plural JornAL CULtUrAL
nÚMero 12 | DeZeMbro De 2015 A FeVereIro De 2016 | bH | MG
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o direito de não ser CorPo MeDo De MULHer rAZÃo e eMoÇÃo IntIMIDADe nÃo Se “ConFIA”
PROJETO DE EXTENSÃO DIREITO E CULTURA DA ESCOLA DE DIREITO DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA
eDItorIAL
VALe A “PenA”?
“seja bravo, seja breve”
Colaboração Premiada
Por Bernardo G.B. Nogueira
Por certo a escrita é a ferramenta mesma de levar adiante a memória. A memória por vezes trai a gente, inventa coisa nova só para não ficar sem resposta. Mas a própria escrita também é lugar de inventar coisas. Escrever este editorial, em um momento tão importante para o país, nos obriga a deixar registrado: o Outro é quem nos constrói. E ele é escrita, ouvido, sentidos todos, logo, ser de memória. É importante escrever de onde estamos e onde queremos estar. O Plural abriga uma miríade de vozes que se querem memória amanhã. Serão. Hoje falamos para que o ontem exista e para que os tempos se misturem. Logo, mistura é o que nos conduz. Desde o direito penal, das questões de gênero, política, arte, religião e filosofia, o Plural se entrega, feito um amante, ao olhar de seus leitores, e assim, por amante que é, entrega-se também na tentativa de estabelecer no encontro, nova vida. Não haverá tempo que não seja lembrado, e exatamente pelo registro que nos emprestam é que agradecemos a nossos colaboradores, que sem o olhar do leitor também não vivem amor algum, dado que escrever é sempre registrar na história uma declaração de amor, plural e sempre.
eXPeDIente JornAL CULtUrAL PLUrAL
Projeto de Extensão Direito e Cultura da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva
Por Ronaldo Passos Braga
Professor mestre do Centro Universitário Newton Paiva. Advogado.
Por Raíssa Pereira Gonçalves
Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Monitora do Núcleo Criminal do Centro de Exercício Jurídico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.
A colaboração premiada é um instituto de direito processual penal pelo qual um investigado ou acusado de um crime confessa a prática do delito e, aceita colaborar com a investigação ou processo fornecendo informações que propiciarão efetivamente: obter provas contra demais autores e partícipes dos delitos; desmantelar organizações criminosas; prevenir novos crimes; recuperar os produtos ou proveitos dos delitos perpetrados; localizar vítimas, recebendo o colaborador, em contrapartida, benefícios penais, como redução da pena ou regime de cumprimento mais brando, por exemplo. Em síntese, a colaboração premiada é um estímulo ofertado pelo Estado com o intuito de buscar a verdade no caso concreto, revelando-se como meio pelo qual um determinado investigado ou réu “entrega” seus comparsas e todo o esquema criminoso buscando obter benefícios. Para validá-la e visualizar-se a redução ou perdão da pena, faz necessário que o Delator narre de forma espontânea sua participação e dos demais envolvidos nos fatos, e que essas declarações sejam eficazes na solução do crime. Cabe consignar que a colaboração premiada tem com natureza jurídica instituto qualificado como meio de obtenção de prova (Lei 12.850/13, artigo 3º, I), não sendo meio de prova propriamente dito. Precisamente a colaboração premiada não “prova nada”, sendo mero instrumento ou técnica para se obter provas.
A colaboração premiada é tema que traz várias divergências no âmbito processual, já que divide opiniões sobre sua eficácia e moralidade, sendo que para alguns doutrinadores ela fere princípios éticos e constitucionais. Em regra, quem repele a eficácia deste mecanismo de obtenção de prova, assevera que a ampla defesa e o contraditório são claramente feridos por esse instituto, já que o delatado somente tem um acesso limitado e no final de todo o processo da colaboração. Acredita-se, que a colaboração é uma forma de se oficializar a traição, ferindo a ética social, além de um estímulo a falsas acusações e vinganças pessoais. Em sentido oposto, doutrinadores prelecionam que a colaboração premiada seria um mal necessário, dado que o bem maior a ser tutelado é o Estado Democrático de Direito. Em face das críticas ofertadas a esse instituto, frisam que este seria a “traição de bons propósitos”, pois vai contra o crime e em favor do Ordenamento Jurídico, além de incentivar o arrependimento e a regeneração, objetivos buscados pelo Direito Penal. Por derradeiro, o balanceamento de valores no caso concreto, deveria ser o norte adotado pelos representantes do Ministério Público e magistrados a fim de conduzir a utilização do instituto da colaboração premiada na colocação da “tutela suficiente” em consonância com os princípios e garantias constitucionais que tutelam o direito de defesa dos cidadãos.
