Pioneiros | Capítulo 1 - Viagem através dos tempos

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1. Viagem atravĂŠs dos tempos

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Partindo da premissa de que a prática do futebol tem interessado a muitos povos ao longo de boa parte da história mundial, não será difícil acompanharmos os motivos que impulsionaram nosso personagem principal, o Viajante, em sua jornada através dos tempos. Num futuro não muito longínquo, onde obviamente os problemas da humanidade não estão plenamente resolvidos (considerando que os problemas e as diferenças são o motor básico dos relacionamentos humanos), o Viajante é uma espécie de historiador-sociólogo temporal. Pode usufruir da tecnologia disponível para realizar pesquisas de campo e de tempo. Consideremos o universo não como em expansão, como ditam algumas das teorias em voga, mas em circulação. Ele gira uniformemente e, de acordo com as imbricações entre tempo e espaço já propostas por Einstein, temos, assim, a possibilidade de voltarmos no tempo simplesmente ao nos deslocarmos num imenso círculo. É a chamada “curva temporal fechada”, longe de soluções como buracos negros e buracos de minhoca. Nesse futuro, o futebol continua sendo visto e praticado com uma paixão constante. Nosso Viajante procura as razões pelas quais esse esporte é tão popular e move camadas tão diferenciadas da população, numa dinâmica sem fim, unindo e desunindo grupos, movendo nações inteiras e dando sentido à vida de milhões e milhões de indivíduos. Para tanto, de acordo com leis da Física que não permitiriam saltos aleatórios no tempo e no espaço, pretende realizar uma pesquisa no único país octocampeão do mundo, o Brasil (pretendemos que até lá o Brasil já o seja). Deixemos de lado, então, a distância que esse tipo de relato terceirizado proporciona e acompanhemos o diário de nosso amigo Viajante.

diário de bordo A história do futebol é, sem dúvida, uma das mais fantásticas de toda a humanidade. Isso porque envolve muita polêmica, controvérsias e discussões. Para entender o nascimento do futebol, precisamos retornar alguns anos, algumas décadas, alguns séculos... Dessa forma, convido você, leitor, a entrar em minha máquina do tempo e se tornar uma testemunha ocular da fantástica árvore genealógica do futebol.

nossa nave A nave que vamos utilizar durante a viagem ao passado é altamente contemporânea. Pequena, redonda, com estrutura e equipamentos de última geração. Seu tamanho não é capaz de retratar seu potencial. Possui ainda janelas ao redor de todo o círculo e uma antena no topo. Esteticamente é parecida com as que vimos nos filmes de ficção do início do século 20 (nos

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quais buscamos nos inspirar). Um supercomputador, apelidado de “Charlie”, com programação baseada na personalidade de um ser humano, vai evitar que nos percamos no tempo. O combustível dessa incrível invenção será nossa imaginação. Então, apertemos os cintos e iniciemos a viagem!

primeira parada Nosso ponto inicial é a China. Estamos no ano 2600 a.C. Deixamos nossa nave devidamente disfarçada por um projetor holográfico que nos permite assumir a aparência que desejamos e um microscópico tradutor. Caminhando pelo vale do Rio Amarelo, podemos avistar pequenas comunidades formadas por agricultores e artesãos. Esses povos cultivam uma espécie de milho nativo chamado sorgo que é a base de sua alimentação. Cercados de cães, porcos e cabras, apreciamos um trabalhador fundindo bronze para a fabricação de armas e outros utensílios, especialidade local. Todas as pessoas cobrem seu corpo com panos cortados sem nenhuma técnica de confecção. O aparente isolamento da região se deve às dificuldades de comunicação com os povos do Oriente Médio, o que não impediu a China de se tornar uma região rica em inovações tecnológicas, como o papel, e a desenvolver um sofisticado sistema político baseado em suas concepções cosmológicas. Somos, então, apresentados ao senhor Yang-Tsé, inventor de uma distração para o pequeno povoado. A brincadeira se passa num campo quadricular, com apenas 14 metros de comprimento e duas estacas fincadas no chão, ligadas por um fio de seda. Para nossa emoção, finalmente trazem um objeto redondo, com 22 centímetros

Pintado em seda, quadro reproduz o kemari, uma variação japonesa do tsu-chu.

