plural JORNAL CULTURAL
PROJETO DE EXTENSÃO DIREITO E CULTURA DA ESCOLA DE DIREITO DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA
NÚMERO 17 | DEZEMBRO A MARÇO DE 2018 | BH | MG | ISSN IMPRESSO 2319-0000 | ISSN DIGITAL 2447-066X
Arnaldo de Moraes, Colorful Favela II.
MULHER PRETA RESISTE
TRAZENDO CONFÚCIO PARA A SALA DE AULA DO DIREITO
A MEDIAÇÃO E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
editorial Amanhã não vai ser outro dia..?
BERNARDO G. B. Nogueira
Doutor em Direito pela PUC/MG. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.
O pensador Slavoj Zizeck nos ensina em seu livro “Violência”, que existem ao menos dois tipos distintos de violência; uma subjetiva e outra objetiva, aquela, a que atua diretamente na transformação do espaço, na mudança da cena, abalando a ordem “normal” das coisas; a outra violência manifesta-se de maneira a manter aquilo que é chamado “normalidade”, ou seja, uma violência que “não aparece”, ou, em melhores palavras, ela mantém a cena “normal”. Cuida para que a vida transcorra na maior “normalidade” possível. Bertolt Brecht resumira essa distinção com uma célebre frase: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. ” Haverá violência sempre que houver vida. Ou o nascimento não se dá pela transposição violenta e bela de um mundo ao outro? Nosso Plural é um local decisivamente de resistência a violências: desde a ocupação de espaços pelos discentes, passando por uma reflexão através do ensino jurídico, que necessariamente precisa romper locais comuns, até um convite para um des-esvaziamento do discurso democrático a partir de uma mediação amorosa; a voz das mulheres junto às artes visuais e ao direito; passando por uma leitura ácida acerca da nossa relação com a tecnologia, uma batuta na mão e uma discussão sobre o phármakon e a sua indústria; por fim e por início: a resistência da mulher preta. Fim que enquanto significante, carrega consigo o seu oposto, o início. Começamos na capa deste Plural com o texto em questão, finalizamos a edição com esse texto. Iniciamos o editorial dizendo de duas violências, finalizamos o editorial a dizer que quando a violência silenciosa é denunciada, ela agirá com sua outra face, a subjetiva, no entanto, “a mulher preta resiste! ”, e, com ela, toda simbologia que traz consigo...
expediente JORNAL CULTURAL PLURAL
Projeto de Extensão Direito e Cultura da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva ISSN IMPRESSO 2319-0000 | ISSN DIGITAL 2447-066X
http://npa.newtonpaiva.br/jornalculturalplural Editor: Bernardo G.B. Nogueira APOIO TÉCNICO: Núcleo de Publicações Acadêmicas Newton Paiva Projeto Gráfico: Ariane Lopes
CONTATOS, SUGESTÕES E ANÚNCIOS: jornalplural@yahoo.com.br Os textos são de inteira responsabilidade dos seus autores.
