plural JORNAL CULTURAL
Páginas 4 e 5
“O saber com muito
sabor A professora Flávia Oliveira da Universidade Federal de Uberlândia em momento de atuação
Fotos divulgação Artimanha
Nota-se que ao inserir a Arte, seja pelo Teatro, seja pela Literatura, seja pelo Cinema dentro do estudo do Direito, o aluno descobre um novo sabor, o ensino torna-se mais prazeroso, é o saber com sabor. A professora Flávia Oliveira da Universidade Federal de Uberlândia, que encampa junto com os seus alunos o coletivo Artimanha mostra a importância da arte no Direito. “O Teatro consegue dar capacidade interpretativa para ser um bom juiz, para ser um bom promotor você tem de ter capacidade interpretativa.”
IssN 2319-0000
Cena da peça “As Três Viúvas” exibida em abril desse ano
“
NÚMERO 9 | MARÇO A MAIO DE 2015 | BH | MG
editorial
medium terminum
Amor a gente não fala
Mediação
Por Bernardo G.B. Nogueira Não irei falar neste editorial que a arte é necessária ao direito. Tampouco que a questão interdisciplinar ressoa hoje como uma alternativa ao aprisionamento ideológico dantes privilegiado. Menos ainda direi que o tempo de hoje, líquido, precisa ser repensado - água acima do peito afoga. Não poderia me demorar a dizer que a mediação hoje nem pode ser mais considerada uma saída - posto que é ela a porta mesma. Como gastar este papel, rabiscá-lo, apenas a dizer que os olhares coloridos encantam o humano, que pode ser quatro, dois ou apenas um amor. Dificilmente conseguiria encontrar interesse na leitura de um texto que repetisse: “o inferno são os outros”. Imagina só que o humano não é natureza e, portanto, talvez passemos do líquido para um estado sólido – o amor não pode ser gasoso. E como iria insistir em dizer que a poesia é o próprio professor. Que professa vida mesmo em silêncio. Mas o que não gostaria mesmo era apenas dizer que os alunos da Universidade Federal de Uberlândia que compõem o Grupo Artimanha, inspirados pela sua Professora Flávia Oliveira, trouxeram para nossa Escola uma vida que realmente não poderia caber em um mero editorial. As atuações dos alunos, tornadas ciência com sua fala, fizeram com que toda a palavra restasse desnecessária, a cada grito por justiça encenado na peça, a cada laivo de esperança restado no discurso, foi por si só, o que nos furtou a palavra. Daí um editorial que não quer falar. O Grupo Artimanha criou tempo novo em nossa Escola de Direito. Tempo do silêncio. Tempo da mistura. Da inter-disciplina. Da arte, do humano novo que caiu do palco, tropeçou na sala e agora escuta o mundo com novos olhares. Renascidos e recém chegados ao mundo, inaugurados por vocês, Artimanhas, choramos em letras para agradecer esse gesto inaugural de criar justiça em jeito de amor...enquanto escrevo deixo minhas lágrimas primeiras a acariciar o rosto de todos, pois que depois de Ismene Mendes será assim, justiça ou luta, sem amor, nunca!!!
expediente
Por Karla Batista Machado e Ludmila Stigert Durante anos, fomos condicionados a recorrer a alguém para termos nossos conflitos resolvidos. Na infância quando brigávamos com nosso irmão, chamávamos os nossos pais, na escola a professora, e quando adultos batemos às portas do judiciário que através da figura do juiz decide quem está certo e quem está errado. Por vezes, as decisões que são tomadas não se tornam efetivas, pois como são impostas por um terceiro, acabam trazendo um descontentamento generalizado para todos que estão evolvidos no conflito. Por consequência, as partes não aderem ao que foi decidido. Com o objetivo de estimular a auto composição e de trazer efetividade e celeridade para o jurisdicionado, o novo Código de Processo Civil formalizou em nosso ordenamento jurídico os chamados meios adequados de solução de conflitos que estimulam a autonomia das partes, fazendo com que elas sejam os atores principais da sua demanda. Dentre os procedimentos, destaca-se a mediação que proporciona uma oportunidade de tratar o conflito por um viés mais construtivo e democrático. Fundamentando-se pelo princípio da pessoalidade, da confidencialidade, da imparcialidade e da voluntariedade, essa moderna percepção do conflito volta-se para pessoas que precisam tratar sobre direitos disponíveis e manter uma convivência que seja no mínimo civilizada, como por exemplo familiares, pais, vizinhos. Através de um terceiro facilitador do diálogo, o mediador, esse método estimula as partes a trabalhem de maneira cooperativa para que todos
saiam ganhando. O mediador não oferece sugestões, mas por outro lado, auxilia às partes a criarem suas próprias opções e a refletir sobre elas. A mediação trata o problema no seu âmago subjetivo e entrega aos envolvidos o merecido empoderamento para tratar e decidir sobre as questões e seus interesses, e é este empoderamento que capacita as partes a revolverem, sozinhas, outros conflitos futuros. Com o envolvimento e empenho das partes no procedimento o resultado final acaba por receber uma grande adesão e um efetivo cumprimento. Ao contrário do que se pensa, a mediação não visa à um acordo, mas sim à pacificação social. Para isso, o conflito é tratado de maneira individual, personalizada e humanizada e às pessoas é dada a oportunidade de crescimento, de renovação das relações e de auto-reflexão sobre seus atos. As partes conseguem perceber e refletir que o que importa muitas vezes é ter o direito atendido, porém sem ferir o direito alheio, cooperar para ganhar. Diante disso, o acordo é fruto do empenho e da contribuição das partes. A mediação é um procedimento moderno que proporciona benefícios muito além da efetividade, da economia, da satisfação e do descongestionamento do judiciário. O maior benefício que uma mediação bem-sucedida traz é uma pessoa com o sentimento de dignidade enraizado que consegue resolver seus conflitos por si próprio através do diálogo cooperativo. E, além disso, tal procedimento, também transforma os mediadores que a cada sessão realizada, enxergam o direito, a alteridade e o respeito como signos linguísticos dotados não apenas de teor sintático mas também pragmático.