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editor: Bernardo G.B. Nogueira APOIO TÉCNICO: núcleo de Publicações Acadêmicas newton Paiva: Projeto Gráfico, editora de Arte e Diagramação: Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG
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JornAL CULtUrAL PLUrAL | nÚMero 12 | DeZeMbro De 2015 A FeVereIro De 2016
SeGreDoS VIrtUAIS
Intimidade não se “confia”
Por Ronaldo Passos Braga. Professor do Centro Universitário Newton Paiva. Advogado. Por Alice Araújo Oliveira, Camila Rodrigues Santiago Roncalle, Eliza de Oliveira Barbosa, Karla Nayara Martins dos Santos, Pedro Henrique Abreu Cunha, Raíssa Pereira Gonçalves. Discentes extensionistas do Centro de Exercício Jurídico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva A pornografia de vingança (‘revenge porn’), é uma violação à privacidade e à intimidade sexual, em que sem autorização pessoas têm a publicação de suas fotos e vídeos sexuais nos meios de comunicação. Tal acontecimento, costuma ocorrer após o fim do relacionamento, como um meio para vingar-se da pessoa com quem se relacionou, possuindo um único objetivo: constrangê-la nos mais diversos níveis. A vingança pornô ganhou força com a popularização das redes sociais e mensagens instantâneas, causando um impacto social e psicológico nas vítimas, sendo que cerca de 90% dos casos acontecem entre mulheres de 12 a 30 anos. No país existem legislações periféricas como a Lei12.737/2012 que alterou a redação do artigo 154 do Código Penal tipificando como conduta ilícita a invasão indevida de mecanismo informático bem como a Lei 12.965/2014 prevendo a responsabilização dos provedores de conteúdo ( Google, Facebook e Snapchat) caso alguma imagem íntima ou cena de sexo explícito seja mantida no site após ter recebido o pedido de exclu-
são, entretanto, a conduta de divulgação de imagens ou vídeos de nudez sem autorização padece de normatização específica, tramitando no Congresso Nacional projetos de leis que visam tipificar pormenorizadamente essa conduta. Nesse sentido, o Projeto de Lei 6630/2013 de autoria do deputado federal Romário (PSB-RJ), acrescenta artigo ao Código Penal, passando a tipificar a conduta de divulgar fotos ou vídeos com cena de nudez ou ato sexual sem autorização da vítima, além de prever indenização por todas as despesas decorrentes de mudança de domicílio, de instituição de ensino, tratamentos médicos e psicológicos e perda de emprego, sem prejuízo da reparação civil por outras perdas e danos materiais e morais. Também nessa seara, o Projeto de Lei 5555/2013, do deputado João Arruda (PMDB-PR), altera a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), criando mecanismos para o combate a condutas ofensivas contra a mulher na internet ou em outros meios de propagação da informação. Nessa proposta, sendo o caso, o magistrado ordenará ao
provedor de serviço de e-mail, perfil de rede social, de hospedagem de site, de hospedagem de blog, de telefonia móvel ou qualquer outro prestador do serviço de propagação de informação, que remova, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, o conteúdo que viola a intimidade da mulher. Lado outro, registra-se que atualmente a vítima da pornografia de vingança tem como medida inicial a seu favor ir à Delegacia de Repressão a Crimes Eletrônicos e fazer um boletim de ocorrência, solicitando às autoridades policiais a instauração de um processo de investigação para apuração dos fatos e posterior encaminhamento ao Ministério Público para as providências legais. Também cabe ação junto ao Juizado Especial requerendo a retirada imediata do conteúdo pornográfico da internet com pedido de antecipação de tutela dado ao iminente dano irreparável à personalidade da vítima, nos termos do disposto no artigo 19 da Lei nº 12.965/14, tudo isso sem prejuízo da pertinente ação de indenização pelos danos materiais e morais perpetrados.
