ENSAIOS ENTÓPICOS
URBANISMO TÁTICO EM SP
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TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO FAU USP DEZEMBRO 2016
ENSAIOS ENTÓPICOS
URBANISMO TÁTICO EM SP
Marina Diez Jorge Bassani (orient.)
Este trabalho espelha minha formação como arquiteta e urbanista, meus interesses, aprofundamentos, curiosidades, paixões, vivências e experiências na FAU e na cidade. Ao longo desse processo tive pessoas ao meu lado que são e foram fundamentais. A eles dedico este estudo e reitero meus sinceros agradecimentos: Ao Jorge, por todo apoio, incentivos, orientação, conversas e cafés. Ao Guilherme e à Carol, duas grandes referências no meu trabalho, e por enriquecerem minha formação e fazerem parte da banca. Dankeschön an Gisela Schmitt, von dir habe ich viel gelernt. Aos amigos queridos e companheiros, com quem dividi muitos dias, tardes e noites, e sem eles, nada teria sido o mesmo. Bia, Bia Ritz, Caio, Cassia, Deco, Endo, Gabi Villas, Gabriel Pietra, Gustavo, Laura Fortes, Lu Noia, Lu Strauss, Mark, Renata, Paolinha, Pri, Paco. À Paula Hori pelas conversas nas horas de maior deriva. À Pati Tsunoushi e Bruna Sato, por dividirem os estudos e interesses. À Gabi, Marina e Martha, por serem tão companheiras, presentes e amigas, e por me acompanharem nesse estudo tão de perto. Às amigas scoutas e irmãs, Benta, Carla, Carol, Cecília, Julia, Mandu, Renata Cleaver, Renata Pannunzio e Samanta, pelo apoio, conversas, insights, aprendizados e muitas risadas. Besonders an Jost, denn du bist immer da. Und ohne dich hätte ich das alles nicht geschafft. E, claro, aos meus pais, por todo apoio, carinho, confiança e coragem. E à minha avó, pela companhia e comidinhas em momentos cansativos e introspectivos.
2 0 3 1 PG 9
A P R E S E N TA ÇÃ O
PRO C E SSO S AT U AI S DE U RB ANI Z AÇÃO E O DI RE I TO À CI DADE
PG 1 4
A CIDADE CONT E M PO RÂNE A E O URB ANI SM O NEOL I B E RAL
PG 11
URBA N ISM O TÁTICO E US O T E M P ORÁRIO + RE F L E X Õ ES SOBRE EX P E R IÊ N CIA S ALTE R N AT IVA S DE U R B A NISM O
4 PG 32
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E NSAI O : I NT E RV E NÇ ÃO NO E L E VADO
PG 5 5 O L H ARE S 5 8 T E RRI T Ó RI O S 7 0 DI AG RAM AS 7 4 I NT E RV E NÇ Õ E S 7 9
PG 1 0 0
7 5
O E SPA Ç O PÚ BLICO PR O DU Z I D O PELO U R B A N IS MO N EO LIBERAL + PO R U M ESPAÇO PÚ BL IC O D EM O CR ÁT ICO
PG 21
C O NSI DE RAÇÕ E S F I NAI S
PRO PO STA DE U RB ANI SM O T ÁT I C O PARA SÃO PAU L O
PG 4 9
0. A P R ES EN TA Ç Ã O
Em diálogo com as heterotopias de Foucault, as entopias, citadas no título deste trabalho, também sugerem lugares que estabeleçam um conjunto de relações. Neste caso, as relações são de superposição, adição e continuidade – tal qual o prefixo latino “en” expressa. A proposta de se pensar lugares sobre um lugar já existente se fundamenta a partir das discussões atuais de urbanismo tático, apresentadas e refletidas nesse trabalho. Pensar e propor intervenções desse caráter para uma cidade como São Paulo foi uma das principais investigações, conjuntamente com questões como humanização e democratização da cidade e do espaço público, e a morfologia que as cidades contemporâneas estão assumindo. É importante destacar que meu envolvimento com as práticas de urbanismo tático se deram durante um intercâmbio de universidades na Alemanha, em 2015 e 2016, onde pesquisei, projetei e me envolvi com práticas táticas. Lá, defini e trabalhei o tema para meu TFG: um escritório público de agenciamento de usos temporários com foco em projetos sociais. A realidade de São Paulo, porém, me fez questionar meu projeto inicial e perceber que pensar urbanismo tático para uma megacidade, de um país em desenvolvimento, e com todas as problemáticas de infraestrutura, exclusões e periferização, precisaria de uma visão mais crítica e aproximada do problema. E assim, este trabalho tomou forma: começou por pensar na cidade, na sua história, na formação de sua morfologia, nas práticas de urbanismo, e na compreensão do que é o espaço público e de como ele deve ser pensado; combinando, então, com as propostas táticas, pontuais e temporárias, aqui compreendidos como uma forma de urbanismo, mais participativo e voltado às pessoas, que observa os usos e desejos, e questiona como queremos viver no futuro em nossas cidades. O trabalho se define, enfim, como um ensaio, pois não conclui nenhum tipo de “receita” para se empregar e reproduzir intervenções táticas na cidade de São Paulo. Aqui os pontos citados anteriormente são discutidos e culminam em intervenções que se apropriam de uma situação, estuda empiricamente, e que por fim legitimem a cidade mais preocupada com seus habitantes, mais humanizada e democrática e viva.
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1. A C I D A D E CONTE MPORÂNE A E O U R B A N IS MO NE OL IB E R AL Cidades são organismos em constante mudança e movimentação. Atualmente, a tendência é que cresçam e sejam mais densas. Em 2014 a população mundial residente em áreas urbanas já chegou a 54% e está mais concentrada nas áreas menos desenvolvidas do planeta. Quanto mais rápido as cidades crescem, mais chances de carecerem de planejamento e infraestrutura, já que ambos dependem de longos e complicados processos, e muitas vezes muito mais lentos, incapazes de acompanhar o crescimento e aumento da densidade populacional. A consequência desse desbalanceamento para o urbanismo são exclusões, periferização, pessoas morando em locais de risco ou proteção ambiental, falta de abastecimento e saneamento, longas distâncias nas cidades e privilégio do automóvel, entre outros. Mesmo assim ainda se veem áreas ociosas, terrenos baldios e edificações abandonadas dentro do tecido urbano desenvolvido. As razões para tal são diversas (seja especulação imobiliária, desindustrialização, crise econômica, áreas remanescentes de grandes projetos rodoviaristas, entre outros). No entanto as consequências são as mesmas: áreas que permanecem desativadas por um longo e muitas vezes indeterminado período de tempo, a malha urbana que tende a se espraiar e alongar as distâncias dos percursos dentro da cidade, e o surgimento de não-lugares – isso é, áreas que são economicamente e socialmente congeladas, são como a negação do que se entende por “lugar”, são vazias, são improdutivas e promovem sensações de desconforto e insegurança. Ao mesmo tempo o desenvolvimento urbano é um processo longo, complexo, que envolve muitos atores, capital, investimentos, interesses e tempo. Uma área ociosa ainda é muito protegida, sob o interesse privado e a lógica do mercado imobiliário. A 11
lógica da urbanização apenas protege o interesse de poucos e mantém o privilégio da terra, além de contar com duradouros processos que se prolongam por gerações. Controversamente a carência de espaço e preços acessíveis nas cidades é unânime em qualquer urbanização desenvolvida. Dado o contexto, evidencia-se que a forma padrão e linear do desenvolvimento urbano atual não se mostra tão eficaz e democrática. É possível que os próprios cidadãos e usuários possam ter participação mais direta no futuro da cidade? É possível que o planejamento urbano possa ser empregado de forma mais democrática e estratégica? É possível reativar áreas na cidade por meio da reapropriação dos espaços em desuso? Este trabalho se propõe, portanto, a pensar os processos atuais de urbanização e investigar alternativas para a cidade em crescimento, excludente e de privilégios. Aqui os espaços ociosos, espaços residuais e não-lugares são os objetos de estudo, e o objetivo é repensá-los e reativálos e como reinserí-los na dinâmica da cidade com êxito.
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2. PR OCE SSOS AT UA I S DE UR BA NIZ AÇ ÃO E O D IRE ITO À C I DA DE Segundo David Harvey, uma análise mais crítica e cuidadosa sobre a história da urbanização explica a força que o mercado imobiliário exerce na forma de nossas cidades e a consequência dessa em nosso estilo de vida. O autor prova como o fazer das cidades é estratégico, rentável e estabilizador da economia - vide a Paris de Haussmann, Nova York de Moses, projetos atuais de urbanização em cidades chinesas, ou booms imobiliários na Grã-Bretanha, Espanha e diversos outros países. A urbanização vem desempenhando um papel
fundamental no reinvestimento dos lucros a uma escala geográfica 1 , e a consequência deste ganancioso modelo de pensar as cidades transparece na forma que essas estão tomando: áreas urbanas divididas e propensas a conflitos.
Nossas cidades, cada vez mais consistem de fragmentos fortificados, condomínios fechados e espaços públicos privatizados, mantidos sob vigilância constante. (HARVEY, 2008. p. 8)
Projetos de megaurbanização espantosos, quando não criminalmente absurdos, [...] com o máximo possível de ostentação, injustiça social e desperdício ambiental. (HARVEY, 2008. p. 7)
O liberalismo econômico vem tomando as rédeas dos processos de urbanização, transformando a qualidade de vida urbana em uma questão de mercadoria. Trata-se de uma aura de liberdade de escolhas, definidas, porém, pelo poder de compra.
