Jornal Plural N.15

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plural JORNAL CULTURAL

PROJETO DE EXTENSÃO DIREITO E CULTURA DA ESCOLA

somos umA instituição sociAlmente responsÁVel

DE DIREITO DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA

NÚMERO 15 | JANEIRO A ABRIL DE 2017 | BH | MG | ISSN IMPRESSO 2319-0000 | ISSN DIGITAL 2447-066X

Arquivo pessoal

“ApenAs A mAtériA VidA erA tão finA” A importânciA dA publicAção de Artigos pArA o discente do direito

Divulgação

A ESPUMA DOS DIAS (ABOUT TIME)

promoVendo prÁticAs de JustiçA restAurAtiVA no sistemA de JustiçA brAsileiro

o direito segundo o imperAtiVo sAdeAno


editorial

espaço do aluno BERNARDO G. B. Nogueira

Doutorando em Direito pela PUC/MG. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

BOJADOR

CAIO AUGUSTO Lacerda Alves Avelar

Ao fim e ao cabo. Interessante como a palavra cabo, e isso mostra a imensidão de mar que é nossa língua, dentro dessa frase quer nos enviar ao termo, que por sua vez também evidencia essa mesma infinitude, ora, aquela nos diz que cabo seria termo, um termo que finda algo, que namora com a palavra fim, porém, cabo também é aquilo que nos liga, portanto, que faz, pela força de nossa incompletude, amor, ausência e pulsões várias, brotar esse infinito que diz humano e humana. Bom, de outro lado, cabo também é aquela superfície que se alonga para dentro mar – o que seria de nós se não fossem os cabos, que nos agridem com sua invasão mar adentro ou porque não, mar afora. Quando dá-se termo em algo, de fato, encerra-se, mas que por sua vez também é parte de algo, talvez esse pedaço perdido que Platão dizia quando os deuses partiram os andróginos ao meio e que nunca mais encontrariam essa sua metade, seu pedaço, seu termo ausente. Ao fim e ao cabo, daqui de onde o mundo partiu, sabe-se lá pra onde, preciso terminar esse editorial. Reconhecer a finitude é nossa condição inextricável e ao mesmo tempo a graça da surpresa que nos instaura no mundo, mas essa é prosa para depois, posto que o fim nos espreita, pois viver é plural, e o outro e a outra já vem, em jeito de textos, espumas, gozo, normas, queer, gentes simples e palavras públicas – sem fins e plurais. Ao fim e ao cabo... Coimbra – inverno, 2017.

expediente JORNAL CULTURAL PLURAL

PROJETO DE EXTENSÃO DIREITO E CULTURA DA ESCOLA DE DIREITO DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA issn impresso 2319-0000 | issn digitAl 2447-066X

http://npa.newtonpaiva.br/jornalculturalplural Editor: Bernardo G.B. Nogueira APOIO TÉCNICO: Núcleo de Publicações Acadêmicas Newton Paiva Projeto Gráfico, Editora de Arte e Diagramação: Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG

contAtos, sugestÕes e Anúncios: jornalplural@yahoo.com.br Os textos são de inteira responsabilidade dos seus autores.

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o Queer VAi sAlVAr o mundo

Acadêmico de Comunicação Social do Centro Universitário Newton Paiva

O que é queer? Cada vez mais vemos essa palavra se infiltrando em nosso cotidiano, desde noticias televisas até rodas de conversa cotidianas o queer é cada vez mais pautado no nosso dia a dia. Para um rápido entendimento, Louro (2004, p.38), diz que “queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário”. Esse termo representa o diferente, o que não quer ser assimilado e que foge do padrão. O termo foi utilizado inicialmente por grupos de homossexuais que lutavam contra a heteronormatividade compulsória da sociedade e como um objeto de estudo pelo movimento feminista. Através das mais diversas expressões queer, esses movimentos lutavam por uma nova forma de se expressar, longe de amarras e padrões outorgados ao corpo masculino e feminino. Buscando a ambiguidade, a multiplicidade e a fluidez das identidades sexuais e de gênero a teoria queer, ainda segundo Louro, também sugere novas formas de pensar a cultura, o conhecimento, o poder e a educação. Nascido como uma teoria, o queer hoje se funde aos mais amplos aspectos da nossa vida social. A intenção primordial, desse não tão novo modo de ser, é questionar e desconstruir as noções mais básicas do que é “correto” ou “aceito” para cada pessoa.