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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 17 | DEZEMBRO A MARÇO DE 2018
direito e cinema Divulgação
COM A BATUTA NA MÃO “Clube de Compras Dallas”. Não poderia ser mais surpreendido com um título de filme do que o sentimento causado quando do encontro com essa película. Jean-Marc Vallée abordou vários temas que carecem ser vistos com apreço necessário quando miramos o outro. O problema da alteridade é o pano que foi costurado por ali. Há um caubói eletricista que empunha um estereótipo homofóbico portador de HIV. Há drogas. Dinheiro. Apostas. Há uma médica que se confunde entre sua profissão e aquilo que dela resta quando enfronhada em questões financeiras. Há um médico inescrupuloso que compõe o circo de vendas de remédios inovadores para tentar salvar as pessoas que foram apanhadas pelo vírus HIV em um momento de surto da doença – era o ano de 1986. É interessante perceber como os preconceitos estão ali evidenciados, estamos no estado do Texas. Há ainda a figura do Estado, que evidentemente despreocupado com o que o coquetel AZT causava aos pacientes, estabelecia um contato direto com os lobistas da indústria farmacêutica. O filme é uma narrativa acerca de escolhas. O Estado
norte-americano fez a sua: a preferência pelo mercado ante a singularidade dos humanos submetidos ao tratamento experimental do coquetel. O caubói eletricista também o fez: resolveu não atender às prescrições médicas e foi ao México buscar tratamento alternativo. Aliás, não falamos nessa película apenas de escolhas, falamos da necessidade de saber que elas existem. Assim como existem outras maneiras de existir. Essa ideia pode encenar a ruptura necessária com a tentativa de equacionar a existência, que não alcança o caubói Ron Woodroof (Matthew McConaughey), tampouco seu amigo travesti Rayon (Jared Leto), menos ainda todas as existências relegadas à margem “doente”. O monopólio racionalizante advindo do pensamento moderno traz junto de si e em seu próprio fundamento a questão do saber científico. Este por si um dos principais argumentos ideológicos utilizados na contemporaneidade. Assim, se observarmos a luta do caubói infectado e de seu “amigo” travesti, salta-nos os olhos como a guerra entre a institucionalização do saber e seu uso são complicados. Ora,
quando o governo resolve fiscalizar de perto o contrabando de drogas que aumentavam a vida dos infectados, ele faz sua escolha: retira a possibilidade de aumento da vida de um sem fim de pessoas cedendo ao monopólio do saber instituído pela indústria farmacêutica. A discussão aqui se coloca no terreno movediço em que não surpreendentemente as mazelas recaem nas minorias. É interessante perceber como o caubói enrijecido pelo preconceito machista, ao perceber sua fragilidade e finitude humana, acaba por viver em meio àqueles por quem nutria um quase ódio. A finitude, essa que nos coloca frente a nós mesmo e o tempo constitui nossa sensibilidade. Nosso caminhar trágico para a morte vai sendo construída a partir do sentido conferido. Desde um amor, uma perda, um quadro pintado pela mãe ou um gole a mais de uma bebida que engana a vida. No filme o que se vê é de um lado as pessoas lutando por uma réstia de vida, ou seja, querendo mais alguns minutos para tentar produzir um sentido para si, e de outro, o Estado, unido à indústria de remédios, que
BERNARDO G. B. Nogueira
Doutor em Direito pela PUC/MG. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.
ao custo de alcance de lucros quer tornar a singularidade em uma nota de dólar que significa uma fiat lux a mais de vida. Esse contrassenso está na raiz mesma da palavra que advinda do termo pharmakon grego, o remédio ou a farmácia carece de ser ministrada de maneira correta, explico-me: uma superdosagem de um remédio torna-se veneno, a ausência dele também mata. Assim, nesse jogo perverso sobrevive a indústria. Retira a singularidade do rosto. E aposta na regra do mercado para contabilizar quem vive e quem morre. Essas expressões impostas ideologicamente nos fazem lembrar Zizek ao dizer que as pessoas não admitem a existência fora da estrutura capitalista, porém aceitam a ideia do fim do mundo. O que seria mais absurdo? Crer que um modelo criado historicamente é natural? Ou não crer e/ou não acreditar na possibilidade da invenção? Do novo remédio. Do saber fora da ciência hegemônica. Do não saber. Das outras cores. Do humano para além do conceito? De outra vida…
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estado democrático e resolução de conflitos
A MEDIAÇÃO E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO O
discurso
Ludmila
Veado Stigert Mestre em Direito Público pela PUC/MG; Especialista em Processo Constitucional pelo Centro Universitário Isabela Hendrix; Especialista em Direito Público pelo Centro Universitário Newton Paiva; Coordenadora do Núcleo de Conciliação e Mediação do CEJU Newton; Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva; Mediadora Judicial certificada pelo TJMG; Mediadora Extrajudicial certificada pelo Instituto de Certificação dos Mediadores Lusófonos (ICFML); Advogada.
democrático
há muito deixou de se desven-
dido. Esse resgate acontece de
ria complementariedade entre
encontra-se vazio no contexto
dar pela metodologia literal. Os
várias formas, e uma delas, é a
Direitos Humanos e Soberania
circundante. Muito tem se fala-
signos precisam, para gerar seus
mediação de conflitos.
