro, que foi desenvolvido pelos Egípcios no ano de 3700 a.C., e se mostrou um suporte adequado ao tipo de escrita hieroglífica. Usando têmperas e pincéis de pelo ou de junco, as pinturas com temas religiosos resistiram ao tempo e vários exemplares chegaram aos nossos dias, com datações que

105


Conservação de Materiais em Arte e Papel: desafios da arte contemporânea

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

106

remontam há cinco mil anos. Até hoje no museu do Cairo, no Egito, são produzidos papiros com o mesmo processo milenar de retirar a casca da planta Cyperus papyrus, deixar de molho para extrair o açúcar e intumescer as fibras. Depois, dispor as tiras em oposição e prensar. Não há uso de colas ou cargas. O material se apresenta extremamente receptivo a tintas mais aguadas e com resistência para ser enrolado e desenrolado várias vezes. A cor mais escura ou mais clara dependerá do tempo de imersão das fibras na tina com água. Este tempo pode ser de uma semana ou mais. O papiro chegou a ser chamado de “papel augusto” pelos Romanos, de tão valorizado que era. Ele foi o precursor do papel. Apesar disso, não podemos chamar o papiro de papel, pois há uma diferença básica no processo de produção dos dois suportes, pois o papel é um emaranhado de fibras de celulose separadas dos outros constituintes das plantas. Já o papiro é fabricado utilizando o caule inteiro da planta retirando-se somente a casca externa.

Figura 1 - Papiro Fonte: A autora.

Além do papiro os Egípcios exportavam também o linho, que era produzido desde 6000 a.C. Com o monopólio egípcio na produção do papiro e com a crescente demanda por suportes para difundir a comunicação, outros povos começaram a pesquisar novos suportes de escrita.Vemos, então, surgir o pergaminho. Diz-nos a história que ele foi desenvolvido como suporte de escrita pelos sumérios na cidade de pérgamo, no reinado de Eumenes II. Sabemos que o couro de animais já era usado desde as cavernas como vestuário, mas o desenvolvimento para suporte de escrita só veio séculos mais tarde. O pergaminho foi o principal suporte de escrita no Oriente e na Europa durante quase toda a Idade Media, chegando a substituir, após o século VII, o papiro em muitos locais. Sua difusão e ampla aceitação se deu, pois a produção poderia ser feita em qualquer local bem como a sua resistência e durabilidade eram maiores que o papiro. No Ocidente, povos como os da Polinésia, Havai, Nova Guine, Java, maias e astecas usavam como suporte dos seus registros entrecascas de árvores tendo desenvolvido a “tapa”, feito a partir das cascas da amoreira, o “huun” oriundo do vidoeiro e o “amatl” da figueira. Até hoje no México se produzem artesanatos com o “amatl”.


Thérèse Hofmann Gatti

Os incas usavam para registro cordas com nós que se chamava quipo, ou quipu. Segundo Bronowiski (1983), estes nós forneciam um sistema de informações intrincado. Cada família registrava nestes quipos sua história, suas posses, terras, gado, grãos, números de nascimentos e mortes. Quando havia um casamento, as duas famílias uniam os quipos. As mensagens chegavam ao inca sob a forma de dados númericos marcados em pedaços de cordões, chamados quipus […]. Os números que descreviam a vida de um homem no Peru eram coletados em uma espécie de cartão perfurado ao reverso, um cartão de computador em braille, organizado sob a forma de nos em um barbante (BRONOWISKI, 1983, p. 101).

O papel só veio a ser descoberto por volta de 105 d.C. Esta data ficou registrada como sendo a da descoberta, pois foi a primeira vez que alguém descreveu por escrito o processo de fabricação do papel. Registros arqueológicos já nos informam da existência de papeis anteriores a esta data. Porém em 105 d.C., Ts’ai Lun, funcionário imperial do imperador Ho Ti deixou registrado para a posteridade a “receita” da produção de papel. Na China há um ditado que diz “Tsáng Chieh fez os blocos de impressão e Ts’ai Lun fez o papel” (HUNTER, 1978, p. 50). E por falar em blocos de impressão, apesar da xilogravura já ser conhecida há séculos pelos orientais, é de Gutemberg o crédito pela impressão de tipos móveis. Em 1450 com a invenção da prensa de Gutemberg o papel se consolida como suporte de escrita. O mundo de papel A história do papel desde o século XV é muito conhecida e seu uso não apenas disseminou um suporte de impressão, mas possibilitou toda uma mudança de comportamento na relação com a informação, no que concerne sua produção, difusão e recepção (CHARTIER, 1999). No atual estatuto da produção de arte contemporânea, o papel passou a ser um elemento que ocupa uma posição dúbia: artefato que remete à tradição acadêmica das artes e, ao mesmo tempo, elemento-suporte crucial para as investigações poéticas atuais. Tanto no que concerne às operações retóricas e metodológicas que rejeitaram o papel (no bojo dos suportes tradicionais) a partir dos anos de 1960, quanto àqueles que o instituíram como forma privilegiada de suas poéticas (pensemos nas obras de Mira Schendel em papel de arroz que se transformaram num pesadelo para reservas técnicas que não controlam as condições de temperatura e umidade), o papel permanece como problema essencial para conservadores dedicados às obras produzidas nos últimos 50 anos. Seja porque sua configuração direta à obra adquiriu uma complexidade ímpar, ou porque se transformou, estranhamente no mundo das novas tecnologias, num suporte-registro que em muito ultrapassa seu caráter documental. Claro, sem contar seu antigo uso como suporte para as diferentes formas de gravação, desenho e pintura. No primeiro caso, os artistas estão continuamente alocando o material a outros materiais. Obras onde o papel é aglutinado a metais (como operar a prevenção da ferrugem e seu impacto sobre o papel), a pigmentos e materiais orgânicos perecíveis (como preservar tais materiais e compreender o impacto sobre o suporte) ou, ainda, alocado em ambientes

107


Conservação de Materiais em Arte e Papel: desafios da arte contemporânea

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

108

sob condições adversas de conservação, como podemos facilmente encontrar em instalações. Na outra ponta, o papel enquanto esboço de práticas amplas do mundo das artes: suporte de projetos, esboços e estudos. Todo um sistema de registro que artistas tão díspares como Edith Derdky, Matheus Rocha Pitta, Marcelo Moscheta, Pitágoras e Eduardo Eloy, Veronica Cordeiro reconfiguraram ao expor as tênues fronteiras entre a criação e o registro. Nesse tocante, a arte contemporânea oferece uma dimensão diversa daquela pretendida pelas estéticas anteriores. Se antes a intencionalidade do artista e da obra estavam marcadas pela busca da perenidade, o que se esperava de um desenho ou de uma gravura era a preservação da informação estética pelo maior tempo possível. Este pressuposto, que ajudou a compor parte considerável das políticas preservacionistas desde o século XIX, não é uma obviedade para a produção atual. Storr (1999) é enfático ao nos lembrar que a produção contemporânea carrega em sua própria engenharia constitutiva a falência de sua perenidade, naquilo que ele denomina como “imortalidade provisória”: “Aging and inevitable wear-and-tear dictate that gradual, if not abrupt, shift will take place from the absolute perceptual apprehension of the object to an increasingly conceptual one.”2 (STORR, 1999, p. 37). Ou seja, na intencionalidade da constituição da informação estética já temos computados o próprio esvanecimento. Tal questão leva-nos diante de um novo paradigma frente toda a história do papel. Enquanto elemento caro e elitista, de domínio impreciso e tecnologia que foi sendo lentamente desenvolvida, como demonstramos anteriormente, o papel enquanto suporte tradicional da arte, frequentemente, segundo padrões de cada período e época, recebia cuidados especiais. O mesmo não acontece com parte considerável dos artistas atuais, que não estão preocupados com a manutenção memorial da obra. É evidente que estamos diante de um fenômeno mais complexo e que há um sentido generalizador nessa questão. Claro que há artistas dedicados ao cuidado com o suporte e alguns extremamente hábeis no manejo com o papel e pesquisadores de seus fundamentos tecnológicos. Todavia não são estes os artistas que merecem atenção dos conservadores de instituições museológicas atualmente. Obras que utilizam papéis e que estão no limite entre a preservação e o esgotamento tem determinado novas condutas nos meios especializados. Para isso é preciso compreender a conservação de bens em papel de modo particular quando se trata das poéticas contemporâneas. Vamos abordar três dessas questões. A primeira diz respeito a ideia de que uma obra deve se manter em sua unicidade irrepetível. Este um fetiche típico da modernidade foi responsável pela construção do discurso patrimonial e museal moderno. A obra como elemento ímpar. Choay (2001) nos apresenta os fundamentos desse processo ao analisar o patrimônio edificado moderno: É claro que o patrimônio arquitetônico não é o único componente da imagem narcisista patrimonial. Essa imago se enriquece como a museificação de todos os campos e tipos de atividade humana. Para retomar a afirmação de um historiador suíço, o museu, que era uma instituição, tornou-se uma mentalidade. Não apenas todos 2 “O inevitável envelhecimento e desgaste determinam que a mudança gradual, as vezes abrupta, ocorrerá entre uma recepção absoluta do objeto e outra, cada vez mais conceitual”. (STORR, 1999, p. 37, tradução nossa).


Thérèse Hofmann Gatti

os savoir-faire e todos os artesanatos desaparecidos ou ameaçados possuem agora seus museus, mas o mesmo acontece com técnicas industriais e seu produto (automóvel, estrada de ferro, fonógrafo, telefone etc.) // Quanto aos museus de arte e às grandes exposições internacionais promovidas sob a égide, seu ecletismo triunfante bem pode significar de uma só vez uma fragilização da atividade estética e um Kunstwollen agonizante, cujas forças criativas se exaurem. O “desejo de arte” contemporâneo parece não fazer mais restrições, nem mesmo manifestar relutância em relação aos monumentos de alguma civilização ou de qualquer época. Ele absorve com avidez, e de forma indiscriminada, o conteúdo inteiro do museu imaginário (CHOAY, 2001, p. 247, grifo do autor).

Tratar essa unicidade e singularidade como sintoma de uma sociedade narcisista foi a meta de pelo menos duas gerações de artistas contemporâneos desde os anos 1970. Artistas despreocupados com obra enquanto elemento unitário e irrepetível. Isso coloca o conservador, sobretudo nos espaços museais, diante de obras que podem ser reproduzidas a qualquer momento e, portanto, a manutenção da obra-primeira não se torna uma prioridade para o seu criador. Nesse sentido, o conservador-museólogo deve estar atento a toda documentação sobre a obra. Uma vez que a própria sobrevida do objeto (pensemos aqui no papel como suporte e/ou elemento poético) não está em constante ameaça diante da precariedade de sua produção. Não apenas a documentação sobre a obra gerada pelo próprio artista é importante, como também todo o registro condicionado, ativamente ou não, pelo próprio profissional. Raramente um conservador questiona o artista sobre a materialidade e a tecnologia do papel utilizado. O principio ordinário da conservação em arte está mais preocupado com a relação entre “pigmentos” e “objetos” depositados sobre o papel que necessariamente com sua constituição técnica, que, aliás, implica na própria relação mencionada. Daí surge um problema clássico: o processo de registro mais utilizado para a manutenção da informação estética de uma obra sobre/em/de papel é a fotografia. Os especialistas sabem que registros fotográficos, sem a consulta do artista, podem induzir a recuperações e restaurações equivocadas. Deve-se ater, por exemplo, a diferença de escala das obras. Uma gravura como “Pente Tempo” de Maria Bonomi, com seus 86,5 x 238 cm de 1993, não pode ser fotografada com a mesma escala que o desenho sobre papel “Sob o peso de meus amores” de Leonilson, de 29x21cm de 1990. Além dessa questão, lembremos que o papel é suporte para as mais variadas técnicas que reagem sob dispersão e absorção da luz de modos diversos. Sem levar em consideração tal característica, o conservador poderá não produzir uma documentação fotográfica adequada à reapresentação ou, em casos cada vez menos raros, à reconstrução da obra no futuro. O que se pede, desta forma, ao conservador é uma postura mais atualizada. Que o profissional não se apegue apenas à conservação de peças, que em muitos casos padeceram de qualquer modo, mas, também, ao registro dessas peças para, como já dissemos, uma reposição integral ou parcial. Para que isso aconteça é preciso que o registro digital ou fotográfico seja acompanhado de uma exaustiva descrição dos materiais e técnicas empregas no trabalho.

109


Conservação de Materiais em Arte e Papel: desafios da arte contemporânea

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

110

Eis a segunda questão que merece atenção diante da produção contemporânea. Nos primórdios da classificação museológica de tal produção, a utilização da expressão “técnica mista” era recorrente. “Técnica mista” foi um refugio confortável para o sistema de catalogação da maioria dos museus brasileiros nas últimas décadas do século XX.Todavia ela se transformou num pesadelo para conservadores e restauradores. Isso porque a variedade da poética contemporânea apela para todos os materiais e técnicas ao alcance dos artistas. Há pelo menos quatro décadas, não há mais materiais típicos da arte – embora possamos afirmar que existam os materiais clássicos da arte. Desta forma, o conservador deve ater-se aos testemunhos dos artistas e contemporâneos para a reconstrução de tais descrições. Tal premissa parece aplicável apenas a instalações, objetos mais complexos ou site specifics.Todavia uma simples gravura ou desenho podem guardar em sua composição técnicas e intervenções que, a olho nu, não são discerníveis, mas que na perspectiva físico-química podem a médio e longo prazo alterar consideravelmente as obras. O ideal é imaginar para cada obra um breve memorial sobre sua constituição e mesmo dados como, por exemplo, a procedência do papel, o fabricante, o período de exposição aos “pigmentos” ou outros processos. Este memorial torna-se um instrumento importante para obedecer a um valor que ainda se faz necessário: a intencionalidade do criador. Isso exigirá do conservador uma visão particular de cada criação. Não há regra para dimensionar como cada obra se relaciona com seu criador. Muitos dedicam-se ao processo de criação de maneira geral, enquanto outros pesquisam cada detalhe de sua produção. E mesmo quando artistas, sobretudo aqueles ligados à arte conceitual, insistem que a obra pode ser alterada ou modificada, caberá ao conservador preservar a obra naquilo que foi a intenção primeira do artista. Essa tarefa é essencial para as políticas e trânsitos do colecionamento das instituições museológicas, uma vez que atinge um ponto sensível na escala das ações mercadológicas e históricas: a autenticidade da obra. A literatura contemporânea (COSTA, 2009) está repleta de artistas, que mesmo denominando-se experimentais, negaram-se a assumir a autoria de obras recriadas ou restauradas. Isso significa um grande prejuízo institucional e econômico para as instituições. Nesse tocante, o conservador-museólogo afeta com seu trabalho diretamente a própria reputação da instituição: “Professional standards for conservators and collection curators dictate that strenuous efforts to be made to preserve any important work of art as originally intended and/or executed by the artist”3 (MILLER, 1993, p. 44). No que concerne às obras sobre/em/de papel é preciso levar em conta o que o artista desejou com sua produção, ao mesmo tempo em que é preciso relativizar tais desejos. Muitos artistas contemporâneos tendem a subestimar sua produção em papel, transformando-as em níveis anteriores de projetos maiores. Todavia, para o conservador tais obras possuem sua individualidade (não podemos confundir com unicidade) e devem ser abordadas de maneira particular, sem rejeitar o amplo processo em que ela está inserida. Não podemos deixar de registrar aqui as obras produzidas quando da redescoberta no ocidente da fabricação artesanal de papel, no final da década de 1970 inicio de 1980, por artistas norte americanos e europeus. Naquele 3 “Padrões profissionais para restauradores e curadores de acervos têm exigido que se façam esforços reais para preservar qualquer trabalho de arte da forma como foi originalmente realizada ou concebida pelo artista” (MILLER, 1993, p. 44, tradução nossa).