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Zoon PoLItIKon
não há saída sem movimentação nas ruas:
sobre plebiscitos e constituintes Por José Luiz Quadros de Magalhães Vivemos um processo grave de crise institucional generalizada. A utilização das instituições contra elas mesmas, gera total insegurança. Lembremos que as instituições foram criadas a partir de interesses e contextos específicos e com finalidades nem sempre expressas, mas facilmente descobertas a partir de uma análise histórica atenta. O Estado moderno nasce a partir de uma aliança entre nobres e burgueses para proteger seus interesses, assim como, o constitucionalismo liberal, expressamente foi criado pelos burgueses, homens, brancos e proprietários para proteger a propriedade e os negócios destes mesmos homens brancos e proprietários, exatamente o perfil do governo ilegítimo de Temer. A primeira questão que se coloca neste momento é justamente o risco do completo caos jurídico, político e econômico, quando estas instituições, que tem origem e finalidade, são usadas contra elas mesmas. Em outras palavras, embora estas instituições tenham sido criadas para proteger e favorecer determinados grupos, elas permitiram uma expansão do número de pessoas que poderiam fazer parte da festa consumista do capitalismo neoliberal de ultra consumo. Importante lembrar que, diversas vezes esta máquina jurídica-política liberal, recebeu infiltrações que permitiram uma ampliação dos direitos, e de
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certa maneira, a inclusão de mais pessoas neste jogo, e mesmo, algumas vezes, a limitação de ganhos de um certo grupo econômico. É justamente neste momento que vêm o golpe. Toda vez que a “democracia constitucional liberal”, mais constitucional liberal que democrática, serve para incluir além do permitido ou tolerado pela elite econômica e tradicional, há uma ruptura. São inúmeros os exemplos: desde a França de 1799 ou 1851, passando pelo Brasil 1964, Uruguai e Chile 1973, Argentina 1976, as inúmeras tentativas de golpes e de desestabilização dos governos na Venezuela, Bolívia, Equador, até o atual golpe institucional brasileiro de 2016. Há entretanto uma novidade interessante e especialmente perigosa no que acontece no Brasil após os balões de ensaio dos golpes de Honduras e Paraguai. Nos golpes empresariais/militares das décadas de 60 e 70, as instituições eram fechadas e o direito era suspenso. Agora o golpe é dado usando as instituições e o direito contra eles mesmos. Isto é novo e traz um perigo extra, agora, também para os golpistas, presentes no Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público. Quando os golpes do passado eram dados, as instituições “constitucionais-democráticas” eram fechadas, o que as preservava para que voltassem a funcionar, passada a urgência do golpe, voltando a proteger de uma maneira “legitima” institucionalizada, de novo, os
interesses dos que criaram as instituições e, claro, em momento de ameaça de perda de privilégios, davam e sustentavam o golpe. Agora, como a fórmula dos tanques, assassinatos e torturas escancaradas pode não mais funcionar diante da possibilidade real de comunicação global e imediata, onde cada pessoa tem uma filmadora e máquina fotográfica na mão, nos seus celulares, os golpes são mais sofisticados. Mas, esta experiência atual, promovida pelos mesmos atores dos outros golpes do passado (a elite branca e machista, as grandes empresas nacionais e transnacionais, e os aparelhos de mega estados corporativos como a CIA e outros órgãos de segurança externos e internos vendidos), contém um elemento novo explosivo. No momento em que as instituições dão o golpe, utilizando todo o aparato e discurso institucional jurídico e político, elas se desqualificam revelando o que esteve o tempo todo oculto: que estas instituições não foram criadas para todos. O Teatro da “democracia liberal burguesa” se revela. As consequências disto? Veremos em breve. Por isto o momento é de sermos criativos. Além de preservarmos o espaço que conquistamos, nenhum direito a menos, temos que ousar fazer uma outra política, para construir outro mundo, outra economia, outras instituições, ou direito, outra sociedade. Um outro mundo é possível e necessário. Um outro fazer, agora, já.
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to be, or not to be
Medo de mulher Por Tatiana Ribeiro de Souza A discriminação contra a mulher tornou-se tema do meu interesse por uma via transversal: a do questionamento sobre o que é ser uma mulher. Ao invés de me debruçar sobre a igualdade entre homens e mulheres, fiquei interessada no fato de que há muito mais mistério de gênero do que supõe o vão binarismo moderno. Se ninguém nasce mulher, como a inventamos? O que é que todo mundo sabe sobre as mulheres e o que pensam que sabem? Peço aos leitores que não criem expectativa de respostas neste texto, porque eu só vim aqui para contar um caso. Como afirmei no parágrafo anterior, tenho feito leituras que me levaram à recolocação da identidade de gênero. Em um contexto mais amplo, o binômio homem/mulher a mim tem parecido localizado na identidade social, na composição do personagem que se apresenta socialmente. Digo isto considerando que esse personagem (criado por cada pessoa para representa-la) é influenciado pelo corpo e pelo desejo sexual. Ou seja, entre uma coisa e outra (o corpo e o desejo) nasce uma representação performativa de gênero, identificada socialmente como um homem ou como uma mulher, e o que não se encaixa nesse binarismo simplificador é considerado um corpo abjeto. Foi depois de ter feito diversas leituras e reflexões sobre a identidade de gênero (além de já ter escrito alguma coisa a respeito) que me deparei com uma placa na estação do
metrô de Brasília que indicava um espaço reservado para mulheres. Naquele momento eu me lembrei de ter lido sobre isso. Tal medida teria sido tomada como resposta às queixas das mulheres com relação aos abusos dos homens no contato físico com elas no metrô durante os horários de pico (sem trocadilhos!). Como eu pude constatar, agora as mulheres podem usar o metrô sem serem molestadas pelos viris trabalhadores da Capital Federal. Enquanto eu pensava sobre a identidade e segregação de gênero no metrô de Brasília, escutava o anúncio de que, por problemas operacionais, o metrô estava atrasado e poderia fazer paradas por tempo indeterminado nas estações. O atraso me deu ainda mais tempo para pensar a respeito do tema e até para tirar algumas fotos, especialmente da placa e da aglomeração crescente de mulheres à espera do metrô que não tinha hora para chegar. Em algum momento eu me senti no Oriente Médio. Pensei que deve ser assim viver em um lugar onde as mulheres são mantidas separadas dos homens, reservadas e preservadas deles (todos os homens) e para eles (os que exercem domínio sobre elas). A despeito do meu interesse sociológico sobre a situação, acabei desistindo de esperar a chegada do metrô e decidi pegar um taxi. Na saída da estação dirigi-me ao segurança que estava próximo às catracas: - Boa noite, senhor. Eu gostaria de receber meu dinheiro de volta porque desisti de esperar o metrô.