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O queer dá poder para as pessoas decidirem o que é, ou não, bom para si mesmas, buscando menor interferência da sociedade na construção de sua identidade. Imagine se não tivesse sido ensinado a você que bermuda é roupa de menino e saia é roupa de menina, que azul é para meninos e rosa para meninas, ou também que engenharia é profissão de homem enquanto estética é profissão de mulher. Em qualquer exemplo, incluindo os supracitados, os ensinamentos que você teve só serviram para uma coisa: impedir que as pessoas se vistam como quiserem, que não possam se expressar como queiram e que provavelmente perdemos ótimos esteticistas e incríveis engenheiras. O queer veio para salvar o mundo do desperdício de talentos, do sufocamento através das normas sociais e do sepultamento de expressões humanas. De qualquer modo, a cada dia que passamos obedecendo as normas e convenções heteronormativas perdemos experiências e vivências, por outro lado, a cada dia que somos queer, ganhamos infinitas formas de nos reinventar e sermos quem realmente somos, não quem fomos ensinados a ser. LOURO, Guacira Lopes. 2004. “Um corpo estranho.” Ensaios sobre sexualidade e teoria


educação jurídica A importância da publicação de artigos para o discente do Direito O mercado de trabalho, maior foco dos estudantes da educação superior, está extremamente competitivo e não poderia ser diferente para os estudantes dos cursos jurídicos, seja no setor privado, seja no setor público, sempre o número de vagas é bem menor que o número de candidatos. É nesse sentido que a produção de textos acadêmicos pelos estudantes de Direito é tão importante. Além de de-

monstrar a proficiência em determinado tema, melhora a sua exposição, enaltece a sua argumentação e o diferencia dos demais. Expor no currículo os textos que produziu pode servir de importante ponto de conversação em entrevistas e especialmente para discorrer sobre suas impressões e considerações sobre aquele tema. Quem escreve, pesquisa e tem domínio sobre os temas! Isso que é importante!

leitor. ense no em p o , r c e i l lv g b aborda desenvo ao pú ue irá ação melhor q u a itor? o q é t l e le n a d o u u A ?Q o ass icas d le t e r ís e a r r e lh a t o c p ssante as cara Ao esc le? é intere lidade e ara falar com e a a e m r e a t o e p Qu erand priada a consid ais apro m do tem m e g a lingua Qual é

texento, o m i d n e deve nt ativo, tar o e i l m a i r c v o a i f f t n ae si r ri inform expo o leito . Se fo s d o a a i o e c ã i v m ç o g e c ten (ou qu Ló seguir a tese var a a ício dizer a l i e t e a o p c t r n a a Par assu meç os. de in tese do ssertativo, co m argument e logo i to dev por uma sín o d c seguir ar ; se for começ plementares eja expor) e s om e se de ções c ista qu v e d ponto

É um grande treinamento para os discentes desde cedo escreverem textos. Existem hoje uma infinidade de blogs, revistas, sites, inúmeros espaços para que se possa publicar um texto e todos esses espaços estão à procura de publicações. Para escrever um bom artigo, segundo Regina Giannetti Dias Pereira, jornalista, devem ser observados os seguintes pontos:

EMERSON

LUIZ DE CASTRO

Coordenador da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

“Melhora a sua exposição, enaltece a sua argumentação e o diferencia dos demais”

Redação correta, clara e objetiva Certifique-se de que seu texto não tem erros de português e é plenamente compreensível. Peça para alguém revisá-lo, se for o caso. Caso você constate que escorrega na gramática ou na articulação de ideias, vale a pena fazer uma reciclagem em língua portuguesa. Tenha em mente que um artigo mal escrito comprometerá sua imagem em vez de promovê-la.

Cont eúd o relev As pe ante ssoas s ó acresc entem investem se u tem algo. A conteú po em ss do rel leit evante im, preocup faça di , e-se em uras que lh c ferenç onsiste es a na vi fazer t viedad da do l nte, bem fu extos es não ndame de eitor. F levará ntado, alar você a que lugar n de amenida d enhum es ou o . b-

Bem, depois das sugestões acima, agora é colocar mão na massa! Escolha a cada semestre um tema que mais lhe agradou, dentre as disciplinas que você estudou e escreva um artigo sobre ele. Ao final do curso você terá melhorado em muito sua escrita e argumentação e poderá fazer o Trabalho de Conclusão de Curso com as mãos nas costas, além de turbinar em muito o seu currículo. JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 15 | JANEIRO A ABRIL DE 2017