ThÊrèse Hofmann Gatti

111

Figura 2 - Pasta de papel prensado com tecido impresso e embutido. Fonte: Rauschenberg (1974).

Figura 3 - Pasta papel prensada. Fonte: Hockney (1978).


Conservação de Materiais em Arte e Papel: desafios da arte contemporânea

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

112

momento a oferta de papel padronizado pela indústria não agradava nem atendia aos anseios criativos dos artistas. O resgate da produção artesanal do papel no ocidente possibilitou aos artistas uma série de criações que ao mesmo tempo permitiam o uso do papel como suporte e como expressão em si, criando o que se chamou de “papel-arte”. Artistas como Walter Melody, Susam Gosin, Franck Stella, Robert Rauschemberg e David Hockney não só começaram a frequentar moinhos papeleiros como usaram a polpa de papel colorida nas suas obras. São famosas as séries “Pages and Fuses” (1973) de Rauschemberg e as “piscinas” (1978) de Hockney onde são usadas polpas coloridas como palheta ao invés de tinta sobre o papel. Nesta produção a própria polpa de papel colorida vai sendo trabalhada nas mais diversas criações. Deste movimento, em 1986, o Museu Leopold Hoechst organiza a primeira Bienal de Papel-Arte, contando com a participação de artistas do mundo inteiro entre eles o brasileiro Otavio Roth. A terceira questão que desejo tratar nesse breve artigo diz respeito à economia da doação. A efetiva maioria dos acervos brasileiros constituíram seus acervos graças a doações de artistas e de colecionadores não-profissionais: O sistema de arte no Brasil é cheio de vícios que dificultam em muito a sobrevivência do artista e sua produção. A meu ver, um dos vícios mais nocivos é a recorrente solicitação de doação de obras aos artistas, pois revela a inexistência de sólidas políticas de aquisição das instituições públicas e privadas, dificultando a atualização e a manutenção de acervos. Esse vício reforça a ideia de que a salvaguarda da produção da melhor arte que aqui se produz depende dos artistas (TAVARES, 2006).

Segundo Oliveira (2010) tais coleções não trazem qualquer informação sobre intervenções anteriores nas obras ou sobre suas propriedades técnicas. Isso acarreta um problema para os conservadores, visto que ao contrário do que advoga o senso comum, parte considerável dos problemas de degradação de uma obra está ligada às condições de sua realização, bem como as condições de seu armazenamento e exposição das obras em momentos anteriores. Obras em papel expostas sob condições de luz inadequada apresentaram perda na qualidade dos pigmentos. Papel em condições inadequadas de arquivamento sofrem ação de fungos e outras pestes. A vida anterior de uma obra em papel é crucial.Também o conservador deve se atentar para o período de produção de determinado papel para identificar se suas fibras são oriundas de resíduos agrícolas (como os papeis mais antigos que eram produzidos de algodão) ou se são fibras de madeira (como os papeis produzidos a partir do século XIX). O papel, por ser altamente higroscópico, requer na sua conservação um ambiente de umidade bem controlada. Vimos que este material/matéria-prima/suporte de quase dois mil anos pode ter uma aparência camaleônica. É no século XX que ele tem sua exploração máxima em termos de criação artística. Dependendo do seu processo de produção ou manipulação pode ser confundido com o vidro, cerâmica, metal, pele, etc. O papel pode ser usado em projetos bi ou tri-dimensionais como expressão em si ou como suporte de desenhos, fotografias, gravuras, pinturas ou como escultura. Quando deixou de ser visto como mero suporte o papel possibilitou uma grande liberdade para o artista passando a ser encarado como material de grande expressividade por si só.


Thérèse Hofmann Gatti

Referências BRONOWSKI, J. A escalda do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1983. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador.Trad. Reginaldo de Moraes. São Paulo: Editora Unesp, 1999. CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. Trad. Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. COSTA, Luiz Cláudio da. Uma questão de registro. In: ______. (Org.). Dispositivos de registro na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa, FAPERJ, 2009. HOCKNEY, David. Piscine avec trois bleus. 1978. 1 fotografia. HOFMANN-GATTI,Thérèse. A história do papel artesanal no Brasil. São Paulo: ABTCP, 2007. HUNTER, Dard. Papermaking: the history and technique of an ancient craft. New York: Dover Publications Inc, 1978. MILLER, A. Sol le witt. Londres: University of Washington Press, 1993. OLIVEIRA, Emerson D. G. de. Museus de fora: a visibilidade dos acervos de museus de arte contemporânea no Brasil. Porto Alegre, RS: Zouk, 2010. STORR, Robert. Immortalité provisoire. In: CORZO. Miguel Angel (Org.). Mortality immortality? Los Angeles: The Getty Conservation Institute, 1999. TAVARES, Ana Maria. Entrevista. O Estado de São Paulo, 05 mar. 2006. Antologia Pessoal, Caderno Cultural. RAUSCHENBERG, Robert.Vale. 1974. 1 fotografia.

Artigo recebido em abril de 2012. Aprovado em agosto de 2012

113


REALISMO E FOTOGRAFIA: DIORAMAS DE HIROSHI SUGIMOTO DO MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DE NOVA IORQUE Angela Prada de Almeida1* Universidade de Brasília

Realism and Photography: Dioramas by Hiroshi Sugimoto. RESUMO: Este texto tem como objetivo analisar a representação dos Dioramas nos Museus de História Natural, tendo como ponto de partida o olhar do fotógrafo japonês Hiroshi Sugimoto. Sugimoto fotografou estes cenários artificiais, colocando em questão o discurso do realismo da imagem fotográfica. O olhar do fotógrafo envolve estruturas de cognição. A visão monocular e a representação do espaço em perspectiva implicam na tradição de conceber o que é visto como “realidade”. Paradigmas do discurso fotográfico e características próprias da fotografia inter-relacionam-se com particularidades da cultura japonesa. As fotografias e ideias imagéticas criadas por Sugimoto sugerem conceitos teóricos e suscitam análises sobre construções culturais: maneiras de conceber a visualidade que nos cerca, a partir do olhar do fotógrafo.

ABSTRACT: This text aims to analyze the representation of the Dioramas, from the viewpoint of Japanese photographer Hiroshi Sugimoto. Sugimoto photographed these artificial scenarios, questioning the realism discourse of the photographic image.The eye of the photographer involves structures of knowledge.The monocular vision and perspective representation implies in the tradition of conceiving what is seen as “reality”. Paradigms of photographic discourse and characteristics of photography inter-relate to the particularities of Japanese culture. The photographs and concepts stated by Sugimoto suggest theoretical debates and raise photographic analysis of cultural constructions: ways of conceiving the visual world that surrounds us, through the gaze of the photographer.

PALAVRAS-CHAVE: Hiroshi Sugimoto, Diorama, Fotografia, Perspectiva, Realismo.

KEY-WORDS: Hiroshi Sugimoto, Diorama, Photography, Perspective, Realism.

1 * Doutora em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Especialista em Jornalismo Cultural pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professora adjunta de fotografia do curso de Artes Plásticas do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UNB). Fotografias publicadas em diversos veículos: The New York Times, Folha de SP, entre outros. Realizou diversas exposições e tem vários textos publicados na área de fotografia.


Angela Prada de Almeida

Hiroshi Sugimoto, artista japonês contemporâneo, parece tomar ao pé da letra a afirmação de Dubois (1993, p. 15) sobre ser impossível pensar a fotografia deslocada de seu ato fundante, daquele que a faz ser. Combinando influências da arte conceitual e da cultura japonesa, a arte do fotógrafo japonês se concentra nos pilares básicos da constituição do ato fotográfico. Sugimoto interpreta e, ao mesmo tempo, subverte os clássicos paradigmas do discurso fotográfico em imagens que desafiam observadores astutos a inquirir sobre a natureza da fotografia e sobre as múltiplas implicações teóricas que esse discurso carrega. Dividido entre um forte espírito tradicionalista japonês e reflexões contemporâneas que interligam obra e discurso, sua trajetória é marcada por influências provenientes dos dois lados do globo. Repartido entre Japão e Estados Unidos, entre antiguidade japonesa e arte contemporânea, contracultura americana e princípios religiosos orientais, o artista recusa rótulos. Resultaria inadequado denominá-lo “artista contemporâneo” ou “fotógrafo japonês”. Articulador visionário, Sugimoto combina, com seu olhar retrospectivo, conceitos contemporâneos e discussões sobre as origens da visão. A própria natureza da escrita da luz2 é colocada em questão imageticamente. O que Sugimoto efetivamente discute em seu trabalho são conceitos da fotografia, a essência do fazer fotográfico que se confunde com o ato de observar o que nos circunda. Além das imagens que estimulam discussões sobre a natureza da fotografia, o artista surge como articulador de poderosos conceitos sobre suas obras. As palavras de luz de Sugimoto nos são ofertadas em entrevistas e pequenos trechos escritos. Econômico em suas declarações, as ideias imagéticas proferidas pelo artista sugerem conceitos. Suas fotografias suscitam análises sobre construções culturais fotográficas: nossa maneira de conceber a visualidade que nos cerca, a partir da fotografia. Dioramas Sugimoto se mudou de Tóquio para Nova Iorque em 1974 e, logo ao chegar, para conhecer melhor a cidade, fez passeios turísticos. Um lugar que chamou especialmente sua atenção foi o Museu de História Natural. O artista se impressionou com uma das principais atrações do Museu de História Natural de Nova Iorque: os Dioramas. Dioramas são cenários especialmente montados, utilizados contemporaneamente em Museus de História Natural, que nos dão a ilusão de realismo. No Museu de História Natural de Nova Iorque, os Dioramas são construídos através de efeitos de luz, fundos pintados e animais empalhados. Esses cenários exibem uma espécie de teatro congelado que nos coloca diante de aparições de habitats que impressionam pelo grau de realismo. Sugimoto se tornou um freqüentador assíduo do museu. Sua motivação para as frequentes visitas foi a configuração dos cenários. Atormentado pela artificialidade dos Dioramas e pelas modificações percebidas ao observá-los com um olho só, o fotógrafo decidiu levar a experiência seriamente: “A natureza da minha visão poderia ser projetada na fotografia, de tal forma que isso pudesse ser a minha arte”3. Sugimoto passou a fotografar os Dioramas com uma câmera formato grande (8X10 polegadas.). A abertura do diafragma 2 O químico e artista britânico Sir John Herschel (1792-1871) foi o inventor do termo “fotografia” que significa literalmente: “escrita da luz” em 1839. 3 “The nature of my vision can be projected into photography so I can call it my art.” (SUGIMOTO, 2006).

115


Realismo e fotografia: Dioramas de Hiroshi Sugimoto do Museu de História Natural de Nova Iorque

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

116

manteve-se constante: F 64. O indicador “F 64” corresponde à menor abertura de diafragma possível neste tipo de câmera. O resultado são imagens com muita profundidade de campo e detalhes precisos em todos os planos. Para compensar a abertura diminuta, o tempo de exposição das fotografias tornou-se extremamente longo (em algumas tomadas, cerca de uma hora). Vestido de preto, para evitar o registro de qualquer tipo de reflexo indesejado sobre os vidros de proteção, Sugimoto utilizou durante as tomadas, uma cartolina preta sobre as áreas mais claras, compensando o tempo de exposição dos planos de fundo, para que os detalhes mais luminosos ficassem registrados. Vejamos alguns exemplos de imagens dos Dioramas do Museu de História Natural de Nova Iorque de autoria de Sugimoto:

Figura 1 - Hyena-jackel-vulture 1976. Fonte: Sugimoto ([1974?]).

Figura 2 - Gorillas, 1994. Fonte: Spector (2000).

O que nos parece indicativo de seu profundo envolvimento com os mecanismos do fazer fotográfico é que, em seu primeiro trabalho autoral, Sugimoto já se debruça sobre um recurso de representação que possui uma correlação muito estreita com a fotografia.Vejamos a seguir.


Angela Prada de Almeida

A invenção do Diorama As origens dos Dioramas datam da primeira metade do século XIX. Jacques Mande Daguerre (1789-1851) antes de se estabelecer como um dos principais inventores da fotografia, por meio da célebre técnica do daguerreótipo, patenteou o Diorama em 1822 como um “método de exibição de imagens” (WOOD, 1857, p. 1). Daguerre foi montador, pintor e decorador de cenários teatrais. Profundo conhecedor de efeitos luminosos, se associou a Charles Bouton (1781 -1853) para montar: “um monumento de exposição de efeitos da pintura (visível durante o dia) com a denominação de Diorama”4 (WOOD, 1997, p. 35, tradução nossa). O primeiro Diorama, foi inaugurado por Daguerre e seu sócio em Paris, no bairro “Fauberg du Temple”. No local de exposição, o público, maravilhado, podia observar imagens imensas (cerca de 20X13 metros) de cenários naturais, construídos por meio de intrincados sistemas de iluminação e pintura. As pessoas ficavam sentadas em cadeiras fixas no interior de um anfiteatro, sobre uma plataforma que girava em torno de um eixo em 360 graus. Os novos teatros de exibição de imagens de Daguerre também foram construídos na Inglaterra. Abaixo, apresentamos uma imagem que ilustra o funcionamento deste intrincado mecanismo de apresentação ilusionística:

Figura 3 - Plano transversal do Diorama construído em Londres. Fonte: Wood (1993).

O ilusionismo ótico era produzido através da utilização de pinturas feitas sobre material translúcido. Com a utilização de um intrincado sistema de luzes, combinando efeitos de reflexão e refração; sombras e tonalidades realísticas emergiam frente aos espectadores. A ilusão de tridimensionalidade era surpreendente. Confortavelmente sentado, o público observava mudanças na imagem que ia variando gradativamente, simulando aspectos naturais de mudança de tempo e clima. O teatro de atrações da visão construído por Daguerre atraiu 4 “Un monument d’exposition d’effets de peinture (visible pendant le jour) sous la dénomination de Diorama” (WOOD, 1997, p. 35).