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HARVEY, 2008. p. 10
Proliferam os shopping centers, cinemas multiplex e lojas padronizadas, as lanchonetes e lojas artesanais. Temos agora, nas palavras da socióloga Sharon Zukin, a pacificação pelo cappuccino. (HARVEY, 2008. p. 7)
A questão é que a viabilidade desses processos está atrelada a ações desumanas, higienizadoras e excludentes, e frequentes em qualquer grande cidade do mundo. Essas ações são, além do mais, como ciclos viciosos. O mercado imobiliário adquire terras, onde moram as populações de baixa renda, através de processos, muitas vezes violentos, brutais e/ou legalistas. Harvey retoma o autor Friedrich Engels e explica que, por mais diferente que sejam as razões usadas para justificar as remoções, o resultado é sempre o mesmo: as vielas e becos desaparecem, mas a necessidade econômica fará com que eles reapareçam em outro lugar. Então, por mais que se defenda que tais processos estão preocupados em resolver problemas na cidade, na realidade são “soluções” que simplesmente reproduzem, continuamente, o mesmo problema. Além do mais a população que sofre com a insegurança de renda é a mais suscetível pela persuasão de trocarem suas moradias por baixas quantias de dinheiro. E mesmo com a construção de um simples empreendimento medíocre, sem qualquer qualidade, a valorização do terreno já garantirá grandes lucros à incorporadora. Paralelamente, a população original sofrerá, muito provavelmente, um processo de exclusão, pois não terá qualquer possibilidade de habitar esse novo empreendimento. A população é, consequentemente, empurrada lá para onde o mercado imobiliário ainda não se interessou: (na maioria dos casos) as periferias. E a periferização é responsável pelo agravamento das distâncias e do aumento dos custos com transporte para se ir trabalhar e ter acesso à infraestrutura da cidade, sem contar o aumento de horas diárias submetidas ao transitar e a continuidade do morar em locais com baixa
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ou nenhuma infraestrutura ou abastecimento. O ciclo vicioso se completa bastando que essa região na periferia caia no interesse do mercado e os processos injustos e excludentes sejam retomados, dessa vez numa região mais afastada do centro. E, nessa lógica da urbanização, em especial nos países em desenvolvimento, a cidade se parte em fragmentos com a aparente formação de microestados, segundo o urbanista Marcello Balbo. Isto é, bairros ricos, com todo tipo de serviços e vigiados 24 horas por dia, convivendo contraditoriamente com favelas sem saneamento, energia elétrica pirateada, vielas sem pavimentação e moradias compartilhadas. E cada um desses fragmentos parecendo viver e funcionar de forma autônoma. Para agravar a situação do isolamento e evitar o convívio, apela-se aos muros, ruas-corredores, preferência pelo uso de transportes individuais. Consequentemente a cidade vê um esvaziamento e a ausência de vida nos seus espaços públicos, que só agravam a sensação de insegurança e de não pertencimento e falta de identidade e sociabilidade. Nessas condições, os ideais de identidade urbana, cidadania e pertencimento se tornam muito mais difíceis de sustentar. (HARVEY, 2008. p. 8)
Em o Direito à Cidade 2 , Henri Lefebvre critica a sociedade burocrática – de consumo e planificada – dominada
por uma racionalização automatizada que torna a vida quotidiana trivial, desprovida de sentido e autenticidade, mutiladora da personalidade. E a pretensão de pensar o espaço urbano meramente como questões administrativas, técnicas e científicas, pois acarretam a alienação dos habitantes, uma vez que são apenas objetos e não sujeitos do espaço social. Lefebvre, então, defende o direito à cidade como o direito de criação e plena fruição do espaço social e a garantia de que a cidade e o habitar sejam produzidos de uma forma coletiva, em que cada indivíduo e comunidade tenham espaço para manifestarem suas diferenças. Cabe ao coletivo protagonizar o processo de transformação do 16
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LEFEBRVE, 1969
espaço urbano, e se posicionarem contrários ao status quo da segregação e uniformização do cotidiano e à sociedade da indiferença e do conformismo. Harvey questiona se esse espantoso ritmo e se a escala da urbanização dos últimos 100 anos contribuíram para o bem-estar do homem e reconhece que a mudança no processo de pensar as cidades como uma solução econômica e estratégica influenciou o modo de vida que desempenhamos nelas. É por isso que defende a importância da coletividade nos processos urbanos. Como em todas fases anteriores, a expansão mais recente do processo de urbanização trouxe consigo mudanças incríveis no estilo de vida. (HARVEY, 2008. p. 7)
Saber que tipo de cidade queremos é uma questão que não pode ser dissociada de saber que tipo de vínculos sociais, relacionamentos com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores estéticos nós desejamos. O direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós mesmos mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo, e não individual, já que a transformação depende do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização. A liberdade de fazer e refazer as nossas cidades, e a nós mesmos, é ao meu ver, um dos direitos humanos mais preciosos e ao mesmo tempo mais negligenciados. (HARVEY, 2008. p. 2)
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HARVEY, David. O
enigma do capital: e as crises do capitalismo. Trad. João Alexandre Peschanski. São Paulo: Boitempo, 2011
No entanto, os processos de urbanização - vorazes - dos empreendimentos lucrativos, da utopia de uma vida melhor, mais segura e luxuosa, dos privilégios do espaço e da exclusão, e da colonização dos espaços para os mais ricos, vendidos pelo mercado, acarretam processos de destruição criativa 3 , que afastam a grande maioria 17
do direito à cidade. Os projetos governamentais para as cidades, hoje, favorecem as grandes empresas e apenas as classes sociais mais altas. Discutir aqui o direito à cidade é, então, levantar a questão de quem comanda a relação entre a urbanização e o sistema econômico. Enquanto que, questionar os processos de urbanização atuais e defender democratização do espaço urbano, é defender o direito à cidade Na ótica de Lefebvre a cidade é a representação física da sociedade, fruto das relações econômicas, políticas e sociais. A forma espacial não é a única responsável pelos problemas da sociedade, mas principalmente os aspectos não físicos como as dinâmicas, ritmo, quotidiano, sociabilidade e, logicamente, a liberdade da participação em processos decisórios e a expressão verbal. Juntos, esses âmbitos da vida na cidade compõem o direito à cidade. A transformação da cidade, defendida por Lefebvre, é protagonizada pelo coletivo. Essa mudança é, para o autor, uma mudança social e política que envolve usos e ritmos urbanos, acessos à cidade e plena fruição dos direitos. Aqui, o espaço público é colocado como palco que acomode a multiplicidade de atividades do cotidiano, o trabalho, o descanso, a cultura, conhecimento, lazer, ócio, troca, comércios, etc. O autor defende: Apropriação do espaço pelos cidadãos, sua transformação para satisfazer e expandir necessidades e possibilidades da coletividade. Apropriação não tem a ver com propriedade, mas com o uso, e precisa acontecer coletivamente como condição de possibilidade à apropriação individual. (ELIAS; MEDEIROS FILHO, 2010. p. 12)
Contestar o espaço e vivenciar experiências alternativas, espontâneas e autênticas. Segundo Lefebvre, assim se deu o uso das cidades em épocas onde ocorreu a produção do povo pelo povo. 18
Por meio dessas formas de contracultura, do primado da imaginação sobre a razão, da arte sobre a ciência, da criação sobre a repetição [...] romper com a sociedade da indiferença e caminhar para um modo diferencial de produção do espaço urbano, marcado pelo florescimento e interação igualitária e de diversos ritmos de vida, expressão das diferentes formas de apropriação do espaço. (ELIAS; MEDEIROS FILHO, 2010. p. 13)
Para ele, a luta e a pluralidade das vidas das pessoas podem dissolver a complexidade social. Mas é de se destacar que essa luta não é necessariamente aquela só das mangas arregaçadas e de confrontos, mas também através da arte e atividades lúdicas comunitárias, quiçá festas e jogos no espaço público.
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3. O E S PA ÇO P ÚBLI C O P RODUZI DO P ELO URB A N IS MO NEOLI BERAL + PO R U M ES PAÇ O P ÚBLI C O DEMOC RÁTI C O
Harvey enfatiza que a lógica do capitalismo financeiro neoliberal influenciou a produção das cidades e inevitavelmente interviu inclusive na parte do espaço urbano que lhe não é cabida: o espaço público. A produção das cidades em função do lucro e à serviço da esfera privada acabou confundindo o real significado e função social que tais espaços destinados à coletividade desempenham para as cidades e para os próprios habitantes. Em seu texto, Junkspace, Rem Koolhaas critica a produção inescrupulosa dos espaços coletivos segundo o urbanismo contemporâneo e a espetacularização dessas áreas.
Segundo Koolhaas, 1
Junkspace (espaçolixo) é o resíduo da modernização. É aquilo que sobra depois que a modernização tiver seguido seu curso, ou melhor, o que se coagula enquanto a modernização está em curso: a sequela.
Conforme aumenta rapidamente em escala [o Junkspace 1] – rivaliza e até supera a do Público –, sua economia se torna mais inescrutável. Seu financiamento é um nevoeiro deliberado, ocultando negócios pouco transparentes, dúbias isenções de impostos, incentivos “surpreendentes”, frágeis títulos de propriedade, direitos aéreos transferidos, imóveis em sociedade, distritos com zoneamento especial, cumplicidades entre o público e o privado. (KOOLHAAS, 2002. p. 205)
[...] destinado ao interior, o junkspace pode engolir facilmente uma cidade inteira em forma de Espaço Público®. [...] o próprio exterior é convertido: elimina-se o perigo, calça-se a rua com mais luxo, 21
acalma-se o trânsito. [...] Ele converte o existente – qualquer coisa comprometida – em vantagem própria, um novo pitoresco, e até um novo gótico, gerado por colisões entre objetos imutáveis e energias arquitetônicas rudimentares, híbridos do esquecer e do lembrar. (KOOLHAAS, 2002. p. 208)
As cidades burocratizadas tendem a ter aversão aos espaços públicos e buscam moldá-los de forma a serem de mais fácil controle. Pequenas atitudes, grandes influências no espaço urbano: acessos dificultados, muros, gradis, ruas-corredores, não há qualquer preocupação para com o espaço do pedestre, controles e vigilância, bancos desconfortáveis (quando presentes) destinados a evitar a longa permanência, falta de iluminação ou iluminações excessiva, entre outros. Por trás da estratégia do cerceamento do espaço público está o desejo da manutenção da ordem e da segurança, em que ocultam-se os conflitos, as diferentes realidades e as diferentes manifestações de desejos. A qualidade desses locais se submete aos interesses do capital privado e da propriedade privada e o espaço público, então, é tido quase que como um problema, onde se buscam estratégias para controle de quem o frequenta e evitar longas permanências. Além do mais, a produção desses espaços, vinculados ao interesse privado, se dá muito em função do consumo e entretenimento e, e dessa forma, intensifica-se a segregação social. Afinal acaba sendo o privado que oferece qualquer qualidade e mobiliário para o espaço público – e o sentar naquela mesinha de assento estofado e decorada com flores, custa no mínimo um hiperinflacionado cafezinho. Há também o espaço público residual, como as alças de malhas viárias, os remanescentes do traçado de quarteirões, ou qualquer espaço que permeie a propriedade privada. Esses espaços residuais foram, sobretudo, muito praticados e desenhados no urbanismo moderno e rodoviarista, e muitas das cidades brasileiras são recheadas com esses “jardins urbanos”. No entanto esses espaços, normalmente, em bordas, cantos, ou 22
centros de avenidas, são lugares que não se inserem na lógica da cidade, principalmente do urbanismo neoliberal. Se não são espaços úteis, onde a população pode circular, esperar por um ônibus, ou atribuir qualquer atividade rentável, essa área está fadada ao descaso. Do descaso, passa a abrigar aqueles que já estavam segregados da cidade em todos os sentidos, como os moradores de rua, dependentes químicos, imigrantes recém-chegados... Em resposta aos indesejados habitantes dos ignorados espaços residuais urbanos, a cidade funcional, burocrática e pragmática propõe brilhantes soluções dedetizadoras, como a implementação de jardins de pedras pontiagudas e luzes fortes de frequencias intensas. Mais uma vez o problema dos espaços públicos e dos frequentadores indesejados é “solucionado” de uma forma insustentável, desumana, higienista e que apenas desloca o “problema” para alguma outra área residual da cidade, até que essa passe por tal “revitalização”, e assim se completa mais um ciclo vicioso do modo com que as cidades são esculpidas.