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de diâmetro, cheio de cabelos e crinas de cavalo: a bola ancestral. Que fantástico! Lá estava uma das invenções que revolucionaram a forma de o homem viver, tal qual a roda e a domesticação de plantas e animais revolucionaram o mundo! Dois grupos de oito pessoas são separados em cada lado do campo e, sem deixar a bola cair, tentam passá-la além das estacas com seus pés. O jogo, que lembra muito o futevôlei, recebe o nome de tsu-chu. Incrível, emocionante e simples, o esporte toma suas primeiras formas. Podemos perceber que os chineses são tolerantes. Esporte praticado aqui celebra a vida, e não a morte. Mesmo assim, surgem as dúvidas. Conhecemos a origem do futebol? Os primeiros indícios nos deixam surpresos, mas com algumas dúvidas persistentes: onde estão as traves? Não há árbitros? Acessando o computador de bordo da nave, descobrimos que o tsu-chu nasceu do treinamento militar. Yang-Tsé era membro da guarda do imperador Huang-Ti, um dos adeptos do novo esporte. Trata-se, de fato, do mais antigo jogo documentado de bola com os pés, saindo gradativamente dos limites da antiga nobreza chinesa até o povo.

a bola chega ao outro lado do mar Deixamos a China e seguimos viagem em nossa nave. Atravessamos o Mar Amarelo e aportamos em terras que hoje pertencem à mais sublime das sociedades orientais, a japonesa. Nobres da corte imperial do país chutam uma bola de fibras de bambu nos momentos de ócio. É possível entender esta rígida distinção que os japoneses fazem entre trabalho e lazer. Afastados, escravos trabalham ao redor do campo e têm que devolver a bola quando ela cai nas suas proximidades. Surge então, no Japão, a figura dos gandulas. Os japoneses souberam revestir o jogo com um sentido espiritual de serenidade. Ali, a prática é batizada de kemari, variação do tsu-chu.

jogos na Grécia O mundo ocidental só sente o gosto do gol com os gregos. Nossa próxima parada é, então, a Grécia Antiga. Encontramos lá uma realidade diferente da chinesa e da japonesa. A economia, que também é essencialmente agrícola, é atrasada e dominada por grandes proprietários de terra. Sentimos o medo constante da população, dividida em cidades-estados, em relação a possíveis ataques dos vizinhos. Para a distração, existem vários jogos com bolas entre os gregos antigos, mas o que poderia ser apontado como um “parente” distante do futebol é o epyskiros. Escritos do dramaturgo Antífanes, do século 3 a.C., e de Julius Pollux, no século seguinte, descrevem algumas de suas características, como a existência de uma linha de meta, ao fundo de cada lado do campo, pela qual a bola devia passar para a obtenção de pontos.

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Muito parecido com o kemari, o epyskiros apresenta, no entanto, uma diferença básica: a bola evoluiu. Ela agora é uma bexiga de boi coberta por uma capa de couro. O objeto esférico essencial para a realização de uma partida de futebol tem seu formato aprimorado na terra de Héracles. Jogadores usam expressões diferentes durante a partida: “bola longa”, “passe curto” e “para a frente” são alguns exemplos. Com a bênção dos deuses gregos, partimos novamente em nossa nave, que, com sua tecnologia, nos leva a cruzar mares até então não navegados e chegamos a terras que os europeus apenas séculos mais tarde sonhariam que existiam.

Parte de uma escultura com jovens gregos praticando jogo com tacos e bolas. A obra original está instalada no cemitério Dipylon, em Atenas, e data do ano 510 a.C.

o futebol na América pré-colombiana Nosso banco de dados levantou que práticas similares ao futebol também foram encontradas em regiões onde a influência europeia não havia chegado até o século 15: as Américas. Por volta do ano 1400 a.C., na região que mais tarde seria conhecida como México, nativos jogavam o primeiro esporte em equipe usando uma bola de borracha. Ao final de cada jogo, o capitão do time perdedor era oferecido em sacrifício aos deuses.