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estado democrático e resolução de conflitos PROMOVENDO PRÁTICAS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA NO SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO do”. Ao contrário, a Justiça restaurativa questiona: o que você pode fazer agora para restaurar isso? Na verdade, o modelo restaurativo parte do pressuposto que as partes estão de acordo em participarem do processo restaurativo (réu e vítima), concordância essa que pode ser revogada por qualquer das partes envolvidas (réu e vítima), pautada sempre no princípio da proporcionalidade. No que tange à responsabilização do infrator, a Justiça clássica é voltada para uma culpabilidade individual, pautada nas ações pretéritas do indivíduo, já no sistema restaurativo, a responsabilidade é pautada pela reparação, numa dimensão ampla, englobando toda uma comunidade, além dos próprios envolvidos. A Justiça retributiva mostra o descaso do Estado quanto às especificidades dos litigantes e a comunidade inserida no contexto, já o cerne da Justiça restaurativa é justamente o comprometimento com a inclusão e peculiaridades dos litigantes. Analisando-se sob a ótica procedimental, a Justiça clássica possui um ritual formal e público, contencioso e cujas etapas do processo estão nas mãos de autoridades (Promotor, Juiz e profissionais do Direito), em contrapartida, a Justiça restaurativa, é pautada em um ritual comunitário e simples, com a ativa participação das pessoas envolvidas, até mesmo no processo decisório. Em relação aos resultados, as práticas restaurativas tem se mostrado muito mais eficazes, posto que focaliza as relações entre as partes, capacitando-as para restaurar. Desta feita, considerando está ideia de realização de uma Justiça de proximidade pautada no consenso e, em consonância com os objetivos delineados, entende-se que nem todos os conflitos

Em tempos sombrios, várias reflexões acerca da insuficiência das respostas tradicionais ao fenômeno da conflituosidade social e da criminalidade tornam-se um desafio premente em terra brasilis. Esta realidade é percebida pela insatisfação dos usuários do sistema - sejam vítimas ou autores envolvidos em processos criminais. Portanto, destaca-se a hipótese que se propõe a confirmar: a Justiça restaurativa como uma resposta à crise do sistema da Justiça criminal pode significar uma mudança na forma de conceber o crime e as respostas a ele? Este recurso pode significar uma quebra no paradigma retributivo dominante no Direito Penal e uma real mudança nos propósitos do controle estatal sobre a criminalidade de menor potencial ofensivo. Ao ser lançado um olhar sistêmico sobre tal fenômeno, pode-se vislumbrar que se uma grande parte dos delitos considerados menos graves é resolvida de forma eficaz, promovendo efetivamente a pacificação entre os litigantes, o impacto positivo desta realidade pode impedir a escalada da violência, sobretudo nas relações em que os envolvidos mantêm uma proximidade e convivência cotidiana. A partir daí, argumentam que a busca do Estado por alternativas capazes de mudar ou pelo menos minimizar este cenário assombroso, alternou-se entre o aparelhamento do sistema retributivista, com o endurecimento das penas como resposta punitiva estatal aos crimes e, de outro norte, uma busca pela valorização da dimensão consensual do conflito, identificando-se no Brasil a Lei 9.099/95 como uma dessas vias da Restorative Justice. Não é demasiado afirmar, que a Justiça restaurativa surgiu há mais

de três décadas nos países que adotam a common law como forma alternativa ao fracasso do modelo de Justiça retributiva, pautado no estabelecimento de culpa e aplicação de castigos, demandando vultosos gastos do Estado e baixa prevenção do delito. Os primeiros sinais dessa prática começaram nos Estados Unidos, em meados de 1970, sob a perspectiva de realização de mediação entre réu e vítima. Posteriormente, na década de noventa desenvolveu-se por toda Europa projetos nesse sentido. Com o passar dos anos, outros países como a Nova Zelândia, Chile, Argentina e Colômbia iniciaram seus trabalhos frente a essa caminhada. No Brasil, foi introduzida a partir do final de 2004, por meio do Ministério da Justiça, através de sua Secretaria da Reforma do Judiciário, com a elaboração do “PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento”, que apoiou três projetos-piloto de Justiça restaurativa. Para entender o conceito desse modelo de Justiça, é preciso termos em mente sempre a idéia de consenso, onde a vítima, o infrator, pessoas da comunidade e um guardião (intermediador), se reúnem em processos circulares para coletivamente construírem soluções, reparações dos traumas causadas pelo crime, destacando-se o caráter voluntário e relativamente informal desta modalidade de resolução do conflito. Precisamente, utilizam-se de modelos alternativos ao Processo Judicial, como a mediação, a conciliação e a transação como forma de alcançarem a reintegração social da vítima e do infrator. Adotando-se uma posição mais racional, é preciso entender o seguinte: a Justiça convencional diz “você fez isso e tem que ser castiga-