JORNAL CULTURAL PLURAL
Projeto de Extensão Direito e Cultura da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva Editor: Bernardo G.B. Nogueira APOIO TÉCNICO: Núcleo de Publicações Acadêmicas Newton Paiva: Projeto Gráfico, Editora de Arte e Diagramação: Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG
Contatos, sugestões e anúncios: jornalplural@yahoo.com.br
Cedo
Estava em pé, no centro da noite, o professor Centrado com suas dúvidas de ausência Afinal, são tantas as questões da vida...
À margem, só, respondia e mais se perguntava, nada clareava: garantia sua dor. Até que o aluno chegou Com dúvidas que não eram suas... Eram do autor. Foram-lhe incorporadas pela leitura. Melhor não houvesse lido: eterno dissabor.
Enfrentamento? Antes, calaram-se. Investigaram-se sem palavras. Nem mais resposta, nem mais pergunta: nada. Era tarde da noite e era a pouco do dia Afinal, a sociedade exige-os, igualmente, em pé, sem mais palavra: foram, perplexos, pelo mesmo caminho. Foram para casa.
Os textos são de inteira responsabilidade dos seus autores.
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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 9 | MARÇO A MAIO DE 2015
(Marco Túlio Figueiredo)
encontros e encontros
Vida e Direito: uma questão interdisciplinar
vida de árvore
A Claraboia Para Emily ou Ana Rute Sofia ou Ana Paula Quando quatro, são apenas duas. Duas formas infinitas de presente e futuro A elas: meu imenso amor!
Por Emerson Luiz de Castro Para o estudante do curso de Direito e até, muitas vezes, para os professores de cursos jurídicos, pensar interdisciplinarmente é um grande desafio. E podemos acreditar que muitos não conseguem visualizar a permanente interligação e entrelaçamento dos temas jurídicos, seus desdobramentos e inclusive suas permanentes mutações. Podemos pensar que o Direito como reflexo da sociedade humana não pode dissociar-se nunca da realidade e da natureza próprias do homem e da sociedade a que ele se insere. Como o nascimento está para a vida, também estará para o Direito, bem como a morte e todos os reflexos de uma existência humana e social. Não se pode pensar em vida e morte e tudo o que existe entre esses dois pontos se não pensarmos complexamente sobre a existência humana e todas as repercussões no campo do Direito. Interdisciplinar pois é o Direito assim como é a própria vida! Abster-se a dar um locus interdisplinar a cada tema jurídico estudado é abster-se a ter uma visão ampliada de si mesmo, da sociedade e do mundo em que estamos inseridos. E mais do que isso é surpreender por meio das inúmeras interligações advindas das relações jurídicas seus reflexos no indivíduo e na sociedade, no sucesso e fracasso social, nos desafios e realidades a serem enfrentadas. Por isso não podemos, nos conformar em colocar em caixas, disciplinas, períodos ou áreas temas que por sua dimensão de formação e de reflexão carecem de uma robustez interdisciplinar que justifica e amplia a atuação do estudante de direito. Tratar de forma interdisciplinar os temas afeitos à ciência do Direito é obrigação de todos nós educadores, onde a interdisciplinaridade dará a ressonância necessária ao entendimento e compreensão do Direito ampliando seu mais precioso objetivo que é a paz e o bem social. Bem como a tecnologia nos tempos atuais, a regra é a interconectividade entre temas e áreas jurídicas por possuírem uma base comum: a sociedade e o homem. Sejamos então mais juridicamente interconectados, esse é o nosso grande desafio!