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Pintura francesa de Jacques Le Moyne que retrata índios americanos durante treino para as batalhas. Século 16.

No local conhecido hoje como Haiti, os colonizadores espanhóis encontraram os nativos envolvidos em jogos também com uma bola de borracha, extraída das árvores. Entre os astecas, era praticado o jogo de bola em campos chamados de tlachtli. Apertamos um simples botão e retornamos ao Velho Continente, em terras de conflitos constantes, mas sem sermos detectados ou sem precisarmos pedir autorização.

jogos em Roma Invadimos agora o vasto e poderoso Império Romano do século 2 a.C., responsável pelo surgimento e expansão de várias ciências, filosofias e crenças que até hoje guiam boa parte da civilização ocidental, como o Direito, as grandes obras de engenharia e até o cristianismo. Apesar da perseguição que os cristãos sofreram nos primórdios da religião, ela acaba por se tornar a oficial do Império. Sem usar o tradutor, percebemos as semelhanças entre nosso idioma e o falado nas conversas de patrícios e plebeus nas ruas da cidade de Roma. Mesmo com a decadência do Império, o latim se alastrou, sendo utilizado por eruditos por muitos séculos e dando origem a línguas como o português, o francês, o espanhol e o italiano. Podemos apreciar, em sua plenitude, obras que persistem até a atualidade, como o Fórum e o Senado. Os romanos, inspirados no epyskiros grego, elaboraram sua versão do jogo com bola, o harpastum. Ele é disputado com uma bola de bexiga de boi revestida de couro, chamada de follis, em um campo retangular, com uma linha divisória e duas de meta. Os jogadores ocupam posições determinadas, com os jogadores mais lentos responsáveis pela defesa. Perto da linha de meta focus stantium, eles equivalem aos zagueiros atuais. Os atacantes ficam na área pilae praetervolantis et superiectae e outros, ainda, com funções neutras. Os medicurrens, utilizados por ambos os times, fazem a ligação entre defesa e ataque.

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Participantes trocam passes e um deles arremessa a bola através da linha de meta adversária. A equipe marcará um ponto, que depois se transforma no gol. Porém, diferentemente dos chineses, os romanos veem o jogo como uma espécie de guerra dentro de limites, assim como uma luta que muitas vezes chegava à morte. Participantes das corridas de carruagem e seus times têm torcedores próprios. Estes usam cores específicas e duelam contra adversários. Muitos jogos são desenvolvidos durante o treinamento militar.

jogos na França Com a expansão do Império Romano a regiões como a Gália e a Bretanha, houve concomitantemente a dispersão por boa parte do território europeu do modo de vida do colonizador. Era parte da estratégia do Império recriar infraestrutura física e cultural mais próxima possível da metrópole em detrimento dos tradicionais modos de vida das populações nativas. Junto com os soldados, procedentes dos mais diversos recantos do Império, a prática do harpastum chegou às regiões que posteriormente seriam conhecidas como França e Inglaterra.

Partida de calcio, em praça de Florença, enquanto o harpastum se espelhava por outras regiões da Europa.

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Na pátria de Platini, a partir desse já conhecido jogo, surge o soule, praticado preferencialmente por homens com boa compleição física. O soule incorporou todas as características do jogo romano, incrementando-as e se aproximando ainda mais do que conhecemos como futebol. Com sua popularização, as regras, as dimensões do campo e o número de participantes variavam de região para região. Foi com Henrique II que o soule migrou para a nobreza, contando com personalidades ilustres da época, como o poeta Pierre Ronsard.