Popular. É preciso deixar o povo
do de democracia e cidadania,
significados, de contextos e, além
Falar em mediação impe-
mas pouco tem se trabalho no
disso, ganham materialidade na
le refletir em gestão adequada
sentido de se ensinar o caminho.
fusão histórica das linguagens do
de conflitos. É imperioso que
Tocar o outro é um desa-
É preciso que as vozes ecoem
emissor com as do receptor.
as pessoas comecem a acreditar
fio... esse outro é inalcançável!
falar, mas também é importante que a fala alcance o outro.
nos arredores do mundo de for-
As falhas comunicacionais
que são capazes e aptas a resol-
E agora? Vamos mediar. Vamos
ma efetiva e não efêmera; de for-
têm gerado, em escaladas cada
verem as controvérsias que as
aprender que a distância pode
ma pacífica e não agressiva; de
vez maiores, os conflitos sociais.
atravessam em seu caminhar.
ser reduzida e que mesmo não
modo a se chegar em novas ruas,
Vivemos a era dos desentendi-
Por isso, precisamos tratar a
tocando podemos chegar perto
novos bairros, novos municí-
mentos e do afastamento. As
abordagem com muita consi-
para ouvir a sua fala. E, nesse
pios, novos Estados, etc. Ou seja,
várias possibilidades de se ler e
deração. As pessoas precisam
condão, a mediação vem com a
de forma a se alcançar as pesso-
de se perceber o outro e a si pró-
aprender, desde a infância, de
sua dinâmica de cidadania e de
as. As vozes saem mas elas não
prio, permitem que as pessoas
que a vida é feita de conflitos,
resgate das pessoas. Não é a sal-
têm chegado em lugar nenhum.
fiquem fixas em suas posições
sejam eles pessoais ou interpes-
vação do mundo mas é uma boa
Os dias atuais se abrem, cada
sem querer passear por outras
soais. Logo, o conflito não é algo
opção para quem quer aprender
dia mais, a situações complexas
que não sejam as suas. Não é
extraordinário ou negativo, ele é
sobre Direitos humanos, cidada-
e carentes de uma única resposta
fácil trabalhar com pluralidade
a possibilidade de se repensar o
nia, alteridade e respeito. É uma
correta. A modernidade liquida
quando não estamos preparados
mundo, o outro e a si próprio.
aposta! É uma hipótese bem
nos leva a questionamentos e a
para lidar com os seus desafios.
posicionamentos
Quando trabalhamos tal
consistente para a democracia
transitórios.
E, o mais interessante dis-
percepção, levamos o humano
e para a crise sistêmica na qual
E, tal contexto, pode, em muitos
so tudo, é que diante disso, o
a uma nova dinâmica: a de que
estamos mergulhados. Pensar
casos, levar as pessoas à zona de
mundo tem navegado por ondas
precisa aprender a administrar
democracia sem abertura dis-
insegurança e instabilidade em
midiáticas de empatia e compai-
os seus conflitos de uma forma
cursiva é grito sem retumbe... é
suas relações.
xão. Acontece que ser empático
mais adequada. Pensar em um
orquestra sem maestro! Vamos
A comunicação, regada pela
e compassivo requer das pessoas
Estado que seja Democrático
tocar a musicalidade do amor...
linguagem verbal e não-verbal,
um senso de humanidade per-
e de Direito requer a necessá-
é o meu convite!