Por Tânia Cristina Dias Mendanha Da pequena janela, redonda, localizada bem no alto da casa, próxima ao forro do telhado, via-se todo o andar superior. Os cômodos sem paredes, se comunicando. A vida entrelaçando no ambiente. Enquanto a mulher magra e ligeira transportava tecidos até a máquina e da máquina para a mesa de passar. A menina com o cabelo dividido por fitas em duas grossas mechas, ora brincava aqui, ora ali com sua boneca de pano. Em sua cabeça apenas o vento. Leve. Sem nenhum tipo de pensamento mal, ou apreensão frente ao futuro iminente. Porque a vida era magnificamente simples e boa. Era a casa toda, um grande vão alugado, com móveis dispostos em conjuntos de cômodos. Paredes apenas imaginárias. De tal forma, que poderia dividi-la em duas grandes alas, a da esquerda e da direita. Nesta última, no seu extremo, via-se a sala de costuras, com os tecidos organizadamente dispostos nas prateleiras. Embaixo a mesa e o ferro, a poucos passos, a máquina de costurar. Lateralmente ficava a sala, onde, sua mãe e irmão, descansavam à noite. Próximo à claraboia era a cozinha. Uma mesa pequena, quatro lugares, o fogão, um armário alto que parecia varar o telhado e um refrigerador velho, mas de grande utilidade. No outro lado do grande cômodo, estavam os três quartos. De sua mãe, irmão e o dela no meio dos dois. E, por último, talvez o cômodo mais atraente da casa, uma pequena biblioteca. Composta por livros doados por clientes e comprados com dinheiro economizado, moeda a moeda. Esse era quase todo o mundo da menina cabeça de vento. Exceto, a praça que ficava a poucas quadras do pequeno prédio onde morava, a escola, as ruas estreitas, a padaria e o trabalho do irmão, que nunca conhecera, mas que achava sem utilidade. Sair para trabalhar não fazia nenhum sentido. Tamanho o volume de tarefas que sua
mãe tinha em casa. Porque não ajudá-la? Mas o irmão insistia que o dinheiro precisava vir de outra fonte. E menina continuava a não entender a origem do dinheiro e de um tanto de outras coisas. Às vezes, a avó vinha visita-los e era instalada no sofá da biblioteca. A avó parecia com a mãe. Só que mais leve e mais enrugada. Como um tecido jogado para o ar e que ao cair na mesa se amontoa formando vários sulcos e formas. E o mesmo tecido rosado conserva se o mesmo. Porém, um é liso e o outro enrugado sobre o número de anos que carrega a mesa. Quando a avó chega, ela traz consigo a Gertrudes. Sua gata com olhos de cores diferentes. O que causa uma impressão extrema no coração da menina. Um dia lhe disseram que a gata era assim porque seus olhos tinham funções diferentes. Um via o passado e o outro o futuro. A menina achava tudo aquilo um desperdício do olhar. Para ela bastava o gato dar conta de olhar sua casa, dentro daquele dia, brincar e lhe fazer companhia. Acompanhava o movimento felino do bicho. Ao saltar da mesa, para a máquina, ao chão e deste para a cadeira, da cadeira ao sofá, ou para a cama. Trazia lhe migalha de pão ou qualquer bola de lã ou tecido e se deleitavam durante a tarde. Enquanto a avó ajudava alinhavar um ou outro vestido. Depois fazia o café e bolinhos de chuva. Todos sentavam à mesa, comiam, conversavam e ouviam histórias de quando a avó era criança e tinha outro gato. Parente remoto deste que está agora aqui lutando com restos de pano. E a avó discorria sobre todo tipo de olho que seus vários gatos tiveram e suas infinitas e bizarras utilidades. Mas para a menina a vida se bastava naquele cômodo, que até podia ser visto, todo ele, pela claraboia. Isso é, se fosse possível se posicionar àquela altura, do lado de fora do velho prédio. Para contemplar uma vida harmônica em família. De uma menina que não tinha olhos azul e verde como os da gata. Mas castanhos, da mesma cor dos olhos da avó e da mãe. E o único poder que tinham era o de enxergar o presente, da forma mais real e simples que todo o tempo que se vive deveria ter. Tudo se basta, nada se antecipa ou retorna. Cheiro de tecido recém passado à ferro quente. E a vida que, apenas por agora, é.
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entrevista
A arte no Direito
Flávia Oliveira, professora multidisciplinar da Universidade Federal de Uberlândia é a entrevistada dessa edição. Ela fala sobre a magia da arte no saber do Direito.