uma luz na “Idade das Trevas” Avançando no espaço físico e no tempo, passamos pelo nascimento de Cristo como se fosse um fato corriqueiro. Apesar da importância desse momento para a história do Ocidente, ele ficou reservado a outra expedição. Estamos fascinados pela maravilhosa origem do futebol e seguimos à era conhecida como Idade Média, erroneamente considerada por muitos como “Idade das Trevas” e um período obscuro da história. Afastando-nos de todas as realizações desse período que moldaram as formas de organização social e política, as ciências e as artes atuais, dirigimos nossa atenção às práticas com a bola, que persistiu às mudanças históricas.

futebol à italiana Paramos na cidade de Florença, terra do ilustre pensador Dante Alighieri, local que foi também inspiração do genial Michelangelo. Ao caminharmos pelas pequenas ruas da cidade, notamos certa evolução da sociedade em comparação às demais localidades europeias. A divisão em classes sociais é clara e muito se assemelha às formas atuais. Os trajes das classes mais abastadas são requintados. Percebemos o incentivo da nobreza ao jogo precursor do futebol. Até papas e príncipes participavam dos jogos, conhecidos como el pasto e reconheciam a dívida que tinham com a antiga prática romana. Mais precisamente no dia 17 de fevereiro de 1529 presenciamos, na Piazza Santa Croce, um fato de importância ímpar: grupos políticos rivais decidem resolver seus problemas numa disputa de um jogo com bola. Participam 27 jogadores de cada lado. Toda a cidade para, ninguém fala em mais nada além do confronto. Diversos folhetos espalhados pelas ruas anunciam a partida. O clássico durou duas horas e recebeu o nome de calcio, pontapé. Até hoje, para os italianos, o giocco di calcio é o futebol de todos. As duas equipes levam as cores dos seus grupos: verde e branco. O mais interessante é a organização tática do time: três zagueiros recuados (líberos), quatro zagueiros avançados (médios) e cinco outros médios para atuar mais à frente, conduzindo a bola para 15 atacantes. Um estilo nada “retranqueiro” de jogar bola.

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Vale lembrar que a belíssima Florença, berço do calcio, ainda cultua esse momento na atualidade. Há, todos os anos, no dia de São João (24 de junho), na mesma praça, uma partida igual à presenciada por nós, atraindo grande público. Dessa forma, concluímos que a contribuição dos florentinos para o futebol atual foi grande. Mas a grande disputa pela primazia do futebol fica entre ingleses e franceses. A organização do jogo, como a conhecemos hoje, é predominantemente inglesa. Na Inglaterra e também na Escócia, o esporte se torna mais violento; roupas são rasgadas; pernas e dentes, quebrados.

À esquerda, reprodução de um manuscrito veneziano sobre o futebol entre nobres.

jogos na Inglaterra medieval Para não perder mais tempo, nossa nave estaciona numa terra que cheira a futebol. Não o Brasil ainda, mas a Inglaterra medieval. Lá, o futebol antigo se populariza e é associado a eventos cívicos, como a shrovetide, de 1175, ocasião na qual os ingleses comemoram a expulsão dos dinamarqueses durante o período de domínio anglo-saxão chutando bolas de couro, que simbolizam as cabeças dos inimigos. Difícil precisar se tal prática surgiu do harpastum ou fortaleceu a continuidade de jogos de bola em território bretão; o que importa é que ela não se tornou apenas um passatempo, mas um forte movimento social, que mobilizava apaixonadamente multidões em arrebatamentos de violência e êxtase. Era um jogo folclórico, praticado nos feriados sagrados, mas repletos de simbologias pagãs. Podemos assistir a inúmeras partidas nas quais as bolas eram as próprias cabeças dos inimigos. O ambiente inglês é propício para o desenvolvimento daquele que se tornou o esporte mais popular do mundo.

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Obra exibe diversão com bola nas ruas de Londres, no século 14.