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http://michaelis.uol.
com.br/busca?r=0&f=0 &t=0&palavra=revitaliz ar. Acesso em 4/10/16 às 12:47
Tratando-se de “revitalização”, entra em pauta uma questão muito intrigante: re-vitalizar, segundo o dicionário Michaelis 2 , significa “insuflar nova vida ou energia em; tornar a vitalizar”. O que implica que, se antes já havia vida no local a ser revitalizado, essa, ali ora existente, é completamente ignorada e desconsiderada. É nesse contexto que se deve ser muito cauteloso, e questionar qualquer projeto que use como rótulo ou slogan a revitalização de alguma área. Pois, a priori, o projeto já anuncia intenção de exclusão e higienização do local de intervenção.
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P O R U M E S PA ÇO PÚB LICO DE MOC RÁTI C O Quanto mais exclusivo e classicista for o espaço público, mais segregado ele será, e com ele serão gerados mais hiatos. Lugares cerceados e exclusivistas implicam em menos pessoas usando-os, gerando um esvaziamento. Vazios trazem, nas palavras de Jane Jacobs, a sensação de insegurança e o desconvite ao uso do local; afinal, não há olhos na rua nem um mútuo controle do espaço – princípios tão estudados e defendidos pela autora. Essa ausência de vitalidade em espaços da cidade reiteram o apelo à segurança, e instauram a paranoia pela seguridade, o que é muito comum nas grandes cidades de países em desenvolvimento. Vê-se por todos os lados companhias de segurança privada – garantindo, aliás, uma ordem definida por poucos, portanto nada democrática. Pipocam os condomínios murados, com características de mini-feudos; os shopping centers, que fomentam a lógica afoita do consumismo e reiteram a desertificação das ruas; as autopistas urbanas, ratificando a mobilidade individual e velocidades insustentáveis dentro das cidades; a privatização de ruas, praças e parques; as ilhas de prosperidade empresarial, estéreis e cenográficas; violentos territórios urbanos, e muitos outros cânceres da coletividade e cidadania, tão naturais da vida em sociedade. Essas cidades difusas não estariam, então, caminhando para a negação do espaço público? Esses espaços de vivência e coletividade serão, algum dia, erradicados de vez? Eis o grande paradoxo: tantas cidades no mundo evitam e negligenciam a vida urbana e a sua diversidade. Em vez de Vida Pública, Espaço Público®: o que era outrora imprevisível foi eliminado. (KOOLHAAS, 2002. p. 207)
É nesse contexto que se faz tão importante repensar a produção atual do espaço público. As cidades contemporâneas precisam reconhecer o espaço coletivo como parte vital da vida em sociedade, admitir seus 24
inevitáveis conflitos e multiplicidade, ao mesmo tempo em que incentivar o uso da rua e restituir a importância desse espaço para a vitalidade da cidade e para a qualidade de vida de seus cidadãos. São inúmeras as abordagens que defendem um espaço público democratizado e convidativo. Nessa reflexão serão levadas em conta aquelas diretrizes de uma cidade desenhada para sua população e para o pedestre, que incentive a convivência e as coexistências, que zele pelos habitantes trazendo, por exemplo, olhos para a rua, e que aponte para uma vida mais sustentável. Em Morte e Vida de Grandes Cidades, Jane Jacobs defende a importância das ruas e calçadas, equiparando-as como órgãos vitais da cidade, pois é nesse ambiente que as principais atividades da vida urbana perpassam e se protagonizam, onde os próprios habitantes são os principais envolvidos, protagonizando o papel principal. Quando as ruas oferecem, mais do que só um meio para a circulação, uma escala simpática e convidativa ao ser humano, este pode (e muitas vezes faz questão) de participar dela. O andar a pé não só é saudável e libera inúmeros hormônios relacionados com o prazer e o bem-estar, como propicia a socialização e desenvolve círculos de confiança. Esses dão à rua maior sensação de segurança e vitalidade. Se as ruas de uma cidade parecerem interessantes, a cidade parecerá interessante; [...] se as ruas da cidade estão livres de violência e do medo, a cidade está portanto, razoavelmente livre da violência e do medo. Quando as pessoas dizem que uma cidade, ou parte dela, é perigosa ou selvagem, o que querem dizer basicamente é que não se sentem seguras nas calçadas. (JACOBS, 2011. p. 29)
[...] olhos atentos à rua, um pressuposto inconsciente do apoio geral da rua quando 25
a situação é adversa [...]. A confiança na rua forma-se com o tempo a partir de inúmeros pequenos contatos públicos nas calçadas. (JACOBS, 2011. p. 60)
Contrariamente ao pensamento de Jacobs, quando a cidade supera a escala do ser humano, ela tende a se esvaziar e apresentar um ambiente estéril. Um exemplo são as ruas de largura incomensurável, como as vias expressas urbanas – aquelas em que a situação de cruzá-las, se não for uma aventura, é quase que uma peregrinação; onde a velocidade, ruído e poluição dos automóveis afastam qualquer possível atividade nas suas calçadas e entorno, seja consciente ou inconscientemente. As grandes medidas desencorajam que qualquer pedestre escolha passar por essas vias ou nelas permanecer. Não só as avenidas expressas, mas as zonas de fronteiras e limites também são responsáveis pela criação de regiões de pouco bem-estar nas cidades, essas correspondem aos usos únicos de grandes proporções ou barreiras físicas ou visuais – ou seja, muros, parte da infraestrutura (como trilhos férreos), distritos industriais, pátios extensos de estacionamento e até formações naturais como morros e rios (quando mal inseridos na cidade, como os infelizes rios Tietê e Pinheiros, em São Paulo). Usos únicos de grandes proporções nas cidades têm entre si uma característica comum. Eles formam fronteiras, e zonas de fronteira, nas cidades, geralmente criam bairros decadentes. Uma fronteira – o perímetro de um uso territorial e único de grandes proporções ou expandido – forma o limite de uma área “comum” da cidade. As fronteiras são quase sempre vistas como passivas, ou pura e simplesmente como limites. No entanto, as fronteiras exercem uma influência ativa. (JACOBS, 2011. p. 285)
O problema básico das fronteiras [...] é que elas costumam formar becos sem 26
saída para a maioria das pessoas que utilizam as ruas. Para a maioria das pessoas, elas representam, na maioria das vezes, barreiras. [...] Se tal rua, que é o fim da linha para as pessoas vindas da área “comum” da cidade, for pouco usada ou não tiver utilidade alguma para as pessoas que estão nessa zona de fronteira de uso único, ela estará fadada a ser um lugar morto, com poucos frequentadores. [...] As fronteiras tendem, assim, a formar hiatos de uso em suas redondezas. (JACOBS, 2011. p. 287)
Também a lógica do transporte individual motorizado naturalmente contribui para o surgimento dessas fronteiras, dispersão do território urbanizado e aumento das distâncias. A cada dia os automóveis são mais aprimorados, atingindo maiores velocidades e oferecendo maior segurança. Seus preços são mais acessíveis e o desejo, no inconsciente ou consciente coletivo, de possuir o carro próprio é generalizado. Por outro lado, a influência dos veículos motorizados nas cidades contemporâneas só incorpora a lógica da urbanização neoliberal, egoísta e de privilégios. O meio de transporte individual afasta as pessoas da vida nos espaços públicos; afinal, o deslocar-se em um veículo individual poupa o contato com o externo, e inclusive, com as intempéries – fecham-se as janelas, liga-se a climatização, entra-se e sai-se do automóvel nas garagens, e assim não há necessidade alguma de sequer passar calor, frio, tomar chuva... muito menos encarar os olhos do morador de rua. É neste contexto que o urbanista Jan Gehl defende que é imprescindível que as cidades tenham a escala do ser humano. Em seu livro Cidades para Pessoas, Gehl apresenta alguns instrumentos e artifícios que configuram os espaços públicos em prol de torná-los cabíveis e atraentes à população. Quatro pontos são então defendidos como princípios para garantir o espaço público: vitalidade, segurança, sustentabilidade e higidez. Reiterando Jane Jacobs, Gehl enxerga a vida nas ruas 27
como o motor propulsor na cidade. Pessoas atraem mais pessoas. Onde há movimento e pessoas frequentando um local, mais pessoas vão procurar esse lugar vivo e atraente. Aí é interessante também o ver e ser visto. Há um ditado na Escandinávia: “as pessoas vão onde outras pessoas estão”. As pessoas se sentem atraídas por movimentações e por lugares frequentados por outras pessoas. Por exemplo, quando uma criança vê pela janela que outras crianças estão brincando lá fora, seu desejo é de sair imediatamente de dentro de casa e se juntar a elas. 3
3
tradução livre
(GEHL, 2015. p. 83)
Nessa mesma lógica, quanto mais frequentado um local, maior a sensação de segurança, e mais as pessoas vão escolher esse lugar, pois se sentirão bem. Nessa questão também entra em pauta a sensação de perigo pelas movimentações nas ruas, causada por veículos, bicicletas, máquinas, etc. Casas são protegidas com arame farpado e gradis pontiagudos, serviços de segurança patrulham bairros, guaritas de segurança são posicionadas ao lado de bancos e lojas, à frente de diversas casas são colocadas placas informando a presença de defesa armada, e mais e mais veem-se moradias muradas e protegidas por guardas. [...] É importante lembrar que medidas simplistas e individuas contra a criminalidade não contribuem para uma mudança, uma vez que a sensação de insegurança é generalizada e enraizada. [...] Quando pararmos de defender nossa esfera privada e, no lugar, admitir que a sensação de segurança advém do uso do espaço público de forma coletiva, descobriremos a relação direta entre uma cidade viva e habitada e a segurança e proteção. 4 (GEHL, 2015. p. 118)
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idem
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idem
Quanto mais automóveis preencherem nossas cidades, mais os veículos motorizados serão privilegiados e protegidos pela política local. Isso transparece no crescente espaço destinado a calhas viárias e vagas de estacionamento, enquanto as condições para pedestres e bicicletas pioram e são prejudicadas. [...] Essas medidas apenas contribuem ainda mais para fazer o andar a pé e a circulação pela cidade menos atrativos. 5 (GEHL, 2015. p. 110)
As cidades contemporâneas têm grande responsabilidade para com a sustentabilidade. Isso porque são desgovernadas emissoras de poluentes de solo, água e CO2 , e são também afoitas consumidoras de recursos naturais e energia. Principalmente as cidades de países em desenvolvimento e subdesenvolvidos exaurem os recursos naturais sem oferecer nada em troca. Esse modus operandi influencia invariavelmente na qualidade da vida na cidade: seu meio ambiente e consequentemente os espaços públicos e a saúde física e mental dos habitantes. Nesse contexto a cidade rodoviarista, orientada para o transporte individual, mais uma vez se prova questionável:
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idem
Um automóvel consome 60 vezes mais energia que uma bicicleta e 20 vezes mais do que um pedestre. 6 (GEHL, 2015. p. 124)
Além disso a mobilidade ativa, pedestres e bicicletas, demandam menos espaço e contribuem para uma cidade mais viva e, portanto, mais segura. A movimentação dos nossos corpos como premissa para o transporte individual também se mostra cada vez mais defendida, por razões de saúde. O estilo de vida do século 21 é cada vez mais sedentário: a prioridade do transporte motorizado individual, as escadas rolantes e elevadores, automatização e máquinas, e até controles remotos fazem com que o ser humano se movimente cada vez menos no dia-a-dia. Combinando a falta de movimentação com as 29
dietas abundantes em açúcar e gordura em quantidades excessivas, implica em uma população com grande tendência a problemas de saúde. Diferentes pesquisas provam que investir em uma cidade mais atraente ao pedestre, à mobilidade ativa e transportes coletivos, além de aprimorar a qualidade do espaço público, permite economizar no setor da saúde pública. O incentivo e viabilização do uso de bicicletas e do andar a pé deveria ser parte elementar de programas de saúde pública. Isso aprimoraria a qualidade de vida das pessoas e diminuiria o custo em serviços de saúde. 7 (GEHL, 2015. p. 137)
Os artifícios de Gehl, as teorias e observações de Jacobs, as análises e as argumentações de Harvey e Lefebvre levam a concluir quanto à indispensabilidade de ressignificação dos espaços públicos que as cidades contemporâneas submetidas ao planejamento controlado pelo mercado imobiliário e financeiro e interesses privados detêm. Por razões de qualidade de vida, sociais e socializantes, práticas e funcionais e políticas, a democratização da cidade deve ser defendida e garantida. A prática da arquitetura e do urbanismo é, nesse contexto, instrumento e testemunha. Podemos, a partir dela, afrontar a cidade e sua sociedade, acomodadas e cegas, rendidas à inércia, opacidade e letargia do cotidiano dos microestados, da exclusão e dos privilégios? Se a importância da aproximação do ser humano com o espaço público é, aqui, unânime, a procura pela forma é, então, a questão.