117


Realismo e fotografia: Dioramas de Hiroshi Sugimoto do Museu de História Natural de Nova Iorque

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

118

um público considerável durante o seu funcionamento. Em Paris, durante os anos mais prósperos, foram contabilizados cerca de 80.000 visitantes, resultando em um negócio bastante lucrativo no comércio das atrações do ilusionismo. Para a época, esse número de espectadores é consideravelmente grande. Ironicamente, o Diorama construído por Daguerre em Paris foi destruído por um incêndio em 1839; apenas três meses após a invenção da técnica que o tornaria um dos mais famosos inventores da fotografia - o daguerreótipo. Os Dioramas nos Museus de História Natural A atração pelos Dioramas foi retomada novamente ao final do século XIX por Museus de História Natural, sobretudo nos Estados Unidos. Algumas mudanças, contudo, devem ser demarcadas. Os Dioramas, nos Museus de História Natural dos Estados Unidos, são denominados Habitat Dioramas (Dioramas de Habitat Natural) e combinam conhecimento científico sobre espécies do reino animal e vegetal com técnicas de reprodução de cenários naturais. Além da reprodução de paisagens em superfícies bidimensionais, há também a introdução de elementos tridimensionais: animais empalhados, reprodução de organismos minerais e vegetais que, combinados, conferem à cena um caráter de realismo. Assim, os Dioramas dos Museus de História Natural oferecem a seus freqüentadores uma espécie de viagem no tempo e no espaço. Os observadores, antes restritos às cadeiras, movimentam-se agora livremente, em frente aos Dioramas, devidamente protegidos por vidros transparentes. Os Habitat Dioramas do Museu de História Natural de Nova Iorque são considerados como uma das principais atrações. Nos salões dos Habitat Dioramas, pode-se observar também a presença de peças de reprodução de animais fora dos vidros. “Ver através de” Steve Quinn, administrador de projetos do Museu de História Natural de Nova Iorque salienta em uma entrevista, o significado do termo “Diorama”, inventado pelo próprio Daguerre: “A palavra Diorama é derivada das expressões gregas: dia ‘através’ e horama ‘como é visto’. Portanto poderia ser traduzido como: ‘ver através de’ ”5 (QUEEN, [2009?], tradução nossa). O significado do termo, interpretado à luz da técnica desenvolvida por Daguerre durante o século XIX, implica em uma observação da natureza “através de” mecanismos de reprodução da luz e da paisagem. Com a introdução dos Dioramas nos Museus de História Natural, a expressão “ver através de” toma novas configurações. Os cenários tridimensionais são observados “através dos vidros” – o primeiro elemento inserido entre o olhar do espectador e a reprodução da natureza. O vidro, aqui, simboliza uma interface entre o olhar e o que está guardado em seu interior – “ver através” do vidro implica uma forma específica de observação. 5 “The word diorama is from Greek: dia ‘through’ and horama ‘as is seen’. So it could be translated roughly as ‘to see through” (QUEEN, [2009?]).


Angela Prada de Almeida

119 Figura 4 - O “Whitney Memorial Hall” no Museu de História Natural de Nova Iorque exibe a vida dos pássaros do Pacífico. Fonte: Coles e Bierwert (1939).

Figura 5 - Salão da vida marinha. Museu de História Natural de Nova Iorque. Fonte: American Museum of Natural History (2003).

Figura 6 - Salão de mamíferos africanos. Museu de História Natural de Nova Iorque. Fonte: American Museum of Natural History ([1936?]).


Realismo e fotografia: Dioramas de Hiroshi Sugimoto do Museu de História Natural de Nova Iorque

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

120

Neste sentido, Screech em sua obra “The Western Scientific Gaze and Popular Imagery in Later Edo Japan” (1996, p. 134), esclarece de maneira instigante concepções da visão ocidental, ao compará-la com as ideias dos japoneses sobre como o mundo deveria ser visto. Ao comparar as duas maneiras de enxergar o mundo, ficam claras as distinções e características próprias da visão ocidental que foram rapidamente incorporadas pelos japoneses. Screech observa que a introdução do vidro durante o Período Edo (1603 -1868) na sociedade japonesa, modificou a relação do olhar do observador com o que era observado. Olhar algo através do vidro implica um distanciamento entre observador e observado. Observar uma espécie contida no vidro reforça uma tradição ocidental do olhar, ao objetificar e tornar científico o que é observado. Bosi (1988, p. 77) em “Fenomenologia do olhar”: “O olho do racionalismo clássico examina, compara, esquadrinha, mede, analisa, separa [...] mas nunca exprime. É um olho capaz de perceber, no objeto, a sua objetualidade; logo tudo tratar como objeto, não sujeito.” Com a introdução do vidro no Japão, Screech (1996) ressalta uma verdadeira mania durante o século XVIII de preservação de espécies animais dentro de recipientes de vidro, embebidas em fluidos embalsamadores. No interior do vidro, as espécies se tornam: “permanentemente resguardadas do exterior e eternamente visíveis” (SCREECH, 1996, p. 143). (figuras 7 e 8) O interior do vidro simboliza um local ideal para a observação cientificista; em seu isolamento, a espécie se oferece para a observação racional e os estudos minuciosos. De maneira análoga, nos museus, conjuntos de peças taxidérmicas são tradicionalmente expostas no interior de cubos de vidro. Assim, os “Dioramas de Habitat Natural” configuram-se como uma espécie de versão mais sofisticada destas primeiras exposições, como se observa na Figura 9. Este tipo de exposição, onde as espécies animais encontram-se isoladas no interior de recipientes de vidro, foi gradativamente sendo modificada para incluir outros elementos na composição. (Figura 10) O vidro transformou-se em uma espécie de janela, através da qual as espécies animais e as características naturais dos habitats poderiam ser observadas. Phillip Fraley, do Museu de História Natural de Los Angeles, ressalta que os Dioramas de Habitat Natural contemporâneos são compostos por três características fundamentais: o primeiro plano (geralmente composto por reproduções de plantas e outras espécies); o elemento principal sobre o qual recai nossa atenção (reprodução de alguma espécie do reino animal ou vegetal) e, finalmente, o plano de fundo (constituído por uma pintura sobre um suporte curvo) (HABITAT VIEWS PART 1). (Figuras 11 a 14) A introdução de elementos tridimensionais e a relação de diferentes proporções entre os planos reforçam a sensação de perspectiva. Por outro lado, os fundos pintados sobre suportes curvos permitem a livre movimentação do visitante e a observação dos Dioramas através de vários ângulos de visão. A seguir, dois exemplos de Dioramas do Museu de História Natural onde se observa, claramente, o fundo pintado e o efeito de perspectiva e de tridimensionalidade.


Angela Prada de Almeida

121 Figura 7 - Hosokawa Shigekata, 1760. Fonte: Screech (1996). Figura 8 - Satake Yoshiatsu (Shozan), 1778. Fonte: Screech (1996).

Figura 9 - Um exemplo antigo de “Habitat Coletivo”, a partir do qual o Diorama se desenvolveu. (c.1900). Museu de História Natural de Nova Iorque. Fonte: American Museum of Natural History ([1900?].

Figura 10 - O chão da floresta. Museu de História Natural de Nova Iorque. Fonte: Rota (1958).


Realismo e fotografia: Dioramas de Hiroshi Sugimoto do Museu de História Natural de Nova Iorque

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

122 Figura 11 - Bongo. Salão de mamíferos africanos. Museu de História Natural de Nova Iorque. Fonte: Rice e Bierwert (1935).

Figura 12 - Bongo. Fotografia de Hiroshi Sugimoto Fonte: Brougher (2010).

Figura 13 - Gambá e Cacomistle. Salão de Mamíferos Norte Americanos. Fonte: McMorrow (2007).

Figura 14 - Pine marten. Salão de Mamíferos Norte Americanos. Fonte: McMorrow (2007)


Angela Prada de Almeida

Sugimoto observa os Dioramas Ao chegar em Nova Iorque em 1974, fiz passeios turísticos. Eventualmente eu visitei o Museu de História Natural onde fiz uma descoberta curiosa: os animais empalhados posicionados frente aos fundos infinitos pintados pareciam extremamente artificiais. Porém, ao fechar um dos olhos e dar uma rápida olhada, toda a perspectiva artificial desaparecia e de repente, tudo parecia muito real. Eu havia descoberto uma maneira de enxergar o mundo do mesmo jeito que uma câmera fotográfica enxerga. Por mais artificial que fosse o objeto, uma vez fotografado, é como se ele se tornasse real6 (SUGIMOTO, [1974?], tradução nossa).

Sugimoto ([1974?]) relata, ao observar os Dioramas, o caráter de artificialidade dos animais posicionados frente aos fundos infinitos. A seguir apresentamos técnicas comumente utilizadas na representação da perspectiva bidimensional que foram adaptadas na construção dos Dioramas, reforçando a perspectiva que tanto incomodava Sugimoto, antes de fechar um dos seus olhos. Obedecendo a leis geométricas, a representação do espaço em perspectiva é traçada por meio de linhas diagonais concêntricas que convergem ao chamado “ponto de fuga” e pela distribuição de proporções em escala das figuras representadas. Para reforçar a sensação de perspectiva, deve haver diferença de luminosidade entre os planos e falta de definição do plano de fundo (frequentemente pintado em azul). Vejamos o Diorama dos Gorilas fotografado por Sugimoto, nas figuras 15 e 16. O Diorama dos Gorilas é considerado uma das representações de destaque do Museu de História Natural de Nova Iorque. O distanciamento entre os planos é reforçado pelo contraste de luminosidade e definição entre os elementos em primeiro plano - troncos e vegetação- e aqueles ao fundo (em tom azulado) – animais, montanhas e nuvens. Neste Diorama, percebemos claramente a existência de linhas diagonais concêntricas, convergindo para um ponto de fuga localizado no cume da montanha do plano de fundo. Ostrower (2004, p. 71) ressalta que linhas diagonais traçadas na imagem, vistas em conjunto com as horizontais e as verticais introduzem também a dimensão de profundidade.Vejamos como estas linhas poderiam ser traçadas neste Diorama, conforme figura 17. As linhas demarcadas se configuram como mais um indicador de relação de tridimensionalidade entre os elementos que compõe o diorama. De fato há uma diversidade de direções nas linhas, reforçando volume e perspectiva na cena. Ostrower (2004) segue ressaltando que superposições e relação entre espaços “cheios/vazio” – são características espaciais próprias da tridimesionalidade. Assim, no Diorama dos Gorilas, percebemos a relação de superposição entre um espaço que aparece repleto de elementos nos planos mais próximos ao observador (galhos, troncos, vegetação e animais), em contraste com o plano de fundo – praticamente vazio, isolado em sua representação clara e nebulosamente indefinida. 6 “Upon first arriving in New York in 1974, I did the tourist thing. Eventually I visited the Natural History Museum, where I made a curious discovery: the stuffed animals positioned before painted backdrops looked utterly fake, yet by taking a quick peek with one eye closed, all perspective vanished, and suddenly they looked very real. I’d found a way to see the world as a camera does. However fake the subject, once photographed, it’s as good as real” (SUGIMOTO, [1974?]).

123


Realismo e fotografia: Dioramas de Hiroshi Sugimoto do Museu de História Natural de Nova Iorque

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

124

Figura 15 - Diorama dos Gorilas. Museu de História Natural de Nova Iorque. Fonte: American Museum of Natural History ([1936?].

Figura 16 – Gorillas. Museu de História Natural de Nova Iorque. Fotografia de Hiroshi Sugimoto. Fonte: Spector (2000).

Figura 17 - Linhas diagonais, horizontais e verticais traçadas sobre a fotografia de Hiroshi Sugimoto Fonte: A autora.


Angela Prada de Almeida

Se a observação “in loco” com os dois olhos, experimentada por Sugimoto sugere um certo exagero ou superlativo de real, é justamente porque a visão binocular nos traz, a todo momento, a sensação de profundidade dos objetos no espaço.A visão binocular, também denominada visão estereoscópica é resultado da associação de imagens de cada um dos nossos olhos, resultando em uma percepção do campo visual em três dimensões (RUDOLPH; MUELLER, 1968, p. 81). Sugimoto (2006, tradução nossa) relata a experiência de observação dos Dioramas: “Temos dois olhos e não somente um olho portanto […] se você observa os Dioramas com os dois olhos, instantaneamente, você percebe os planos como se estivesse posicionado a três metros, mas quando você fecha um dos olhos, você perde a percepção do plano de fundo”.7 Para Sugimoto (2006), é justamente através da fotografia que o estranhamento se desfaz e os Dioramas adquirem a aparência de realidade. A dissimulação estética se desfaz por meio de um ato fundamental – fechar um dos olhos: “[...] ao fechar um dos olhos e dar uma rápida olhada, toda a perspectiva artificial desaparecia e, de repente, tudo parecia muito real.”8 Enxergando o mundo da mesma maneira que uma câmera fotográfica, Sugimoto (2006) atesta: “Por mais artificial que fosse o objeto, uma vez fotografado, é como se ele se tornasse real.” 9 Assim, ao observar os Dioramas com apenas um dos olhos, os planos sofrem um nivelamento, a configuração do espaço toma contornos bidimensionais e, para o fotógrafo, esse tipo de configuração se torna mais próximo daquilo que ele concebe como “realidade”. Desta forma, a visão monocular de Sugimoto, tal qual a lente de uma máquina fotográfica, organiza “verdadeiramente” o espaço diante do seu olho. Enxergar monocularmente transforma o olho de Sugimoto em um instrumento captador da imagem análogo a um aparelho ótico, mais especificamente à lente de uma câmera. Contidos no interior do vidro; transformados em imagem fotográfica pelo olhar monocular de Sugimoto, os animais e a paisagem convertem-se em objetos de observação científica. O real parece, assim, estar muito mais presente enquanto conceito do que como uma maneira específica de enxergar. Porém, a afirmação de Sugimoto contém algumas contradições: enxergar monocularmente um ambiente construído em perspectiva não basta. A artificialidade do Diorama parece subsistir. O Diorama dos Gorilas requer uma observação mais atenta. O superlativo de real no Diorama dos Gorilas. A linguagem de cognição estruturada pelos cenários do Diorama reforça a tradição dos Teatros construídos originariamente por Daguerre: a de provocar um deslumbramento nos espectadores diante do que é observado. Este tipo de atração em relação à visão do ambiente natural, remonta às origens da fotografia de natureza e de animais. Ao denotar o mundo, a fotografia possui como principal objetivo um caráter quase que didático – 7 “We have two eyes and not just one eye, so ... if you look at the Diorama with two eyes you instantly measure the backdrops as ten feet away but when you close one eye, you lose this sense of depth” (SUGIMOTO, 2006). 8 “[…] Yet by taking a quick peek withone eye closed, all perspective vanished, and suddenly they looked very real” (SUGIMOTO, 2006). 9 “However fake the subject, once photographed, it’s as good as real” (SUGIMOTO, 2006).