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Cristian Kiefer da Silva

Doutor e Mestre em Direito pela PUC MINAS. Especialista em Direito Processual pelo CEAJUFE. Graduado em Direito pela Universidade Josédo Rosário Vellano. Graduado em Administração pela PUC MINAS. Professor Assistente e Pesquisador da PUC MINAS. Professor Titular da Escola de Direito da NEWTON. Professor Adjunto da Escola de Direito da UNA. Professor Titular da Escola de Direito da FAMINAS-BH. Professor da Pós-Graduação em Direito da Estácio de Sá e do IUNIB. Membro do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito.

podem ser resolvidos através do paradigma restaurativo, precisamente, somente aqueles conflitos em que os envolvidos e as comunidades afetadas pelas práticas delitivas possam diretamente se beneficiar da prática restaurativa, destacando-se a recuperação da vítima e da comunidade afetada pelo delito bem como a diminuição da reincidência criminal. Apesar de inúmeras críticas, o sistema restaurativo vem crescendo gradativamente no país, com avanços não apenas no âmbito das infrações praticadas por menores, mas também na solução de litígios rotineiros de competência dos Juizados Especiais Criminais. Evidentemente, não se vislumbra a utilização da Justiça restaurativa como solução para todo e qualquer crime e muito menos como instrumento isolado apto a superar a crise de (in)justiça instalada no país, entretanto, essa nova abordagem acoplada ao modelo punitivo tradicional indiscutivelmente traz benefícios à minoração do problema criminal mormente no referente à humanização e reitegração daquele que delinquiu, e por conseguinte, na prevenção da reincidência criminal.


direito e cinema

JOSÉ LUIZ QUADROS de Magalhães

Professor Universitário. Doutor em Direito pela UFMG.

A espumA dos diAs (About time) DIVULGAÇÃO

A leveza é possível. Embora todo o mundo moderno, todos os impulsos da sociedade de ultra consumo, toda a ordem do supereu percebido por Lacan (ao contrário do supereu da renúncia do tempo de Freud), que nos ordena curtir sem cessar, é possível ser leve. Mas é preciso, antes descobrir a importância da leveza. O que é ser leve? Porque a leveza parece impossível? Talvez esta seja a grande chave do filme “A espuma dos dias”. A espuma que se desfaz rapidamente após grande abundancia. A espuma cresceu, transbordou, parecia que nunca ia acabar. Encobriu pecados e desejos, rapidamente revelados com sua fragilidade. Efêmera.... A grande cena: duas pessoas, um homem e uma mulher, mas, mais do que qualquer gênero, duas pessoas, lindas, descobrindo o amor, a complementariedade da vida, sem pressa, sem nada mais do que as duas pessoas. Um túnel que leva de um lado ao outro e vice-versa. Atravessa. Os dois se descobrem. Este é o momento. A anulação do tempo, de novo o tempo. O tempo do poeta, talvez não, o poeta talvez tenha sido apressado ao declarar a infinitude finita de vários amores sexuais. Não é isso. É muito mais. Ele diz: “sinto que este é o momento mais importante de

Primeiro é importante superar uma questão de gênero. As mulheres não precisam destes recursos, e logo veremos por que. A questão é que, quando o jovem recebe a notícia do pai de sua herança mágica este começa a manipular sua história (estória talvez). Volta no tempo várias vezes até acertar a cantada certa para conquistar seu amor. Volta no tempo várias vezes até proporcionar a melhor primeira noite para o seu amor. E........ É isto? Ele enganou seu amor. Ele não é a primeira noite perfeita tantas vezes ensaiada. Ele não é

o galã que acerta a cantada na primeira vez. Ele errou sozinho. Aí está a diferença entre a leveza de errar juntos, sem a obrigação de acertar e o desespero de não errar, o desespero de não aceitar o erro, de buscar a perfeição que não existe, mesmo quando se pode manipular o tempo. Manipular o tempo é uma mentira. Encobrir os erros, errar sozinho para parecer o que não se é, o que não se pode ser. Melhor a leveza impossível do que a performance do presente contínuo ou do tempo manipulado. Disto falam os filmes. Boa reflexão.