30
7
idem
4. U RB A N I S MO T Á T ICO E US O T E MP ORÁRI O + RE FL E X Õ E S S OB RE E XPERIÊN CIA S ALT E R N AT I VA S DE URB A N IS MO
A teoria urbanística do século XX se mostra, cada vez mais, obsoleta, e foi superada pela complexidade da realidade. Josep Maria Montaner e Zaida Muxí reiteram a discussão, aqui já suscitada, afirmando que a prática urbanística tecnocrata está desacreditada, que sua dimensão pública ficou marcada pelo predomínio da especulação imobiliária, e que o objetivo do bem comum foi contaminado pelas exigências do mercantilismo. A cidade é, então, pensada a partir de objetos autônomos e isolados. Segundo Jorge Bassani, somos muito influenciados pelo progresso físico e por isso esquecemos/ ignoramos o desenvolvimento humano. Ademais, o processo de construção das cidades passa por outro dilema que se refere ao tempo. Grandes obras, operações urbanas e construções faraônicas implicam longos processos que demandam, logicamente, tempo (além de muitas outras demandas). Nesse contexto, o urbanismo formal e o planejamento urbano usual contrapõem-se à organicidade da vida e com o real uso da cidade, em prol do funcionalismo. Não obstante, a obsolescência das práticas urbanas esbarra também no fato de que os modos de vida e a característica da sociedade mudaram e continuam a mudar. São inúmeros os fatores que influenciam. Dentre eles a tecnologia, a comunicação e virtualização, estão contribuindo para novos estilos de vida e maior diversidade. Mudanças na sociedade interferem inevitavelmente nas formas e produção do espaço e, na nossa cidade, consequentemente geram novas formas de uso do espaço público.
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1
tradução livre
O pós-fordismo é marcado por uma flexibilização e dinamização da sociedade. O que transparece também na utilização do espaço. [...] Aqui pertencem, por exemplo, as dinamizações dos serviços e implicações no seu espaço-tempo. Isto é, empregados estão correntemente em trânsito ou trabalham em casa, não necessitam de um espaço físico em suas empresas, se não por desk-sharing e lean office, ou seja, uma ampliação dos ambientes de trabalho. No lugar do proprietário permanente, cada vez mais tomam lugar a versatilidade e a transitoriedade, a exemplo os sistemas de car-sharing, que são cada vez mais aceitos e populares. O desenvolvimento é, então, influenciado e potencializado pela comunicação móvel, informações geoespaciais, mídias locais e redes sociais. Os potenciais desse “urbanismo amplificado” estimulam e geram novas práticas urbanas, a exemplo dos flash mobs (encontros espontâneos), ou também os jogos virtuais no espaço urbano real. Para as inovações da sociedade pós-fordista, baseada no conhecimento, a arquitetura exerce um papel enfraquecido, pois muitas das novas práticas urbanas se emanciparam de construções sólidas. 1 (OSWALT; OVERMEYER; MISSELWITZ; 2013. p. 10)
33
Nessa conjuntura observam-se, por todo o mundo, práticas de arquitetura e urbanismo que surgem quase que como uma resposta, afronta ou até repúdio à lógica da cidade neoliberal. Essas ações convergem principalmente por se basearem na organização de baixo para cima (bottom-up), auto-organizações, promoção e consolidação de espaços democratizados, experimentações de usos e reativação de áreas fadadas ao abandono, com programas participativos e ambientalistas. O urbanismo tático e o uso temporário são duas dessas práticas que serão, aqui, abordadas e discutidas, por serem entendidas como alternativas em potencial do pensar a cidade.
URBANISMO TÁTICO
Segundo o Tactical Urbanism Guide 2 , o termo designa intervenções de caráter temporário, de baixo orçamento, e aplicação local, que tenham como objetivo aprimorar um espaço urbano. Intervenções de pequena escala, porém com grande escopo. Como a própria palavra “tático“ anuncia, tratam-se de atuações na cidade, hábeis de planejamento e de manejos, a fim de atingir um objetivo. Cinco características definem o urbanismo tático: 1. abordagem em fases, a fim de instigar a mudança 2. planejamento baseado no local de intervenção 3. comprometimento de curto prazo e expectativas realísticas 4. baixo risco e, se possível, grande recompensa 5. incentivo ao desenvolvimento de capital social entre os habitantes e organização – envolvimento dos habitantes na concepção do projeto e sua implementação (quando possível) Seus principais efeitos são impulsionar a economia local, melhorar a qualidade físico-espacial para os pedestres e criar situações que promovam a sociabilidade. As intervenções têm escala local, isto é, são designadas para 34
2
PFEIFER, 2014. p.4
um quarteirão, uma rua ou uma edificação. Assumem seu caráter temporário, pois muitas vezes são apenas um experimento; são geralmente concebidas a partir de materiais simples, baratos, reciclados e até recursos existentes, quando possível. É muito comum que tais intervenções sejam de iniciativa privada. Geralmente, a partir de moradores locais ou pessoas que utilizam com certa frequência um certo lugar e criam um laço que propulsiona a intenção de mudança no local. Por esse motivo, também é frequente que a implementação destes projetos seja feita de forma coletiva, prática que tem se mostrado muito positiva pois, uma vez que um considerável número de pessoas se engajam na concepção/construção de uma ideia, essas pessoas envolvidas se sentem muito mais vinculadas com o projeto e o local, e elas vão ajudar na manutenção e propor atividades e eventos que tendem a atrair outras pessoas, e assim por diante. O local, então, não só tem sua atmosfera aprimorada, como ganha vida. As pessoas, por sua vez “reformam” um espaço público de acordo com suas vontades e necessidades, e instigam novas atividades no local, contribuindo, também, para uma maior sociabilidade. O urbanismo tático, portanto, apresenta grande potencial para aplicar diversos conceitos de melhora do espaço público, de forma rápida, com baixo custo e democratizada. Pelo fato dessa prática se mostrar, cada vez mais, eficaz e difundida, sua aplicação tem saído da esfera da iniciativa pessoal/privada e integrado o planejamento urbano, inclusive nos escritórios públicos. É o caso da Times Square em Nova Iorque. A praça, que antes só apresentava praça no nome, impediu o fluxo de carros, implementou alguns mobiliários, cores e plantas. Fez do cruzamento mais famoso da cidade americana um local muito mais humanizado, com qualidade de permanência, contemplação e encontros. O mesmo aconteceu na cidade de São Paulo e em muitas outras cidades do mundo com a experiência dos Parklets. Uma simples estrutura, que pode apresentar infinitas opções de espaço, se ocupa de uma 35
única vaga de estacionamento no leito carroçável da rua, e no lugar de um automóvel ocupando o espaço, é criado um prolongamento da calçada e, muitas vezes, um espaço de permanência. Abaixo, as duas imagens comparativas da Times Square, em Nova York exemplificam a discussão:
imagem: Julio Palleiro/NYC DOT
Se, para o urbanismo neoliberal, a cidade é, normalmente, vista em filetes - pois as intervenções são feitas apenas em partes específicas da cidade, muitas vezes não conversando com outros projetos em paralelo, nas redondezas, ou dialogando com a população local - o urbanismo tático, por outro lado, atua de forma mais empírica, em que a cidade toda é observada e seus potenciais e necessidades, além da participação dos habitantes, serem premissas para a concepção de qualquer projeto.
36
3
tradução livre
O planejamento tático tem toda a cidade em observação, além de conhecer seus pontos fortes e fracos, principalmente em questão de investimentos e poder. [...] O urbanista tem que sair de seu escritório, abrir seus olhos e ouvidos para a cidade e se abrir para atividades e pontos de vista que possam ser importantes na concepção do plano desenvolvido pelo profissional. [...] A arte do planejamento tático se baseia na tentativa e no lidar com circunstâncias imprevistas. A realidade existente é a informação mais importante a se considerar, especialmente lá, onde o poder e capital não se interessam. 3 (OSWALT; OVERMEYER; MISSELWITZ; 2013. p. 10)
USO TEMPORÁRIO
Ao contrário do urbanismo tático, que é voltado para o espaço público, o uso temporário vai ocupar edificações em desuso e terrenos baldios de caráter, então, privado, na cidade.
4
OSWALT;
OVERMEYER; MISSELWITZ, 2013.