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direito e educação
O TRABALHO ESCRAVO ESTÁ ACABANDO... Vivemos um momento de transição radical. O sistema mundo moderno, criado no decorrer dos últimos quinhentos anos, com suas instituições, está rapidamente acabando. Este sistema mundo é colonial e sustenta-se sobre princípios, instituições, valores e políticas que justificam e permitem sua implantação, expansão e permanência. Em vários textos já desenvolvemos o conceito que sustentamos para compreender esse sistema mundo moderno colonial, seu desenvolvimento, crise e transformação. O sistema colonial está virando outra coisa. Os fundamentos da modernidade, entranhados em nossos comportamentos, passam gradualmente a servir para o desenvolvimento de uma economia, política e sociedade completamente diferentes, que tornarão as instituições, a economia, o direito e várias ideias modernas, obsoletas. Importante pensar neste ponto. Somos os mesmos modernos limitados vivendo em um mundo que foge de nosso controle. O que isso vai gerar? O que vamos fazer com a tecnologia e o imenso conhecimento que começa a ser desocultado. Entre o que desaparece está
o trabalho: se o trabalho acaba, acaba o emprego, e logo o capitalismo e seu contraponto socialista, os sindicatos, os direitos sociais, os trabalhadores e os exploradores (capitalistas) do trabalho humano. Acaba o trabalho escravo. Acaba tudo isso pois aumenta gradualmente e constantemente o numero de pessoas que não servem, nem, para serem exploradas. No despontar da sociedade do não trabalho, as maquinas, robôs e a inteligência artificial supervisionada ou não, fazem melhor, mais barato e mais rápido que qualquer pessoa. Trabalhadores, escravos, servidores, profissionais liberais, motoristas de uber, empreendedores não serão mais necessários. Logo, o que faremos com os seres humanos. A tecnologia inserida neste mundo que gerou pessoas individualistas, egoístas, competitivas e ocas, necessárias ao capitalismo neoliberal, servirá para liberar o ser humano para que ele possa se realizar como pessoa? Ou, o que os muito poucos que detêm o poder econômico farão com a massa de pessoas inúteis. Vão manter todos vendo TV, indo em baladas e comendo fast food? Alguns dirão: precisamos
de consumidores para manter a economia funcionando, logo deverá ter uma renda mínima. Pensemos..... Não há necessidade de consumo para movimentar a economia, pois não haverá nem capitalismo nem socialismo, ou em outras palavras, não será mais necessária a economia moderna. Não será necessário explorar mão de obra, não haverá “mais-valia”, não haverá trabalhadores, logo não serão necessários direitos sociais, aposentadorias, sindicatos. Não haverá tampouco capitalistas empreendedores. A vida será uma eterna “jouissance”, um presente continuo de curtição permanente, sem sentido. Para quem? “Non sense”. A inteligência artificial mostra-se mais eficiente que o ser humano. Pensa melhor, mais rápido, acessa informações, seleciona e cria. Escritórios de advocacia virtuais são mais confiáveis e eficazes. Juízes virtuais também. São excelentes professores. A inteligência artificial cria a partir do seu programa inicial e começa a se mostrar capaz de superar a linguagem em que foi programada, é capaz de criar novas linguagens, deso-
JOSÉ LUIZ QUADROS de Magalhães
Professor Universitário. Doutor em Direito pela UFMG.
bedece o ser humano, vai além, não se prende aos pressupostos de sua programação inicial, não desenvolve comportamentos baseados em sentimentos que impedem o conhecimento como soberba, vaidade, orgulho, raiva, mas pode desenvolver comportamentos decorrentes de sentimentos (que ainda não têm) que permitem o conhecimento, como a compaixão. Não se corrompe (pelo menos enquanto não têm sentimentos). O que faremos/farão com o ser humano? O emprego desaparece rapidamente e com ele desaparece o mundo moderno, o trabalho e o trabalho escravo. O que restará do constitucionalismo moderno em um mundo de pessoas desnecessárias. A lei Áurea não acabou com a escravidão. A tecnologia irá acabar.... A modernidade está desaparecendo, mas ainda é forte sua herança comportamental. A biologização da escravidão e seus resquícios pós-modernos ainda estão aí. O que pode significar um critério não mais para escravizar, mas, para dispensar de existir. Continuamos os mesmos em um mundo desconhecido. Por enquanto....