Bernardo: Muito bem, estamos aqui hoje com a professora Flávia Oliveira, professora multidisciplinar da Universidade Federal de Uberlândia, que encampa junto com os seus alunos o coletivo Artimanha e que estiveram aqui hoje, na nossa quarta Semana Jurídico Cultural, apresentando a peça Ismênia que tem uma conotação trágico grega, também, obviamente, fundada em um processo real, mas o que eu gostaria de saber da professora, primeiramente, já agradecendo, o que ela pensa metodologicamente da relação e da inserção da arte no Direito. Flávia: Boa noite, primeiro agradecer você, Bernardo, agradecer à Newton Paiva, esse convite, essa oportunidade belíssima na verdade. Na verdade, para gente é uma construção coletiva, cada apresentação é uma construção coletiva. Indo no que você me pergunta, o primeiro: muitas experiências e experimentações a gente conhece entre Direito e Arte, não só no Brasil, primeiro diria não só em Minas, mas não só no Brasil. A Europa conhece um festival de teatro e Direito, e eles já realizam isso com muita qualidade. O que a gente nota é que ao se inserir a Arte, seja pelo Teatro, seja pela Literatura, seja pelo Cinema dentro do estudo do Direito, a gente consegue vários objetivos, um deles é aquele ensino mais prazeroso, o ensino fica mais saboroso, é o saber com sabor. Então o estudante, aquele que faz Direito, ele adquire um gosto novo pelo estudo, então isso dá gosto, dá sabor, ele começa a ver um novo sabor e isso, já é em si, muito importante. Só isso já seria importante. Você tem um outro efeito fantástico, que é a descoberta daquele que vêm para esse trabalho, da necessidade de uma formação mais ampla. A gente vai fazer um trabalho desses, a gente precisa, os alunos precisam, eles têm de estudar História. O aluno vai conhecer Ismênia. Ismênia fala de um período do Golpe Civil Militar, você tem de conhecer o período do Golpe Civil Militar e toda legislação da época para poder fazer a compreensão correta. Mas para fazer isso, eles têm que ter uma base literária, então eles visitaram Saramago, visitaram João Cabral de Melo Neto. Nossa, mas isso ainda não foi suficiente, porque a gente precisa de mais argumentos, de mais elementos, então eu preciso estudar técnicas teatrais, técnicas de oratória. Então, para esses alunos que participam de um pro-
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jeto desses, a formação é de uma amplitude, quer dizer, a evolução é mágica. A realidade é essa, ela é mágica. Ele se transforma. Hoje, os meninos que participaram, por exemplo, da construção de Ismênia, do coletivo Artimanha, eles conseguem, ao conversar com eles, te dar referencias históricas, referencias jurídicas, referencias literárias do período, então a formação ficou muito melhor e é gostoso fazer isso. Olha, você conseguir dar formação ampla, interdisciplinar, transdisciplinar, plural, com prazer. Então, isso é muito bom. Não bastasse isso tudo, tem um outro impacto, alguns outros impactos, na verdade, que é o impacto de se comunicar, de como se comunicam, o Teatro consegue trazer para o aluno do Direito um processo comunicacional fantástico, inclusive como ferramenta, e uma capacidade de dialogo social, que eu acho belíssima e talvez para mim, pessoalmente, seja o maior impacto e seja, dentre esses aspectos metodológicos, o mais relevante. É dar ao estudante do Direito um instrumental de comunicação social do Direito em si, do próprio Direito.
Bernardo: Muito bem, realmente é uma pergunta que se desdobra em várias possibilidades de resposta. Mas, ainda dentro dessa nossa prosa, que é uma prosa que se propõe a fazer uma leitura técnico-objetiva dessas nossas transcendências literário-jurídicas e teatrais e jurídicas. Quando nós olhamos os instrumentos de avaliação dos Cursos do Ministério da Educação, essas obrigações de um curso estar pareado com uma boa aprovação no Exame de Ordem. Enfim, todas essas determinações que nos soam, por algum momento, talvez até um pouco contrárias a esses movimentos de uma abertura epistemológica um pouco maior. Eu gostaria que você, como professora e como participante, como que você enxerga esse problema, que eu levanto aqui, mas ao mesmo, se esse trabalho não é uma solução para o fim desse ensino técnicizado e distante da realidade, que por vezes nós encontramos tanto nas Instituições e por vezes nos próprios instrumentos que levam as Instituições à esse tipo de problema. Flávia: Muito interessante a sua pergunta, Bernardo, porque já estou na Federal há mais de quinze anos e nós tivemos outra experimentação com outro grupo de alunos há mais de dez anos e ás vezes a pergunta vem: mas isso não desvia os alunos, mas esses meninos vão fazer outra coisa. Daquele grupo de alunos, uma hoje é Procuradora da Fazenda Nacional, um é Defensor Público, outra é Doutora. Então, veja
que não desviou ninguém do caminho e os meninos hoje, do grupo, são os melhores alunos, são alunos que os professores tem como referencia na sala de aula, os colegas tem como referencia da sala de aula. Então, primeiro vamos desconstruir essa ideia de intervir, de colocar a Arte no Direito, vai de alguma forma atrapalhar o próprio conhecimento formal, ela ajuda o conhecimento formal, porque ele primeiro fez com que esses alunos precisassem se dedicar, pois eles tem dois compromissos: mostrar que há uma interface, então eles assumem isso, que existe uma interface entre Direito e Arte e por isso eles adquirem; segundo, eles tem que conhecer, porque se não eles vão transformar em Arte o que? Eles precisam do Direito para transformar em Arte. Então, primeiro isso. Segundo, essa capacidade de nova comunicação dá para eles uma facilitação na própria assimilação do conhecimento formal e tira deles qualquer traço de medo, traço de “ah, eu não consigo alguma coisa”, esses desafios se tornam mais fáceis. Então, falando de OAB, de ECC, quem subiu em um palco fechado, então eles tiram deles essas limitações e isso facilita muito para qualquer pessoa e evidentemente, para um aluno do Direito, os desafios que o próprio Direito dá, sem o fato de que, um aluno que fez teatro, subiu em um palco e apresentou, ele vai fazer uma audiência brilhantemente, até como técnica de oratória, mesmo quando a gente fala de um conhecimento formal. Então veja, é interessante pensar sobre isso porque e a gente reflete muito sobre isso, como ah sim, a gente trabalha Direito e Arte como um viés novo, como uma nova forma de construção de conhecimento e de diálogo com a sociedade, mas não é só isso não. No plano formal, no plano, digamos, de aquisição desse saber jurídico, de competências formais, seja para a prova da OAB, seja para concurso, ele é eficientíssimo e isso é comprovado não só pela qualidade desses meninos, mas pelos outros que nós também conhecemos. Hoje o Tribunal do Rio de Janeiro, os Desembargadores trabalham com peças, eles fazem peças, pois eles entenderam que o Teatro consegue dar capacidade interpretativa para ser um bom juiz, para ser um bom promotor você tem de ter capacidade interpretativa. Então eles trabalham isso lá, o Paulo Autran uma época deu um curso para eles, para que eles utilizem isso. Então, mesmo se for no plano do Direito formal, te diria que é hoje um caminho sem retorno e é necessária essa relação de Direito e Arte.