- Nós ainda não estamos devolvendo o dinheiro. - Como assim “nós ainda não estamos devolvendo o dinheiro”? Eu paguei por um serviço que não foi prestado e não tem previsão de restabelecimento. - É, mas nós não recebemos autorização para devolver o dinheiro de ninguém ainda. Por alguns instantes me indaguei se levaria adiante uma discussão por causa dos R$4,00 da passagem, mas rapidamente considerei que era mais do que o dinheiro que estava em jogo, era uma questão de direito. Além disso eu estava inebriada pelas reflexões de gênero, pelo que é ser mulher e pelo que isso representa. - Como o senhor se chama? - Assis. - Olha, senhor Assis, eu conheço o Código de Defesa do Consumidor e ainda por cima estou menstruada – definitivamente eu não sei por que eu disse aquilo, mas era a coisa do homem/mulher que me ocupava o pensamento e a atitude naquele momento – O senhor vai devolver o meu dinheiro ou nós vamos discutir sobre isso? No fundo, eu acho que queria testar a identidade de gênero. Naquele momento eu era uma mulher “sendo mulher”. A conclusão a que cheguei é que ainda há muito para ler e refletir sobre os atos performativos de gênero, sua naturalização e/ou culturalidade, porque, sem hesitar, o segurança virou para o rapaz do caixa e disse: - Michel, devolve o dinheiro dela aí!
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Babel
O direito de não ser CORPO
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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 12 | DEZEMBRO DE 2015 A FEVEREIRO DE 2016
Por Igor Maciel da Silva Estima-se que a ideia de educação tenha surgido no século XVIII. Manuais de Civilidade eram escritos e divulgavam por toda a Europa o que deveria se fazer diante as convenções públicas e privadas. Não poderia mais vomitar sobre a mesa. Escarrar, agora somente com lenço individual. Junto, nasceu o uso dos talheres e de todos os adereços para que os almoços e jantares, de encontros se tornassem eventos de requinte e demonstração da nova forma de ser e agir. No XIX, com a imprensa instaurada no Brasil, publicavam-se os avanços do Novo Mundo que deveriam ser incorporados pela sociedade. Ditavam-se regras e costumes em suas páginas; querendo que os daqui deixassem seus costumes coloniais e adentrassem ao que se referenciava como moderno; ocupando os corpos com as máquinas e com o trabalho. Ócio e tempo livre eram ações abomináveis. Pecados! Decretos e a voz de religiosos imperavam a favor da ocupação formal: casa-trabalho-igreja-casa. E existiram os que diziam que até a igreja se desvirtuava de seu papel inicial. Restando casa-trabalho-casa. A ideia de modernidade do século XIX para o XX no Brasil foi incorporada em campanhas conhecidas como Eugenia, Higienismo e Sanitarismo. Quem não recorda da grande Revolta da Vacina estudada no ensino fundamental e revisitada no ensino médio? Entretanto se esqueceram de dizer o que estava por trás. A Eugenia. por exemplo, fundada por Galton, baseou-se quase que exclusivamente as medições físicas (Galton era apaixonado por medidas) e observação. Em um dos testes que fez, silenciosamente, para saber onde estavam as mulheres mais bonitas da Europa, cortou um papel em forma de crucifixo e o guardou no bolso. Ao sair caminhando pelas ruas, quando cruzava com uma mulher que achava feia, bonita ou mediana, furava certa parte do papel com um dedal e depois levantou dados... E ai estava a Eugenia, mais matemática que biológica talvez. No Brasil, na releitura destas campanhas,