125


Realismo e fotografia: Dioramas de Hiroshi Sugimoto do Museu de História Natural de Nova Iorque

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

126

ensinando aos espectadores quais elementos integram o “real”. Os fotógrafos se constituem como testemunhas oculares dos fatos e das cenas mais surpreendentes e estruturam a imagem da natureza como um registro científico – a verdade da paisagem. Ora, Phillip Fraley, vice-presidente do Museu de História Natural de Los Angeles, caracteriza os Dioramas enquanto “registro”: “Estes se tornaram os únicos registros que temos”, Fraley também parece ter sido confundido por uma espécie de trompe-l’oeil (efeito de ilusão de ótica) do cenário. A visão dos observadores dos Dioramas sofre uma espécie de catequização: a realidade “natural” seria constituída tal qual aparece representada nos cenários. Ora, a própria estruturação da linguagem fotográfica e dos credos associados a esse tipo de imagem tem um caráter didático e demonstrador. Assim como se aponta uma máquina para a realidade, apontam-se as imagens, através do dedo do fotógrafo, do cientista ou do técnico, que atesta para o observador o olhar monocular: aqui está o real. Mas, este credo sobre a denotação da imagem é uma verdade fabricada, uma realidade ilusionística. Se as primeiras imagens mostradas para o público frequentador dos Teatros do Diorama eram montadas através de intrincados sistemas de ilusionismo ótico, o trabalho dos criadores dos Dioramas, nos Museus, também confirma uma produção sofisticada; uma montagem exaustiva do que é alçado à categoria de “realidade”. Nesse sentido, ao observarmos o Diorama dos Gorilas, percebemos justamente a utilização dos clichês mais fundamentais da fotografia e da representação em perspectiva. O cenário parece realizar um movimento de auto-explicação, reafirmando muitas das regras de composição utilizadas com frequência em manuais de fotografias que nos ensinam, com uma didática repetitiva, “como tirar uma boa foto”. O Dioramas dos Gorilas talvez seja a combinação ideal entre visão fotográfica e cientificismo colecionista, em um cenário artificialmente “natural”. O superlativo de real se estrutura de forma pungente nesse paraíso dos primatas. Nesse sentido, na cena parada, temos a morte/congelamento dos animais, o fundo em perspectiva, a cena denotadora de hábitos dos gorilas – uma espécie de cenário fotográfico em três dimensões, congelado para uma posteridade de frequentadores do museu. Além da exagerada tridimensionalidade, o cenário é estruturado para um olhar que observa um mundo oticamente construído. O estranhamento, contudo, surge de algumas combinações improváveis no universo da fotografia, como veremos mais adiante. Representar um cenário natural significa uma espécie de congelamento temporal do espaço. O registro de um ambiente através da máquina fotográfica transforma o que é real em dados representativos. Preservado estaticamente, o ambiente natural estrutura-se como paisagem, vista. É um ambiente propício para a observação científica. A relação entre estética e cientificismo, arte e técnica, nos parece bastante clara neste cenário; ao adquirir um caráter imagético, o ambiente natural entra em uma esfera de observação e entendimento que combinam fruição estética, conhecimento e didática cientificista. Ao entrar para o universo da representação, o Gorila sai do mundo natural para se transformar em um registro. Vejamos, a seguir, algumas correlações entre os mecanismos do fazer fotográfico e a construção do Diorama dos Gorilas. (Figura 18)


Angela Prada de Almeida

Este Diorama é considerado justamente como uma das atrações principais do Museu de História Natural de Nova Iorque e foi concebido por Carl Akeley; explorador, conservacionista, taxidermista, escultor, cinegrafista e fotógrafo. Akeley foi uma espécie de mentor dos Dioramas do Museu de História Natural de Nova Iorque. Suas experiências estão reunidas no livro: “In brightest Africa” (AKELEY, 1920). O livro é uma espécie de diário de bordo, relatando todas as aventuras nas expedições em busca de espécies para compor os Dioramas do Museu de História Natural de Nova Iorque, no início da década de 20. Na época, era comum buscar espécies “in loco” para o acervo dos Museus europeus e americanos. Inspirado pelo espírito colecionista, Akeley partiu para uma expedição ao Congo Belga, na área dos vulcões Kivu, em busca de espécies de gorilas para compor o mais famoso Diorama do Museu de História Natural de Nova Iorque. Akeley foi acompanhado por um grupo de assistentes nativos com bom conhecimento da área, para caçar, filmar e fotografar os gorilas.Apesar de experimentar um sentimento de remorso por matar gorilas (AKELEY, 1920, p. 217), em nome da preservação científica, abateu os três animais que hoje estão em exposição no Diorama. Após o abate do animal, o time de assistentes contratado por Akeley entrava em ação, retirando a pele e os ossos do gorila para a reconfiguração taxidérmica. Para preservar os traços fisionômicos exatos dos animais abatidos, Akeley confeccionava máscaras mortuárias. (Figura 19) A questão da preservação fidedigna de cada uma das espécies era fundamental. As peças taxidérmicas eram formadas de uma escultura construída a partir do esqueleto e das dimensões originais do animal. Em sua saga de preservação realista,Akekey (1920, p. 211) empreendia um trabalho exaustivo: fotografava o conjunto dos ossos do animal, os pés, as mãos e a cabeça, confeccionava uma máscara mortuária, preservava o cérebro, os órgãos internos e o couro do animal e registrava inúmeras medidas. O trabalho era denominado por Akeley (1920, p. 211) de “scientific collecting” (“colecionismo científico”). Para uma boa preservação do animal havia a necessidade de tirar a pele, limpar, medir, preservar e fazer anotações; tudo de uma só vez. A maneira como Akeley (1920, p. 220) narra a caçada aos gorilas é extremamente parecida com a forma como descreve a filmagem e registro fotográfico dos animais. A sequência básica tanto para o registro de imagens quanto para a caça era sempre a mesma: seguir as pegadas, avistar os animais, chegar o mais próximo possível e mirar – a câmera ou a arma. Akeley (1920, p. 220) aproxima o ato da caça à captura de imagens e se refere à expedição de filmagem como: “Caçada ao gorila com a câmera de movimento”10. A caçada às imagens dos gorilas retira-os de seu ambiente natural para transpô-las a uma esfera representativa. Mortos, são representados em um teatro fotográfico pseudo-naturalista. Além da coleta das quatro espécies representadas no Diorama, a expedição de Akeley tinha como objetivo reunir diferentes elementos para a construção do cenário. Houve uma preocupação com a seleção de um plano 10 “Gorilla hunt for the moving picture camera”.

127


Realismo e fotografia: Dioramas de Hiroshi Sugimoto do Museu de Histรณria Natural de Nova Iorque

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nยบ2, jul/dez de 2012

128

Figura 18 - Diorama dos Gorilas. Fotografia de Hiroshi Sugimoto. Fonte: Spector (2000).

Figura 19 - Carl Akeley e a mรกscara mortuรกria de um dos gorilas abatidos. Fonte: Akeley (1924).


Angela Prada de Almeida

de fundo interessante para compor o Diorama. Akeley realizou uma filmagem em panorâmica das montanhas que compõem o plano de fundo do cenário e a reprodução em tinta no plano de fundo foi realizada no retorno ao Museu, a partir da cena filmada. A análise do Diorama de Akeley suscita questões intrigantes, sobretudo quando analisadas do ponto de vista da fotografia realizada por Sugimoto.Vejamos. O resultado da composição fotografada por Sugimoto foi de uma cena que nunca existiu. O resultado imagético, na verdade, retoma uma idéia elaborada por Carl Akeley. Mesmo que Sugimoto ([1974?]) afirme: “Por mais artificial que fosse o objeto, uma vez fotografado, é como se ele se tornasse real” um certo estranhamento da visão ainda persiste. Toda a composição elaborada cuidadosamente por Akeley, deixa entrever características visuais que, quando reunidas, sugerem a artificialidade, o superlativo de real. Sugimoto, por sua vez, em sua saga por uma fotografia que comenta seu próprio status ontológico, procura exagerar o tom de realismo reproducionista ao extremo, escolhendo a abertura de diafragma mais diminuta possível para este tipo de fotografia. O efeito é uma imagem com muita profundidade de campo e detalhes precisos, do primeiro plano ao plano de fundo. O resultado gera uma imagem totalmente incompatível com uma fotografia de gorilas em seu ambiente natural, justamente pela fidedignidade e pelo excesso de detalhamento em todos os planos. A fotografia remete a um realismo impossível, voltando-se como um comentário irônico sobre a própria impossibilidade de duplicação do real. Brougher em seu texto “Impossible photography” (2010, p. 20) ressalta um dado fundamental sobre o estranhamento visual das fotografias dos Dioramas: toda a cultura visual sobre a representação de animais ferozes se apóia em fotografias realizadas com lentes teleobjetivas. Ora, uma das obsessões de Akeley era conseguir uma fotografia dos Gorilas de forma bem próxima. Em seu diário de expedição ele relata: “Seria muito grafiticante se eu conseguisse fazer uma fotografia a uma distância de seis metros”11 (AKELEY, 1920, p. 197, tradução nossa). Tal proximidade de um bando de gorilas seria no mínimo perigosa. Ao pesquisarmos na internet fontes de imagens e vídeos sobre essas criaturas, os resultados mais frequentes são fotografias em close de rostos de gorilas, combinadas com filmagens realizadas a uma distância de segurança dos animais – em sua vasta maioria com a utilização de lentes teleobjetivas. A utilização da lente teleobjetiva gera, como resultado visual, uma menor profundidade de campo, com pouco detalhamento no plano de fundo. A maioria das fotografias encontradas ressalta closes e expressões faciais dos gorilas. (Figuras 20 a 22) Por outro lado, encontradas de forma menos frequente, fotografias de bando de gorilas são realizadas com enquadramentos mais fechados, em meio a uma vegetação densa. Observamos que, em todas as fotografias abaixo, os gorilas permanecem bastante próximos. (Figuras 23 a 25) Ora, quando comparamos esses tipos de tomadas com a fotografia de Sugimoto, a artificialidade da composição salta aos olhos.

11 “I shall feel very gratified if I can get a photograph at twenty feet” (AKELEY, 1920, p. 197).

129


Realismo e fotografia: Dioramas de Hiroshi Sugimoto do Museu de História Natural de Nova Iorque

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

130

Figuras 20–22 - Fotografias mostrando closes e expressões faciais de gorilas. Fontes: Fig. 20 - Satellites map volcanic... (2004); Fig. 21 - Moeller (2005); Fig. 22 - Audley Burma Gallery (2008).

Figuras 23–25 - Bando de gorilas, fotografias com enquadramento mais fechado. Fontes: Fig. 24 - Mountain gorilla family ([2008?]); Fig. 25 - Adventure trails([2000?]).


Angela Prada de Almeida

131 Figura 26 - Diorama dos Gorilas. Fotografia de Hiroshi Sugimoto. Fonte: Spector (2000).

Ao contrário do realismo que Sugimoto advoga, a fotografia parece extremamente artificial. Justamente porque se afasta do repertório imagético da cultura visual sobre imagens de gorilas construídas por outros fotógrafos. O enquadramento aberto, o excesso de detalhamento em todos os planos, a distância entre os animais tornam a imagem estranhamente deslocada. O artificialismo salta aos olhos, por combinar um excesso de elementos representativos improváveis que, associados, geram uma visão idílica de uma espécie de paraíso dos gorilas, completamente diversa de registros fotográficos reais. Observemos, também, o primeiro plano – um artifício extremamente ressaltado em manuais de fotografia– a criação de uma “margem” que emoldura o espaço percebido. A folhagem, os galhos e o cipó que emolduram graciosamente o cenário servem como elementos que direcionam nosso olhar para o que será observado. Há um cuidado estético análogo ao do drapeado das cortinas do teatro; as margens, na esfera representativa, reforçam para os observadores que o cenário é uma representação ficcional. O fotógrafo utiliza os elementos que compõem o próprio cenário como moldura para o que será observado; o pano de abertura é a própria natureza – os galhos, troncos e folhagem emolduram a cena e dirigem o olhar do espectador para ela; o grau de “naturalismo” é ainda mais reforçado. Se os antigos Dioramas de Daguerre representavam a exuberância da natureza e eventos históricos, no Diorama de Sugimoto temos a conjugação dessas duas instâncias. O ambiente natural é transformado em evento histórico: a ilustração de um bando da família dos gorilas em seu ambiente paradigmático – as montanhas africanas. Em um instante congelado, “momento decisivo”, o gorila macho bate no peito. Uma das expressões claras de liderança sobre o bando e um sinal claro para o estranho que se aproxima – mantenha distância. A imagem grande angular de Sugimoto resulta num paradoxo: ela evidencia uma proximidade impossível. A artificialidade da cena tem ainda mais um elemento: o plano de fundo. Nos escritos de Akeley (1920, p. 230), indica-se que o plano de fundo foi elaborado a partir de uma filmagem realizada em grande angular, após a morte de um gorila. Em um momento raro, a névoa que encobria com frequência o habitat natural dos gorilas havia desaparecido. De um local de visão privilegiada, o vulcão Mikeno foi enquadrado exatamente no ponto de fuga, no centro da composição. Sobre a paisagem, Akeley (1920, p. 230, tradução nossa) des-


Realismo e fotografia: Dioramas de Hiroshi Sugimoto do Museu de História Natural de Nova Iorque

creve: “ [...] uma floresta ancestral de uma maravilhosa beleza, diferente de qualquer outra coisa que eu conheça, um verdadeiro reino encantado.”12.