O uso temporário apareceu com muita força e frequência em Berlin, nos anos 90, após a reunificação. A cidade apresentava muitos vazios, edificações abandonadas e antigas areas industriais, que com o escoamento da produção, foram desativadas e assim permaneceram. Segundo o grupo Urban Catalyst 4 , nesse período, a cidade se desenvolveu como nunca. Mas dessa vez, sem amparo de um planejamento. Nas áreas em desuso da cidade surgiu uma cena vital: inúmeros bares e clubes, festas improvisadas, e uma espécie de cultura de lazer. Muitas dessas organizações tinham em comum o fato de que eram migrantes ou temporárias. Pagavam-se preços muito baixos ou até simbólicos, para se ocupar aqueles locais. E assim foram-se experimentando usos. Nesse contexto, artistas e músicos também tinham seu 37
espaço para experimentações. Berlim foi, então, atraindo as gerações mais jovens, pois a cidade possibilitava improvisos e baixos custos de vida. O que era reconhecido como problema – edificações em desuso, terrenos baldios, e um lento crescimento econômico – tornou-se o recurso mais valioso da cidade. Nenhum daqueles lugares, tão atrativos nos olhos de alguns, estava aos olhos da administração da cidade. Nesse momento os usos temporários eram tratados muito mais como um tabu. Funcionários públicos e o mercado imobiliário entendiam esse tipo de ocupação como “selvagem” e que deveriam ser banida e prevenida, pois as atividades não se inseriam nem no plano diretor da cidade, como nos projetos de shopping centers e empreendimentos de ilhas empresariais que os investidores projetavam. [...] no entanto, depois da crise imobiliária e do New Economy, era apenas uma questão de tempo até que Berlim entrasse na crise imobiliária também. 5
5
tradução livre
(OSWALT; OVERMEYER; MISSELWITZ; 2013. p. 7)
O tema do desenvolvimento urbano informal, aqui abordado, [...] se difere do urbanismo informal dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Não se trata da rápida construção de edificações para suprir a crescente demanda e o rápido crescimento populacional, mas se trata da proposição de novos usos na cidade já edificada. [...] busca-se afrouxar/dissolver os formalismos existentes ao mesmo tempo que formalizar as práticas informais e integrá-las nas estruturas formais já estabelecidas. 6 (OSWALT; OVERMEYER; MISSELWITZ; 2013. p. 9)
38
6
idem
Esse uso ocupa as propriedades privadas de forma flexível e improvisada, e como sugerida pelo nome: temporária. Na maioria das vezes conta com baixos investimentos e capital, o que lhes atribui o caráter de improviso e experimentação, e conta com o importante fator da criatividade, resultando em programas inovadores e com grande flexibilidade de uso. Cada caso apresenta uma diferente realidade, mas é muito comum que a concessão do terreno ou edificação seja baseada em baixos custos – o que incentiva a pessoa que tem a iniciativa de trazer um uso para o local, ao mesmo tempo em que tira o proprietário da condição de perda de capital. Pois mesmo que o arrendamento da propriedade não se enquadre numa situação de lucrativos ganhos, pelo menos o proprietário não está apenas pagando por um patrimônio desocupado. É muito comum que os usos temporários envolvam projetos pioneiros, e normalmente em regiões decadentes da cidade. Isso faz com que usos no local possam ser ensaiados. Com novas atividades, geralmente ligadas à cultura e ao lazer, um considerável número de pessoas é atraído ao local, o que também favorece a economia da região – talvez a padaria da esquina passe a ter uma maior movimentação, o mesmo podendo acontecer com a banquinha de frutas, etc. A reativação da área em desuso também contribui positivamente para com o entorno, já que atrai, então, pessoas, movimentações e fluxos. O uso temporário altera a condição de vazio e inverte a realidade do edifício ou terreno em desuso. A ocupação, mesmo que provisória (em um local que até então estava fadado ao abandono), mesmo que apenas por um período de tempo (muitas vezes períodos até incalculáveis) provoca uma reinserção deste local na dinâmica da cidade, social e econômica, e também protege os locais contra vandalismo e invasões. Os usos temporários também contribuem para o espaço público, trazem vida à rua e talvez mudem até a realidade do bairro, pois criam situações que influenciam na sensação de segurança e sociabilização, entre outros. 7
https://www.schauspiel.
koeln/haus/carlsgarten, acesso em 8/10/2016, às 17:16.
Usos temporários não implicam necessariamente em uma atividade econômica pura e simplesmente. Exemplos de usos temporários flutuam desde jardins comunitários, 39
como o CarlsGarten 7 na cidade de Colônia, na Alemanha – financiado pelo teatro Schauspiel Köln, tendo suas atividades de jardinagem e outras programações culturais (como leituras, shows, e oficinas) gratuitas e voltadas ao público, focando principalmente na comunidade imigrante do bairro periférico onde o jardim se localiza. Também na cidade de Colônia há outro exemplo, desta vez com dupla atividade; o “empreendimento” se chama Jack in the Box 8 e surgiu como uma oficina de madeira e metal comunitária, com foco, sobretudo, na reinserção de moradores de rua e dependentes químicos no mercado de trabalho. Para se financiar, a organização promove festas, mercados de pulgas, feirinhas gastronômicas e até alugam seu salão principal para eventos particulares. Há também organizações privadas de usos temporários que visam
8
http://koelnerbox.de,
acesso em: 8/10/2016, às 17:37.
jardim urbano Carls Garten, em Colônia imagem: Marina Diez
40
fachada da dicoteca Flux, em Viena, uma antiga passagem subterrânea fonte imagem: http://www.lukastroberg.com/projekte/on-air/, acesso em 16/11/2016 às 21:50
mercado de pulgas Jack in the Box, em Colônia fonte imagem: http://www.nachtkonsum.com/koeln, acesso em 16/11/2016 às 22:05
41
simplesmente a atividade econômica, como por exemplo o clube Fluc 9 em Viena, que ocupa uma passagem subterrânea sob uma grande e movimentada avenida, que foi desativada após a construção de uma estação de metrô nas proximidades. A partir do princípio de apropriação do espaço em troca de baixo investimento de capital, o uso temporário se apresenta como um espaço de experimentações e base para o questionamento de como queremos viver o futuro de nossas cidades. Quem são os responsáveis pela forma de nossa cidade e quem responde pelo valor da sua terra? [...] E como pode ser organizado o paradoxo da autoapropriação do espaço e o planejamento urbano formal? 9 (OVERMEYER, 2013)
Quanto à experimentação de usos, o uso temporário temse mostrado muito eficiente. Seus programas improvisados e ensaiados acabam por influenciar também alguns usos permanentes. Isto é, muitas vezes um uso temporário inicia uma atividade em um determinado local e gera algum impacto ou atrai um grande número de pessoas, e, posteriormente, quando esse uso é interrompido, seja por questões de contrato e concessão do terreno ou outras razões, o próximo uso se baseia na experiência passada. A exemplo o, já citado, Jack in the Box: recentemente a gleba onde a oficina estava instalada foi comprada por uma incorporadora que pretende construir um bairro predominantemente residencial, mas a fim de apoiar a iniciativa da oficina e de sua responsabilidade social, a oficina será mantida e isenta de aluguel. É comum, portanto, que usos permanentes incorporem ou sejam influenciados por usos temporários, ou até que usos temporários se oficializem e se tornem usos permanentes. A seguir, um esquema dos cenários possíveis, decorrentes do uso temporário.
42
9
http://www.fluc.at,
acesso em: 8/10/2016, às 17:50.
9
tradução livre
1.
2.
Urbanismo regular
Urbanismo regular com Atores viram proprietários e influência do UT concretizam o UT Atores aquisicionam o terInvestor aquisiciona o terreno, e a atividade do UT é reno onde está o UT que integrada na arquitetura a eles mesmo gerenciam, e ser construída. dão ao UT uma arquitetura permanente.
Investor aquisiciona o terreno e constroi.
4.
3.
6.
5.
Não há investor - UT pode ser prolongado
Não há investor a longo prazo - regularização do UT Caso não haja qualquer in- Caso não haja um invesvestor interessado na área, o tor interessado na área a prolongamento do UT se faz longo prazo, os gestores do possível. UT podem regulamentar a aquisição do terreno. (exemplo: ocupações que se tornam propriedades)
Investor Construção
Uso Temporário
Ator
UT sem sucesso – área volta a ser disponível para outro UT Caso não haja êxito na atividade do UT, a área ou edificação fica disponível para outro UT.
Fator Tempo
Regularização
Estudo da influência do uso temporário no desenvolvimento urbano. Comparação dos possíveis cenários para um terreno, depois da ocupação de um uso temporário imagem: Marina Diez
43
terreno em desuso
terreno em desuso
uso temporĂĄrio
uso permanente
uso permanente
/
uso temporĂĄrio
Co mp a r a ç ã o d a p a ss age m do te mpo e ti pos de us o do te r r e no. imagem: Marina Diez
44
REFLEX ÕE S SO B RE E X PE RI Ê NCI AS ALT E RNAT IVAS DE U RB ANI SM O O urbanismo tático e o uso temporário respondem à principal investigação que esse trabalho se propõe, em busca de uma maior participação da população no futuro de suas cidades, de um planejamento urbano mais democratizado e da ressignificação de espaços públicos que os aproxime dos princípios do direito à cidade. Por mais diferente que seja a intervenção proposta por esses métodos alternativos de urbanismo, a proposta é de uma melhora sócio-espacial, consciente e participativa. Agrupar pessoas e trazê-las ao contato, sem se pautar única e exclusivamente no lucro ou exclusividades para um determinado grupo social, motiva flexibilizações nas estruturas sociais rígidas, isoladoras e hierarquizadas causadas pelo dia-a-dia, em uma situação adversa às atividades cotidianas – por exemplo, em uma horta urbana, as pessoas que participam da jardinagem desempenham o mesmo papel, pois têm o mesmo interesse; e, nesse contexto, a posição social é menos importante do que a experiência na jardinagem, e assim criam-se situações que amaciam e até quebram certas hierarquias pré-estabelecidas.