não se queria apenas tratar dos pobres, fazer a antissepsia dos cortiços e demais construções que não combinavam com a salubridade almejada. Queriam era “limpar” estes lugares e liquidar estas pessoas (os corpos) de maus hábitos que não combinavam com a tal modernidade requerida - pensar em Hitler neste momento pode ser mero sinônimo. Deste modo, a prática do exercício físico foi incorporada nas reformas de ensino escolar para a “limpeza” destes corpos, o que foi um grande marco para o século XX. A Reforma Francisco Campos, por exemplo, uniformizou os currículos do ensino superior e colocou como obrigatória a prática da gymnastica no ensino secundário - vale ressaltar que a gymnastica foi considerada ortopédica para as meninas, que deveriam cumprir as sequências do método sueco principalmente, para o preparo dos seus corpos que futuramente deveriam gestar. Aos meninos foram destinados outros métodos, por exemplo, o francês, de cunho militar e, sobretudo, os esportes. A mulher também permeou a prática esportiva neste recorte. Talvez, as de situação financeira inferior, tiveram acesso livre a muitas práticas, pois seus corpos “não interessavam tanto” a sociedade. Já às senhorinhas da classe nobre foram incorporadas no ambiente esportivo através da participação em eventos, floreando as arquibancadas, ganhando o título de madrinhas “disto e daquilo”, etc. O ambiente escolar parece ter favorecido grandemente sua aceitação no âmbito, através de modalidades como voleibol e cestobol, que conhecemos por basquetebol atualmente. Tudo no contínuo dos ideais de polimento dos gestos, para que estas não deixassem de ser femininas. A natação também é um exemplo de modalidade qual a mulher se “iniciou” na prática esportiva. Contudo, afirmar qual modalidade ou não se inseriram de primeira é um pecado para o campo da história. Estamos no século XXI e o Brasil decreta feriado nacional somente para a Copa do Mundo de Futebol Masculino. Quando acontece a disputa feminina mal sabemos.
Mesmo com a seleção feminina obtendo grandes premiações. País machista? Será?! Esta discussão não está na centralidade deste texto, todavia... A consideração a que quero chegar é sobre o quanto a “mídia” influi em nossos comportamentos, citando desde os Manuais de Civilidade até a prática dos esportes. Enquadrando-nos em gestos e “identidades” que sem entender como, “nos regem, nos guardam, nos governam”. Só não nos iluminam e “amém”. A exposição virtual é a moda do século. Contudo, mesmo com esta total liberdade para se mostrar, os padrões televisivos e midiáticos ditam qual corpo “aparece mais”. Corpos mercadológicos – sarados que não veiculam os benefícios do exercício físico, e sim em grande parte o resultado estético do movimento. Os corpos negros ainda sexualizados... os corpos femininos, belos, recatados e dos lares... a moda tal e qual... como se existisse um padrão de ser e de agir. Um viva para os atuais lenhadores! Tão bonitinhos, com seus trajes rudes e sexys, mas já são tantos né?! Afinal, pessoas era uma palavra plural?! Deixamos de pensar o quanto somos bordados a uma mecânica vigente, acredito ser, desde o século XVIII para a uniformização dos corpos, prevalecendo à plasticidade das coisas e não as formas belas de ser e se expressar. DE ONDE FALO: ALDERSEY-WILLIAMS, Hugh. Anatomias. 1ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2016. GOELLNER, Silvana Vilodre. “As mulheres fortes são aquelas que fazem uma raça forte”: esporte, eugenia e nacionalismo no Brasil no início do século XX”. (2008). Recorde: Revista de História do Esporte. Volume 1, número 1, junho de 2008. Disponível em: http://www.sport.ifcs.ufrj.br/recorde/pdf/recordeV1N1_2008_15. pdf Acessado em 24 dez. 2015. MELO, Victor Andrade de. Corpos, bicicletas e automóveis: outros esportes na transição dos séculos XIX e XX. In: PRIORE, Mary Del; MELO, Vitor Andrade de. História do esporte no Brasil: do império aos dias atuais. São Paulo: UNESP, 2009, p. 71-105. SILVA, Igor Maciel da; MAYOR, Sarah Teixeira Soutto. As normativas da imprensa periódica em meados do século XIX: diálogos entre Minas Gerais e Pernambuco na regulamentação de práticas e costumes das “horas vagas”. Anais do V Congresso Sudeste de Ciências do Esporte. Lavras, 2014. Disponível em: http://congressos.cbce.org.br/index.php/5sudeste/lavras/paper/ viewFile/6256/3193 Acessado em 24 fev. 2016. VAGO, Tarcísio Mauro. “Cultura escolar, cultivo de corpos: a gymnastica como prática construtiva de corpos de crianças no ensino público primário de Belo Horizonte (1906-1920)”. Scielo, 2000. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0104-40602000000200009Acessado em 25 dez. 2015.