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minha vida e não posso errar”. Na resposta leve está toda a (im) possível leveza: “não há problema em errar, temos toda a vida para acertar”. Isto. Leve. Tudo. Este texto é sobe dois filmes e o tempo. O primeiro, que acabo de pensar sobre uma cena, fala de leveza, da negação da aflição do tempo que com o tempo leva cedo uma vida, leve, esmagada pela doença. Um belíssimo e incômodo filme surreal. O segundo filme, “Questão de tempo” (About time) fala do controle do tempo cronológico. Sim, de novo ele, Kronos, o implacável amigo. O filme, “About time” nos fala de forma divertida sobre a possibilidade de brincar com Kronos. Kairós está ausente. Não fala do tempo subjetivo, de outros tempos vários, fala simplesmente do implacável Kronos. Sem apelar para recursos tecnológicos, máquinas do tempo e efeitos especiais, o filme fala dos “homens” de uma família (porque só os homens também é uma questão esquisita) que podem viajar no tempo simplesmente indo a um lugar escuro, apertando as próprias mãos e pensando para onde querem ir no passado.


direito e fotografia

CARLOS

MAGALHÃES

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Doutor em Sociologia pela UFRJ.

“Apenas a matéria vida era tão fina”

arquivo pessoal

“O que me emocionou muito foi ver gente sendo gente” Novembro de 2016. Tive a oportunidade de ir ao 1º Encontro de Flautas do Jequitinhonha – As bandas de taquara – em Minas Novas, comunidade de Quilombo e reunindo muitas outras comunidades quilombolas mais ou menos próximas. Encontro idealizado e organizado por Daniel de Lima Magalhães e Letícia Bertelli. A partir do momento em que comecei a encontrar as pessoas, conversar com elas, levar de carro um aqui outro ali e, principalmente, quando as oficinas começaram a acontecer, ensinando a fazer flautas, máscaras. Quando as bandas começaram a se formar e tocar, senti um envolvimento muito forte com aquilo tudo. Além de estar com essa gente da roça que me é tão cara, além de ouvir as bandas que fazem um som belíssimo, além de ouvir um terço cantado que é uma das coisas mais bonitas que já ouvi, além de receber aquela hospitalidade absoluta e aqueles olhares de amizade e humanidade franca, o que me mobilizou e emocionou? Não sei se sei explicar. Não sei se encontro as palavras. Lá no salão da associação, onde as atividades do encontro se deram, eu olhava aquelas pessoas e me batia no corpo todo o verso do Caetano: “existirmos, a que será que se destina?” Nos perguntamos isso de tantas formas e não encontramos uma resposta satisfatória.

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Não encontramos porque não existe resposta abstrata. A resposta está no próprio existir. Na sua forma. A gente da roça não pergunta. Essa gente existe. Essa gente é. Essa gente faz. Existir se destina a existir, à experiência de existir. E se não há experiência, então não há quase nada. Não há produto à venda no mercado que substitua uma experiência viva, pode emular mais ou menos bem, mas não substitui. O que me emocionou muito foi ver gente sendo gente (e olha que gente não é pouca coisa) com um pouco que é muito. Com um flauta de taquara, uma caixa e uma dança. Gente que olha para o céu que nos encima, céu que pergunta o tempo todo: “e aí? Existir? A que será que se destina?” Nós das cidades morremos nessa pergunta de várias formas. Na terapia, nos medicamentos, nas compras, na acumulação, na culpa, na angústia. O povo da roça não é assim. O céu é mais leve, o céu que pro-

tege. A que será que se destina o existir? A viver junto, a olhar no olho do outro e conhecê-lo (até na inimizade há respeito pelo outro), a não passar pela experiência terrível de ver uma pessoa à mingua e ultrapassá-la como se fosse uma coisa, a deixar o humano se fazer e se expressar como música, como religiosidade, como transformação simples da natureza em comida, abrigo e conforto, como dádiva, como retribuição, como compartilhamento. Enfim, eu vi pessoas inteiras, espantosamente humanas, expressando na simplicidade a mais rica realização humana. O existir com destreza e beleza. Como diz o Gil, a tecnologia mais avançada pode ser rapidíssima, pode levar “o tempo de um raio” para fazer qualquer coisa, mas o tempo do raio é “o tempo que levava Rosa pra aprumar o balaio quando sentia que o balaio ia escorregar.” O humano é sempre maior e mais simples. O humano é a Rosa e seu balaio. O