10
tradução livre
Barreiras sociais definidas por classes e raças podem ser atenuadas quando o espaço cotidiano é interceptado por encontros espontâneos. Tais novos vínculos sociais, anteriormente ocultos, nos mostram que essa espécie de micropolítica transforma situações triviais e de exclusões. 10 (OSWALT; OVERMEYER; MISSELWITZ, 2013. p. 154)
A arquitetura tradicional, a que estamos acostumados, também não exerce mais um papel principal nesse cenário. Aqui há uma libertação dos investimentos graúdos e dos acordos com instituições ou empresas poderosas. O importante é a criatividade, a imaginação e o know-how. Fazer a cidade mais humanizada; baixos investimentos, intervenção mínima, reúsos e utilização de recursos locais conduzem a um desenvolvimento mais sustentável. 45
A falta ou escassez de dinheiro, ausência de financiamentos e institucionalizações não é aqui um entrave, mas sim uma condição para o sucesso. 11 (OSWALT; OVERMEYER; MISSELWITZ, 2013. p. 12)
No entanto verifica-se, em alguns casos, que tais métodos alternativos de urbanização acarretam processos de gentrificação. Isso porque essas iniciativas em locais da cidade, de pouco interesse, tornam tais áreas atrativas – passam a ser áreas com vitalidade e de vida pública de qualidade. A região, aos poucos, pode passar a ser, então, concorrida pela procura por aluguéis, e até cair no foco do mercado imobiliário. Consequentemente, sobem os preços. Uma vez que o preço da terra sobe, e a região se insere na lógica do mercado imobiliário, essas atividades experimentais tendem a desaparecer. Acabam muitas vezes por serem vítimas de si mesmas, pois se instalam no local, atraem público, influenciam positivamente o entorno, mas não acompanham a inflação do preço da terra e são obrigadas, na maioria das vezes, a abandonarem o local. O risco da gentrificação está na homogeneização, na expulsão e periferização dos moradores locais e na perda de espaços propícios à experimentação, que acabam sendo economicamente inacessíveis após certas renovações. Enfrenta-se portanto a dualidade: ocupação do solo x gentrificação. A solução para se evitar a gentrificação, porém, também não é cair na imobilidade de ações. Os paradoxos urbanos evidenciados denunciam a importância do repensar e intervir nas cidades. Afinal, a forma que damos à sociedade afeta a vida diária de seus habitantes. As práticas alternativas nos mostram a relevância das ações e intervenções no espaço urbano, decorrentes da observação, da participação e da integração de ideias e pessoas. Assim sendo, pode-se concluir que intervenções táticas reivindicam uma postura crítica ao panorama da cidade neoliberal, e que se tenha conhecimento e evite a fetichização das experimentações – isso é, eventos de grafites em lojas de marcas, reunião de food trucks gourmet com preços abusivos e outras ações que 46
11
tradução livre
mascaram, por detrás de títulos de experimentação, a lógica da cidade e da sociedade neoliberal. Finalmente, se o urbanismo tático e os usos temporários são ações decorrentes da criatividade, improviso e experimentação, assume-se que não há regras ou normas para regulamentá-las. Logo, tratam-se de erros e acertos e o constante acompanhamento. E, assim como o próprio urbanismo tático defende, devemos ter a cidade em constante observação para evoluirmos juntos. Com um urbanismo autenticamente participativo, de maneira que se evolua em direção à igualdade e ao reconhecimento da diversidade, a uma sustentabilidade entendida a partir da vertente social. (MONTANER; MUXÍ, 2014. p. 211)
47
5. P R O P O STA DE URB ANIS MO TÁTICO PA R A SÃ O PAUL O
1
IBGE, 2016
2
Ibidem
3
Ibidem
4
Ibidem
5
GEOSAMPA, 2016
6
IBGE, 2016
7
MEYER, 2015
Pensar sobre a viabilidade do urbanismo tático para a cidade mais populosa do hemisfério Sul 1 e maior cidade da América Latina 2 , não soa a priori como uma solução. Seu extenso território (de aproximadamente 1.520 km2) 3 ainda carece de infraestrutura básica, abastecimento, planejamento e integração das áreas. A mobilidade urbana é cheia de entraves, congestionada e privilegiando o transporte individual, enquanto o transporte público não é bem distribuído e não cobre todo o território metropolitano nem sua demanda. Os processos de periferização continuam, e são em muitos casos incentivados pelas operações urbanas, e a favelização é um fato decorrente e recorrente. Em São Paulo, 22% da população mora em favelas, apenas 60% do esgoto da cidade é coletado e tratado, 1% das 15 mil toneladas de lixo é reciclado 4 . Altos índices de criminalidade, vulnerabilidade da população e taxas de desemprego se mantêm nos bairros mais afastados do vetor sudoeste, onde se concentram os investimentos e a infraestrutura 5 . Há uma taxa de 1 carro para cada 2 paulistanos 6 , e além do rodízio de veículos pondera-se o pedágio urbano como alternativa para o intenso congestionamento. A realidade delirante e de tantos contrastes, de São Paulo, não pode ser desprendida de sua história e formação do território. Já com a atividade cafeeira paulista no século 19, São Paulo foi ganhando importância geográfica e se destacando nas atividades comerciais. Com as Guerras Mundiais e a Queda da Bolsa em 1929, a cidade se viu obrigada a investir na industrialização, o que acabou por transformar sua economia, sociedade e história. As novas atividades atraíram um número significativo de imigrantes e, em uma segunda fase, migrantes. De 1900 a 1970 a população de São Paulo praticamente dobrou a cada década, atingindo a ordem de 8,5 milhões de habitantes em 1980 7 . Esse vertiginoso crescimento populacional 49
e grande expansão da mancha urbana trouxe inúmeras consequências e problemas para a cidade, e suprir as demandas passa a ser um desafio. Nesse contexto, intervenções pontuais, de baixo orçamento, locais, a fim de ativar e propor usos ao mesmo tempo em que se preocupava em democratizar o espaço público e envolver a população local nas decisões - parecem ineficazes para cobrir todos os problemas da metrópole. De fato, o urbanismo tático não substitui o planejamento urbano e a urbanização, pois já aponta como premissa uma existente, mesmo que mínima, infraestrutura a fim a ser repensada. Mas enfrenta, como já suscitado em seu próprio nome, taticamente, algumas questões vitais do espaço urbano. Isto é, não caberá às intervenções garantir os direitos humanos, suprir a demanda da habitação, saneamento e transporte público, mas trazer à tona questões ligadas à qualidade de vida nas cidades e produção do espaço e, principalmente, a democratização do espaço público. São Paulo optou por um urbanismo preocupado em resolver problemas à força, uma modernização que recriou os atrasos de outras formas e, nas palavras de Ermínia Maricato, buscando atalhos e ignorando o destino da maior parte da população restante 8 . Para a autora, o desenvolvimento urbano se deu às características de raízes coloniais; nunca rompeu com a assimetria em relação à dominação externa e que, internamente, nunca rompeu tampouco com a dominação fundada sobre o patrimonialismo e o privilégio 9 . E nesse contexto, no qual os direitos não são universais, a cidadania é restrita a poucos. Ao longo do século 20, a cidade de São Paulo foi sendo constituída a partir de premissas racionalistasfuncionalistas, sendo formada por fragmentações e justaposições, e concentrando a infraestrutura e obras de embelezamento e paisagismo nas regiões de interesse, implantando-se, assim, as bases legais para o mercado imobiliário de corte capitalista. As consequências do urbanismo pragmático vão além da questão da forma e atingem as relações e modos de vida na cidade, como no caso da esfera pública, que é precária, se não ausente. Nas palavras de Wisnik 10 , há um permanente desencontro 50
8
MARICATO, 2000. p. 21
9
10
Ibidem, p. 31
WISNIK, 2014. p. 52
entre o espaço projetado e as dinâmicas sociais. Embutido nesse pensamento, questiona-se: afinal, para quem o espaço é produzido? Nosso processo de urbanização e modernização foi e é altamente baseado em concentração de renda e segregação sócio-espacial, nossas praças e parques são gradeados, e usados comumente como banheiros públicos a céu aberto (apesar de honrosas exceções existirem). (WISNIK, 2014. p. 52)
Em outras palavras, muito pouco desse urbanismo tinha como foco a imensa população proletária em formação na cidade, o que ocasionará profundas fraturas sócio-espacial por todo território metropolitano. [...] Geografia difusa, conurbação, centro político e econômico territorial, cosmopolitismo cultural, destruição dos recursos naturais [...] pura pragmática, empreendedora. (BASSANI, 2005. p. 26)
É nesse âmbito, do pragmatismo do urbanismo tecnocrático, que o urbanismo tático assume grande potencialidade para a realidade de São Paulo, pois estas intervenções se envolvem com temáticas que atualmente estão na agenda e que vêm sendo defendidas ativamente pela população. As demandas sociais estão hoje se apropriando das ruas para reivindicarem pautas ligadas à cidade, sua humanização e os direitos sociais, contrapondo-se de forma relevante ao capitalismo financeiro, à especulação imobiliária, ao consumo exacerbado e à predominância dos interesses privados. As ruas se tornam palco e objeto, seja em forma de manifestações, happenings ou ocupações. Em uma abrangência mundial, veem-se práticas sociais que objetivam a interferência na dinâmica da cidade, que se apropriam do espaço coletivo a fim de interferir ou até de subverter as rotinas, dinâmicas, fluxos e até produtividade urbana, alterando não só a lógica do 51
espaço, como atingindo a esfera individual. Essas formas de manifestações recentes são inéditas por serem desconectadas de partidos, sindicatos, ou de uma figura de liderança; são horizontais e bastante atreladas à comunicação através das mídias sociais. Embora estejam fortemente envolvidas com uma certa espontaneidade e virtualidade, as ruas são objeto, cenário e parte crucial para o alcance e eficácia das reinvindicações. Essa é a tendência desses inúmeros movimentos que vêm ocorrendo por todo o mundo, como os diversos occupies, a primavera árabe, protestos na Grécia, Espanha, Argentina, Turquia e muitos outros. Esses movimentos críticos e politizados surgem na década de 90, tendo seu marco no Brasil e mais especificamente em São Paulo, com as manifestações de junho de 2013, na reivindicação pelo passe livre no transporte. Talvez seja porque o mundo nunca antes fôra tão urbano, e porque a cidade seja um espelho da sociedade, que as discussões de como queremos viver no futuro perpassam as palavras e a escrita, e atingem fisicamente o espaço, mais precisamente a lógica urbana. Não é só a partir de manifestações políticas que a população tem interferido nos espaços públicos da cidade para defender e levantar a discussão a respeito de nossos futuros. A virada do século vem acompanhando outras muitas formas de repensar como vivemos, seja de iniciativa privada ou pública. Exemplos a serem citados na cidade de São Paulo são as bicicletadas, que apoiam a opção pelo transporte ativo; as ciclofaixas, que aparecem nas grandes avenidas aos domingos e feriados; e as ciclovias, que polemizaram a gestão do prefeito Haddad; o programa do mesmo prefeito de abertura das ruas, como a Avenida Paulista aberta, em que importantes avenidas têm a circulação de automóveis interrompida; movimentações defendendo o Parque Augusta e o Parque Minhocão; circuitos de eventos de arte e cultura que saem para a cidade como Viradas Culturais, festival Baixo Centro, Bienal de Arquitetura, entre outros; construção de mobiliários para o Largo da Batata iniciada pelo coletivo A Batata Precisa de Você; ocupações na praça Roosevelt pelo coletivo Arrua, propondo eventos como aulas públicas; e muitos outros. 52
A arquitetura e o urbanismo podem ser vistos, então, como a materialização dessas movimentações e tendências. E o urbanismo tático, com suas características de temporalidade, direcionamento, participação, baixo custo e reúsos se torna uma ferramenta para as discussões trazidas pelas movimentações diversas. A interferência no espaço permite ensaiar e testar discursos e usos – afinal, haveria uma forma mais eficaz de criticar a desertificação do Largo da Batata, em São Paulo, se não pelos encontros e atividades propostas que culminou na construção de mobiliários para a enorme praça? Essa forma de urbanismo permite também pôr em prática (de forma rápida e temporária) temas novos ou polêmicos – como a interrupção parcial do tráfego de carros em avenidas e o concomitante convite do uso das ruas para o esporte e lazer. Além de permitir a reinterpretação de certos espaços da cidade e sua apropriação pelas pessoas – como no caso dos balanços propostos pelo coletivo Contrafilé, colocados em diversos viadutos da cidade, atraindo pessoas para talvez mudarem suas rotas, fazerem uma pausa em suas rotinas, e se deixarem balançar e fruir, mesmo que por poucos segundos. Ademais, o urbanismo tático tem se mostrado eficaz em reverter processos de esvaziamento e ausência de vida nos espaços públicos, pois as intervenções são, na maioria dos casos, estrategicamente pensadas, projetadas e desenhadas conjuntamente com usuários ou moradores do local.