A culpa nunca é da vítima
A culpa não é da vítima, em caso algum Por Maria Júlia R. Duarte Discente da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva “Será que ela não tinha bebido demais?” “Aquela hora na rua? Queria o que?” “Com uma saia daquele tamanho, tava pedindo né” Essas frases lhes parecem familiar? Pois bem, com certeza você já deve ter ouvido comentários parecidos a respeito de um caso de abuso sexual. Culpar a vítima de estupro pelo que houve ainda é algo muito comum em nossa sociedade, infelizmente. É curioso notar que esse hábito também é bastante recorrente em outros casos, como assalto, bullying, uso de drogas, doenças (como depressão) e até desigualdade (sim, há quem culpe o indivíduo por não conseguir “subir na vida”, como se ascender-se socialmente em nosso sistema desigual dependesse apenas de esforço e mérito. Ah, a fábula da meritocracia...). O conceito de “culpabilização da vítima” foi apresentado em 1971 pelo psicólogo Willian Ryan em seu livro “Blaming the victim”. Na obra, o autor usava o termo para tratar quem foi prejudicado de alguma forma pela desigualdade social e racial nos Estados Unidos. Nota-se que a prática de apontar o dedo para os “erros” da vítima já é antiga e, infelizmente, persiste nos dias de hoje. A meu ver, há uma dose de auto-vangloriarização nessa mania das pessoas de encontrar um “deslize” da vítima para tentar justificar sua (falta de) sorte. Tentam diferenciar-se e afirmam, mesmo que inconscientemente, que isso não poderia acontecer com elas. “Se a menina foi estuprada problema dela, eu só uso saia abaixo do joelho e não saio de casa.” (Aliás, qual o tamanho ideal da saia para evitar abusos?). Esses argumentos partem do princípio de que nossa realidade é justa e cada um tem o que merece. É sempre importante olhar pra si e para o panorama, precisamos nos incluir. O mundo precisa de menos ego e mais compreensão. Menos eu e mais nós. É necessário respeitar o estilo de vida do próximo. Não vamos cometer essa injustiça só porque somos diferentes. Em um mundo plural é necessário entender, ter sensibilidade, conhecer os outros lados e, principalmente, respeitar as alteridades. Talvez basta olharmos com outros olhos e com a mente aberta para entendermos que a culpa, meus amigos, não é da vítima.
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“e PreStAnDo AtenÇÃo no QUe nÃo eStAVA A VIStA”
razão e emoção Por José Carlos Henriques É verdade que o projeto de vida racional tenha conhecido, durante séculos, uma firme defesa – às vezes quase intransigente -, na cultura ocidental. Lado outro, muito cedo, ao menos desde Platão e Aristóteles, a relações entre a razão e as paixões, se mostravam complexas e problemáticas. Em filosofia, seguindo uma clássica tradição, costuma-se denominar paixões, as afecções, os modos de sentir, as disposições do homem frente ao que lhe vem do mundo e que, atingindo-o, de algum modo, provocam uma tendência, em alguma direção. Hodiernamente, os debates em torno desta temática especialmente instigante perpassam caminhos variados. Um dos mais significativos é aquele que busca apoio em fontes científicas, para o enriquecimento das soluções, com especial destaque para as neurociências. António Damásio, neurocientista português, radicado nos Estados Unidos desde os anos 70, tendo ali conduzido relevantes pesquisas, conclui que, no processo de evolução do homem, tendemos a conciliar a emoção e a razão, o que provocaria um afastamento do paradigma ainda dominante da oposição e do conflito. Por certo, hoje, é possível sustentar que já nos encontramos em uma posição apta a evidenciar que uma racionalidade estrita, diretiva da ação, não descreve o ser do homem que, antes, se mostra como um emaranhado pulsante de emoções, sensações, sentimentos e também razão. Nem mesmo é adequado aderir à defesa de uma racionalidade prática constitutiva do comportamento, do ethos, sem que sejam averiguadas as interações desta com as emoções e sentimentos. Aliás, segundo nos parece, a própria noção de razão prática, enquanto mecanismo
de controle da ação, teria aparecido exatamente por isto: a já inicial suspeita de que a racionalidade, na ação, na tomada de decisões, não se exerce com o rigor frio de um calculista, mas se empenha em uma ou outra direção, por propulsão interativa com o que hoje se tem chamado plexo emocional. Cedo se percebeu que emoções e sentimentos influenciam a tomada de decisões, interagindo com a racionalidade, em um processo dialético de provocação/reação, e que nem sempre é possível descobrir qual dos pólos vem a alcançar o triunfo. Damásio, com suas pesquisas, demonstrou que as emoções têm um papel importante no armazenamento de informações, bem assim no processo de tomada de decisões. Suas principais publicações que, felizmente circulam também no Brasil, - O Erro de Descartes (1994), O mistério da Consciência (1999), Em Busca de Espinosa (2003) e O Cérebro Criou o Homem (2009)-, buscam analisar o papel e a relação das emoções e sentimentos com a razão humana, identificando os processos que produzem o fenômeno da consciência. Enfim, o raciocínio, anteriormente pensado como lugar privilegiado da razão, em uma espécie de processo de interação consigo mesma, descobre-se como uma operação de relações em que emoções e sentimentos exercem papel fundamental. Memória e consciência são fenômenos que apelam para a leitura que o homem faz do mundo, representando-o e, para isto, os procedimentos não são meramente racionais. É assim que Damásio pôde conceituar a mente “como uma sucessão de representações criadas através de sistemas visuais, auditivos, táteis e, muito frequentemente, das informações fornecidas pelo próprio corpo sobre o que está acontecendo com ele – quais músculos estão se contraindo, em que ritmo o coração está batendo e assim por diante”. Em resumo, arremata, “a mente é um filme