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Fotos divulgação Artimanha
Bernardo: Bom professora, eu quero deixar bem claro que minha pergunta foi apenas provocativa. Nós estamos no mesmo barco. Então, a gente teria várias possibilidades de abordar, mas eu quero insistir nos efeitos, tanto nos efeitos dos atores, como já foi dito, até também no efeito que o Artimanha leva para a própria Instituição, mas eu queria te fazer uma pergunta. socialmente, olhando para também as expectativas metodológicas do Curso de Direito, que ele tem uma expectativa de atenção social. será, e se essa é a impressão da professora, da atriz e da colega de trabalho, se isso afeta a sensibilidade social das pessoas envolvidas, e se de alguma maneira é possível nós atingirmos o público fora da faculdade com esse trabalho que a gente faz aí dentro, de relacionamento do Direito com a Arte e no caso de vocês do Direito e do Teatro. Flávia: Bernardo, essa sua pergunta fala do que a gente mais gosta, do que é mais importante para gente, porque se às vezes para um publico do Direito o falar formalmente, academicamente, palestralmente sobre o Direito, nem sempre é tão agradável, quando você vai para uma comunidade, quando você vai para sua cidade, numa democracia, o mais importante é que a sociedade conheça o Direito e o vivencie, porque isso é democracia, eu saber dos meus Direitos e vivenciá-los. Então acabou, porque as pessoas não entendem, porque o Direito já é difícil, e também não tem muita fé no Judiciário, toda demora, todas essas legislações muitas vezes injustas, tem criado uma desesperança muito grande e isso é um risco democrático, isso é um grande risco democrático. Então, quando a gente se apropria do Teatro, no nosso caso, ou apropriação pela Literatura ou apropriação pelo Cinema, e você vai falar de Direitos e muito especialmente direitos sociais, direitos fundamentais, direitos humanos, para essa sociedade, ela redescobre a fé, ela recupera a fé no Direito e ela começa a pensar que existe alguma luz. Então, é esse o papel que a gente considera o mais importante, que nós fazemos, quando nós vamos para uma comunidade e a gente apresenta um trabalho e essa comunidade escuta e sai com fé no Direito, que é possível transformar, nós cumprimos
com excelência o nosso papel e a Instituição cumpriu com mais excelência ainda seu papel, porque isso é o que a gente entende como efetivação de uma democracia através de um ensino fundamental jurídico revisitado pela arte. Bernardo: Muito bem, adorei sua fala. A gente não pode alongar muito, mas a gente poderia dizer então que além do conhecimento crítico que aparece com essa relação que é inevitável, é inevitável a construção do pensamento critico, será que a relação de Direito e arte hoje seria uma boa resposta para os anseios do MEC numa boa Universidade, para alcançar os pilares que eles nos cobram, que é a pesquisa, o ensino e a extensão. Flávia: Certeza absoluta disso, e a gente já teve algumas conversas com outras pessoas que trabalham com essas questões dentro do próprio MEC, os consultores, eu me lembro de uma vez, há um tempo atrás, há muito tempo atrás, que a gente cooperou com uma Universidade que estava com essa proposta e a ideia foi construir uma experimentação de teatro na linha de ensino, pesquisa e extensão e foi, de um dos consultores do MEC, foi dito como uma das melhores experiências, que ele estava verificando naquele instante, porque para você poder realizar um trabalho desse você tem que ter a pesquisa, porque se não não é possível, nós precisamos pesquisar, como eu te disse, o período histórico, a metodologia, diálogo, comunicação, é um processo de ensino, como eu acabei de dizer agora, de ensino de Direitos à pessoas que não são do Direito. E, ao mesmo tempo, é evidente, notoriamente, a questão da extensão é clara. Então, esse projeto ele constrói na prática, na realidade, a junção entre ensino, pesquisa e extensão e isso hoje é reconhecido, inclusive na nossa Instituição, tanto pelas nossas instancias superiores, quanto pelos nossos colegas de conselho, que reconhecem a eficácia dessa metodologia a ponto de que em palestras, em atividades do Direitos não dá para ter nem que seja um esquetezinho, porque eles percebem que é isso que consegue trazer a sensibilização. Muitas vezes você faz um esquete pequeno, mas você prepara para aquela fala ser registrada. A nossa Instituição, a nossa TV Universitária, TV
UFU fez uma parceria conosco para construir um projeto chamado “Pensando o Direito”, e um dos pedidos deles é que tivesse toda vez um esquete do Artimanha, porque eles falaram que isso facilita o entendimento do nosso público. Acho que isso prova essa realidade que é ensino, pesquisa e extensão, a vivencia de uma experiência como essa. Bernardo: É isso professora, eu vou te agradecer mais uma vez, eu fiz vários agradecimentos à você, eles são infinitos, porque eu acho que esse trabalho é infinito. A nossa luta para inserção da Literatura, do Cinema, da Música, do Teatro dentro do Direito, é uma tentativa, na verdade, de humanização dos nossos alunos e também a nossa própria humanização, eu obviamente há de refletir na maneira como esse profissional vau trabalhar e obviamente como esse profissional vai influenciar a própria sociedade na qual ele está inserido. Então, em nome da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva eu