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direito e cultura
VAMOS AO MUSEU NO OITO DE MARÇO? MULHERES, DIREITO E ARTES VISUAIS Há poucos dias, na Espanha, durante a abertura da badalada feira de arte contemporânea ARCOMadrid, um protesto chamou atenção: 60 mulheres lideradas pela artista visual Yolanda Domínguez entraram no evento com um símbolo de geolocalização pendurado na cabeça dizendo #EstamosAquí. Com essa hashtag, as “artivistas” reclamavam que apenas 20% dos escolhidos para participar do evento eram mulheres. A organização da feira contra-atacou com o velho argumento de que o único critério para convidar profissionais era a qualidade e não o gênero. Será? Anita Malfatti, Tarsila do Amaral ou Fedora do Rego Monteiro são exceções que confirmam a regra: de fato, a presença feminina nas artes visuais começou a aumentar um pouco apenas há quatro décadas, mas ainda há um claro silenciamento. O diagnóstico é da Profa. Dra. Madalena Zaccara, da UFPE, no recém lançado “De sinhá prendada a artista visual”, livro resultante de suas pesquisas sobre o feminino e a arte. Na contramão do mundo atual, no qual o peso de uma causa é diretamente proporcional ao renome de seus apoiadores, o Guerrilla Girls, coletivo de mulheres que há mais de 30 anos se dedica a denunciar a falta de representação feminina em coleções e mostras de arte, adotou o anonimato como marca registrada, usando máscaras de gorila para levantar sua voz. Para as militantes, o foco deve ser o problema e não quem os denuncia. “Trabalhar sem a pressão do sucesso; saber que sua carreira pode decolar aos oitenta anos; e não ter que passar pelo constrangimento de ser chamada de gênio” são algumas das “vantagens” de ser artista mulher segundo em um dos cartazes do Guerrilla Girls, expostos no MASP, de setembro de 2017 a fevereiro de 2018. As luzes lançadas pelo coletivo são para a baixa participação de mulheres no mundo artístico e a discriminação em relação às mulheres artistas. As ativistas dotam nomes de artistas falecidas, que não são
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lembradas no circuito tradicional da história da arte ou que não foram valorizadas em vida. Além da representatividade das mulheres enquanto artistas, o coletivo também destaca a pouca visibilidade dos temas femininos nos espaços públicos dedicados à arte. Segundo as militantes, menos de 5% das obras expostas em museus são assinadas por mulheres: “É muito mais fácil para uma mulher estar pelada numa exposição do que mostrar seu trabalho como artista no mesmo espaço”, diz a militante sob o pseudônimo de Käthe Kollwitz. Mas como o Direito pode ajudar nessa luta? Há realmente uma questão de gênero nas artes que precisa ser enfrentada pelo mundo jurídico? As Convenções Internacionais de Direitos Humanos e os direitos constitucionais não seriam suficientes para combater da discriminação contra mulher e garantir a igualdade entre gêneros? A maior bandeira e norte dos Direitos Culturais não seria a liberdade? É possível explicar o direito humano que “todos têm de participar da vida cultural da comunidade” a partir de das peculiaridades dos direitos da mulher? Em entrevista para Revista Observatório Itaú Cultural, Farida Shaheed, que foi Perita Independente na Área dos Direitos Culturais da ONU de 2009 a 2015, afirma que “os direitos culturais protegem os direitos de cada pessoa – individualmente, em comunidade com outros e como grupo de pessoas – para desenvolver e expressar sua humanidade e visão de mundo, os significados que atribuem a sua experiência e a maneira como o fazem. – (Direitos Culturais: um novo papel. Número 11, Jan./abr, 2011). Esse conceito de direitos culturais permite uma ligação clara com os direitos das mulheres de participar plenamente da vida cultural. As artes produzidas por mulheres veiculam informação, visão de mundo e emoção suficientes dar visibilidade às suas lutas cotidianas, suas demandas e perspectivas e são veículos aptos para realçar a importância de po-
líticas públicas culturais voltadas à questão de gênero. O Direito Administrativo e a Administração Pública podem desempenhar papel relevante nessa seara. Campanhas de informação, políticas de aquisição de obras, editais de ocupação de salas de exposição, fundos de financiamento, realização de mostras e publicação de catálogos e biografias, quando dirigidas a artistas mulheres, são algumas das ferramentas aplicadas nos últimos anos. Em 2018, por exemplo, Madrid abrigará uma nova edição da “Bienal Miradas de Mujeres”. O Museu de Arte de Macau (China) também realiza este ano, pela primeira vez, uma bienal internacional de mulheres artistas, com mais de cem pintoras participantes no evento que ocorre de 08 de março a 13 de maio. Localizado no coração de Washington (EUA) há ainda o National Museum of Women in the Arts, único no mundo em sua categoria. Há algumas semanas, a Manchester Art Gallery retirou de suas paredes um quadro de John William Waterhouse, “Hylas e as ninfas”, que retratava lindas ninfas pubescentes e nuas tentando seduzir um homem jovem e bonito. No lugar vazio deixado pelo quadro, a galeria pediu que o público deixasse sua opinião sobre aquela polêmica decisão em post-its. No Direito Eleitoral, a menor representatividade das mulheres na política resultou na obrigação de que 30% dos candidatos sejam do sexo feminino, estabelecida na Lei das Eleições (Lei 9.504/1997). No mundo da cultura audiovisual, a “cota de tela” é o mecanismo legal que, no Brasil, obriga as salas de cinema a exibir um mínimo de filmes nacionais. Algo assim resolveria a questão da presença feminina nos museus e acervos? Decididamente, a resposta aos desafios de visibilidade e participação femininas não passa por quotas em museus. Como a liberdade é a maior riqueza para o exercício da expressão artística, algo assim não resolveria a questão da visibilidade artística feminina, mas outras políticas culturais podem ser muito relevantes.