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

132

Nesse sentido, até mesmo a paisagem no plano de fundo aparece como um excesso representativo. Justamente por se distanciar da configuração paisagística habitual da região - com frequência encoberta por uma névoa. A quimera visual fotografada por Sugimoto é de uma paisagem grandiloquente e impossível. O Diorama dos Gorilas é, antes de mais nada, um espaço de credos sobre a própria estrutura da representação fotográfica. A natureza repousa silenciosa, os elementos representativos estão todos em seu devido lugar – da margem ao plano de fundo. A estrutura da ação é congelada, a fantasia imaginativa de um momento decisivo da natureza. O que é visto está cada vez mais distante do que concebemos como real. Afastado cada vez mais do realismo, Sugimoto fotografa uma quimera visual, apenas um teatro de atrações da visão, um bando de gorilas empalhados; a fantasia imaginativa de Carl Akeley. Referências ADVENTURE TRAILS. Gorilla tours: mountain gorilla trekking trips in Uganda, Rwanda and Congo. [2000?]. Disponível em: <http://www.gorillatours.co.ug.>. Acesso em: 10 dez. 2010. AKELEY, Carl Ethan. In brightest Africa. New York: Garden City, 1920. Disponível em: <http://www.archive.org/details/inbrightestafricakel>.Acesso em: 05 mar. 2011. AKELEY, Carl. Carl Akeley contemplates plaster death mask of mountain gorilla. 1924. 1 fotografia. Disponível em: <http://www.stephencquinn.com/ AFC_expedition11_archphotos.html>. Acesso em: 16 jul. 2011. AMERICAN MUSEUM OF NATURAL HISTORY. Akeley hall of african mammals. New York, [1936?]. AMERICAN MUSEUM OF NATURAL HISTORY. Habitat group. NewYork, [1900?]. AMERICAN MUSEUM OF NATURAL HISTORY. The milstein hall of ocean life. New York, 2003. Disponível em: <http://www.amnh.org/exhibitions/ permanent-exhibitions/biodiversity-and-environmental-halls/milstein-hall-of-ocean-life>. Acesso em: 24 jul. 2012. AUDLEY BURMA GALLERY. Mountain gorilla, Rwanda. 2008. 1 fotografia. Disponível em: <https://secure.audleytravel.co.uk/burma/view/C_RW_Mountain+g orilla+eating+stinging+nettles_0000146062_.jpg.html>.Acesso em: 26 fev. 2010. BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar. In: NOVAES, A. (Ed.). O olhar. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. BROUGHER, Kerry . Impossible photography. In: BROUGHER, Kerry; MULLER –TAM, Pia. Hiroshi Sugimoto. 2nd. ed. Ostifildern: Hatje Cantz, 2010. COLES, Charles H.; BIERWERT, Thane L. Visitors viewing dioramas, Whitney Memorial Bird Hall. New York: American Museum of Natural History, 1939. Disponível em: <http://images.library.amnh.org/photos/ptm/catalog/ desc/165076/3>. Acesso em: 15 jun. 2011. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. 7. ed. Campinas: Papirus, 1993. HERSHBERGER, Andrew. The past, present and Future of the history of pho12 “There stretched a primeval forest of marvelous beauty – in character unlike anything else I know – a veritable fairyland” (AKELEY, 1920, p. 230).


Angela Prada de Almeida

tography: interviews with Peter C. Bunnell, Gretchen Garner and Britt Salvesen. History of Photograhy, New York, v. 30, n. 3, p. 203-211, 2006. MCMORROW, Brian J. Cacomistle, gallery of North American mammals. New York: American Museum of Natural History, 2007. MIDLEY history of early photography: R. Derek Wood’s articles on the History of early Photography, the Daguerreotype and Diorama. MOELLER, Wolfgang. Mountain gorilla: silverback in volcanoes national park in Rwanda. 2005. 1 fotografia. Disponível em: <http://www.treknature.com/ gallery/Africa/Rwanda/photo38000.htm>. Acesso em: 30 jun. 2010. MOUNTAIN gorilla family. [2008?]. 1 fotografia. Disponível em: <http://www. fanpop.com/spots/primates/images/489135/title/mountain-gorilla-family-wallpaper>. Acesso em: 10 dez. 2010. MUELLER, Conrad G; RUDOLPH, Mae. Biblioteca científica life: luz e visão. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1968. OSTROWER, Fayga. Universos da arte. 24. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. QUEEN, Stephen. Transcript: history of the diorama. [2009?]. Disponível em: <http://www.amnh.org/exhibitions/virtual/bison/transcripts/diorama.php.> Acesso em: 05 fev. 2009. RICE, H. S.; BIERWERT,Thane L. Bongo group, african hall. New York: American Museum of Natural History, 1935. Disponível em: <http://images.library.amnh. org/photos/ptm/catalog/desc/148361/1>. Acesso em: 19 jul. 2011. ROTA, Alex J. Display case, life on the forest floor exhibit, forestry hall. New York:American Museum of Natural History, 1958. Disponível em: <http://images. library.amnh.org/photos/ptm/catalog/desc/175004/3>. Acesso em: 19 jun. 2011. SATELLITES map volcanic home of Africa’s endangered gorillas. ScienceDaily, June, 2004. Disponível em: <http://www.sciencedaily.com/releases/2004/06/040630082718.htm>. Acesso em: 26 jul. 2011. SCREECH,Timon.The western scientific gaze and popular imagery in later edo japan: the lens within the heart. 1st. ed. New York: Cambridge University Press, 1996. SUGIMOTO, Hiroshi. Dioramas. [S.l.: s.n.]: [1974?]. Disponível em: <www.sugimotohiroshi.com/diorama.html>. Acesso em: 03 abr. 2009. SUGIMOTO, Hiroshi. Meet the artist: Hiroshi Sugimoto. [S.l.: s.n.], 2006. (Hiroshi Sugimoto Podcasts). Disponível em: <http://www.hirshhorn.si.edu/collection/sugimoto/#detail=/bio/hiroshi-sugimoto-podcasts/&collection=sugim oto>. Acesso em: 29 maio 2009. WOOD, Derek.Arrowsmith’s patent nº 4899: diorama, or method of exhibiting pictures. Midley History of Photography, London, n. 4899, p. 1-7, 1857. Disponível em: <http:// www.midley.co.uk/diorama/Diorama_Patent_2.htm:.Acesso em: 13 maio 2009. WOOD, Derek. Daguerre and his diorama in the 1830s: some financial announcements. Photoresearcher, London, n. 6, p. 35–40, 1997. Disponível em: <http://www.midley.co.uk>. Acesso em: 06 abr. 2009. WOOD, R. Derek. The diorama in Great Britain in the 1820s. Quarterly Journal History of Photography, v. 17, n. 3, p. 284-295, 1993. Disponível em: <http:// www.midley.co.uk/>. Acesso em: 19 maio 2011. Artigo recebido em maio de 2012. Aprovado em julho de 2012

133


PROGRAMAS EDUCATIVOS EM MUSEUS: UM ESTUDO DE CASO Anamaria Aziz Cretton1* Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular Diana de Souza Pinto2** Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Educational Programs in Museums: a case study RESUMO: Este artigo discute as práticas comunicativas institucionais co-construídas pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP) e por uma escola Municipal do Rio de Janeiro com base em um estudo de caso de natureza etnográfica. A análise do corpus suscita reflexões sobre questões conceituais relativas às noções de folclore e cultura popular, segundo as diferentes perspectivas de ambas as instituições. Argumenta-se em favor do reconhecimento das ações educativas em museus e da necessidade de maior interação/ mediação entre os campos da museologia e da educação.

ABSTRACT: The aim of this paper is to discuss the institutional communication practices jointly constructed by the National Center of Popular Culture (CNFCP) and a public school located in the city of Rio de Janeiro, Brazil, based on an ethnographic case study.The corpus analysis suggests conceptual issues related to folklore and popular culture according to the different perspectives of each institution. Arguments are presented in favor of recognizing the existence of educational initiatives in museums and the need for greater interaction/mediation between the fields of museology and education.

PALAVRAS-CHAVES: Museu, Educação, Práticas comunicativas institucionais, Mediação, Folclore, Cultura popular.

KEY WORDS: Museum, Education, Communicative Institutional Practices, Mediation, Folklore, Popular culture.

1 * Mestre em Memória Social pelo Programa de Pós-Graduação da UNIRIO, com especialização em Literatura Infanto juvenil, pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e em Leitura: teoria e prática, pela UniverCidade. Atuou em projetos de leitura e contadores de histórias junto ao PROLER (Programa Nacional de Incentivo à Leitura), LerUERJ (Programa de Leitura da UERJ) e ao Leia Brasil (Petrobras); é integrante do “Confabulando contadores de histórias” desde sua fundação em 1994. Foi professora em escolas particulares do Rio de Janeiro e do Instituto de Artes da UERJ. Atualmente trabalha no Programa Educativo do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. 2** Possui graduação em Letras pela PUC-RJ, mestrado em Linguística Aplicada e doutorado em Psiquiatria, Psicanálise e Saúde Mental, ambos pela UFRJ. É professora da UNIRIO, atuando no Programa de Pós-Graduação em Memória Social. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Análise do Discurso sob a perspectiva sócio-interacionista, atuando, principalmente, nos seguintes temas: narrativas, práticas comunicativas institucionais, e memória social.


Anamaria Aziz Cretton, Diana de Souza Pinto

Para escrever este artigo, tomamos por base uma pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO3. O estudo se insere no campo de investigação que visa a examinar as ações educativas desenvolvidas no âmbito de centros culturais considerando-as como ações mediadoras entre essas instituições e o público escolar (GOUVÊA; MARANDINO; LEAL, 2003; SANTOS, 2008). Apesar de existir um número significativo de estudos nessa área4, é um campo que carece de avaliações sistemáticas permanentes e, portanto, fértil para investigações científicas. Para introduzirmos o tema da educação em museus, será necessário traçarmos uma breve historiografia sobre as instituições museais, apontando alguns marcos que fundamentam ampliações conceituais e a necessidade de diálogo entre os dois diferentes campos do conhecimento: educação e museologia. A aproximação entre museu e escola teve início na França e na Inglaterra, no fim do século XIX e início do XX. O motivo que leva os serviços educativos em museus a privilegiarem o público escolar justifica-se pela constatação de que 90% dos visitantes se constitui por estudantes. Na década de 1930, a divulgação científica encontra, na instituição museal, um dos seus canais de difusão e comunicação com o público escolar e, ao mesmo tempo, justifica sua função social. De fato, os museus de ciência são os museus que investem com maior expressividade em programas educativos e são também contemplados por um número maior de estudos de avaliação de suas ações educativas. O International Council of Museums (ICOM), vinculado à UNESCO, promoveu em 1952, em Nova York, um seminário sobre o papel dos museus na educação, reunindo educadores e técnicos. Nessa ocasião, algumas resoluções foram tiradas indicando a necessidade de maior integração entre o trabalho educativo dos museus e os currículos escolares e, ainda, a necessidade de incluir um treinamento sobre a utilização dos museus na formação de professores. Mudanças importantes se concretizaram a partir das décadas de 1970 e 1980. O Movimento Internacional da Nova Museologia (MINOM) teve como base dois encontros significativos dentro da historiografia museológica: a mesa redonda que gerou a Declaração de Santiago (1972) e o ateliê internacional no Canadá que gerou a retomada explícita desse documento na Declaração de Quebec (1984). A partir daí duas concepções importantes apontam para mudanças paradigmáticas: a noção de “museu integral”, que interage com “a totalidade dos problemas da sociedade, e a de museu como ação, como instrumento dinâmico de mudança social” (STUDART, 2004, p. 42). Além de pesquisar, conservar e expor acervos, a função comunicativa dos museus e, portanto, as preocupações com o visitante e as interações com este público passaram a merecer atenção especial. Museólogos brasileiros, ao longo do século XX, vêm participando de reflexões sobre o seu fazer profissional no campo das ações educativas através de encontros, discussões e publicações importantes para o campo da museologia no país. Temos notícias de serviços educativos desenvolvidos no 3 Esse artigo integra a dissertação de mestrado em Memória Social da UNIRIO, intitulada “Folclore, cultura popular e educação: discursos e memórias em práticas comunicativas institucionais” (CRETTON, 2009). A pesquisa recebeu o apoio da CAPES. 4 Sobre o assunto, ver bibliografia selecionada pelo CECA-Brasil na revista MUSAS 1 (CHAGAS, 2004, p. 65–84).

135


Programas Educativos em Museus: um estudo de caso

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

136

Brasil, já na década de 1920 e 30, introduzidos por Edgar Roquette Pinto, então diretor do Museu Nacional. Bertha Lutz, funcionária dessa instituição, após visitar 58 museus na América do Norte, em 1932, escreveu um relatório intitulado: “O papel educativo do Museu Moderno” no qual ressalta a importância de “um dos temas que ainda se reveste da maior atualidade para a museologia no Brasil: os estudos de público”. Essa experiência fazia parte de um curso de aperfeiçoamento no qual Bertha Lutz estudou “os departamentos e serviços educativos mantidos por essas instituições” (LOPES, 2006, p. 41-47). Entre os 29 comitês internacionais do ICOM, cabe-nos destacar o CECA (Committee for Education and Cultural Action) que objetiva promover “o intercâmbio de informações e ideias sobre a teoria e a prática da educação em museus”. O CECA-Brasil organizou-se em 1995 e, desde então,“vem preparando, anualmente, textos reflexivos sobre os temas das conferências anuais do CECA” (STUDART, 2004, p. 12-14). Na tentativa de interpretar os temas desses encontros, percebemos que a preocupação com o público, a busca de estratégias de comunicação e a articulação com questões sociais e culturais representam um esforço, dos profissionais envolvidos nesse comitê, em refletir sobre o papel educativo dos museus. Cabe-nos aqui perguntar de que concepção de educação estamos falando. Studart, que assumiu a coordenação do CECA-Brasil em 2001, expõe a perspectiva contemporânea: “chamamos a atenção para a importância de conceber as ações educativas como processo, em que a tônica seja o diálogo, a troca e a construção conjunta do conhecimento” (STUDART, 2004, p. 38). Para a autora, o objetivo da educação, em seu sentido amplo,“é oferecer possibilidades para a comunicação, a informação, o aprendizado, a relação dialética e dialógica educando/educador” (STUDART, 2004, p. 37). Contudo, nem sempre o trabalho prático reitera esses princípios, pois diferentes concepções de educação norteiam ações educativas em museus desde que se tem notícia desses programas. Como destaca Chagas (1996, p. 83): muitas vezes o discurso tem caminhado num sentido e a prática em outro; [...] com o modismo do labor educativo, [os museus] optam por um trabalho qualquer (grifos do autor), não levando em consideração o seu poder de interferência e transformação da realidade [...].