O envolvimento com o jogo era tal que vários soberanos ingleses tentam proibir sua prática. Isso porque lojas e residências eram frequentemente danificadas à medida que os jogadores deslocavam-se. O mais impressionante é que ao final de cada confronto era divulgado o número de mortos. Irônico lembrar o caso do Rei Eduardo I, que, para garantir a eficácia de seu exército em guerra contra a Escócia, proibiu a prática do esporte em 1297, temendo que a rivalidade das duas nações em campo esportivo sobrepujasse a vontade de atuar em campo de batalha. No ano de 1314, o Rei Eduardo II também proibiu o jogo, temendo que os jovens descuidassem de outras práticas, como o arco e flecha, mais úteis para um país em constantes guerras. O mesmo acontecia na rival Escócia, sob o reinado de Jaime II. Lá, podemos visitar moradores da Corp Wall, que transformaram a cidade num dos últimos sustentáculos do jogo após as proibições constantes. O jogo é semelhante aos demais praticados na ilha e abandonados na época contemporânea. Centenas de homens correm atrás da bola pela cidade, que ela própria serve como campo. Uma cena inesquecível! Assemelha-se a um grande motim urbano, com várias pessoas correndo e se batendo pelas ruas. Quase não se enxerga a bola. Monumentos históricos, com distâncias de até 1,5 quilômetro, servem como traves onde são marcados os gols. Na verdade, o gol, pois só é necessário um para acabar a partida. No jogo que presenciamos, os participantes levam o dia todo para marcá-lo. As proibições continuariam. Henrique V e Henrique VIII proclamaram uma verdadeira guerra ao futebol. Nossa presença em todas essas situações permite-nos afirmar que em nenhum

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momento o futebol desapareceu na Inglaterra. Os chefes absolutos do Estado não foram capazes de impedir sua prática. Até Shakespeare, na peça Rei Lear, em 1606, tratava do futebol em um diálogo entre o Rei e um serviçal: “Seu desprezível jogador de futebol...”. Muitos, principalmente nobres, achavam que o futebol era um esporte bárbaro, que estimulava violência e ódio.

sobrevivência do futebol inglês Apesar dessas leis e posições que coibiam a prática do futebol ancestral, ele pôde sobreviver, transformado em práticas diversas e variadas, ora tomando formas menos violentas do que as originais, ora permanecendo clandestino. Assim, durante o século 16, era possível encontrar ingleses e escoceses se entregando com selvageria ao futebol, causando ferimentos e até mortes constantes. Concomitantemente, em outras paragens europeias, o futebol também foi perseguido. Definitivamente, um jogo que não só despertava, mas também encarnava paixões. Incorporando todas as características listadas por nós, numa dinâmica agregadora, Itália, França, Inglaterra e Escócia continuavam animando as várias versões do jogo de bola.

Cena do futebol inglês retratada pelo artista Isaac Robert Cruikshank, publicada em 1827.

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retornando à França Cruzando mais uma vez o Canal da Mancha, retornamos à França para presenciarmos outro momento relevante da história do futebol. Na mesma época em que o esporte bretão chega aos jardins aristocráticos, surge o futebol de massa. Participamos, então, de outro episódio fascinante: cerca de mil jogadores em campo, 500 de cada lado, tentando levar a bola até as portas da cidade de Chester. Na sequência, vieram proibições e manifestações das autoridades contra o mass football, que resistia às imposições legais.

restauração futebolística Na segunda metade do século 17, a Inglaterra viveu o período da Restauração, após a Revolução Puritana e o governo de Oliver Cronwell. Ao contrário dos monarcas antecessores e do próprio governo puritano, o Rei Carlos II mostrou extrema tolerância para com a prática do futebol, permitindo a realização de um jogo entre seus criados e os do Duque de Albermale. Obviamente, o fato de ele ter sido mais nos moldes do soule francês do que o do jogo praticado pelas massas ajudou para obter o apoio real. A partir desse momento, a proibição é dirigida especificamente contra as manifestações mais violentas do futebol. Manifestações

Obra do britânico John Millar Watt ilustra o espanto da Rainha Elizabeth I diante da brutalidade do futebol.