13
HARVEY, 2008.
É nesse contexto que se pauta a proposta deste trabalho para uma intervenção tática em São Paulo. O objetivo é enaltecer a cidade humanizada, trazer e incentivar o uso dos espaços públicos da cidade, e inclusive questionar se usamos todos esses espaços, de fato. A ocupação deve ser de forma a reverter os processos de esvaziamento dos espaços públicos, e pensar em quem e por quem. Deve ser convidativa, sem oferecer barreiras físicas, sociais ou econômicas, direcionadas para um determinado lugar e uma determinada questão a sustentar. A ocupação do espaço deve acontecer, mesmo que seja a fim de concorrer por ele. A proposta é de apropriação – aquela defendida por Harvey 13 – que não tem a ver com a propriedade, mas sim com o uso. E, dessa forma, o espaço urbano pode transcender sua utilidade técnica e administrativa, para ser assumido como espaço da coletividade, de fruição, encontros, permanências, das vivências, do lúdico, contrastes e conflitos.
53
6. EN SA I O :
INT E R V E NÇ ÃO NO E L E VAD O
A dupla personalidade e o caráter polêmico que o elevado Presidente João Goulart (anteriormente Costa e Silva, embora mais conhecido como Minhocão) apresenta, foram os pontos-chaves na escolha do local para se projetar, em forma de ensaio, a reflexão aqui levantada a respeito das condições e conjunturas nas quais o urbanismo tático se faça relevante em uma cidade metropolitana e tão dissemelhante como São Paulo. A principal preocupação está em questionar a funcionalidade da cidade e suas consequências para o espaço público, e contrapô-la. O elevado pode ser entendido como símbolo do urbanismo tecnocrático, rodoviarista, característico da história de São Paulo. Adjacente ao Plano de Avenidas, de Prestes Maia, assume o objetivo de conectar o centro à região oeste, e rasga a cidade de forma abrupta em favor da circulação e velocidade do automóvel, em 1971. Ergueuse então uma via elevada, expressa, que sobrepôs e ignorou todo um universo já existente nas avenidas Amaral Gurgel e São João, transformando-as quase que em um subsolo. A estrutura de dimensões abrutalhadas e sem qualquer preocupação estética privou o solo da insolação, interferiu nas atividades e rotinas anteriormente existentes, agregou uma certa sensação de hostilidade, prejudicou as atividades comerciais da área, e trouxe às edificações de seu entrono as consequências do automóvel para mais perto - como a poluição de gases, sonora e visual, ondas de calor, barreiras e limites, etc. Poucos anos após sua inauguração, os desconfortos causados pela obra viária levaram o Minhocão a ter sua funcionalidade intermitente: há um descanso da circulação dos automóveis diariamente, das 21h30 às 6h30, e durante o dia todo aos domingos e feriados. Essa pausa foi mantida até hoje e, desde julho de 2015, estendida: o Minhocão agora interrompe a circulação dos carros não só no período noturno durante a semana, mas também aos sábado, desde as 13h, até segunda-feira, às 6h30. E a falácia 55
do Minhocão se reafirmou novamente cerca de 10 anos depois de sua construção, quando sua capacidade de tráfego saturou. Sem qualquer campanha ou programa da prefeitura, quando o elevado se fecha para os carros, ele se abre para as pessoas e vira um curioso espaço de lazer e esportes. Sem absolutamente nenhum tipo de infraestrutura, como por exemplo um banco, ou sequer uma sombra, as pessoas se apropriam de sua retidão e extensão de aproximadamente 3,5 km ininterruptos. E, como uma página em branco, veem-se ali as atividades mais diversas acontecerem, nas diferentes horas do dia e da noite. O público também é completamente heterogêneo. E a aspereza do asfalto e do concreto parecem fazer sentido, no fim das contas. Seu impacto na cidade, e seu aparente potencial de espaço público, fazem do Minhocão uma forte polêmica que divide as pessoas quanto seu destino. A demolição completa do elevado é uma proposta presente, praticamente, desde sua inauguração. Numa recente entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha preconizou a demolição pura simples do elevado. 1
1
Jornal Folha da
Tarde, 22/12/76 In:
Há aproximadamente 10 anos questiona-se a transformação do Minhocão em um parque elevado, a modelo do High Line em Nova Iorque. Há também posições que defendem a demolição apenas parcial e a transformação do restante em parque. Existe a posição da não interferência, que defende deixar a via como ela está. Os argumentos utilizados para cada uma das posições são inúmeros, muitas vezes se mesclam e até se contradizem. Questões importantes a serem consideradas para o debate residem no fato de que uma demolição acarreta a preocupação de uma solução para lidar com os resíduos e um largo investimento financeiro, pois se tratam de muitas toneladas de concreto e aço. A transformação em parque vai levar a região, que sofreu tanto com a via, a um inevitável processo de gentrificação. Alega-se também que 56
MARTINS, Luciana Bongiovani. FERRARA, Lucrécia D’Alésio (oriente.). Elevado Costa e Silva, processo de mudança de um lugar. São Paulo, 1997. p. 17
2
SODRÉ, João;
BÜHLER, Maíra; PASTORELO, Paulo. Elevado 3.5. São Paulo, 2007.
o parque contribuirá à região com barulho, insegurança, etc. E por fim existem aqueles que se preocupam piamente com o fluxo do transito. A pluralidade na opinião a respeito do futuro do Minhocão realmente divide os paulistanos. Mas curiosamente, como apontado no documentário Elevado 3.5 2 , trata-se, hoje, de um grande marco para a cidade, inclusive cultural, sendo para muitos um elemento muito mais importante que esculturas espalhadas pela cidade, como a do Borba Gato ou a dos Bandeirantes, de Brecheret. E os moradores da região acabam por ter uma relação com o elevado, mais de simpatia do que aversão e, para muitos, a demolição faria com que sentissem falta do Minhocão. Atualmente não se tem um futuro definido para a via, embora o Plano Diretor aprovado em 2014 pela gestão Haddad preveja uma desativação gradual. Em março de 2016, o mesmo prefeito sancionou lei que aprova o Parque Minhocão, sem alteração qualquer na dinâmica atual do elevado, mas que permite a criação de um conselho gestor para debater melhorias e planos em consenso com a sociedade. De um lado o símbolo da cidade tecnocrata, do automóvel, das barreiras, limites e falácia. De outro, a tradução da insistência e desejo das pessoas pelo espaço público. A vivacidade que o elevado abriga quando não está desempenhando sua função “oficial”, e as formas de apropriações de seus usuários, foram as inquietações iniciais que levaram este trabalho a investigar a ocupação e reinvenção do espaço público, em São Paulo, no Minhocão.
57
TE
RR
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S
1 : 12.500 1 : 12.500 BARRA FUNDA
ES. JOÃO ELEVADO PR GO
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PERDIZES
av. Pacaembú SANTA CECÍLIA
a. M
ar ec ha
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av. Angélica
M lgo. Sta. Cecília
o .d lgo uche o r A
CONSOLAÇÃO
pça. Roosevelt
educação
saúde
estação de metrô
área verde
cultura
religião
ponto de ônibus
administrativo
edifícios notáveis
av. da Consolação
pq. Augusta REPÚBLICA
concentração de pessoas
tipos de usos
pontos principais de transporte público
maior fluxo de pedestres
fluxos e procedências
áreas verdes
distâncias (r=50m)
1 : 12.500
ZONA NORTE
ZONA LESTE
ZONA OESTE
ZONA SUL
D I A GRA MA S
Perdizes
crianças e adolescentes jogando bola adultos sentados em mesinhas bicicleta esporte passeio com animais vendedores famílias pessoas sentadas heterogeneidade
Marechal Deodoro
fluxo de pessoas trecho mais “cenográfico” vista para o centro / pessoas fotografando
bifurcação São João x Amaral Gurgel
bicicleta esporte passeio com animais vendedores famílias pessoas sentadas
Sta. Cecília
bicicleta esporte passeio com animais jovens reunidos ou sentados skate na rampa
Consolação
ELEVADO 3,5km
74
CONCENTRAÇÃO DE PESSOAS
USOS
ESPECIFICAÇÃO
PROCEDÊNCIA DOS USUÁRIOS
+ 61
FAIXA ETÁRIA DOS USUÁRIOS
zona norte
até 19 20 - 35
zona leste zona norte arredores
PROPORÇÃO DE USOS
36 - 60 anos
zona oeste zona sul
outros
M M
TRANSPORTE PÚBLICO
ÁREA VERDE
o s d a d o s a q u i r e u n i d o s for am todos l e v antados e mpi r i came nte e c o n d e n sa d o s a fi m d e de fi ni r um padr ão. Fl ux os , us os e us uár i os v a r i a m m u i to d e acor do com o di a, me te or ol ogi a e hor ár i o.