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humano é forte e frágil. É essa matéria vida tão fina. Em casos como dos quilombolas é urgente a efetivação do aparato legal protetivo existente. Mais do que isso, é preciso reconhecer essas comunidades e lhes dar as condições de continuarem existindo vivenciando e recriando a suas tradições. Há nessas comunidades uma força de humanidade muito intensa, mas ela estará presa por um fio – a matéria vida é tão fina – se não houver vontade da sociedade e do Estado de protegê-las. Não de forma paternalista e tutelada, mas oferecendo as condições para que existam. Convido aos que me leram até aqui a se envolverem com os assuntos, legais inclusive, que dizem respeito a esses povos que descendem dos africanos que foram trazidos para o Brasil à força e que mesmo assim, até como forma de resistência, criaram aqui uma cultura viva, rica e original.


TATIANA

RIBEIRO DE SOUZA Doutora em Direito Público e mestre em Ciências Sociais. Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto.

A obra de Sade

direito e literatura o direito segundo o imperAtiVo sAdeAno

Não é segredo para ninguém que o direito moderno é produto da filosofia europeia ocidental. O resultado disso é um sistema de normas pensado por ilustrados homens brancos, proprietários e de tradição moral judaico-cristã. Contudo, depois de alguns séculos de ilustração, o que temos assistido é o declínio da razão, ou pelo menos a revelação da sua incapacidade de responder grande parte daquilo que vem do humano. Um dos recursos disponíveis para lidar com essa fenda da razão é a literatura e foi com ela que a psicanálise, por exemplo, construiu seus conceitos fundamentais, tal como acontece com o famoso “complexo de édipo”. Esse recurso é necessário em razão da inclinação que a ciência tem de desumanização, de uma certa “assepsia” de seus postulados, atribuindo validade apenas àquilo que provém de um saber técnico. Não é à toa que a condição da existência, segundo o

“Existo onde não penso e penso onde não existo” modelo cartesiano de razão, é o pensamento – penso, existo. Para a psicanálise, no entanto, aquilo que escapa ao pensamento é igualmente existente, contudo em uma dimensão não alcançada pela razão, tal como proposto por Lacan – existo onde não penso e penso onde não existo. Assim como aconteceu com a psicanálise, que nasceu do esforço de Freud de compreender o sofrimento dos seus pacientes com explicações que escapavam à medicina, o direito carece de uma nova gramática, que alcance aquilo que escapa aos seus postulados pretensamente científicos. O caminho percorrido pela psicanálise, rumo à construção de uma outra forma de compreender o agir humano, pode ser tomado como paradigma pelo direito, pois não se trata

do abandono da tradição europeia, mas da sua releitura, o que pode ser feito com o auxílio da literatura. Um caso bastante interessante acerca das possibilidades abertas pelo diálogo com a literatura foi a análise feita por Lacan da relação entre as obras do filósofo Immanuel Kant e do escritor Marquês de Sade, resultando no paradoxo entre o imperativo categórico (de Kant) e o imperativo de gozo (de Lacan, em interpretação à obra de Sade), dois conceitos igualmente importantes para o estudo da psicanálise contemporânea. O que podemos destacar do estudo de Lacan, intitulado “Kant com Sade”, é que a dimensão humana não pode ser inteiramente acessada pelo saber filosófico-científico, pois existe em cada sujeito um campo que

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não é sensível à interferência de um logos. Além disso, o texto de Lacan deixa claro que a compreensão do imperativo do gozo, atribuído à obra de Sade, é essencial para uma interpretação psicanaliticamente adequada da obra de Kant. Da mesma maneira, resta ao direito, que foi amplamente influenciado pela teoria moral de Kant, abrir-se para outras formas de produção de saber, que respondam aos desafios que transcendem à razão científica. Ao fim e ao cabo, não parece nada mal pensar uma nova filosofia do direito, interpretada à luz do imperativo do gozo em Sade. Referências: CAMPOS, Sérgio de. O estoicismo, Kant, Sade e Lacan. In: Supereu: das origens aos seus destinos. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2015. p. 134-158. LACAN, J. Kant com Sade (1962). In: ________________. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 776-803.

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