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sim, porque não havia regras definidas, nem um único jogo; de acordo com a localidade onde era praticado, mudava de feições. Em escolas, por exemplo, onde o esporte era tido como excelente exercício físico, utilizavam-se constantemente as mãos. Em outros locais, como na Cornuália, surgem precursores do rugby, como o hurling over country. O football já se tornava um traço peculiar do caráter inglês durante início do século 18. Durante o confronto entre o Exército inglês, comandado pelo Duque de Wellington, e o francês, sob a liderança do Imperador Napoleão, na Guerra da Península, em maio de 1812, os soldados fazem uma trégua para recolherem os feridos. Exibições de pompa dos dois lados; os franceses tocam marchas com suas bandas, enquanto os ingleses se entregam ao jogo de futebol. A dinastia da Rainha Vitória foi marcada pela prosperidade econômica; uma era de desenvolvimento econômico garantido pela expansão do território do Império Britânico. Durante seu mandato, o profissionalismo do futebol teve início. Na primeira transferência da história, um jogador foi negociado por mil libras.

football ou rugby? Neste momento, jovens ingleses apostam no sucesso do projeto esportivo e decidem organizar o futebol. Para isso, abandonam aulas de tiro, esgrima, caça, equitação e arco e flecha. Fazendo uma breve análise de nossa viagem, percebemos pela primeira vez que o futebol está sendo organizado. A prática popular do futebol foi lentamente penetrando em instituições tradicionais de ensino da Inglaterra, como Cambridge, Oxford, Rugby e Eton, a despeito da resistência de alguns. Nessa atmosfera, seus praticantes iniciam as primeiras discussões sobre a regulamentação do esporte. Nesse sentido, surgiu a principal das regras para o futebol universitário: a bola não poderia ser tocada pelas mãos dos jogadores. Entretanto, como a história do futebol tem apontado até o momento, a formação do esporte não é feita de consensos, mas de múltiplas interpretações do mesmo tema. Ironicamente, em 1823, na Rugby School, surge uma variante que contestava tal regra, permitindo que os jogadores alternassem o uso de mãos com o de pés. Surge, assim, o jogo de rugby. Em outubro de 1848, ocorre a reunião Trinity College de Cambridge. Representantes de diversas escolas se reúnem numa conferência que durou mais de oito horas para tentar chegar a consensos sobre uma prática comum do futebol. Regras do rugby não são fontes de inspiração. Entretanto, somente 15 anos mais tarde a Regra de Cambridge teria grande influência no esporte. Na década de 1850, a maioria das escolas inglesas luta contra a diminuição do número de matrículas. O problema da violência entre os alunos começa a preocupar pais e professores. Estudantes criam tumultos, queimam salas de aula e atacam moradores das proximidades. O lema de que “corpo saudável gera mente saudável” torna-se crucial para o repovoamento das escolas. A propaganda é

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centrada no futebol e tem influência religiosa. Cada colégio desenvolve sua própria versão do esporte. Em alguns, é permitido usar os pés e as mãos; em outros, apenas os membros inferiores. Em 1858, o futebol já está mais próximo das classes populares, com diversos times formados. O jornal The Edimburg resume em uma frase o que o esporte representa na época: “O futebol é qualquer coisa que se situe entre um detalhe e um sacrifício”.

Ilustração Um Jogo de Futebol: A Última Disputa, publicada em 1871 na revista inglesa The Illustrated London News.

nascimento das regras O dia 26 de outubro de 1863 é o mais importante na história do futebol. Ingleses eufóricos. Uma reunião marcada na Taverna Freemason, em Great Queen Street, um lugar aprazível. Esse é, sem dúvida, o grande evento de nossa viagem! E, para presenciar o fato, nossa nave aportou à frente do local muito antes de os representantes dos 11 clubes e escolas chegarem lá. É o dia marcado para discutir o conjunto universal de regras do esporte. Iniciado o debate, alguns defendem o jogo só com os pés; outros querem uma unificação de regras com base nos fundamentos do rugby, usando as mãos e a violência. Assim, é fundada a The Football Association. As discussões a respeito das regras foram intensas. Mesmo sabendo de antemão o resultado, acompanhar o debate é emocionante. A maioria está com o pessoal de Cambridge,

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Obra de Peter Jackson, com jovens jogadores de futebol em escola brit창nica.