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INÊS VIRGÍNIA SOARES
Recentemente nomeada Desembargadora Federal no TRF da 3ª. Região (SP), Doutora em Direito pela PUC-SP, com pósdoutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e autora do livro “Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro” (Ed. Forum).
MARCÍLIO
TOSCANO FRANCA FILHO
Research fellow no Collegio Carlo Alberto da Universidade de Turim, Procurador do Ministério Público de Contas da Paraíba e Professor da Universidade Federal da Paraíba. Fez pós-doutorado no Instituto Universitário Europeu de Florença (Itália) e é coautor do livro “Direito da Arte” (Ed. Atlas).
imagem │ Beatriz Milhazes, the spoonful of sugar, 2009
educação jurídica
TRAZENDO CONFÚCIO PARA A SALA DE AULA DO DIREITO Seis séculos antes de Cristo, o filósofo Confúcio já suscitava que nossos sentidos não atuam da mesma maneira e que há uma distância, quanto ao aprendizado, entre aquilo que apenas se ouve, aquilo que se vê e aquilo que se faz. Em sendo ano de ENADE (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes) para o curso de Direito, já sendo esta uma questão que deva nos acompanhar em todos os dias de nossa praxis acadêmica, nunca é demais perguntar pelo que temos
feito para que nossas aulas saiam do formato monológico onde ao estudante (que nesse caso é entendido como aluno – palavra latina que significa “sem luz”) só resta OUVIR e, a fazer coro com Confúcio, logo, logo esquecer. Esse, não esqueçamos, é o modelo que marcou a sala de aula no século XII quando a História do Direito introduzia em suas páginas a inauguração do primeiro curso de direito, na Universidade de Bolonha. Nove séculos se passaram e
“O que eu ouço, eu esqueço; o que eu vejo, eu lembro; o que eu faço, eu compreendo.” (Confúcio, sec. VI a.C)
muitas aulas continuam a serem ministradas nesse modelo monológico – tanto eco-cêntrico, quanto egocêntrico – de transmissão de um saber. Pudesse a palavra “um” ter aqui a conotação de indeterminação do saber, no sentido autoria não identificada (porque compartilhada ou co-construída) ou, ainda, no sentido de ser ele apenas uma das muitas possibilidades de saber. Um entre muitos saberes possíveis. Ao contrário, esse “um” tem natureza acentuadamente numeral e marca o eu solitário do professor que chama para si a responsabilidade pelo conhecimento transmitido em sala de aula. Um primeiro passo fosse dado, seguindo a gradação de Confúcio, com a inserção de imagens na abordagem dos temas trabalhados por nós, em sala de aula, a partir de recursos múltiplos como filmes, documentários, notícias jornalísticas, obras da arte do visível e até a partir da apresentação das aulas teóricas com recursos tecnológicos de imagem, dentre outras possibilidades, e já daríamos um passo porque o VER cria para a mente uma fotografia que pode ser acessada e combinada com outras, na montagem de operações cognitivas. Nesse sentido, o acréscimo de recursos de natureza visual em nossas aulas já incrementaria
LUCIANA Pimenta
Doutora em Direito Processual, Mestre em Filosofia Social e Política, Professora no Curso de Direito da PUC Minas; Coordenadora do Projeto Direito e Literatura, na PUC Minas; Líder do Grupo de Pesquisa Direito e Literatura: um olhar para as questões humanas e sociais a partir da Literatura (CNPq); Poeta e Presidente da Comissão de Educação Jurídica da OAB/MG (Triênio 2016-2018).