queria agradecer ao grupo ou ao coletivo Artimanha, eu acho mais bonito coletivo, que é uma coisa de construção plural, pela parceria. Espero que a nossa semana jurídico-cultural tenha sido à altura do que vocês fizeram para gente aqui nessas três apresentações, que eu não tenho duvida nenhuma que vão mudar o direcionamento da subjetividade e da maneira como nós iremos construir o nosso conhecimento aqui dentro da Escola de Direito e como nossos alunos também irão ver. Então, muito obrigado. Espero que nós tenhamos várias outras oportunidades de nos vermos. Flávia: Bernardo, em nome do coletivo Artimanha a gente agradece a casa Newton Paiva, a gente já vai chamar de nossa casa também, casa Newton Paiva. Aqui em BH é nossa casa, que nos acolheu, por isso casa que me acolhe e à você pelo carinho que já da família Artimanha. Aqui é a casa, você é a família, é isso que a gente sente. Queria lembrar, para a gente encerrar, uma frase de um poema de um poeta que eu adoro, Fernando Pessoa, “tudo vale a pena, se a alma não é pequena” e a alma dessa casa Newton Paiva, desse professor Bernardo são imensas, então, tudo vai valer a pena demais.
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OUTROs INFERNOs
O Teatro do Olhar
Por Tatiana Ribeiro de Souza A peça “Entre quatro paredes”, de Jean Paul Sartre, pode ser considerada uma das maiores referências para tratar do olhar do outro como forma de subjetivação, especialmente quando se leva em consideração que foi precedida pela publicação de A náusea e O ser e o Nada. Destaco essas duas obras porque, no final das contas, o problema ali tratado persiste sendo o do “ser em si” e da necessidade do seu preenchimento de sentido, lançando-o ao “ser para si”. É nessa esteira, de psicanálise existencial, que Sartre fez uso do teatro para confirmar seu argumento de que é a existência que precede a essência, e não o contrário. Depois de mortos, os três personagens de “Entre quatro paredes” se encontram no inferno, sem saberem exatamente o motivo de terem sido confinados juntos em um salão modesto, sem janelas e sem espelhos. Ao longo da peça cada um dos três vai se despindo do personagem que representava diante dos outros dois colegas de inferno e revelando os motivos que provavelmente os levaram à condenação eterna. Nada de fogo, demônios ou enxofre, o inferno de Sartre é apenas um salão, estilo segundo império, com três peças de sofá e um bronze sobre a lareira. A primeira impressão dos hóspedes
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do inferno é a de que em breve receberão um carrasco para dolorosas sessões de tortura, no entanto, aos poucos descobrem que sua condenação é à pena ainda mais dura: o olhar do outro. O caminho natural para uma filosofia de “Entre quatro paredes” tem sido o do existir pelo olhar do outro, o que leva à famosa e trágica conclusão do personagem Garcin de que “o inferno são os outros”. Exatamente por valorizar tudo que se tem produzido a esse respeito, pretendo me dedicar, nesta breve reflexão, à outra perspectiva da peça: a do olhar como um palco. Ao ser encaminhado para o salão do inferno, Garcin tenta, em vão, desvendar qual será o castigo que tornará os seus dias dolorosos. Dando-se conta de que lá não poderá dormir, observa que o criado que o conduz possui as pálpebras atrofiadas, impedindo-o de piscar, o que, na opinião de Garcin, explicaria a “indiscrição grosseira e insustentável” do seu olhar. Apressadamente Garcin conclui que o castigo doloroso no inferno é o que ele chama de “a vida sem interrupção”, como é o olhar sem a piscada. A fim de explicar ao criado o que é o ato de piscar, Garcin o descreve como “um pequeno relâmpago negro, uma cortina que cai e se ergue”. Partindo da ideia do piscar como esta cortina que cai e se ergue, podemos comparar o olhar a um palco de teatro, onde a fantasia da representação está separada dos bastidores, do real por detrás da coxia. Sob esta perspectiva, não estamos tratando da subjetivação daquele que se lança ao olhar do outro, como se vem tratando o drama dos personagens de “Entre quatro paredes”, mas
da intimidade mesma do olhar. O olhar como palco é a fronteira entre o ser em si e o ser para si, pois quando as cortinas se levantam o artista é para o juízo da plateia (ser para si), ele representa um papel e o resultado da obra não é nem o que estava previsto no roteiro nem o que cada espectador viu, mas a combinação texto/ato/percepção do texto-ato. Quando a cortina cai encerra o espetáculo, mas o artista ainda é (ser em si). Agora só ele e o espelho, seu novo olhar, juiz de si. Esse cair da cortina é aquele momento de evasão da vida que foi subtraído de Garcin, Inês e Estelle, personagens de Sartre. Para descrever o cair da cortina, Garcin explica que “os olhos se umedecem e o mundo se aniquila”. A cada piscada uma pequena evasão e uma chance de sonhar. O castigo em “Entre quatro paredes” é exatamente o de nunca mais haver descanso, de não haver o fechar das cortinas. Mesmo quando o personagem mantido pelo ator é desmascarado, o que emerge não é o ser em si, mas novo personagem, indefinidamente. É a condenação à representação eterna. Olhos abertos. Sempre. Não se pode tirar a maquiagem porque lá está a plateia julgando sua atuação. Para eles a vida é sem intervalo. O inferno é a representação sem trégua, sem o cair da cortina, sem espelho, sem chance de sonhar.