O autor defende um “museu participativo” no qual as ações educativas sejam desenvolvidas a partir de objetivos claros e de forma criativa e sistemática. Critica as práticas da “ação pela ação” que “tendem à criação de fossos separando o público do acervo” (CHAGAS, 1996, p. 83). Santos (2008, p. 128) destaca que, nas ações educativas em museus, além de clareza sobre as concepções de educação e de museologia “adotadas pelos sujeitos sociais envolvidos”, os projetos precisam também ser flexíveis aos diferentes contextos e expectativas em que estão inseridos e acompanhados por “um processo constante de ação e de reflexão, no qual teoria e prática estejam sempre em interação. Além de propor essa auto avaliação permanente, Santos (2008, p. 132133) traz a baila outra questão pertinente e inquietante: para a maior parte do público escolar o museu “ainda permanece como ‘um local onde se guarda coisas antigas’, sendo que o patrimônio cultural é compreendido como algo que se esgota no passado, [...] sem nenhuma relação com a vida, no presente”. Essa leitura da instituição museal instaurou-se em nossa memória, constituindo-nos e trazendo consequências ainda mais complexas. “Cultura, patrimônio


Anamaria Aziz Cretton, Diana de Souza Pinto

e tradição são produtos dissociados do cotidiano do professor e da vida dos seus alunos” (SANTOS, 2008, p. 132-133). Compreender a maneira como a escola concebe as categorias museu e patrimônio cultural é fundamental para o exame e avaliação das ações educativas nas instituições museais. O que foi que o museu fez, ou deixou de fazer, para a construção dessa memória? Se o objetivo é aproximar museus e público escolar, que estratégias são realizadas nesse sentido? Quais seriam os avanços observados? Apresentando o estudo de caso A pesquisa que fundamenta este artigo foi construída a partir de um estudo de caso, de natureza etnográfica, com o objetivo de observar, acompanhar e examinar a operacionalização de uma das ações do programa educativo do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP) realizada em uma determinada escola municipal da cidade do Rio de Janeiro, situada na zona da Leopoldina, a fim de analisar essa prática comunicativa institucional5. O CNFCP pesquisa, documenta, divulga e apoia “as expressões da cultura popular brasileira, reunindo ao longo dos anos, um rico acervo museológico, bibliográfico, sonoro e visual”, sendo uma referência nacional em sua especialidade, conforme a brochura de divulgação da instituição. Para a realização deste estudo, selecionamos o projeto itinerante “De mala e cuia”, uma pequena coleção do acervo institucional que oferece, através de empréstimos, um material diversificado sobre folclore e cultura popular. A coleção é composta por livros, catálogos, xilogravuras, folhetos de cordel, artigos de jornal, CDs, DVDs e fotos, selecionados a partir da constatação das dificuldades da pesquisa escolar. É uma das ações educativas que o CNFCP desenvolve e com as quais objetiva aproximar o público escolar do Museu de Folclore Edison Carneiro (MFEC) e do universo da cultura popular, buscando parcerias com professores, investindo na qualificação desses profissionais de ensino. Tal projeto está em consonância com a sugestão de Santos (2008). De acordo com a autora, para motivação e estímulo da prática museológica educativa, é de fundamental importância “interagir com outras instituições, com os sujeitos sociais que estão fora do museu, ‘sair da gaiola’ [...]”. Para ela, “há imensas possibilidades de crescimento da Museologia, do museu e da educação quando nos dispomos a aplicar ações museológicas fora dos espaços do museu” (SANTOS, 2008, p. 142). Examinar e analisar tais ações educativas, enquanto estratégias de aproximação entre o público e os acervos institucionais, entre o público escolar e as questões temáticas da cultura popular motivam esta pesquisa. Algumas indagações norteiam nosso percurso: em que medida essas ações educativas, ao salientarem a diversidade cultural do folclore nacional, contribuem para a ampliação da memória nacional relativa ao nosso folclore? Que desdobramentos são possíveis, através dos empréstimos dessas coleções? Qual o seu alcance, enquanto instrumento de trabalho, para problematizar questões relevantes tais como a pluralidade das manifestações culturais e a importância da 5 A noção de ‘prática comunicativa institucional’ pressupõe que os agentes sociais em contextos institucionais se comunicam visando certos objetivos, convencionalmente vinculados à instituição em questão. São interações que podem envolver restrições especiais, estruturas e procedimentos particulares (DREW; HERITAGE, 1992).

137


Programas Educativos em Museus: um estudo de caso

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

138

diversidade cultural? E, mais concretamente, como as ações educativas propostas pelo CNFCP foram operacionalizadas na Escola Municipal Coralina6? Com este estudo de caso, que investiga o processo de empréstimo do projeto “De mala e cuia” nessa instituição escolar, procuramos responder à questão principal desta pesquisa: em que medida as ações examinadas reiteram e perpetuam discursos/memórias cristalizados a respeito do folclore e da cultura popular e/ou modificam e atualizam a abordagem desses temas, problematizando a pluralidade cultural brasileira no âmbito escolar? Porém, tratarmos do CNFCP implica considerar sua construção à luz do “movimento folclórico brasileiro” (VILHENA, 1997), o que será discutido a seguir. Memória do Folclore nas escolas A institucionalização dos estudos de folclore foi uma conquista do movimento folclórico brasileiro enquanto que sua marginalização das universidades foi resultante de lutas e disputas, no campo das Ciências Sociais. Mesmo não alcançando o estatuto de disciplina científica, conforme pretendido, o movimento gerou institutos, museus, bibliotecas e órgãos públicos que transformaram sua prática em instituições. Por outro lado, a institucionalização de uma memória cultural do folclore associado à identidade nacional, ao passado, ao rural, “autêntico”, “puro”, “tradicional”, coletivo e anônimo, e outras heranças do movimento folclórico, permanecem fortemente presentes nas escolas que, por sua vez, aderiram ou absorveram a perspectiva conceitual e metodológica da Comissão Nacional de Folclore e da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, do final dos anos 40 a meados dos anos 60. A Comissão Nacional de Folclore (CNFL) foi fundada em 1947, como fruto do movimento folclórico brasileiro, vinculada ao Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura e à UNESCO. Em 1958 a CNFL institui a Campanha de Defesa de Folclore Brasileiro (CDFB) vinculada ao então Ministério da Educação e Cultura. Em 1980, a Campanha (CDFB) foi incorporada à Funarte com o nome de Instituto Nacional de Folclore (INF) que, em 1991, passa a se chamar Coordenação de Folclore e Cultura Popular (CFCP). Em 1997, ocorre a reestruturação da Funarte, e a Coordenação (CFCP) se constitui no atual Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, vinculado desde 2003 ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) do Ministério da Cultura. O desafio, portanto, que se impõe à equipe de educadores do CNFCP, ao reaproximar-se do campo da antropologia no contexto contemporâneo, é de ampliar os conceitos de folclore e cultura popular entre os profissionais de ensino, preocupação presente nas ações educativas da instituição, conforme consta em suas propostas. As ações educativas, ali desenvolvidas, são planejadas a partir de certas demandas observadas pela equipe, no contato com as escolas que frequentam a instituição visitando as exposições ou fazendo pesquisa na biblioteca. A nova concepção antropológica reconhece o caráter dinâmico e processual da cultura e da construção de identidades. Por um lado, a perspectiva antropológica promoveu, na instituição cultural, uma mudança de paradigmas e uma revisão do olhar saudosista e nostálgico sobre o folclore, como um 6 Nome fictício da escola municipal na qual foi feita a pesquisa etnográfica, de acordo com a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética da UNIRIO.


Anamaria Aziz Cretton, Diana de Souza Pinto

objeto evanescente que precisa ser preservado: “o importante, então, diferentemente da perspectiva do folclorista, não seria buscar o que não muda; mas por que muda, como muda e interage com a modernidade” (ABREU, 2003, p. 93). Por outro lado, a instituição escolar continua trabalhando com as propostas da CDFB com relação às temáticas folclóricas, encaminhando pesquisas generalizadas, sem leitura crítica, caracterizando as manifestações culturais por adjetivos genéricos como ‘típicas’, ‘regionais’ ‘tradicionais’, ‘anônimas’ e ‘pitorescas’. Desse modo, investigar como as ações educativas, nesse contexto, são operacionalizadas também demanda, do pesquisador, a compreensão de que conceitos fundamentais, que as ancoram, são percebidos de maneiras distintas por ambas as instituições. A pesquisa no CNFCP e na Escola Municipal Coralina Desde o início da pesquisa, o Centro se mostrou interessado na investigação. A entrada na Escola Municipal Coralina foi facilitada pelo aval institucional do CNFCP. A escola onde foi feito o trabalho de campo situa-se no bairro de Bonsucesso, zona Norte do município do Rio de Janeiro e integra a zona da Leopoldina. Acompanhamos o período de empréstimo na escola coletando um conjunto de dados: observações etnográficas do cotidiano escolar (cerca de 75 horas); fotografias de murais e demais trabalhos confeccionados pelos alunos durante o período de empréstimo do citado projeto; 23 entrevistas estruturadas para identificação do perfil sócio demográfico de parte do corpo docente; sete entrevistas semiestruturadas com profissionais da escola e duas com representantes do CNFCP; registros feitos a partir da observação de reuniões no CNFCP entre profissionais desta instituição cultural e professores interessados em fazer o empréstimo dos projetos itinerantes e alguns documentos escritos. As entrevistas semiestruturadas foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas. Questões relativas a concepções sobre folclore e cultura popular e sobre a própria operacionalização do empréstimo do projeto integram o roteiro dessas entrevistas, realizadas pela autora principal deste artigo. Para que a escola esteja capacitada a solicitar o empréstimo dos projetos itinerantes do CNFCP, é necessário que, ao menos um representante da escola solicitante participe de uma reunião com a equipe da Difusão Cultural. Esse é um momento de interação importante nesse processo comunicativo institucional. Não há um roteiro fixo para essas reuniões, por parte do CNFCP, mas há uma organização prévia da equipe, quanto aos assuntos mais importantes a serem discutidos. Fala-se sobre o histórico da instituição, algumas questões conceituais, objetivos do programa educativo, os cuidados com o acervo, o inventário que acompanha os projetos, os textos teóricos para pesquisa e os cadernos de relatos de experiência. Percebemos, ainda, uma metodologia no modo como a conversa é encaminhada.As duas representantes institucionais entrevistadas referem-se a essa conversa como uma oportunidade de “provocar” a reflexão do professor a respeito do folclore e da cultura popular. Entretanto, alguns problemas de comunicação de natureza interinstitucional foram detectados.

139


Programas Educativos em Museus: um estudo de caso

Águas passadas ainda movem moinhos?

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

140

A análise dos dados deste estudo interdisciplinar transita entre os estudos da memória social e o campo de estudos da linguagem, a partir da análise do discurso em uma perspectiva sócio interacional. Segundo esse arcabouço teórico, surgido na década de 1970, o discurso é resultado do trabalho conjunto entre falantes e ouvintes em uma interação face a face (GOFFMAN, 2002). A ideia de “lançar algumas provocações” para estimular a conversa, com o objetivo de dialogar com os professores sobre folclore e cultura popular, é indicada como “a melhor maneira de atingi-los e levantar algumas coisas que deem caldo pra eles conversarem”, segundo Telles (2007), coordenadora do programa educativo, que fala em nome da instituição (“a gente”), destacando a autoria coletiva dessa metodologia. Aliás, “provocar” é um verbo utilizado diversas vezes nas entrevistas das duas representantes do CNFCP, enquanto estratégia que visa a atingir certos objetivos: “A gente não é neutro. A gente quer mudar a forma de olhar, provocar outros olhares sobre a cultura popular”. A comparação das expectativas das representantes da instituição cultural, na realização desses encontros com professores e no preparo dos textos de apresentação dos projetos educativos itinerantes, com o discurso das professoras entrevistadas com relação a essas experiências, mostra-se muito produtiva para esta pesquisa. É comum que as escolas enviem um ou dois docentes para essas reuniões. No grupo de 23 professoras diretamente envolvidas com a operacionalização do projeto “De mala e cuia” na escola observada, Maria foi a única que participou da reunião no CNFCP. Em sua opinião, ter participado da reunião realmente provocou mudanças em seu esquema de conhecimento7: Autora 1: Pra você, folclore e cultura popular são a mesma coisa ou existem diferenças? Maria: Não, anteriormente, eu achava que o folclore era aquela prática antiga, que as pessoas tinham hábito de fazer. E a cultura popular, o que a gente fazia no dia a dia. Agora, eu já entendo que é a mesma coisa, na minha opinião, é a mesma coisa. Autora 1: Hum hum Maria: É o ontem e o hoje e o que pode ser amanhã. (risos) Autora 1: Mas alguma coisa fez você pensar dessa forma? Maria: Fez, justamente essa reunião, essa maneira que ela [representante do CNFCP] colocou, eu acho que mudou a minha ideia. Eu sempre achei que era uma coisa importante pra não ser esquecida. Mas, da maneira que ela colocou, eu vi que, realmente, é uma coisa que você vai criando, né, não acaba. (SILVA, 2007)

A prof.ª Maria (SILVA, 2007) explicita o motivo que a fez repensar conceitualmente as categorias folclore e cultura popular: “essa reunião, essa maneira que ela [representante do CNFCP] colocou”. No entanto, a questão do repasse dos conteúdos tratados na reunião, para a escola, traz alguns indicativos complicadores para essa comunicação institucional. As professoras 7 A noção de ‘esquemas de conhecimento’ em interação baseia-se em experiências anteriores, memórias, crenças e valores, mas são suscetíveis a atualizações na dinâmica dos encontros sociais. Estão, portanto, em constante modificação em função das várias interações, com diversos interlocutores, de que participamos em nossas experiências interacionais diárias (TANNEN; WALLAT, 2002).