sobre o que se passa no corpo, no mundo a sua volta”. Há diferenças, na linguagem técnica das neurociências, entre emoção e sentimento. A emoção, como explica Damásio, seria um programa de movimentos como a aceleração ou desaceleração do batimento do coração, tensão ou relaxamento dos músculos e assim por diante. Assim, prossegue, existe um programa para o medo, um para a raiva, outro para a compaixão etc. De outro lado, já o sentimento é a forma como a mente vai interpretar todo esse conjunto de movimentos. Ele é a experiência mental daquilo tudo. Alguns sentimentos não têm a ver com a emoção, mas sempre têm a ver os movimentos do corpo. Por exemplo, quando você sente fome, isso é uma interpretação da mente de que o nível de glicose no sangue está baixando e você precisa se alimentar. Enfim, o caminho ainda parece longo, muitas pesquisas encontram-se em andamento, mas temos sido seduzidos pela ideia segundo a qual o homem, em sua complexidade, tem se revelado mais que um lugar de conflito entre razão e emoção, firmando-se como um lugar de interação necessária destes elementos, em outra chave de leitura, que aponta talvez para a conciliação. Por tudo, intentar descobrir o modo como estas relações se processam segue sendo a grande e relevante questão. Do ponto de vista da filosofia, no Ocidente, traços das revelações trazidas hoje pelas neurociências, já se descortinam, quem sabe, já desde os antigos gregos. De fato, por exemplo, na Ética a Nicômaco, de Aristóteles, sempre se faz referência ao fato de que a razão prática, mesmo que seja seu projeto dirigir a ação, se resolve no sujeito ético de um modo particular. Algo parece certo, os avanços das neurociências não nos podem mais ser indiferentes.
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ISSo é AMor?
Arte y Derechos Humanos Por Cristian David Ocampo Macías Pesquisador do Programa de Mobilidade Acadêmica Internacional executado junto ao Centro Universitário Newton Paiva
¿Existe o no alguna relación entre el Arte y los Derechos Humanos? En mi opinión, parece como si la mejor forma de crear una verdadera conciencia en el pueblo, sobre la protección y promoción de los Derechos Humanos (En adelante DD.HH) no fuera a través de las decisiones emitidas por los diferentes Órganos Internacionales de Protección de los Derechos Humanos. De hecho, ocurre frecuentemente que las recomendaciones emitidas tanto por el Comité de Derechos Humanos de las Naciones Unidas, como por la Comisión Interamericana de Derechos Humanos y la Comisión del Sistema Africano de protección de los DD.HH, entre otros, son desobedecidas puesto que no existe una verdadera conciencia política acerca de su carácter vinculante. Es por eso que es necesario explorar otras perspectivas encaminadas a concientizar a los pueblos sobre la importancia de la protección y promoción de los DD.HH. Así, quisiera hacer mención del pensador contemporáneo Slavoj Zizek, filósofo y psicoanalista, quien argumenta de que nuestra realidad es una construcción simbólica. En un documental titulado Guía cinematográfica para el perverso, Slavoj Zizek explica que el cine representa una mágica experiencia para el espectador que observa la pantalla. Esta mágica experiencia consiste en que los deseos, inclinaciones y hasta los deseos inconscientes pueden ser proyectados en la pantalla; de este modo las narraciones fílmicas sobre situaciones que involucran violaciones a los DD.HH, de las cuales podría tomar innumerables ejemplos de la vida cotidiana, contribuye a la edificación de nuestro aparato simbólico y, en consecuencia, a la concientización sobre la importancia de los DD.HH. En particular, el cine docu-
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mental ofrece a nuestra imaginación la posibilidad de estructurar nuestra realidad simbólica de cara al papel o a la razón de ser de los DD.HH y, por supuesto, de su protección y promoción. Más allá de lo anterior, considero que el cine es una herramienta que permite la empatía, es decir, la identificación con ese algo o alguien que en una situación de normalidad nos es completamente ajena. Esta posibilidad de empatizar con ese algo o alguien, en este caso con una situación de vulneración de los DD.HH, de internalizar en nuestro inconsciente una determinada respuesta de agrado o desagrado a una situación típica de transgresión de DD.HH, sensibiliza realmente y profundamente a los pueblos sobre la gravedad de estas violaciones y la importancia de prevenir su repetición. El ejemplo que ilustra a la perfección el argumento que se expone en estas líneas tiene que ver con la terrible desaparición forzada de 43 estudiantes normalista de Ayotzinapa (México). En el documental The missing 43: Mexico´s disappeared students se narra la desaparición de 43 normalistas el día 26 de septiembre de 2014, al parecer, por órdenes de José Luis Abarca, ex alcalde de la ciudad de Ayotzinapa. Sin duda, el documental ofrece una experiencia mágica –en el sentido de Slavoj Zizek−, ya que permite que el espectador se representa la verdadera dimensión de la situación ocurrida con los estudiantes desaparecidos. A continuación una breve confesión tomada del documental: “Según estos, a ellos les entregan a los muchachos, los colocan en camionetas, los interrogan, les hacen muchas preguntas, después los matan, los avientan al barranco. Después bajan, prenden una hoguera que duró 15 horas prendida y los queman…”. Es así como, en mi opinión, se logra que el Arte y los DD.HH se abracen en un diálogo interdisciplinar que permite la edificación de una realidad simbólica que consigue dotar de significado más profundo a los DD.HH.