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QUANDO CAI O PANO
O teatro do diverso Por José Luiz Quadros de Magalhães A tentativa de segurança por meio de aprisionamento dos sentidos das palavras é uma das características da modernidade. Segurança é uma das palavras chave para a compreensão do direito e do estado moderno. Entretanto, uma pergunta é necessária: segurança para quem? Se podemos extrair da história moderna os reais interesses que permitem a construção do estado moderno, este desocultamento, esta descoberta, nos ajudar a perceber qual o caminho precisamos percorrer para a construção de uma nova ordem constitucional que possa contemplar toda a diversidade que foi negada e ocultada por esta mesma modernidade. Se da aliança entre o rei, a nobreza e a burguesia começa a construção do estado moderno, e, da afirmação do poder político da burguesia, a partir do seu poder econômico, surge o constitucionalismo, o desafio contemporâneo é a busca da construção de um sistema jurídico constitucional e de uma ou várias jurisdições constitucionais que permitam, cada vez mais, a existência do diverso em uma relação que não seja mais de subalternidade ou de exclusão. Subalternidade ou exclusão sim, pois, o outro subalternizado na modernidade faz parte do sistema, é necessário ao sistema, e logo sua exclusão do acesso a vários direitos é necessária ao funcionamento deste mesmo sistema. Assim, existem duas formas de exclusão: a exclusão do acesso a direitos dos que integram o sistema como subalternos (o outro que justifica a hegemonia do “nós” civilizado) e o outro que não é necessário nem
mesmo para a justificativa de superioridade do mesmo “nós”, e logo não conta nem mesmo para a construção da imagem do “civilizado” superior ao “incivilizado”. O primeiro é o “índio”, “o negro”, “o muçulmano”, o “judeu”, a “mulher”, as “prostitutas”, o “drogado”, o “terrorista”, o “vândalo”, o “menor-infrator”, o “gay”, a “lésbica”, enfim, aquele que precisa existir como exemplo de subalternidade, o “eles”, aquele objeto de desprezo que reforça a “bondade” e o “bom exemplo” do opressor, portador de direitos. O segundo grupo aumenta a cada dia. Neste grupo estão os não nomeados. Se a nomeação é fundamental para a subalternização, os que pertencem a este grupo são desnecessários até mesmo para justificar a “missão civilizadora”, a “evangelização”, a “salvação”, por parte dos que oprimem. São os não nomeados, invisíveis. Como construir uma sociedade que supere esta lógica da modernidade colonial binária do incluído e excluído, do civilizado e do incivilizado. Como construir um sistema mundo e um sistema constitucional onde as pessoas e grupos de pessoas, comunidades, possam construir o seu próprio roteiro de vida social sem passar pelo censor civilizado, neste triste teatro do cotidiano de papeis mal interpretados. O fato é que não cabemos nos papeis sociais limitados que nos são impostos. Dentro de cada pessoa, e em cada comunidade, fervilham desejos e insatisfações que ameaçam a explosão. Se na teatralização do bom pai de família cabia a amante e o pecado escondido; se na teatralização do bom cidadão trabalhador cabe a corrupção e a sacanagem, este escape oculto não mais satisfaz. A puta e a santa; o médico e o monstro;
o cidadão de bem e o sacana, não precisam coexistir se permitirmos a explosão, se não nos limitarmos a esta peça moderna do bem e do mal. É difícil interpretar vários papeis simultâneos. Não é para qualquer ator. Papeis, representações de uma triste peça interpretada por péssimos atores. Aí está a grande diferença que o novo constitucionalismo democrático latino americano pode fazer: a construção de um espaço de diversidade. A igualdade é para os igualados. A ideia de igualdade pressupõe o desejo do “excluído necessário” integrar o sistema que o exclui. Nesta igualdade, o excluído deve desejar fazer parte do sistema excludente. Na ideia de diferença, um passo é dado: agora o excluído é aceito dentro do sistema com sua esquisitice. É mais ou menos assim: você é diferente, você foge dos papéis sociais até então aceitos, mas, se você se comportar te aceitamos em nosso teatro como figurante. Aceitar o diferente pressupõe uma pergunta: diferente de quem? Neste caso o roteiro ainda é escrito por aquele que é visto como o padrão, o estereótipo do bom moço anglo saxão que agora aceita o “mexicano” de dentes de ouro como sendo portador de direitos. Já no direito à diversidade estamos falando de ruptura. Cada grupo social escreve seu roteiro. O excluído não será incluído, pois ele não quer representar esta peça. Ele quer fazer o seu próprio roteiro. Não há excluídos porque cada grupo poderá estar onde quer estar, poderá viver segundo seus valores e construir sua própria “história”, sem ser forçado, para que possa existir, em se transformar no que não corresponde à sua “estória” (memória).
JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 9 | MARÇO A MAIO DE 2015
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alicerce que vem?
A liquidez do tempo presente Por José Carlos Henriques Compreender nosso tempo é desafio que sempre nos provoca, nos convoca, como uma necessidade inarredável. Mas, como em todas as épocas, compreender o momento de nossa situação histórica é tarefa sobremaneira complexa. De fato, estamos muito perto de nossa história, vemos os acontecimentos, quase sempre, de uma distância temporal não suficiente para a madura compreensão de sua ocorrência e sentido. Isto é certo: de muito perto, a vista se turva, vemos, assim, tortuosamente. A história, para ser compreendida, precisa se assentar em um passado, algo distante, ao menos o bastante para ser pensada, antes que apenas vivida. De outro lado, se o desafio de nos compreendermos, e à nossa história, é algo complexo, nem por isto deixa de ser uma necessidade e um destino. Um destino porque não seria possível viver em um tempo, sem nele interagir, reagir. Uma necessidade, porque decidimos, nos inventamos, no tempo, no nosso tempo, e não poderia ser diferente. Os acontecimentos do tempo presente nos atingem, alguns podemos dirigir, outros tantos nos chegam impositivos. De nosso tempo, certo poder dizer que seja líquido, padecente de uma fluidez, sem par na história. Tudo parece se fluidificar, em uma velocidade cada vez mais ampliada, a gerar uma demanda por substituição, por novidades, por atualizações. Tudo parece correr para um lugar em que o sentido é o sem-sentido, ou seja, não se pergunta pelo sentido do que se faz, a possibilidade e a necessidade do fazer são o próprio sentido. Nietzsche já denunciava a “moral de
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rebanho”, própria de quem adota sentidos que não pertencem a suas escolhas, própria da imitação, da inautenticidade do seguir, sem se perguntar pelas razões pelas quais segue. A fluidez de nosso tempo parece ser uma marca registrada da exigência, impensada e impensável, do seguir, do imitar, veloz e sem sentido. Não se trata de uma lamentação. Parece que estamos diante de uma constatação: nosso tempo tem nos empurrado para o abismo do non-sense. Zygmunt Bauman é um sociólogo contemporâneo, alheio a fronteiras disciplinares e que não se funda em meros dados estatísticos para construir suas interpretações, como tem ocorrido com a ampla maioria daqueles que se dedicam a pensar o tema da sociedade. Por isto, bem pode ser contado entre os representantes da chamada “sociologia humanística”. Autor prolífico, cujas obras atingem campos muito variados da construção sociológica, Bauman escapa do academicismo, pretendendo, com isto, atingir um público mais ampliado. Sociólogo comprometido, denuncia a desumanização, pelo domínio da técnica, e parece mostrar que o mundo, tal como se apresenta em nossos dias, não precisa ser como tem sido, líquido, mas poderá ser melhor. Autor de mais de duas dezenas de livros, muitos deles já vertidos para o português, Baumann tem sido chamado de “profeta da pós-modernidade”, muito embora rejeite esta designação. Alheio a formalismos exagerados, Baumann tem se dedicado a muitos temas, com especial atenção à vida cotidiana. Holocausto, globalização, sociedade de consumo, amor, comunidade, individualidade são alguns dos temas a que se dedica, sempre
pensando a condição humana implicada nestes temas, nunca desistindo de insistir na dimensão ética e humanitária, que deve permear tudo que é humano. Contra os neoliberais, procura demonstrar que há saídas. Por isto, pode afirmar, “hoje em dia, os maiores obstáculos para a justiça social não são as intenções... invasivas do Estado, mas sua crescente impotência, ajudada e apoiada todos os dias pelo credo que oficialmente adota: o de que ‘não há alternativa’”. Sua biografia confirma uma história de lutas. Engajado, como autor, defende um tipo de socialismo que, como explica, não se opõe “a nenhum modelo de sociedade, sob a condição de que essa sociedade teste permanentemente sua habilidade de corrigir as injustiças e de aliviar os sofrimentos que ela própria causou”. Enfim, se, hoje, como constatação, verifica-se uma liquidez, em tudo que toca ao humano viver, é chegada a hora de se pensar acerca de deste estado de coisas, antes que a desumanização seja suficiente para impedir uma reflexão desta ordem. O grau de aceleração dos acontecimentos, de acúmulo de tarefas, de sobrecarga de atividades, de colonização até mesmo do tempo livre, como lembrava Adorno... são sintomas de uma doença, já endêmica. Nosso tempo escorrega entre nossos dedos, porque líquido. Talvez, assim alertados, seja hora de abrir a mão e estagnar a liquidez. Sim aos alicerces, que precisam durar! Contra tudo que nos dissolve, sim á solidez de compreendermos o que somos, como somos e porque somos! Talvez Baumann, ressalvados seus enganos, poderá nos sugerir uma adequada compreensão para nosso tempo presente.
JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 9 | MARÇO A MAIO DE 2015