Anamaria Aziz Cretton, Diana de Souza Pinto

entrevistadas localizam, na pessoa da coordenadora da escola, o informe da chegada das malas e um esboço de planejamento do trabalho. A própria coordenadora reconhece que foi intermediária entre Maria e as demais professoras: “eu expliquei como era o projeto e tal”. Portanto, o fato do projeto ter sido apresentado por uma pessoa que não esteve na reunião pode comprometer muito a recepção do acervo e a proposta de trabalhar com esse material a partir das “provocações” conceituais feitas pela equipe do programa educativo do CNFCP. O exame desses dados iniciais indica alguns pontos relevantes para a compreensão dos possíveis problemas de comunicação entre as duas instituições: a professora Maria foi “provocada” a repensar alguns de seus conceitos a respeito do folclore e da cultura popular pelo fato de ter participado da reunião de apresentação dos projetos no CNFCP, em uma interação face a face, mas não teve oportunidade de compartilhar formalmente essa experiência com o grupo de professoras da escola. A coordenadora recebeu informações sobre essa reunião e elaborou reflexões pertinentes sobre os temas. Porém, assumiu integralmente a responsabilidade de repassar todas essas informações sobre o projeto, ao invés de proporcionar a Maria a oportunidade de compartilhar suas reflexões com as demais professoras. O texto de apresentação do projeto, que acompanha o acervo, não foi um instrumento eficaz de “conversa com o professor” conforme a expectativa da equipe de educadores do CNFCP, já que 90% das professoras indicaram não ter lido o documento.A análise evidenciou alguns motivos que concorreram para isto: problemas estruturais das instituições envolvidas, problemas políticos na escola, falta de tempo e dificuldade de acesso às malas, por parte das professoras. O que faltou nas estratégias eleitas na prática comunicativa entre as duas instituições, neste estudo de caso? Uma resposta possível é dada pela própria Lucila Telles (2007), quando ela aponta para a necessidade de maior interação entre os representantes institucionais envolvidos nesse processo: Lucila: Na verdade, quando as unidades começaram a circular, a gente fazia a avaliação nas escolas. Tinha lá uma conversa e tudo mais. Tinha uma conversa no início e outra no final. E depois, quando ele começou a multiplicar, e a equipe reduzir, isso ficou inviável. Então tem uma conversa antes e não tem uma conversa depois. Autora 1: Essa conversa antes é a reunião? Lucila: É. E aí a gente tá ainda pensando em mexer nisso. Tem uma proposta da gente fazer a conversa depois. A gente sente falta disso. (TELLES, 2007)

Concepções de folclore e cultura popular No segmento da entrevista com Maria, destacado acima, essa professora expressa um alinhamento com a representante do CNFCP durante a conversa na reunião citada.Antes do encontro, ela achava que “o folclore era aquela prática antiga que as pessoas tinham o hábito de fazer e a cultura popular era o que a gente fazia no dia a dia”. É pertinente notar que a professora utiliza os verbos no passado (era, tinham, fazia, existia, achava) sinalizando que esse era o seu pensamento com relação a esses temas. Maria marca a modificação de sua percepção no presente com o advérbio de tempo “agora”: “Agora eu já en-

141


Programas Educativos em Museus: um estudo de caso

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

142

tendo que é a mesma coisa” e, quando a entrevistadora pergunta se alguma coisa provocou essa mudança, ela se refere à reunião e à “maneira” como foi dito: “justamente essa reunião, essa maneira que ela [representante do CNFCP] colocou [...] eu acho que mudou a minha ideia, né?”. Nesse sentido houve uma ampliação conceitual, na medida em que Maria reconhece um processo de criação no qual podem ocorrer mudanças. O folclore já não é mais algo que pode acabar, e sim algo que se transforma e se recria: “é uma coisa que você vai criando, né, não acaba”. A Prof.ª Inês, responsável pela biblioteca da escola, também oferece, em seu discurso, algumas pistas de seu entendimento sobre folclore e cultura popular (SOUZA, 2007). Durante o período de empréstimo do acervo, que ficou alocado na biblioteca da escola, ela foi encarregada de mostrar e emprestar os livros do projeto “De mala e cuia” para as crianças. Em sua entrevista enuncia uma diferença entre as duas categorias; folclore está associado a lendas e mitos: “da ficção, da fantasia” e “a cultura popular é mais abrangente” já que “engloba” trabalhos manuais, esculturas e também histórias populares. Nesse sentido o folclore seria uma parte da cultura popular. Essa concepção foi determinante na seleção que a professora Inês fez sobre o acervo das malas. Como responsável pela biblioteca, Inês recebe, regularmente, turmas do Ensino Fundamental, lê histórias, faz empréstimos de livros, cuida do acervo e colabora nas pesquisas escolares. O que nos chamou a atenção, na escolha da Prof.ª Inês, foi a predominância de lendas sobre todo o acervo das malas, o que corrobora com uma perspectiva a respeito do folclore que reitera concepções “tradicionais”. A reincidência da temática das lendas é significativa, por parte dos profissionais observados, apesar de haver alguma variação quanto à técnica de produção: cartazes, textos, dobraduras, colagens e modelagens. As observações etnográficas corroboram com a reiteração de certas concepções na reprodução maciça de personagens como Saci, Curupira, Iara e Mula-sem-cabeça. Essas concepções, presentes no universo escolar observado, parecem ancorar uma tendência a eleger as lendas como representantes do folclore, circunscrevendo as possibilidades de leitura sobre a diversidade da cultura popular brasileira. Para Segala (2000, p. 66), na escola, “enfatiza-se a simples difusão de dados já compilados e ‘didatizados’, em detrimento da pesquisa, da descoberta, do uso das linguagens expressivas”, resultando em um processo de cristalização, que transforma o folclore e a cultura popular em uma “compilação de curiosidades brasileiras, ideias avulsas, figurinhas sem nexo do boto cor de rosa, da lenda da vitória-régia, do bolo de milho, do Saci Pererê” (SEGALA, 2005, p. 108). Um aspecto fundamental a ser destacado diz respeito à constatação de que a memória do folclore, na escola observada, traz traços marcantes da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Ao examinar, no conjunto de dados, as concepções sobre folclore e cultura popular, observamos uma forte tendência, entre os docentes, a eleger as lendas como representação simbólica do folclore. Nesses casos, em que foram produzidas associações do folclore e da cultura popular exclusivamente a lendas e a categorias tais como “antigo”, “distante”, “regional”, “não urbano”, “anônimo”, ou ainda, como algo que precisamos “resgatar” a fim de preservar nossa identidade nacional, percebemos que ocorre a reiteração conceitual.


Anamaria Aziz Cretton, Diana de Souza Pinto

Se, por um lado, a análise dos dados sugere reiterações, ela também aponta para ampliações conceituais. Em muitas situações analisadas, notamos que as professoras produziram associações entre as categorias folclore/cultura popular e a atualidade, o cotidiano e a circularidade cultural, reconhecendo o caráter dinâmico da cultura como algo que construímos no nosso dia-a-dia e que está em permanente transformação. Nesses casos, mais alinhados com a perspectiva antropológica contemporânea, foi possível observar as crianças envolvidas na confecção de brinquedos (pipa, ioiô, dedoche, fantoche, peteca), na criação de mamulengos, no exercício da brincadeira com “pernas de pau” e “bilboquê” ou na pesquisa de ervas, chás, xaropes e outros produtos da medicina popular, presentes em seu cotidiano. Dando nó em pingo d’água Cabe ressaltar aqui que o caráter etnográfico da pesquisa possibilitou-nos testemunhar in loco o fato de que as ações educativas em instituições públicas são realizadas, muitas vezes, sob condições de trabalho adversas e, ainda, que os agentes sociais envolvidos nessas práticas enfrentam complexos problemas estruturais. No caso da escola municipal observada, o espaço físico inadequado, o elevado número de alunos por turma (entre 30 e 40), a remuneração precária dos profissionais de ensino do município do Rio de Janeiro, entre outros, são alguns exemplos do dia-a-dia daquela instituição escolar. No caso da instituição cultural, CNFCP, pudemos observar outras tantas dificuldades como a descontinuidade das políticas públicas, a escassez de verba, a interrupção de projetos, a redução das equipes e o número limitado de profissionais especializados. Consideramos louvável a iniciativa dos representantes institucionais entrevistados e contatados durante a pesquisa que, apesar de toda ordem de desafios, investem em projetos de parceria entre campos disciplinares distintos como museologia e educação. Reiteramos, portanto, as palavras de Santos (2008, p. 128): [...] achei por bem lançar um olhar para além dos problemas cotidianos dos nossos museus e das nossas escolas, impregnados da burocracia que sufoca e da falta de estrutura para o desenvolvimento dos trabalhos. Não que os considere menos importantes. Ponderei que já estamos cansados de “bater na mesma tecla”, causando até um certo esgotamento. Já levamos um bom tempo constatando, avaliando, chorando as nossas mágoas; agora, considero que é mais urgente do que nunca tomar como referencial os diagnósticos já realizados e, com o embasamento necessário, buscar outras estratégias de ação.

Uma vez que o CNFCP objetiva, entre outras propostas, introduzir nas escolas uma reflexão que amplie as noções de folclore e cultura popular, observar mudanças conceituais em curso em uma instituição escolar redimensiona a importância do programa educativo dessa instituição cultural. Entretanto, para que o projeto enriqueça a pesquisa escolar, oferecendo amplo material para leitura e consulta, parece-nos fundamental refletir sobre a importância da mediação. É crucial que a preocupação com a democratização do acesso ao acervo cultural seja concomitante à preocupação com a qualificação da mediação do acervo disponibilizado. Na pesquisa aqui discutida, observamos que, por razões diversas, a exemplo da carência de profissio-

143


Programas Educativos em Museus: um estudo de caso

nais na equipe da Difusão Cultural, responsável pelo programa educativo do CNFCP, o projeto “De mala e cuia” foi enviado à escola sem um mediador/ representante legitimado institucionalmente, favorecendo o uso apenas instrumental de seu material, em alguns casos.

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

144

Além disso, o acesso a outros acervos, como aqueles encontrados na biblioteca da escola e aos acervos pessoais das professoras, parece ter favorecido também o desinteresse pelo conteúdo do projeto. Questões conceituais não problematizadas parecem ter contribuído para a não diferenciação dos acervos disponíveis (das malas, da biblioteca e acervos pessoais). Consideramos que os dados apontam para a constatação de que é necessário que o CNFCP invista em uma maior interação com as equipes escolares interessadas em fazer empréstimos dos projetos itinerantes, sobretudo no caso do “De mala e cuia”. Para o alcance dos objetivos traçados, a atuação de um interlocutor – representante da instituição cultural - que dialogue com a escola, é de fundamental importância, mesmo que isso signifique menor expansão quantitativa dos projetos. Há que se ressaltar que a representante da escola que efetivamente participa da reunião no CNFCP tem uma oportunidade única de refletir, junto com a equipe do Programa Educativo, sobre as questões conceituais problematizadas nesse encontro. Contudo, muitas vezes, ela não é a profissional que desempenha o papel de mediadora na instituição escolar. Na maior parte das interações analisadas, as pontes entre educação, cultura popular e o tema da pluralidade cultural brasileira não foram efetivadas. A palavra folclore ocupa um espaço, no imaginário da escola, atrelado a uma memória que tende a reproduzir estereótipos de Sacis e Iaras, e que não incorpora as ricas possibilidades de trabalho com a cultura popular. No entanto, reiteramos a abordagem que considera “fundamental a abertura das escolas para os saberes locais e expressões populares, instigando projetos de aprendizagem recíproca, de circularidade de saberes, recontextualizando e complexificando o processo de produção do conhecimento” (SEGALA, 2005, p. 108). A pesquisa corrobora com a “abertura das escolas para os saberes locais” como sendo um dos caminhos possíveis para o reconhecimento da diversidade cultural, o respeito à diferença e a problematização da pluralidade cultural brasileira no âmbito escolar. A experiência de observação e reflexão sobre o programa educativo de uma instituição cultural nos fez perceber que há, subliminarmente, um jogo de forças e tensões entre os diferentes campos disciplinares envolvidos nessas práticas comunicativas. Os campos da Museologia, do Patrimônio, da Educação e da Arte-educação são campos de saberes distintos em disputa por poder e por espaço. Cada um deles tem seu próprio histórico de reflexões, debates e publicações sobre a função educativa dos museus, mas nem sempre essas experiências são compartilhadas. Um dos maiores desafios para a construção de um projeto interdisciplinar reside, exatamente, na criação de novas formas de conhecimento, a partir da transformação, baseada no diálogo, de práticas disciplinares com epistemologias diversas, uma necessidade crescente em nossa contemporaneidade.


Anamaria Aziz Cretton, Diana de Souza Pinto

Referências ABREU, Marta. Cultura popular: um conceito e várias histórias. In: ABREU, Marta; SOIHET, Rachel (Org.). Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. CHAGAS, Mário. Museália. Rio de Janeiro: JC, 1996. CHAGAS, Mário (Org.). Diabruras do Saci: museu, memória, educação e patrimônio. Musas - Revista Brasileira de Museus e Museologia, v. 1, n. 1, 2004. CRETTON, Anamaria Aziz. Folclore, cultura popular e educação: discursos e memórias em práticas comunicativas institucionais. 2009. Dissertação (Mestrado em Memória Social)-UNIRIO, Rio de Janeiro, 2009. DREW, Paul; HERITAGE, John. Talk at work. Oxford: Cambridge University Press, 1992. GOFFMAN, Erving. Footing. In: RIBEIRO, Branca; GARCEZ, Pedro. Sociolingüística Interacional. São Paulo: Loyola, 2002. p. 107-148. GOUVÊA, Guaracira; MARANDINO, Martha; LEAL, Maria Cristina. Educação e museu: a construção social do caráter educativo dos museus de ciência. Rio de Janeiro: Access, 2003. LOPES, Maria Margareth. Bertha Lutz e a importância das relações de gênero, da educação e do público nas instituições museais. MUSAS – Revista Brasileira de Museus e Museologia, n. 2, p. 41-47, 2006. SANTOS, Maria Célia. Museu e educação: conceitos e métodos. In: ______. Encontros museológicos: reflexões sobre a museologia, a educação e o museu. Rio de Janeiro: MinC/IPHAN/DEMU, 2008. p. 125-146. SEGALA, Lygia. A troça, a traça e o forrobodó: folclore e cultura popular na escola. In: GARCIA, Regina Leite (Org.). Múltiplas linguagens na escola. São Paulo: DP&A, 2000. p. 61-75. SEGALA, Lygia. Uma dinâmica de reinvenção das culturas populares. In: SEMINÁRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS CULTURAS POPULARES, 1., 2005, Brasília. Anais... Brasília: MinC, 2005. p. 107-109. SILVA, Maria. Entrevista concedida a Ana Cretton. Rio de Janeiro, 19 out. 2007. SOUZA, Inês. Entrevista concedida a Ana Cretton. Rio de Janeiro, 01 nov. 2007. STUDART, Denise Coelho. A produção intelectual do CECA-Brasil nas conferências internacionais do Comitê de Educação e Ação Cultural do ICOM de 1996 à 2004. MUSAS - Revista Brasileira de Museus e Museologia, v. 1, n. 1, p. 12-47, 2004. TANNEN, Deborah; WALLAT, Cynthia. Enquadres interativos e esquemas de conhecimento em interação. In: RIBEIRO, Branca; GARCEZ, Pedro (Org.). Sociolingüística interacional. São Paulo: Loyola, 2002. TELLES, Lucila. Entrevista concedida a Ana Cretton. Rio de Janeiro, 01 jul. 2007. VILHENA, Luís Rodolfo da Paixão. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro 1947-1964. Rio de Janeiro: Funarte/Fundação Getúlio Vargas, 1997.