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que defende o futebol chamado limpo, com os pés. Porém, uma minoria, sob a liderança de F. W. Campbell, é contra. Ele diz que se deve permitir pisar no adversário durante o jogo, destinado aos valentes jovens bretões, e não a velhos incapazes de disputar esporte varonil. O velho lorde inglês sai do local derrotado e revoltado. Em janeiro de 1871, viria a fundar a União Inglesa de Rugby. Os dias passam, as semanas correm. Somente após cinco demoradas reuniões são aceitas as 14 regras criadas para unificar o futebol, completamente diferentes das do rugby. O anúncio oficial ocorre no dia 8 de dezembro de 1863, quando a The Football Association torna oficiais as regras, publicando-as para conhecimento de todos. É verdade que em algumas regiões ainda persistiam regras antigas... Mas, depois de um difícil parto, nasce o futebol moderno.

novas perspectivas para o futebol O estabelecimento de um consenso era o incentivo que faltava para os jogadores se aprimorarem e as táticas para vencer os adversários se modernizarem. Regras foram distribuídas por meio de livros e cartilhas em clubes, escolas e livrarias, procurando difundir os ensinamentos aos interessados em praticar o esporte. O mais importante é que as ideias iniciais vêm sendo tradicionalmente carregadas há séculos, passadas de geração a geração. As regras foram sendo sucessivamente modificadas e novos manuais passaram a ocupar o lugar das primitivas cartilhas. O futebol definitivamente passava no teste. Em 1868, surge a figura do árbitro. No ano de 1871, Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda fundam a International Board, que até hoje regula as leis do jogo no mundo inteiro, como órgão assessor da Féderation Internationale de Football Association (FIFA). Nos últimos anos do século 19, são fixados o número de jogadores em cada time (11), as dimensões do campo em 120 jardas por 80 jardas, o número da bola (5) e a duração do jogo (1 hora e 30 minutos).

primeira partida internacional A primeira partida internacional foi disputada em novembro de 1872, entre Escócia e Inglaterra. O resultado foi um simples empate de 0 a 0. Em 1883, Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda disputaram o primeiro Campeonato da Grã-Bretanha, com vitória dos ingleses.

globalização do futebol A partir do último quarto do século 19, o futebol começou a se espalhar pela Europa. Já em 1872, graças a um grupo de marinheiros ingleses, que levaram o jogo ao porto de Havre, o futebol em seu novo formato chegou à França. Em 1873, já era reconhecido na Dinamarca; em 1879, na Suíça; e, em 1880, na Bélgica e na Áustria.

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Em 1877, as regras da The Football Association já vigoravam em toda a Inglaterra e em muitos países do mundo. Passeando pelos gramados, começamos a escutar termos característicos, como free kick (tiro livre), touch (toque), charging (carregar), catch (pegar) e muitos outros que atravessaram o mundo.

persistência das dúvidas A dúvida se torna crescente. Mais do que as meras semelhanças, as diferenças entre todas essas práticas esportivas que levaram ao futebol moderno ao longo da história nos chamam mais a atenção. Será que não houve uma idealização retroativa do passado? Será que o simples fato de alguns esportes incluírem o manuseio de bolas levou alguns pesquisadores a considerá-los como ancestrais do futebol moderno? E quais as ligações entre essas práticas mais antigas com a popularização do futebol? Feita a pesquisa, delimitados os questionamentos, ajustamos os controles da nave, ansiosos por chegar aos últimos anos do século 19. Aqui n ossa rica aventura prossegue, mas de navio. Vamos navegar da Inglaterra ao Brasil. Estamos curiosos para saber como o futebol surge em nossa pátria e, assim, com os olhos mais familiarizados à realidade local, possamos responder a algumas dessas indagações. Em 12 de outubro de 1894, entramos em um navio que cruza o Oceano Atlântico com um jovem que retorna ao Brasil após dez anos de estudos na Inglaterra...

Gravura mostra a presença do futebol nas Filipinas, arquipélago próximo à China.

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