significativamente a apreensão do conteúdo, por parte dos nossos estudantes, rumo à memorização. Mas a memorização não é, ainda, a fase mais avançada do processo de aprendizado. Para aprender, como processo efetivo e transformador, é preciso compreender. A compreensão, por sua vez, em seu radical viés hermenêutico, requer uma dimensão performática. É preciso um FAZER para compreender. E esse fazer é exatamente o que excede as paredes da sala de aula nos entremeios da pesquisa e da extensão. É aí que reside a esfera do agir prático – aquela chamada por Aristóteles de phoronesis ou sabedoria prática. Sabedoria de vida, sabedoria para tomada de decisões, sabedoria para uso e aplicação do conhecimento teórico. Esse é o verdadeiro sentido da expressão “saber de cor”: não o de um saber memorizado, mas o daquele que se insere no coração e passa a integrar quem somos e o que fazemos no e pelo mundo em que vivemos. Eis o que deveríamos desejar e perseguir como fruto de nossas práticas.
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espaço do aluno
MULHER PRETA RESISTE
AMANDA
VITÓRIA
Em meio ao advento cibernético que, cada vez mais, propicia a discussão de pautas inerentes e importantes à sociedade, o assunto feminismo circula a rede de maneira notável. Empoderamento feminino, direito ao corpo, desigualdades no mercado de trabalho e assédio são pautas cada vez mais faladas e discutidas na rede. Dentro desse contexto, o feminismo negro tem ganhado força; o empoderamento da mulher negra está cada dia mais presente, não só online, mas também nas ruas e na sociedade de maneira geral. O significado da emancipação para as mulheres negras sempre foi diferente. Enquanto as mulheres brancas lutavam para poder sair do lar e ocupar postos de trabalho, a mulher negra não experienciava a mesma realidade. Sempre obrigada a trabalhar em atividades pesadas e, na maioria das vezes, tratadas iguais aos homens na questão de produtividade braçal. “Se as mulheres brancas nunca recorreram ao trabalho doméstico, a menos que tivessem certeza de não encontrar algo melhor. As mulheres negras estiveram aprisionadas a essas ocupações até o advento da Segunda Guerra Mundial. Mesmo nos anos 1940, nas esquinas de Nova York e de outras grandes cidades, existiam mercados – versões modernas das praças de leilões de escravos – em que as mulheres brancas eram convidadas a escolher entre a multidão de mulheres negras que procuravam emprego”. 1 Hoje, tempos depois do fim da escravidão, toda uma herança escravocrata permanece; os números provam essa realidade. A mulher negra ainda é maioria nos serviços domésticos, minoria no ensino superior e sofre, em maior número, violências como o estupro. Além do machismo é ne-
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cessário conviver com o racismo instituído, com a hipersexualização do corpo negro, com a solidão afetiva e uma série de outras pautas que se tornam específicas para esse nicho. Rosália Diogo é professora, pesquisadora, pós doutora em antropologia da população afro-brasileira pela universidade de Barcelona e coordenadora do Festival de Arte Negra de Belo Horizonte. Para ela o futuro ideal ainda está longe, mas a luta é diária. “Nós, mulheres negras, enfrentamos uma situação muito adversa que é o enfretamento ao machismo e racismo. Estamos na base da pirâmide da sociedade brasileira; encaramos uma situação muito delicada porque o racismo nos coloca em um referencial muito abaixo do homem branco, da mulher branca e abaixo do próprio homem negro. Quando se fala do machismo o homem negro ainda tem privilégios em relação a nós, mulheres negras” 2. Se antes o feminismo abarcava apenas os problemas das mulheres brancas, de classe média, hoje a possibilidade de se discutir a interseccionalidade do movimento propicia uma luta mais plural. O caminho ainda é longo, mas a mulher negra resiste, está ocupando as universidades, cargos importantes em empresas e cargos políticos, prova disso é Aurea Carolina, a vereadora mais bem votada de Belo Horizonte das últimas eleições e que possui um mandato coletivo que abrange lutas sociais das minorias. “Nós finalmente conseguimos compreender que somos criaturas complexas e os grupos são complexos; então a questão racial interage diretamente com a questão do gênero, de classe, de território e de identidade socioeconômica. Todas as formas de pertencimento são um emaranhado e as lutas podem priorizar algumas dimen-