Artigo recebido em julho de 2012. Aprovado em setembro de 2012

145


RESENHA Uma Antologia para o patrimônio edificado

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

146

Ana Lúcia de Abreu Gomes1* Universidade de Brasília

Choay (2011) permanece fiel às suas origens. Como historiadora das teorias e formas urbanas e professora emérita da Universidade de Paris VIII, nossa autora tem-se dedicado a refletir acerca das questões que envolvem o patrimônio edificado, o patrimônio material. A despeito das mudanças ocorridas nesse campo e sua mais recente inflexão em direção à imaterialidade, ela adverte seus leitores nas linhas iniciais de seu mais recente trabalho de combate: trata-se do patrimônio de pedra e cal, da monumentalidade do patrimônio. O tipo de questionamento presente no título?2 Aquele que se pergunta acerca dos usos sociais do patrimônio na densidade da relação da construção do espaço urbano das cidades e metrópoles pelos homens, aprofundando as dimensões política e social da tarefa de ocupação desses espaços; aquele que indaga, igualmente, pelos usos e significados do espaço construído em sua dimensão antropológica. E, ainda, mais do que perscrutar acerca da relação que devemos manter com o passado, Françoise Choay nos põe diante do futuro: para nossa autora, a questão do patrimônio não se expressa em uma relação exclusiva com o já vivido, mas, sim, numa relação com o devir. Ainda sobre o título, nossa autora esclarece o motivo pelo qual trata de um combate. Desde a publicação, em 1992, do clássico “Alegoria do Patrimônio” em França, houve muitas mudanças no campo do patrimônio, inclusive aquelas decorrentes do recrudescimento da mundialização do conceito e das práticas a ele relacionadas, esvaziando o campo do patrimônio da materialidade e da densidade características de suas origens. À medida que a noção de patrimônio se amplia, a categoria monumento se enfraquece; à medida que o presente rapidamente deve se tornar passado, em sua obsolescência, o patrimônio não só se torna musealizável, mas se torna, igualmente, passível de comercialização, numa alusão explícita à afirmação de Karl Marx de que o capitalismo transforma tudo, inclusive o tempo, em mercadoria3. Sendo assim, nossa autora nos propõe três frentes de combate: a da formação/educação, que visaria oferecer a todos os franceses uma introdução às artes, à arquitetura e ao urbanismo; a da reutilização desses lugares de memória, única forma, segundo sua interpretação, de se evitar a musealização desses espaços e, por fim, retomar as relações entre o universal e o singular, 1 * Ana Lúcia de Abreu Gomes é formada em História pela Universidade Federal Fluminense. Desenvolveu mestrado em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorado em História Cultural na Universidade de Brasília. Durante 20 anos lecionou História para o Ensino Fundamental e Médio, atuando, inclusive na área de Ensino de Jovens e Adultos. Também atuou como técnica em História do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Departamento do Patrimônio Imaterial. Atualmente é professora adjunta do Curso de Museologia da Faculdade de Ciência da Informação da Universidade de Brasília, ministrando aulas na área de patrimônio. 2 Choay (2011). 3 Ver sobre o tema: Hartog (2006).


Ana Lúcia de Abreu Gomes

o global e o local, possibilitando a sobrevivência da diversidade uma vez que reinsere a comunidade em seu tempo e espaço próprios. Na metodologia de apresentação do tema, nossa autora reitera a opção por ser professora sempre: como em suas aulas presenciais, ela nos propõe leituras seminais de autores que viveram e participaram efetivamente das questões e debates do patrimônio na sequência de uma introdução que expõe teoricamente o objeto de estudo em questão. Essa antologia de textos, selecionada por ela, remete o leitor à compreensão das inflexões no conceito de monumento, monumento histórico, patrimônio, recuperando a historicidade dos usos diferenciados desses vocábulos. A seleção variada de textos e documentos recupera elementos relacionados ao papel memorial da arquitetura e das comunidades de antiquários; destaca, igualmente, os elementos que, em França, possibilitaram a constituição de um campo para a preservação do patrimônio, dentre eles a elaboração dos preceitos teóricos que orientaram as intervenções nos monumentos, que formaram um corpo de profissionais dedicados ao restauro, que possibilitaram a constituição de um corpus legislativo para a proteção de monumentos e obras de arte e que, por fim, estabeleceram uma ação precípua do Estado francês sobre o campo. Tal seleção de textos que compõem essa antologia não se restringe, entretanto, ao período revolucionário francês; ela chega ao século XX, recuperando a importância das Cartas de Atenas e Veneza, assim como apresenta ao leitor as inflexões promovidas pela Unesco no campo de estudo em tela. O presente livro, portanto, se encontra organizado, didaticamente, em duas partes: uma primeira, denominada Introdução, oportunidade em que a autora traz as questões teóricas que, nas últimas décadas, têm envolvido o campo; em seguida, uma segunda parte, a antologia propriamente dita, resultado da seleção de textos emblemáticos que contemplam diferentes períodos históricos, notadamente dos séculos XII ao XX. Cada um desses textos vem acompanhado de uma pequena informação acerca de seu autor e de seu protagonismo para o estudo que se pretende desenvolver. Na Introdução, a autora dá relevância à experiência do patrimônio nas sociedades ocidentais européias, recuperando a interpretação de Alois Riegl sobre a distinção entre os termos monumento e monumento histórico. Segundo nossa autora, as revoluções culturais do Renascimento e aquela concernente à Segunda Revolução Industrial teriam sido responsáveis por fundir essas duas noções na palavra patrimônio. Não se trata apenas de uma perda semântica, mas, principalmente, de uma perda da densidade da diferença entre essas experiências. Ainda segundo nossa autora, no decorrer desse processo, essa experiência europeia e ocidental – a do patrimônio – ganhou novos adjetivos que a acompanham e definem: patrimônio material, cultural, natural, econômico dentre outras, mas todas elas categorias usadas pelos ocidentais para caracterizar e analisar sua própria experiência histórica e social. Aqui, nossa autora apresenta a complexidade da questão ao elencar mais um elemento à sua análise: o alargamento da concepção de patrimônio a partir do momento que essa experiência atingiu outros países e culturas e seus desdobramentos em relação ao próprio patrimônio europeu num processo claro de retroalimentação. Sobre a questão do patrimônio como experiência europeia, José Reginaldo Rodrigues no texto “O Patrimônio como Categoria de Pensamento”4 4 Gonçalves (2009).

147


Resenha

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

148

assinala que este não é uma invenção moderna, europeia e ocidental; essa experiência é característica de inúmeras sociedades e que a Modernidade Ocidental europeia lhe imprimiu contornos semânticos muito específicos; portanto, estaríamos lidando com uma categoria de pensamento, e, em sendo assim, não restrita ao continente europeu. A despeito disso, como as experiências são distintas, Rodrigues se pergunta acerca da possibilidade de se transitar, por meio dessa categoria, entre mundos sociais, culturais e temporais diversos. Num ponto de convergência entre esses autores, José Reginaldo reitera a posição de Françoise Choay: há que se definir com clareza os contornos semânticos que o vocábulo patrimônio assume e, para tal, nossa autora preenche com a densidade histórica e a experiência social esses contornos no interior da Europa, procurando dar a conhecer a riqueza, a ambivalência dessa experiência que hoje tem sido interpelada pela presença de outros patrimônios. Dizendo de outra maneira, a Europa em sua trajetória histórica, veio incorporando uma série de culturas a sua própria história e é justamente na ampliação da temática para outros horizontes, outras culturas, outras formas de pensar e abordar o patrimônio que Françoise Choay se volta para a experiência europeia como se ela nos perguntasse: do que mesmo estamos falando? De que patrimônio estamos nos referindo? Nessa linha de argumentação, ela reforça a dimensão material dessa categoria de pensamento e o momento em que esse discurso emerge na Europa, com a distinção entre monumento e monumento histórico, estabelecida pelo historiador da arte Aloïs Riegl. Enquanto o monumento é algo vivo, presente na memória da comunidade à qual ele se direciona, o monumento histórico é estabelecido segundo um critério temporal e estético. Para aqueles que acompanham os escritos e as reflexões de nossa autora, compreende-se perfeitamente a questão: trata-se de recuperar as clivagens existentes em termos lexicais: patrimônio edificado, patrimônio histórico, monumento, monumento histórico, reiterando sua opção pela arquitetura feita, edificada por homens não apenas em sua relação com o espaço, como a princípio poderia pensar um leitor mais afoito, mas, principalmente, em relação ao tempo. Trata-se de fazer compreender a significação do ato construtivo onde o tempo deve repousar, deve se sedimentar para daí formar cultura. Ao se perguntar acerca do patrimônio edificado, Françoise Choay nos mostra uma forma diversa das sociedades lidarem com o tempo; com a temporalidade e com a constituição de seu patrimônio: não essa urgência de passado, que nos interpela o tempo todo, não essa dimensão econômica do patrimônio, que vem se adensando mais e mais. Referências CHOAY, Françoise. O patrimônio em questão: antologia para um combate. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011. GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mario. Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. HARTOG, François.Tempo e patrimônio.VARIAHISTORIA, Belo Horizonte, v. 22, n. 36, p. 261-273, jul./dez. 2006. Resenha recebida em abril de 2012. Aprovado em julho de 2012


CAPA Gê Orthof

Figura 1 - Moradas do Íntimo Fonte: Orthof e Dias (2009).


Capa

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

150

R&M: “Écoute” nos dá uma pequena dimensão do modo como você compreende o espaço expositivo; sua obra pede que o corpo do espectador aproxime-se, num jogo das pequenas coisas interligadas no/e/com o espaço/ corpo. Podemos afirmar que há uma recusa do monumental, tão celebrado na literatura canônica da arte contemporânea? Ou a intenção é outra? Gê Orthof: Certamente, minha dimensão é a do íntimo, das pequenas mãos, do olhar desejante de mistérios. A tática de unir miniaturas em profusão, contaminando o espaço majestoso (tanto no sentido de lugar sagrado museológico, quanto das dimensões físicas amplas dos espaços expositivos) tem, predominantemente, duas intenções: a de convidar o espectador a estar imerso e disponível para escolher o que deseja guardar como memória da experiência da obra, assim como quebrar a perversa premissa de que o tempo (produtivo) tem valor. Minhas instalações são feitas de pequenos rastros, anotações, de caráter labiríntico que, por não possibilitar sua captura, enquanto objeto palpável de consumo de arte, desafia certos paradigmas estabelecidos pelo circuito comercial da arte. R&M: De um modo peculiar o projeto “Moradas do Íntimo”, coordenado por você, transforma e amplia o sentido de espaço museal ao expor em “moradas” não convencionais para a arte. Como o projeto instiga uma reflexão sobre o papel dos processos expositivos? Gê: Idealizei o projeto junto com a artista Karina Dias. O projeto teve início com um anúncio nos classificados de um jornal local, que anunciava, aproximadamente, o seguinte texto: artista procura morada para abrigar o íntimo” seguido de um número de telefone para contato. Tivemos um retorno de cerca de vinte interessados que colocamos à disposição dos dez artistas participantes (incluindo Karina e eu) para que cada um fizesse o contato e escolhesse a morada que tivesse interesse em intervir. Foi uma escolha natural, conseguimos abrigo para o projeto desde quitinetes à grandes casas no Lago, nas cidades satélites e no Plano Piloto, isso nos deixou muito felizes. Cada artista combinou com seu anfitrião, o tempo de permanência da intervenção que variou de uma semana a um mês. Estabelecemos que esse momento do projeto, não se tratava de uma exposição aberta ao público, caberia aos anfitriões convidar apenas seus amigos íntimos e familiares para um encontro informal com cada artista e a visita às intervenções. Chamamos afetuosamente essa fase de “in-sposição”. Posteriormente, criamos, no Espaço Cultural Marcantonio Vilaça, em Brasília, a segunda fase do projeto, que recriava aspectos das intervenções no espaço tradicional da galeria. Ali, solicitamos aos artistas que criassem uma nova obra, que remetesse à experiência das intervenções nas casas. Acrescentamos um documentário poético em vídeo, criado por Nina Orthof e uma seleção de imagens das intervenções nas casas, projetadas na parede da galeria. O espaço expositivo também foi concebido harmonicamente com o aspecto intimista do projeto com referências as portas de um edifício, onde o visitante encontrava a foto da intervenção original e apenas os primeiros nomes dos anfitriões e dos artistas, por exemplo, no meu caso, estava escrito: “beth e roque hospedam gê”. R&M: Você defende um posicionamento mais ativo do artista diante do sistema da arte. Muitos artistas contemporâneos tem se posicionado contrários ao atual sistema curatorial, qual a sua relação com os curadores?


Capa

151

Figura 2 - Écoute. ARS117, Bruxelas, Belgica Fonte: Orthof (2009).

Figura 3 - Écoute, ARS117, Bruxelas, Belgica. Fonte: Orthof (2009).


Capa

MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1, nº2, jul/dez de 2012

152

Gê: A questão é naturalmente complexa. Não sou contra os curadores, mas precisamos rever o peso que eles ganharam no sistema atual. Fico realmente perplexo em receber convites de grandes instituições culturais onde consta o nome do curador, da mostra e nenhuma informação sobre os artistas. Sempre lutei, inclusive como tema central de meu doutorado nos anos 90, pela voz do artista. Em minhas disciplinas, faço questão de incluir as diferentes vozes/escritas: do artista, do teórico, do historiador etc. Acho que cada uma traz aspectos singulares e pontos de vistas fundamentais para tentarmos uma aproximação (sempre incompleta) com a experiência da revelação de uma obra de arte. R&M: Seu trabalho lida com a intimidade e sua visibilidade; qual a sua opinião sobre fetichização do ateliê do artista pelas instituições da arte? A intimidade da produção pode ser musealizada? Gê: Particularmente tenho dificuldade com algumas exposições que recriam o ateliê de forma fetichista, principalmente pelo aspecto de vitrine engessada, como as cenografias criadas em museus de história natural. Por outro lado, pode ser visto como um recurso, um artifício, para evidenciar algumas questões de método de trabalho, da personalidade daquele artista. É importante observar as especificidades de cada projeto. Existem experiências vivas, como o ateliê FINEP em parceria com o Paço Imperial do Rio de Janeiro, que já criou mais de setenta situações diferenciadas de ateliês de artistas, experiência distinta da concepção do ateliê enquanto obra efêmera do ateliê/ arquivo do artista Paulo Bruscky, na 26ª Bienal de São Paulo, ou ainda o ateliê permanente de caráter didático, como o ateliê de Brancusi no Centre Pompidou em Paris. Em nosso Grupo de Pesquisa Moradas do Íntimo, buscamos investigar o que seria esse íntimo, que se mantém preservado, sombreado, mas que se revela a todo instante na prática artística. Como acontece a passagem do interior para o exterior, da sombra para a forma? Existiria um lugar-do-íntimo, uma morada para o íntimo nessa agoralidade imersa em um fluxo intenso de paisagens que apenas reconhecemos de passagem? Propomos iniciar pelo inexorável paradoxo da razão em revelar um segredo, que, em princípio, se destina à invisibilidade silenciosa do ateliê e não à exibição da sala de exposição. Esse paradoxo parece habitar a matriz de qualquer obra de arte. O movimento parece ser sempre esse, do dentro para fora, do indivíduo para o grupo, do ínfimo para o vasto mundo. Mundo lá fora, domínio do outro, que nos espreita, com o seu insaciável desejo de voyeur. Por que iniciamos esse caminho? Por quem desejamos ser vistos? Possuímos ainda algum controle? Essas são algumas das indagações que movem nossa curiosidade em investigar o lugar do íntimo na produção contemporânea das artes. Referências: ORTHOF, Ge. Écoute, ARS117. Bruxelas, Belgica, 2009. ORTHOF, Ge; DIAS, Karina. Moradas do Íntimo. [S.l.: s.n.], 2009.



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.