JornAL CULtUrAL PLUrAL | nÚMero 12 | DeZeMbro De 2015 A FeVereIro De 2016
o SAbor DAS MASSAS e DAS MAÇÃS
nossa expulsão do Paraíso Por Domingos Barroso da Costa Uma das coisas mais interessantes sobre as quais a Psicanálise me fez pensar diz respeito à nossa expulsão do Paraíso. Isso mesmo. Sobre aquele lance de comer a maçã proibida e, a partir de então, ter vergonha de nossos corpos nus, ter de trabalhar para comer, sentir tesão pela marquinha de biquíni da Eva etc. Ao sermos despejados do Éden, nos tornamos homens e mulheres. O mundo evoluiu, o machismo já não impera e hoje, em boa parte do globo, esses homens e mulheres têm direitos iguais. Inclusive, dada a criatividade humana quando se trata do assunto, vê-se que são muitas as transições de gênero que hoje se admite entre os sexos, sem as culpas de outrora. E o excesso de nomes possíveis para o que no mundo natural do Paraíso seria denominado simplesmente de macho ou fêmea vem bem a calhar quando se trata de tentar explicar – representar – nossa expulsão daquele recanto de paz, sossego e tranqüilidade pelo qual muitos ainda anseiam. Vem bem a calhar porque, diferentemente do que ainda pensa boa parte da população mundial, o que implicou nossa retirada do estado de natureza não foi a atenção dada a uma serpente ou a mordida numa maçã. Pelo menos não no sentido literal ou psicótico desses substantivos. Aliás, é justamente a necessidade de ter que significar nossa expulsão que explica o porquê do amargo despejo arcaico. É a possibilidade de enxergar uma maçã para além da fruta e uma serpente para além do ofídio. Ou seja, é a inevitabilidade do simbólico – e, logo, da palavra – que nos diferencia de uma
samambaia ou de um cabrito, já que é a partir deles que nos sabemos vivos, diferentemente dos animais ou plantas, que simplesmente são, sem ter consciência de sua existência, sem ter consciência, sem ter, sem... A necessidade da palavra e da comunicação marca a nossa não-integração com o natural, a nossa desintegração complexa. Uma incompletude inerente a nossa condição e que nos faz falar, falar e falar, na tentativa de formarmos laços que, em nossa fantasia, nos tornarão completos, devolvendo-nos ao Paraíso perdido. Mas aí surge o mal-entendido, próprio dos seres não-absolutos, que têm consciência do que foi e planejam o que será; que raramente se detêm no que está sendo e menos ainda no que é, o que os lembra novamente de seu distanciamento da natureza, em que se existe num eterno presente, sem se lembrar de um passado ou vislumbrar um futuro. É pela palavra e sua distância em relação à coisa falada, portanto, que temos notícia de nosso vazio próprio aos seres históricos, que precisam nomear-se para serem mutuamente reconhecidos em prol de uma realidade pactuada e, portanto, não-natural. Mas também é através dela – a palavra – que podemos desejar e, assim, tentar contornar este vazio e continuar vivendo, amando e enganando a dor que resulta daquilo que nos acompanha ao longo de toda a vida, para nos lembrar de nossa expulsão do Éden: a angústia de nos sentirmos humanos e incompletos. Se, por um lado, a palavra é nossa desgraça; por outro, é nossa tábua de salvação. Dela, pois, façamos bom uso.
JornAL CULtUrAL PLUrAL | nÚMero 11 | DeZeMbro De 2015 A FeVereIro De 2016
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