75
76
77
À medida que as visitas ao Minhocão foram se dando, maior foi meu envolvimento e mais surgiam questionamentos sobre o lugar, e assim se fez a decisão: o estudo se concentra no caso do elevado, investigando as dinâmicas das diferentes camadas sobrepostas do local: • quais são os usos • quem são as pessoas que vão ao Minhocão e de onde elas vêm • a existência de territórios e territorialidade • fluxos • ideologias, resistência e apropriações envolvidas com o elevado O método se deu pela experiência empírica do local. Observações, conversas, entrevistas, fotografias, mapeamentos e desenhos foram os instrumentos usados para o estudo. A busca pela aproximação das pessoas com o espaço público, somada à realidade existente do lugar, fez concluir que a proposta se basearia na legitimação e permanência da apropriação e espontaneidade das atividades do lugar. Há uma inesgotabilidade na ocupação do Minhocão, e me cabe apenas incentivá-las ao invés de induzir e forçar algum uso ou situação. Considerei também a própria temporalidade do Minhocão como espaço público, local de lazer, esporte e permanência, como realidade para a intervenção. A intervenção se baseia em diferentes mobiliários que se acoplam em diferentes localidades ao longo do elevado em uma relação simbiótica, pensados a partir de materiais simples e de caráter temporário e experimental. Cada mobiliário foi desenvolvido especificamente para a localidade escolhida, considerando os usos, territórios, fluxos e demais fatores que influenciam cada lugar. São diferentes em propostas e formas, mas dialogam entre si por promoverem a ocupação do lugar e defenderem a prática da cidade. Se de um lado assumem uma forma e sugerem uma função, são ao mesmo tempo apenas suporte para a apropriação.
78
I N T E R V E NÇÕE S Não vivemos em um espaço neutro e branco; não vivemos, não morremos e não amamos no retângulo de uma folha de papel. Vivemos, morremos e amamos em um espaço esquadrado, recortado, multicor, com zonas claras e sombras, diferenças de níveis, degraus, cavidades, protuberâncias, regiões duras e outras quebradiças, penetráveis, porosas. (FOUCAULT, 2009. p.23-4)
3. PAÇO MARECHAL
2. CONEXÃO DAS 3 COTAS
1. CAMPINHO DE RUA
8. OÁSIS FLUTUANTE 9. TRAME-SE
7. DISTOPIA METEOROLÓGICA
6. TORRE PERISCÓPICA
5. CONEXÕES CROMÁTICAS
4. METAPARQUINHO
1.
C A M P I N H O D E R UA
Adaptação das cancelas, usadas para interromper o fluxo de automóveis, em equipamentos que deem suporte aos esportes de rua: gols e cestas de basquete. O asfalto vira o campinho, e os elementos delimitam a área de jogo. As cancelas são fixas, mas de base giratória. E, assim que são usadas para encerrar o trânsito viário, inauguram, ao mesmo tempo, o campinho. Soma-se ao potencial que o elevado oferece para a prática de esportes e do lúdico, como atrai e promove a sociabilização e permanências.
82
2.
C O N E X Ã O D A S 3 COTAS
Uma estrutura metálica, a fim de conectar um importante cruzamento de cotas: a avenida Pacaembu, avenida São João e o Minhocão. A torre ainda perpassa o nível do elevado, oferecendo um patamar de vista panorâmica para o vale da Barra Funda e Pacaembu, e servindo também como mais um acesso ao elevado. A proposta da estrutura vai além da transposição; a verticalidade também é usada como suporte para atividades como o rapel, e em cada patamar há balanços, que podem ser usados para o divertimento ou simplesmente como assentos.
84
3.
PA Ç O M A R E C HAL
Em reconhecimento ao fato de que um dos maiores aglomerados de pessoas no Minhocão se dá no entorno da rampa de acesso que conecta a estação do Metrô e a Praça Marechal Deodoro com o elevado, e que a conexão não é a única razão, mas também o fato de que ali se reúnem vendedores ambulantes e carrinhos das mais diferentes comidas, o paço foi projetado com o intuito de receber essas pessoas que se reúnem, nessa área, e oferecer um amparo: a sombra, assento e mesas. O abrigo é encaixado exatamente na divisão das pistas de automóveis, não interferindo nas demais atividades viárias ou do espaço público.
86
4. M E TA PA R Q U I NHO O objetivo é de reunir os dois planos em uma atividade, tirar proveito do desnível do elevado, ampliar o parquinho e praça Marechal Deodoro para o nível do Minhocão e viceversa. O equipamento convida à corporificação e ao lúdico. Escalar, brincar, deitar-se, escorregar, e fazer tudo de novo. A escala da instalação intenciona atrair não só as crianças, mas pessoas de todas as idades.
88
5.
C O N E X Õ E S C R OMÁTICAS
A intervenção se apropria de uma das simbologias do arcoíris, aquela que o relaciona com a imagem de uma ponte capaz de ligar o mundo sensível ao supra sensível. No contexto do elevado, as cores ocupam todos os planos que envolvem o Minhocão e seu entorno no trecho para onde foi proposto. Se apropriam da empena cega, correm até encontrar o asfalto do elevado e tomam essa superfície. Na confluência com a rampa de acesso da Santa Cecília as cores descem para o nível da rua, estendem-se pelas paredes do pilar estrutural, percorrem a cobertura do elevado até o encontro com a empena cega. Forma-se assim uma continuidade e conexão visual e sensorial das camadas do elevado. A decisão pela locação se deu pelo desejo de intervenção em dois pontos-chave: o ambiente hostil que a empena cega causa nas duas camadas do elevado, e o acesso escondido que a rampa oferece aos pedestres, principalmente àqueles que saem do metrô Santa Cecília.
90
6.
TO R R E P E R I SC ÓPICA
Um objeto agigantado que se apropria da vista para o centro de São Paulo, que a curva do elevado na região da Sta. Cecília propõe. No entanto, o objeto não visa concorrer com a bela perspectiva, mas se propõe a ser uma espécie de mirante ou observatório a partir da lógica do periscópio, mudando o ponto de vista do que é observado e até causando um estranhamento e quebra nas expectativas do observador. O periscópio também oferece uma conexão e interação entre as duas camadas do elevado, e interação entre os observadores, que podem se enxergar e observar.
92
7.
D I STO P I A M E TE OR OL ÓG ICA
A instalação propõe tentar devolver aquilo que foi retirado da avenida Amaral Gurgel, com a construção do elevado: o contato com o céu e a luminosidade natural. No entanto, a instalação também visa uma interação entre as duas camadas, de forma a conectá-las, mesmo que virtualmente. Painéis de LED na superfície do Minhocão simulam imagens do céu. Essas imagens, porém, são criadas a partir dos movimentos da camada superior, captados por um estranho e espalhafatoso objeto, repleto de sensores. Quanto mais movimentação, mais nuvens estarão no céu do andar de baixo. A lógica meteorológica é então revertida; afinal, os horários e dias de congestionamento de veículos são os dias de céu nublado e, nos dias de pedestres e descanso dos carros, tem-se o céu mais claro e livre de nuvens.
94
8.
O Á SI S F L U T U ANTE
O entroncamento viário, localizado no final do elevado, junto ao desnível e encontro com a avenida Amaral Gurgel, nas proximidades da Avenida da Consolação, forma uma bifurcação das pistas do Minhocão, causando uma espécie de fenda na estrutura. Esse oásis se apropria desse espaço virtual e do aglomerado de pessoas que se forma nessa conexão do Minhocão com a Avenida da consolação e com a Praça Roosevelt, transformando-a em um lugar de permanência, repouso, descanso, encontros, conversas... redes, sombra e calma é ao que essa ilha sobre o vazio se propõe.
96
9. T R A M E - SE Uma trama que se apropria de um espaço residual causado pela lógica rodoviarista. Este não-lugar, provavelmente por oferecer tantos “problemas” ou acomodação, precisou de uma intervenção a fim de impedir a permanência de pessoas: no caso, um gigantesco e orgânico bloco de concreto. Esse conjunto de fios tem o objetivo de concorrer com a intenção que originou o bloco, e trazer ainda mais pessoas para o local. Deseja despertar a corporificação, espacialização e experimentações do espaço, do material e da forma. Seja pelo desafio de percorrer a espécie de labirinto que esses fios tracionados propõem ao longo do bloco, ou para usálos como uma rede para se deitar, ficar e testar posições.
98
7. C O NS I D ER A Ç Õ E S F I N A I S Em respostas às formas egocêntricas que a cidade formatada pelo urbanismo neoliberal vem tomando, e em resposta à falência de nossos espaços públicos, vítimas da cidade dos privilégios, rodoviarista, dos shopping-centers e dos muros, é que surgem as entopias aqui ensaiadas. A superposição de um espaço sobre outro espaço já existente não busca a competição ou anulação, mas sim, a legitimação do que já acontece no elevado, e quiçá o convite a outros novos usos. As intervenções se apropriam do Minhocão da mesma forma que as pessoas o fazem, e se apropria da temporalidade do espaço público, no qual a via se transforma. A ausência de qualquer infraestrutura que oficialize o Minhocão como um parque propriamente dito é, por um lado, o motivo pelo qual ali aparecem tantos usos diferentes. As intervenções buscam, então, tirar vantagem dessa mutabilidade do Minhocão e somar os elementos à aspereza do lugar. Acomodam-se de forma simbiótica, não preocupadas em combater o fluxo dos automóveis, nem condicionar nenhum tipo de uso ou se enraizarem e ficarem ali para sempre. Ao contrário, são espaços superpostos, de experimentação, de materiais simples e temporários. E, na sua forma, busca-se a liberdade de apropriação. Não só na forma como na proposta, pois não há um dono, nem um manual de instruções, muito menos um vigia que coibirá alguém de cochilar na rede ou sequer de acessar a estrutura. Assim se deu a opção por evitar um projeto arquitetônico, concreto e definitivo, de programa pré-estabelecido, e formas que condicionem o uso. As intervenções surgem das atividades e usos do lugar, mas objetivam ser além de um amparo, buscam atuar como um eco ao que o público deseja, incitando à apropriação, à fruição, desaceleração, encontros, sociabilização, o lúdico, os conflitos, e mais tudo aquilo de que o espaço público humanizado é palco.
100
Esse estudo está longe de negar o projeto de arquitetura que pensa os espaços de forma permanente. Esses são, aliás, a premissa para que exista a cidade e o espaço público. Meu exercício se ocupou em olhar e pensar os espaços residuais e ignorados, produzidos pela voracidade de uma obra tecnocrática como a do Minhocão, dar voz ao uso que as pessoas fazem da sua cidade, e suscitar o debate de que a humanização da cidade e a produção do espaço público não têm como resposta única e exclusivamente obras de grande porte e orçamento, nem a demolição e destruição daquilo que não funcionou, além dos entraves burocráticos e políticos. De um lado, é controverso que as propostas de intervenções táticas a fim de testar usos e experimentações não saiam do papel. Mas essas são ensaios, pois não se colocam como soluções. Ensaiar permite testar, antes dos usos, os discursos e possibilidades, e também as ideias, tensões, ousadias, analogias, utopias, sutilezas, formas, tamanhos, cores... e assim pude desenvolver o exercício de discutir aquilo que a cidade está vivendo e buscando viver. Ensaiar desenhos e pontos de vista, por fim, me levaram a concluir que a potencialidade de uma resposta à cidade para poucos, está quando essa se faz ocupada por muitos.
c o r te j o do Cor o de Car car ás no M i nhocão, no fe s ti v al Bai x o Ce ntr o, 2013. imagem: autor desconhecido
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