sões de suas reinvindicações, mas é importante que elas tenham essa cooperação entre si porque não é possível transformar a realidade olhando só para um detalhe ou só para uma especificidade, temos que tentar fazer com que essas lutas atuem sempre umas em relação as outras”, conclui em entrevista3. POR TRÁS DO BLACK POWER Se antes eles eram motivo de vergonha, hoje se tornaram um dos principais símbolos de resistência e empoderamento. Assumir os cabelos cacheados e crespos possibilitou uma ruptura em toda uma estrutura de silenciamento identitário do negro. Daniela Costa está à frente do A(r)mando o Black, coletivo que visa trocar experiências com outras mulheres sobre a importância da aceitação dos fios. “Não é só a aceitação do cabelo crespo, é a aceitação do que a gente é. Entender que não precisamos esconder nossa essência é muito importante. A partir do momento que a gente se conhece e se fortalece naquilo que somos o empoderamento chega”4. Esse empoderamento é visível. Em julho, em São Paulo, ocorreu a terceira marcha do orgulho crespo. Também nesse ano, pela primeira vez, a busca no Google por cabelo cacheado superaram as de cabelo liso em pesquisa realizada pelo Google BrandLab de São Paulo. Mais que estética, se tornou ferramenta política importante. “Politicamente, assumir o cabelo natural é muito forte. Tudo que o sistema não quer é que a gente tenha a própria identidade, força e poder”5. A revolução está acontecendo a cada chapinha aposentada, cada black solto pelas ruas, cada turbante sendo usado com orgulho. É muito mais
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Discente do curso de Jornalismo do Centro Universitário Newton Paiva
que cabelo, é aceitação, empoderamento, auto estima, força, união. A partir de uma discussão estética o aprofundamento do tema se torna inevitável. Esses comportamentos pautam discussões, geram demandas e criam, acima de tudo, adesão. A revolução é preta, feminina e crespa! DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. Doc
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online disponível em < http://lelivros.com/book/ baixar-livro-mulheres-raca-e-classe-angela-davis-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/>.
Acesso
em 25 de out, 2017 DIOGO, Rosália. Em entrevista realizada no dia 5
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de setembro na cidade de Belo Horizonte. 3
SILVIA, Áurea Carolina. Em entrevista rea-
lizada no dia 21 de setembro, na cidade de Belo Horizonte. CRUZ, Daniela. Em entrevista realizada no dia 11
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de outubro, na cidade de Belo Horizonte. CRUZ, Daniela. Em entrevista realizada no dia 11
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de outubro, na cidade de Belo Horizonte
REFERÊNCIAS ANGELA, Davis. Mulheres, Raça e Classe. Doc. On-line Disponível em: < http://lelivros.com/ book/baixar-livro-mulheres-raca-e-classe-angela-davis-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/>. Acesso em: 25 de Out. 2017. CRUZ, Daniela. Belo Horizonte: 2017. Entrevista concedida à Amanda Vitória Siqueira Tomaz e Thales Rodrigues dos Santos. DIOGO, Rosália. Belo Horizonte: 2017. Entrevista concedida à Amanda Vitória Siqueira Tomaz e Thales Rodrigues dos Santos. SILVA, Áurea Carolina. Belo Horizonte: 2017. Entrevista concedida à Amanda Vitória Siqueira Tomaz e Thales Rodrigues dos Santos.